ARTIGO MORUJÃO, Arthur a_logica_modernorum

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A LOGICA MODERNORUM: LÓGICA E FILOSOFIA DA LINGUAGEM NA ESCOLÁSTICA DOS SÉCULOS XIII E XIV CARLOS MORUJÃO Universidade Católica Portuguesa «Der Zweck der Philosophie ist die logische Klãrung der Gedanken. [...1 Das Resultat der Philosophie sind nicht "philosophische Sãtze ", sondem das klarwerden von Sãtzen ( Wittgenstein , Tractatus Logico-Philsophicus, 4.112) Introdução Como é do conhecimento geral, divide-se habitualmente a história da lógica na Idade Média em três grandes períodos. Primeiro, o período da logica vetus, até aos finais do século XI, caracterizado, essencialmente, pelo comentário às Categorias e ao De Interpretatione de Aristóteles, e à Isagoge de Porfírio, conhecidos pelas traduções latinas de Boécio. Em seguida, o período da logica nova, no século XII, resultante do conheci- mento dos restantes livros do Organon (correspondentes à doutrina do silogismo doutrina do método) e da totalidade dos escritos lógicos de Boécio, em particular os seus comentários a Aristóteles Isagoge. O conhecimento das Refutações Sofísticas, em particular, despertará um grande interesse entre os lógicos do século XII, multiplicando-se os trata- dos sobre os sophismata. Numa acepção muito próxima da de Bertrand Russell, os diversos sistemas de lógica desta época tentarão mostrar a sua força na capacidade em resolver paradoxos'. E, por fim, o período da logica 1 O papel de resolver paradoxos caberá, justamente, no século seguinte, à teoria da suppositio, uma das mais interessantes e originais criações da semântica medieval, que

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  • A LOGICA MODERNORUM: LGICA E FILOSOFIADA LINGUAGEM NA ESCOLSTICA

    DOS SCULOS XIII E XIV

    CARLOS MORUJOUniversidade Catlica Portuguesa

    Der Zweck der Philosophie ist die logische Klrungder Gedanken. [...1 Das Resultat der Philosophie sindnicht "philosophische Stze", sondem das klarwerden vonStzen . ( Wittgenstein , Tractatus Logico-Philsophicus,4.112)

    Introduo

    Como do conhecimento geral, divide-se habitualmente a histria dalgica na Idade Mdia em trs grandes perodos. Primeiro, o perodo dalogica vetus, at aos finais do sculo XI, caracterizado, essencialmente,pelo comentrio s Categorias e ao De Interpretatione de Aristteles, e Isagoge de Porfrio, conhecidos pelas tradues latinas de Bocio. Emseguida, o perodo da logica nova, no sculo XII, resultante do conheci-mento dos restantes livros do Organon (correspondentes doutrina dosilogismo e doutrina do mtodo) e da totalidade dos escritos lgicos deBocio, em particular os seus comentrios a Aristteles e Isagoge. Oconhecimento das Refutaes Sofsticas, em particular, despertar umgrande interesse entre os lgicos do sculo XII, multiplicando-se os trata-dos sobre os sophismata. Numa acepo muito prxima da de BertrandRussell, os diversos sistemas de lgica desta poca tentaro mostrar a suafora na capacidade em resolver paradoxos'. E, por fim, o perodo da logica

    1 O papel de resolver paradoxos caber, justamente, j no sculo seguinte, teoria dasuppositio, uma das mais interessantes e originais criaes da semntica medieval, que

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    modernorum, a partir do sculo XIII, que se ocupa da anlise semnticada lgica de Aristteles (ou seja, das chamadas proprietates terminorum2),da definio do objecto da lgica e da relao entre a lgica e a ontolo-gia. Esta ser a poca das Su nmae ou e sobre ela, funda-mentalmente, que incidir o nosso estudo.

    Se mesmo na logica vetus e na logica nova j possvel detectarelementos de outras tradies lgicas que no a de Aristteles, nomea-damente da tradio rnegrico-estica (conhecida, provavelmente, atravsdas obras de Bocio), podemos afirmar que nada, ou quase nada, na logicamodernorum deriva das doutrinas lgicas do estagirita3. Isto particular-mente verdadeiro da chamada doutrina da suppositio, de que nos ocupa-remos na parte principal deste ensaio, e da doutrina das consequentiae.

    Alis, quanto a esta ltima, o prprio termo consequentia, emborautilizado por Bocio para traduzir o grego dKOXuO^6ts, recebe o senti-do tcnico de uma relao entre proposies, que no possua em Aris-tteles. E, sendo, provavelmente, de descartar qualquer influncia directada lgica estica sobre a lgica medieval, no , contudo, de excluirque alguns elementos da teoria das frases condicionais, nos esticos,presentes nas obras de Bocio, tenham influenciado o tratamento daquesto pela logica modernorum. Foi em Bocio que os medievaispuderam colher a distino entre as proposies condicionais vlidaspara o momento presente e as que exprimem uma relao natural entreo antecedente e o consequente (validas, por conseguinte, para qualquertempo), bem como uma discusso da natureza dos tpicos, da qual,como veremos na ltima seco deste ensaio, resultou directamentea doutrina das consequentiae, no incio do sculo XIV4.

    medida que os textos deste perodo vo sendo progressivamenteconhecidos, alguns autores comeam a adquirir uma importncia para

    desenvolveremos mais frente. Assim, por exemplo, no silogismo: o homem a maisdigna das criaturas, Scrates homem, logo, Scrates a mais digna das criaturas, afalcia consiste em que homem, pretenso termo mdio deste silogismo, supe, na maiore na menor; por duas realidades distintas. Pela espcie, no primeiro caso (a chamadasuppositio simplex) e por um indivduo da espcie, no segundo (a suppositio personalis).

    2 Cf. a definio de proprietates terminorwn in L. M. de Rijk, Logica Modernorum,Assen, Van Gorcum & Comp., 1962-1967, 3 vols. vol. I111, p. 513: As the name implies,the theory of the properties of terms is intended to provide an account of the differentroles that words can have when they appear as terms in propositions.

    3 Cf. Vicente Munoz Delgado, Introduccin ai patrimonio escolstico de lgica, inCuadernos Salmantinos de Filosofia, 11/1 (1975) 45-75, p. 49.

    4 Sobre este assunto, cf. Norman Kretzmann, Anthony Kenny, Jan Pinborg, TheCambridge Historv of Later Medieval Philosophv, Cambridge / New York / New Rochelle/ Melbourne / Sydney, Cambridge University Press, 1982, p. 303.

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    o desenvolvimento da lgica que at h algumas dezenas de anos atrspermanecia insuspeitada . E o caso , por exemplo , do dominicano inglsRichard Kilwardby, comentador dos Primeiros Analticos de Arist-teles, de que falaremos mais adiante . Nele e em vrios outros encontra-mos uma sistematizao das teorias lgicas e uma aguda conscinciados problemas estritamente lgicos (mesmo admitindo um paralelismolgico-gramatical que tem por base a estrutura sintctica da lngualatina ), efectuadas num plano de independncia em relao s tesesontolgicas fundamentais , nomeadamente , s que opunham , nos sculosXIII e XIV, os reales e os nominales.

    Na exposio seguinte , deixaremos intencionalmente de lado umimportante captulo da lgica, que tambm mereceu alguma ateno porparte dos lgicos medievais , a saber, a lgica modal . A primeira razopara tal deve-se ao facto de ele no ser objecto de nenhum tratado queespecialmente lhe fosse dedicado , embora no seja impossvel encontrarreflexes de certo interesse sobre o assunto em autores como Abelardoou William of Sherwood . A segunda razo tem a ver com o facto deno ser no domnio da lgica modal que se situa o principal contributoda logica modernorum para a histria da lgica. (O prprio Abelardo,que acabmos de mencionar , figura to decisiva para o desenvolvi-mento da lgica na Idade Mdia, no pertence sequer a este perodo.)Mas uma terceira razo, de mbito mais geral , motivou tambm a nossadeciso. que em nenhum momento os lgicos medievais parecemser sentido a necessidade da articular o uso dos operadores modais -como, por exemplo , possvel ou necessrio - com os conceitosmodais de acto e de potncia, herdados da filosofia de Aristteles5.Esta situao , que restringiu o alcance das suas investigaes puramentelgicas neste domnio, obrigar - nos-ia a um tipo de abordagem do pro-blema que extravasaria , em muito, os limites que nos impe um ensaioda natureza deste que agora apresentamos.

    A importncia da Isagoge. Nomes de primeira e de segundaimposio . A lgica como cincia das intenes segundas

    Na sua Isagoge - termo grego que, como se sabe, significa intro-duo -, Porfrio pretendera resolver o que considerava algumas difi-culdades colocadas pelas Categorias de Aristteles. No incio do cap-tulo 2. desta obra, Aristteles afirma que, entre as expresses, algumas

    5 Cf. Hans Poser, Zur Theorie der Modalbegriffe bei G. W. Leibniz , Wiesbaden, Fanz

    Steiner Verlag , 1969, p. 6.

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    so ditas segundo a ligao6 que contm, ou seja, segundo a relao entreum sujeito e um predicado, e outras so ditas sem nenhuma ligao.Em seguida, afirma que necessrio distinguir entre dos tipos de seres,a saber, os que so ditos de outra coisa, e os que esto em outra coisa:ou seja, necessrio distinguir os predicados essenciais dos predicadosacidentais. assim que, numa expresso como Scrates homem,a humanidade dita de Scrates, no sentido em que legtimo afir-mar-se que convm a Scrates a prpria definio de humanidade; comefeito, nada se encontra na segunda que no esteja tambm no pri-meiro. Mas j em Scrates branco, a definio de brancura no dita de Scrates, na medida em que nesta ltima proposio noslimitamos a constatar a conjuno acidental7 entre um determinadoindivduo e a brancura que lhe atribuda. Ou seja, Scrates poderiamuito bem no ser branco. Por fim, Aristteles defende que existe,ainda, aquilo que tanto pode ser dito de uma coisa como estarem outra coisa; o caso do conhecido exemplo da cincia, que tantopode ser dita da gramtica, como estar na alma daquele que sabe.

    Para Porfrio, a primeira distino a fazer entre predicados epredicveis. Por exemplo: na expresso todos os homens so mor-tais, mortais um predicado, mas atribudo a todos os homensde modo diferente do que o seria, por exemplo, o predicado bpedessem penas. O predicvel ser, ento, o modo como um certo pre-dicado atribudo a um sujeito.

    Aristteles tinha j estabelecido quatro distines, entre o gnero,o prprio, o acidente e a definio. Por sua vez, distinguira quatro tiposde definio. Primeiro, a definio que explica o nome (ou definionominal), que desenvolve o que est contido na expresso precedenteEm segundo lugar, a definio pela causa, como, por exemplo, o trovo a extino do fogo nas nuvens, em que o trovo a causa da extin-o. Em terceiro lugar, a definio de termos imediatos, que se aplicaquelas coisas que no tm causa, como os axiomas da geometria, eservem de princpio demonstrao. Por fim, a definio da essncia: o que acontece quando definimos a espcie pelo gnero e peladiferena. Este ltimo , alis, um caso particular, mas por assim dizer

    6 Aristteles, Categorias, 1 a 16: KaT auTrXOKly. Seguimos, quase sempre, o textoda traduo francesa de Jean Tricot, in Aristote, Catgories / De 17nterprtation, Paris, Vrin,1994. Confrontmos esta traduo com o original grego in Aristotle, Categories / OnInterpretation / Prior Anal vtics, Cambridge (Ma.) / London, Harvard University Press (LoebClassical Library), 1996.

    7 A expresso de Pierre Aubenque, in Le Problme de 1'tre chez Aristote, Paris,PUF, 1983, 5a ed., p. 139.

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    paradigmtico, de definio, na medida em que faz coincidir o que em si mesmo anterior e mais universal com o que o epistemologi-camente, ou seja, para ns.

    Porfrio distinguir cinco predicveis: o gnero, a espcie, a diferena,o prprio e o acidente. Mas enuncia uma precauo que ir tomar nasua exposio deste assunto: vai tratar das expresses que relacionamum sujeito e um predicado enquanto expresses significativas, quer dizer,s ir abordar a estrutura da realidade indirectamente, tal como elatransparece da anlise da estrutura da linguagem, por conseguinte,independentemente daquilo que, como metafsico, poderia ser obri-gados a admitir.

    pergunta: de que que o universal depois do mltiplo sinal, res-pondia-se, de acordo com a teoria aristotlica dos sinais e das afecesda alma, no Peri Hermeneias8: sinal do universal antes do mltiplo.Ora, Bocio proceder a uma distino entre os sinais de primeiraimposio, que designam (ou supem pelas) coisas, e os sinais desegunda imposio, que designam (ou supem por) os primeirossinais'. Uma vez que, a partir do final do sculo XII, as tradueslatinas de Avicena consagraro o termo intentio para designar a formade um objecto na alma, resultar daqui ter-se generalizado o uso daexpresso primeira inteno, em vez de primeira imposio, que remon-tava distino de Bocio a que fizemos referncia10. Contudo, o termoimposio - do latim impositio - designa com bastante mais clareza, emnosso entender, o tipo de operao mental que est aqui em causa.Ele remete para o acto com o qual o homem decide significar deter-minadas realidades atravs de um nome, ou seja, de um som vocal

    8 Aristteles, Peri Hermeneias, 16 a 3 e segs.: Os sons emitidos pela voz so ossinais das afeces da alma e as palavras escritas so os sinais das palavras emitidas pelavoz. E, tal como a escrita no a mesma em todos os homens, as palavras faladas tambmno so as mesmas, embora as afeces da alma de que essas expresses so os sinaisimediatos sejam idnticas em todos, como so tambm idnticas as coisas de que essasafeces so as imagens.

    9 Sobre a problemtica de rebus nomina imponere, em Bocio, cf. In CategoriasAristotelis libri quattuor, 1, in Migne, Patrstica Latina, vol. 64, 159 A-C. A doutrina serdesenvolvida, no sculo XII, por Abelardo e John of Salisbury.

    10 Vicente Munoz Delgado, Introduccin ai patrimonio escolstico de lgica, Ibidem,p. 56. Do ponto de vista ontolgico e gnoseolgico, a traduo por intentio do ma'n deAvicena no deixar de comportar algumas ambiguidades, tanto mais que o termo tantopode designar o conceito de uma coisa, como essa mesma coisa enquanto concebida, ou,

    ainda, os dois em simultneo. Sobre este assunto, veja-se Alain de Libera et Cyrille Michon,L'tre et I'Essence. Le Vocabulaire Mdival de l'Ontologie, Paris, Ed. du Seuil, 1996,pp. 250-251.

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    que, assim , se distingue dos sons emitidos pelos animais ou pelosobjectos inanimadosil.

    Alguns exemplos simples permitiro compreender melhor as distin-es a que aludimos. Suponhamos a proposio : Scrates homem..Scrates um termo de primeira imposio, pois refere o indivduoque identificado por aquele nome. Mas homem , igualmente, umtermo de primeira imposio, pois refere - se a uni indivduo chamadoScrates e no a Scrates , nome de um indivduo . Suponhamos , agora,a proposio : o homem unia espcie. Homem uni termo de pri-nmeira imposio, ao passo que, agora , espcie uni terno de segundaimposio. O problema , aqui, no est no facto de espcie referir-se ahomem, mas sim no facto de a inteno da mente ser diferente nos doiscasos. Homem refere-se a cada homem , ou a todos os homens, enquantoespcie se refere totalidade dos homens , do ponto de vista da suahumanidade . Espcie , por esta razo, um sinal de segunda imposio.

    Na segunda metade do sculo XIII, a corrente chamada dosmodistae ( Bocio de Dcia e Martinho de Dcia, Radulfo Brito, Tomsde Erfurt , Simon of Feversham , comentador do Tractatus de PedroHispano, entre outros, ) diro que as intenes segundas so o objectoda lgica, mas esta tese remonta, na realidade , ao j mencionadocomentrio de Bocio s Categorias de Aristteles , que qualifica ospredicveis de nomes de nomes12. Mas a novidade dos modistaeconsiste em dividir a lgica de acordo com o que consideram as trsoperaes da mente, ou modi intelligendi : as intenes primeiras, quese realizam na simples apreenso das quididades , ou da essncia (talcomo se exprime nos termos simples - como o gnero ou a espcie- que Aristteles estuda nas suas Categorias, ou nos predicveis dePorfrio ), e as intenes segundas , que se realizam no juzo (queAristteles estudou na sua teoria da predicao , no Peri Hermeneias)e no raciocnio ( objecto da doutrina aristotlica do silogismo, tal comofoi estudada, em particular, nos Primeiros Analticos e no Livro II dosSegundos Analticos )' 3. Cincia das intenes segundas , ento, a lgica,para os modistae , uma scientia sermocinalis.

    11 Cf. Paola Mller, Introduo a Guilherme de Ockham, Lgica dos Ternos, PortoAlegre, EDIPUCRS, 1999, p. 14.

    12 Bocio, In Categorias Aristotelis libri quattuor, I, Ibideni, col. 159 C: Ergo pri-ma positio nominis secundum significationem vocabuli facta est, secunda vero secundumfiguram: et est prima positio, ut nomina rebus imponerentur, secunda vero ut aliis nominibusipsa nomina designarentur.

    3 Sobre este assunto, cf. Norman Kretzmann, Anthony Kenny, Jan Pinborg, op. cit.,pp. 486-487.

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    As especulaes lgico-gramaticais dos modistae diferem, contudo,das dos lgicos terministas do sculo seguinte, em primeiro lugar pelopouco relevo que nelas dado doutrina da suposio. A teoria dosmodi significandi, como o prprio nome indica, uma teoria da sig-nificao e no da referncia, para a qual o sentido de um termoque determina o mbito da sua utilizao e, por conseguinte, desdeque estejam em causa contextos proposicionais, a verdade e a falsi-dade das proposies em que se encontram14. Poderamos classificaras suas principais preocupaes como consistindo em fornecer aosmodi significandi uma interpretao de carcter ontolgico, fazendoa cada um deles corresponder um distinto modus essendi.

    A doutrina da suppositio nas summulae do sculo XIII

    Em sintonia com a posio de Aristteles no Peri Hermeneias, nassummulae do sculo XIII a proposio considerada como a unidadelingustica primria. Os termos categoremticos e os elementos sinca-tegoremticos que a compem so os dois elementos da linguagem,que remetem para algo que prvio prpria linguagem. Os primeirossupem, isto , esto na proposio em vez de uma certa reali-dade, de natureza fsica ou mental; os segundos reenviam para asoperaes realizadas sobre os termos ou sobre as proposies (impli-cao, conjuno, disjuno, negao, etc.), ou para a quantidade - uni-versal ou particular - das proposies em que os termos se encontram15.Regista-se a primeira ocorrncia da palavra sincategoremtico, bemcomo a sua definio - Alie [sc. voces] sunt que per se non significantsed in coniunctione ad alias, et tales dicuntur sincategoreumata -,num pequeno tratado do sculo XII, atribudo a um certo Mestre Nicolau,que se encontra na Bibliothque Nationale de Paris16. Voltaremos mais frente a este assunto.

    '4 Idem, Ibidem, pp. 264-265.15 Convm no esquecer o facto de que todas as investigaes dos medievais, no dom-

    nio da lgica, se fizeram tendo por base a estrutura da lngua latina. A ausncia, nesta lngua, dosartigos definido e indefinido limitou o mbito daquelas investigaes, impossibilitando mesmo odesenvolvimento de alguns domnios da lgica, como, por exemplo, a teoria das descries.

    16 Os outros [sc. termos] so os que por si mesmos no significam, mas sim em con-juno com outros, e esses chamam-se sincategoremticos. Cf. L. M. de Rijk, Ibidem, p.82. No sculo XIV, Joo Buridano chamar adjuntos dos sincategoremticos aos termoscategoremticos Estes ltimos so dotados de significao (e, tambm, de suppositio), e graas a eles que os primeiros significam, quando com eles se fundem na proposio.

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    Quanto ao termo supponere, registe-se a sua utilizao, pela pri-meira vez, no sculo VI, pelo gramtico Prisciano, nos InstitutionumGrammaticarum Libri, significando a relao que o sujeito gramati-cal mantm com o predicado numa frase declarativa: o sujeito subjazou est sob o predicado. A teoria da suppositio, bem como das demaisproprietates terminorum, nasce, entre os comentadores medievais dePrisciano, da anlise lgico-gramatical das proposies]'. possveldetectar unia das suas mais significativas ocorrncias - antes de sefixar, no sculo XIII, o seu alcance propriamente semntico - noscomentrios de Pedro Helyas aos Intitutionum Grammaticarum, ondepodemos encontrar o exemplo seguinte: Vir^iliu,s scripsit Bucolica.[...] Per hoc nomen "Virgilius" fit ibi prima rei suppositio. I8 Esta ltimafrase significa, claramente, o acto de pr alguma coisa em posio desujeito gramatical e no, ainda, o substrato ontolgico do termo sujeito.

    Porm, devido influncia das doutrinas filosficas, rapidamente osujeito da frase, ou seja, id de quo fit sermo19, passa identificar-secom o substrato ontolgico da prpria frase. Nada mais natural, alis,se pensarmos que o latim suppositum traduz o grego TFOKE[iEVOV, que,em Aristteles significava o suporte ontolgico dos acidentes. De Rijkcoloca o problema com a sua habitual clareza: do termo que denotaalguma coisa, para a prpria coisa denotada pelo termo, a transio pdefazer-se sem grande dificuldade, tanto mais que, quer para o pensa-mento medieval, quer para o pensamento antigo, a tese da existnciade uma essencial conformidade entre a linguagem e a realidade cons-titua uma ideia centra120. Porm, como, com id de quo fit sermo, tanto sepode designar um objecto concreto como um universal, surgiu anecessidade de eliminar a ambivalncia semntica: assim, no sculoXII, a suppositio , ainda, normalmente restringida appelatio, querdizer, ao uso significativo de um nomem appelativum, um nome que

    11 Vicente Munoz Delgado , Introduccin al patrimonio escolstico de lgica, Ibidem,p. 54. A Logica Ingredientibus de Abelardo desempenhou um papel importante neste pro-cesso de transio para as Summulae do sculo XIII . Ao explicar que a espcie maisparecida com a substncia do que o gnero , Abelardo afirma : [... 1 per hans scilicet maioremsimilitudinem quam habent cum primis substantiis quam genera , quod cum primaesubstantiae maxime sunt suppositae quam genera , magis sunt in suppositione similes primissubstantiis quam genera . Cf. L. M. de Rijk, Ibidem, p. 519.

    18 Citado in L. M. de Rijk , Ibidem, p. 518.19 Cf., nomeadamente , Pedro Helyas , Ad Priscianum Inst . Gramm., VIII, 1, cit. in L.

    M. de Rijk , Ibidem, p. 517.- Cf. L. M. de Rijk , Ibidem, p. 521.

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    se refere a coisas que possuem uma existncia real21. S que, nestaordem de ideias, no teriam suppositio, nem os termos universais, que,na linguagem dos gramticos, referiam a forma ou a qualidade dassubstncias individuais, nem os termos que designam outros termos.A resoluo deste problema ser uma tarefa das sumullae do sculo XIII.No Tractatus de Pedro Hispano, cuja redaco se dever situar porvolta de 1230 - mais precisamente , no Tratado VI, De Suppositionibus,na seco dedicada ao estudo da significao - encontramos uma solu-o ainda algo ambgua desta questo:

    A significao de um termo , segundo a qual este estabelecido, a repre-sentao da coisa pela palavra , segundo o agrado. Por esta razo, como todasas coisas , ou so universais , ou so particulares , necessrio que as pala-vras que no significam universalmente ou particularmente no signifiquemqualquer coisa . E, assim, elas no sero termos segundo os quais este "termo" estabelecido ; como o so os sinais das coisas universais e particulares.22

    O problema dos universais ( partindo da questo , j referida , levan-tada por Porfrio e Bocio: de que que sinal um termo universal?)far a sua entrada no horizonte da teoria da suppositio em resultadode uma reflexo sobre o paradoxo de encontrarmos no mundo apenasindivduos , mas de sermos obrigados a utilizar termos gerais para poderpens-los. Por outras palavras: em resultado de uma reflexo sobre o factode a validade do nosso conhecimento dos indivduos parecer resultar,em boa parte, da validade dos termos gerais que utilizamos . Que quejustificaria chamarmos homem a dois indivduos diferentes , por exem-plo, Plato e Aristteles, se no houvesse qualquer coisa que legiti-

    21 Vicente Munoz Delgado , La lgica en Ias condenaciones de 1277, in CuadernosSalmatinos de Filosofia, IV (1977) 17-39, p. 20.

    22 Pedro Hispano , Tractatus called afterwards Summulae Logicales (ed. L. M. deRijk ), Assen , Van Gorcum , 1982, p. 79, linhas 11-16. De agora em diante , referir-nos-emos a esta obra apenas pela abreviatura Tractatus e remeteremos sempre para a pagina-o da edio de L. M . de Rijk . Cf. Amndio Coxito, Lgica , Semntica e Conhecimentona Escolstica Peninsular Pr-Renascentista . Coimbra, Biblioteca Geral da Universida-de, 1981 , p. 51. (Em algumas edies , os seis tratados da obra de Pedro Hispano queabordam os temas especificamente medievais de lgica - ou seja , todos aqueles que no seencontram nos escritos lgicos de Aristteles - foram agrupados sob o ttulo comum deDe Terminorum Proprietatibus ou de Parva Logicalia . Tais tratados , alm do problemada suppositio , tratam dos relativos, da ampliao , da apelao , da restrio e da distribui-

    o. Sobre a questo do estatuto da appelatio em Pedro Hispano falaremos ainda maisadiante.)

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    masse o emprego de um termo comum ? O que liga o problema dos uni-versais questo da suppositio , ento, a pergunta : que h de comumentre os termos universais e as coisas individuais que subjazem nossaexperincia do mundo?

    J entre os comentadores neo-platnicos de Porfrio se tornara habi-tual distinguir o universal , fosse gnero ou espcie , y TOt^ rroXXois(existente no mltiplo ), Tr ToT TroXXui ( existente depois do ml-tiplo) e Trx Twl' TrOXXWov ( existente antes do mltiplo ). Em conse-quncia , as doutrinas de Plato e de Aristteles passaram a identifi-car-se, na tradio do realismo dos universais , para fornecer ummodelo explicativo da passagem do universal independente das coi-sas, ou seja, em si mesmo, para o universal enquanto conceito situadona mente. Mas foi graas s investigaes dos gramticos , desde ostempos de Prisciano at ao final do sculo X1123, que a distino entrea funo apelativa dos nomes - ou seja, a sua capacidade em referiruma substncia individual - e a funo dita conotativa , ou seja, a de referiruma natureza universal , vir a originar , no sculo XIII , a doutrina pro-priamente lgica da suppositio.

    O que caracterizar os debates lgico-filosficos , do perodo dalogica modernorum , em torno do problema da suppositio (bem como emtomo do problema das consequentiae , como mostraremos mais frente) a sua relativa independncia relativamente s teses metafsicas diver-gentes defendidas, quer por reales, quer por nominales . Ser a Williamof Sherwood que ficaremos a dever a primeira enumerao exaustivadas proprietates terminorum:

    So quatro as propriedades dos termos que, agora , pretendemos distinguir.Na verdade , o conhecimento delas valer para o conhecimento dos termose, da mesma forma, para o conhecimento dos enunciados e das proposies.E estas propriedades so a significao , a suposio , a copulao e a apela-o. A significao , , por conseguinte, a apresentao de alguma forma no

    23 Um dos textos mais importantes deste perodo o manuscrito intitulado por L. M.de Rijk Ars Meliduna, redigido antes de 1 180 por um autor francs desconhecido. Recor-demos que a escola de Melun foi fundada por Abelardo, aps a sua sada de Paris emresultado da ruptura com o seu mestre Guillaume de Champeaux. A influncia de Abelardopode detectar-se, inclusivamente, na utilizao, pelo autor da Ars Meliduna, do termo status,para designar a maneira de ser que prpria de uma coisa e que, sendo comum a vrias,permite que delas se predique um termo universal. Sobre o estado do manuscrito e osproblemas relativos sua provenincia e datao, cf. L. M. de Rijk, Ibidem, pp. 264 esegs. Sobre o pensamento de Abelardo, cf. tienne Gilson, La Philosophie au Maven Age,Paris, Payot, 1976, 2 vols., vol. 1, pp. 278-296.

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    intelecto. A suposio, porm, a ordenao de algum intelecto sob outracoisa. E a copulao a ordenao de algum intelecto sobre alguma coisa.E deve-se notar que a suposio e a copulao so ditas de duas maneiras,tal como muitos nomes desta espcie, ou segundo o acto, ou segundo ohbito.24

    Para William of Sherwood, um termo tem de ter significatio parapoder ter suppositio. A significatio, podemos vemo-lo na nossa citao,significa a presena de uma certa forma no intelecto25; ora, quandoum termo, j dotado de significatio, aceite para designar um objecto(uma res), dizemos que tem suppositio. Em linguagem moderna dira-mos: o sentido - ou, por outras palavras, a significatio -, que garantea possibilidade da referncia - ou seja, da suppositio -, e no a refe-rncia que garante a possibilidade do sentido26. Seria, contudo, errado,a nosso ver, querer reduzir a suppositio, simplesmente, referncia;mais do que a referncia, a suppositio de um termo o modo como elerefere numa proposio. No seno este o sentido do adgio: os sujei-tos so tal como os predicados o tenham permitido27.

    Mas aquela noo de objecto muito lata. Tanto pode querer refe-rir-se a uma forma universal e, neste caso, na terminologia de William

    24 William of Sherwood, Introductiones in Logicam, Parte V, cit. in William Knealee Martha Kneale, O Desenvolvimento da Lgica, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian,1972, p. 251. Este compndio foi publicado pela primeira vez em 1937, por M. Grabmann,que lhe deu o ttulo pelo qual hoje conhecido.

    25 Como notam William e Martha Kneale, op. cit., p. 252, esta definio remete-nos,provavelmente, para um estdio inicial da teoria, em que a definio se aplicaria apenasaos termos gerais, como honro, no sentido de humanitas. Posteriormente, a teoria ter-se-ia generalizado para os termos singulares, como Socrates ou ille, que s tm lugar nateoria da significatio pela sua relao com uma das subdivises da suppositio, a saber, asuppositio personalis, de que falaremos mais abaixo.

    26 Cf. Gottlob Frege, ber Sinn und Bedeutung, in Funktion, Begriff, Bedeutung(hrsg. von Gnther Patzig), Gttingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1994, pp. 40-65. Talveza principal diferena da distino entre significado e suppositio relativamente distinode Frege entre sentido e referncia consista no facto de, para os medievais (independen-temente das teorias nem sempre coincidentes sobre a suppositio), existirem diversos tiposde suppositio para uma mesma significatio, ao passo que, em Frege, podem existir vriossentidos para uma mesma referncia. (Entendendo-se por sentido, neste contexto e comoparece ser pacfico, os diversos modos de se chegar a uma referncia.)

    27 Talia subjecta qualia predicata permiserint. Sobre este assunto, cf. L. M. deRijk, Ibidem, p. 561, em particular sobre o problema da origem do adgio e sobre a suaerrada atribuio a Bocio, j discutida por William of Sherwood.

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    os Sherwood, estaremos diante de uma suppositio formalis simplex28 -a que Pedro Hispano, como veremos, chama suppositio naturalis -, quantoreferir-se aos indivduos em funo da forma que recebem (a suppositiopersonalis), como aos prprios termos quando o seu uso no signi-ficativo (a chamada suppositio materialis 29), como, ainda, a objectos ine-xistentes, na medida em que, neste caso, o termo suporia por uma des-crio. Quanto distino entre suppositio simples e personalis no serexagerado v-Ia como uma tentativa dos lgicos do sculo XIII paraclarificar unia ambiguidade da doutrina da significatio da logica nova,do sculo anterior30. De facto, em Abelardo e, em geral, nos anti-pla-tnicos do sculo XII, a significatio utilizada para designar a proprie-dade de um termo que refere um objecto individual. Mas, na maioriados casos, a significatio possua um sentido restrito e um sentido lato; noprimeiro caso, (em que era igualmente chamada appelatio ou nominatio),equivalia, como em Abelardo, referncia de um objecto individual, mas,no segundo, podia designar a propriedade de um termo que refere umanatureza universal. Um exemplo poder clarificar a natureza daquelaambiguidade que mencionmos: numa proposio como Scrates homem, homem tanto pode significar aquela coisa - a saber, oindivduo Scrates - que (quod est) homem, como aquilo pelo que(id quo est) essa mesma coisa homem, ou seja, a humanidade deScrates31.

    A suppositio pode ser definida, ento, como a sub-ordenao de umtermo a outro termo, o que acontece sempre que a predicao essenci-al. No caso de haver sobre-ordenao, temos uma predicao acidentale a significatio chamar-se-, agora, copulatio. (Esta, diz William ofSherwood, prpria dos adjectivos32, dos particpios e dos verbos.) capacidade actual de um termo para ser predicado de outro, atravs

    21 Veremos, na prxima seco, uma ideia diferente, em Guilherme de Ockham, so-bre a natureza da suppositio simplex.

    229 William of Sherwood foi o primeiro a definir claramente a suppositio materialis:Chama-se material quando a prpria palavra supe, ou a sua elocuo, ou a ela prpria,composta de elocuo e de significao, como se dissssemos "homem um monosslabo"ou "homem um substantivo". (Introductiones in Logicam, trad. Kretzmann, p. 107)

    ao Sobre o que se segue, cf. L. M. de Rijk, Ibidem, p. 559.31 Cf. Amndio Coxito, op. cit., pp. 26-27.32 Alis, William of Sherwood foi um dos primeiros a discutir exaustivamente a su-

    posio do termo predicado, afirmando que ela implicava uma copulatio habitualis, ouseja que o que pensado nele esteja ordenado ao que pensado sob o termo sujeito.Defendia ainda que havia sempre uma referncia temporal do termo predicado, determina-da pelo tempo verbal.

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    da cpula , quer no caso da predicao essencial , quer no da aci-dental, chama William of Sherwood appelatio. Os pronomes demons-trativos, por exemplo, que designam substncias individuais, nopodem servir de predicados, por isso no tm appelatio.

    Para a lgica medieval, todas as proposies universais afirmati-vas tm suppositio. (A que William of Sherwood chamar suppositiopersonalis confusa e Pedro Hispano suppositio communis .) Por exem-plo, em todos os homens so mortais admite-se que todos supepor cada um dos homens efectivamente existentes . Na linguagemdo clculo de predicados, poderamos exprimir esta situao do modoseguinte33:

    (Vx) (Hx -> Mx) _ (Vx) [( Hx1 A Mx1 ) A (Hx2 A Mx2) A...x]

    J para as proposies particulares, afirmativas ou negativas, o pro-blema da suposio se encontra facilmente resolvido. Uma proposi-o como alguns homens so mortais verdadeira se pelo menosalgum homem existente o for. (Ou, tratando-se de uma proposioparticular negativa, se pelo menos um no o for.) Trata-se, na lingua-gem de Pedro Hispano, de uma suppositio personalis confusa.

    (3x) (Hx A Mx)

    Todas estas formas de suposio, em Pedro Hispano, correspon-dem ao que William of Sherwood chama suposio formal, ou seja,como dissemos, a presena de uma forma no intelecto. S que o fil-sofo portugus, no considerando a suppositio materialis, subdivide--se a suposio, de imediato, em universal (communis), quando o termosujeito supe por todos os indivduos que subsume (quando, por exem-

    33 Para o leitor menos familiarizado, explicamos, de seguida, o significado dos sinaisque utilizaremos de agora em diante. V - quantificador universal (todo); 3 - quantificadorexistencial (h pelo menos um); -> - se...ento...; A - sinal de conjuno (e); = - sinalequivalncia; - - sinal de negao. Convm salientar que nem sempre o facto de parecerpodermos utilizar um operador lgico em lugar de uma qualquer expresso latina nosgarante que respeitamos as regras contemporaneamente prescritas para o seu emprego.Isto particularmente verdadeiro do quantificador universal, que, na lgica contempor-nea, indica apenas que uma determinada relao subsiste , independentemente da existn-cia, ou no, do objecto que sinalizamos pela varivel x. O mesmo no acontece na lgicamedieval, que, semelhana da lgica de Aristteles, considerava as proposies quecomeam por todo - ou seja, as universais afirmativas - como aptas a exprimir a essn-cia de algo efectivamente existente.

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    plo, homem est por cada homem) e em singular (discreta), a saber,a que possuem os termos singulares ou os pronomes que os substituam.

    A suposio universal subdivide-se ainda, para o filsofo portugus,em natural, quando se atribui um termo universal a todas as coisasque podem ser predicadas por ele por natureza (assim, na proposiotodos os homens so mortais, homem tem suposio natural, poispode ser predicado de cada homem, sem restrio de tempo); e emacidental, quando uni termo universal aceite pelos indivduos queo seu adjunto (ou seja, o verbo e o tempo em que se encontra) deter-mina. Qualquer proposio do tipo o homem ... valer, neste caso,somente pelos homens actualmente existentes. Pedro Hispano parte doprincpio que os tempos verbais restringem, mais do que ampliam, a supo-sio do termo sujeito34. A suposio acidental acontece sempre em con-texto proposicional, o que no acontece com a natural.

    Aqui, convir proceder a uma clarificao de ordem terminolgica.Quando a suppositio restringida a um objecto actualmente existente,por efeito do tempo presente do verbo, Pedro Hispano falar de appelatio35.J encontrmos anteriormente este conceito, embora com um outro sig-nificado. Necessitamos, por isso, de fazer aqui uma referncia ao seuemprego pelo filsofo portugus, tanto mais que ele ocorre no contextode uma divergncia sobre a natureza da suppositio que dividiu ascorrentes de Paris e de Oxford, a que aludimos na nossa nota n. 34.Ao passo que esta ltima corrente defendia que a suppositio se aplica,quer ao termo sujeito, quer ao termo predicado, a primeira - represen-tada pela j mencionada escola de Melun e pela escola do Petit-Pont- defendia que a suppositio se aplica apenas ao termo sujeito. (Note--se, porm, que os mais antigos textos ingleses sobre as proprietatesterminorum, como, por exemplo, a chamada Logica 'Cum sit nostra', seencontram na mesma linha da lgica do Petit-Pont.36) Mas, daqui, con-cluam os autores franceses que o tempo verbal, no passado ou no futuro,ampliava a referncia, ao passo que o tempo presente a restringia.Ora, justamente como restrictio que Pedro Hispano apresenta a appelatio.

    34 William e Martha Kneale, op. cit., p. 269 . Trata-se de uma posio prpria da cha-mada corrente parisiense da lgica do sculo XIII, por oposio corrente de Oxford,representada por William of Sherwood.

    35 Cf. Peter of Spain , Tractatus ed. cit., p. 197: Differt autem appelatio a suppositioneet a significatione , quia appelatio est tantum de re existente , sed significatio et suppositioiam de re existente quam non existente.

    3e Sobre este assunto, cf . Norman Kretzmann , Anthony Kenny, Jan Pinborg, , op.cir., p. 175.

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    A suposio acidental, a que fizemos referncia, tambm se subdi-vide, segundo Pedro Hispano. Primeiro, em simples, quando se aceitaum termo universal pela natureza universal (res) significada por ele.Por exemplo: homem est por essncia de homem em o homem uma espcie. A suposio simples distingue-se da suposio natu-ral na medida em que no possvel dizer-se que cada homemtomado individualmente uma espcie, ao passo que, de acordo como nosso exemplo de suposio natural, se todos os homens so mor-tais, possvel dizer-se, tambm, que cada um o . A incluso dasuposio simples na acidental deve-se ao facto de estarmos emcontexto proposicional, em que o predicado um dos universais. Depois,em suposio pessoal, quando significa aceitao de um termo uni-versal pelos indivduos significados por ele. Por exemplo: quando digo"o homem corre", quero dizer "todos os homens so capazes de correre h pelo menos um que corre." O acidente "correr" aplica-se a umindivduo num tempo determinado. A suposio pessoal, por ltimo,subdivide-se em determinada, quando verdadeira num caso, e emconfusa, quando verdadeira para vrios indivduos.

    A suppositio em William of Ockham

    A doutrina da suppositio, em William of Ockham, parte de um con-junto de pressupostos lingusticos, epistemolgicos e ontolgicos, emreaco ao realismo das essncias necessrias e imutveis, quer nopensamento moderado de Toms de Aquino, quer no mais radical deDuns Escoto37. Em primeiro lugar, Ockham considera que a realidade composta por indivduos, que so captados por intuio sensvel. O indi-vduo o objecto primeiro do intelecto quanto origem; quer dizer,nada o pode preceder na ordem das coisas conhecidas. Afirmar que osentes singulares so a realidade ltima e irredutvel , para Ockham,uma tese inderivvel, ou seja, uma tese que no pode ser demonstradanem deduzida. A singularidade - ou, noutros termos, a distino num-rica - constitui o nico modo de ser dos entes; tudo o mais que sejapossvel dizer deles constitui, apenas, modos de significao38.

    Estamos diante do que poderamos chamar uma ontologia da coisa(muito prxima, alis, da posio de Abelardo na sua discusso da natu-reza dos nomes universais), a que se associa uma doutrina da potentiaDei absoluta. No pode haver, para Ockham, nenhuma natura communis

    37 Vicente Munoz Delgado, La lgica en Ias condenaciones de 1277, loc. cit., p. 35.38 Cf. Pierre Alfieri, Guillaume d'Ockham. Le Singulier, Paris, Ed. de Minuit, 1989,

    pp. 29-30.

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    maneira de Duns Escoto, pois, neste caso, no s ela seria destruda medida que cada indivduo fosse destrudo, como no chegaria sequera haver uma verdadeira criao, pois cada indivduo no receberia oseu ser do nada, mas sim de um universal que lhe pr-existiria:

    1...1 se essa opinio fosse verdadeira, nenhum indivduo poderia ser criado,mas alguma coisa pr-existiria ao indivduo, que no receberia o seu ser donada, se o universal que nele, primeiro, fosse em um outro. Em razo domesmo, tambm se seguiria que Deus no poderia aniquilar um nico indi-vduo de uma substncia se no destrusse os demais indivduos, porque, seaniquilasse algum indivduo, destruiria tudo o que da essncia do indiv-duo e, em consequncia, destruiria o universal que existe nele e nos outrose, em consequncia, os outros no remanesceriam [...]. 39

    Desta ontologia, poderia somente resultar uma concepo exten-sional da linguagem e da lgica. A proposio composta por termos,que se ligam atravs de elementos sincategoremticos e outras partesno significativas ; mas o termo, defende Ockham, o elemento ao qualse chega analisando uma proposio40 , antecipando , assim , aquela que ser,na viragem do sculo XIX para o sculo XX, uma das teses principaisde Frege. Podemos reconhecer a existncia de uma tendncia naturaldos termos a unirem- se, porm , ela no independente de um dinamis-mo mental (de uma intentio animae, a que Ockham chama tambm umavis fictiva) que procura afinidades e relaes entre as coisas41. - Istotorna-se particularmente evidente na doutrina ockhamista da proposi-o e da relao entre o predicado e o sujeito numa proposio. Umavez que a cpula apenas o verbo que liga um dos extremos da proposi-o ao outro extremo, dizer- se que, numa proposio , o predicado estno sujeito , ou inerente ao sujeito , significa , no uma inerncia real,mas sim, apenas, que nos encontramos diante de uma predicao verda-deira. Tal poder, alis, significar , ou que o sujeito supe por qualquercoisa e que o predicado dito do objecto que o sujeito significa (ou, even-tualmente , no chamado caso oblquo, do pronome demonstrativo queindica esse objecto ); ou, ento, no caso de a suposio recair sobreo termo predicado , que o termo sujeito que funciona como o sujeitoem relao a esse objecto , ou ao demonstrativo que o indica.

    Os alvos da doutrina de Ockham so o paralelismo entre a lingua-

    39 Cf. Summa Totius Logicae, I, Lgica dos Termos, 15, trad. cit. p. 162. Comen-trio em William Kneale e Martha Kneale, O Desenvolvimento da Lgica, ed. cit., p. 271.

    90 Paola Mller, Ibidem, p. 34.41 Cf. Summa Totius Logicae, I, 31-32, trad. cit., pp. 206-207.

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    gem e o mundo real (entre o modus significandi e o modus essendi, nalinguagem dos modistae), bem como a tese do carcter representativodos sinais mentais, defendida, em particular, pelo realismo tomista, aque ir opor uma defesa do carcter meramente referencial dos sinais(conceitos e nomes), no interior da estrutura da proposio. Numaproposio existem, sem dvida, termos com valor universal, mas,relativamente a eles, apenas legtimo dizer-se que realiter conveniunt,e no que in alio reali conveniunt. (A diferena bem marcada pelouso, num caso, do advrbio, no outro, do substantivo.) Esta diferena,relativamente posio realista, quanto significatio de um termouniversal - que significa, apenas, a totalidade dos indivduos realmenteexistentes que se podem subsumir nele - tem profundas consequn-cias em relao doutrina ockhamista da suppositio. A suppositio simplex,no sentido de William of Sherwood - que significava, recordamo-lo,a presena, na mente, de uma forma universal -, passa agora a desig-nar o significado convencional de um termo resultante de um acto men-tal que abstraiu das caractersticas particulares de todos os indivduospelos quais supe. Por isso, do ponto de vista de Ockham, o signifi-cado de uma proposio que contenha termos universais dever poderser explicado por meio de outras proposies que contenham ape-nas termos singulares42. assim que a proposio o homem um animal verdadeira se, por exemplo, apontando para Scrates, se puder afir-mar a proposio verdadeira isto um animal43.

    A proposio torna-se, ento, num programa trabalho para descobrirsemelhanas, no sendo o resultado desse trabalho. Assim, por exemplo,uma proposio do gnero Petrus est homo como que um convitea descobrir a mesma coisa pela qual supem tanto Petrus como homo,e j no a expresso da inerncia da forma humanitas ao sujeito Petrus.(Ou da subsuno do sujeito no conceito do predicado.) E a proposioque confere suppositio aos termos, dando-lhes o valor de signos. O uni-versal, portanto, um signo, sendo absurdo supor-se que representequalquer coisa que existe em muitos indivduos aos quais aplicamosum nome comum44. Os signos, porm, tendo recebido tal valor naproposio, podem continuar a mant-lo fora dela.

    42 Amndio Coxito , op. cit., pp. 215-216.43 Summa Totius Logica, 1, 63, trad ., p. 314.44 Ibidem, 14, trad . p. 160.

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    A doutrina das consequentiae

    J vimos, na terceira seco deste ensaio, que os elementos sincate-goremticos podem transformar as proposies categricas em propo-sies hipotticas ou condicionais. Enquanto nas primeiras o assen-timento recai sobre os termos e sobre a relao que estabelecidaentre elas, nas segundas o assentimento recai sobre os elementos sinca-legoremticos.

    Em todos os homens so mortais, o assentimento recai sobrehomem e mortal e sobre a relao entre eles. Em se chover, entofico em casa, o assentimento recai sobre a relao entre dois acon-tecimentos expressa pelo sincategorema se...ento.... O mesmoacontece no seguinte exemplo de Robert Kilwardby; Se todo o homemcorre, ento um homem corre; se um termo tem suppositio communis,ento ter suppositio personalis confusa.

    Este exemplo particularmente interessante para o nosso prop-sito neste ensaio, uma vez que mostra com clareza que a doutrinadas consequentiae o desenvolvimento das discusses sobre a natu-reza dos tpicos ou lugares, tal como a vemos ser abordada em diver-sos tratados medievais de lgica45, por exemplo, nas Sumulae Logi-cales de Pedro Hispano. Contudo, at ao incio do sculo XIV noencontramos nos tratados de lgica nenhum captulo ou seco dedi-cados, expressamente, ao tema das consequentiae. o que acontecenas obras dos trs autores mais representativos deste perodo: PedroHispano, Lambert de Auxerre (cujo tratado de lgica, escrito prova-velmente entre 1253 e 1257, ficou conhecido por Summa Lamberti)e William of Sherwood46. Sero, precisamente, os tratados de lgica

    45 Sobre este assunto, cf. Norman Kretzmann, Anthony Kenny, Jan Pinborg, op. cit.,pp. 273 e segs. As discusses medievais sobre o problema dos tpicos, contudo, sindirectamente se ligam obra de Aristteles com o mesmo nome (conhecida, alis, porintermdio da traduo de Bocio); para um estudo aprofundado da questo seria neces-srio ter em conta, no apenas a tradio lgica, gramatical e retrica do perodo alexandrino,mas, em particular, os Topica de Ccero e o seu comentrio por Bocio, bem como a obradeste ltimo intitulada De Topicis Differentiis

    46 Contudo, a Sumina Lamberti conhece o sentido tcnico de consequentia como sepode ver pela passagem seguinte: Duplex est consequentia: una scilicet in qua, positoantecedente, de necessitate ponitur consequens, et hec potest dici naturalis vel necessaria;alia vero est consequentia in qua, posito antecedente, non propter hoc de necessitate poniturconsequens, sed ut frequentius concomitatur antecedens consequens et hoc potest diciconsequentia probabilis vel consequentia ut in pluribus. (Cit. in Norman Kretzmann,Anthony Kenny, Jan Pinborg, op. cit., p. 307, nota 25.) J, todavia, na Summule Logicales

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    do sculo XIV que, ao estudar as consequentiae, levaro a cabo o pro-cesso de aproximao entre estas e o silogismo (categrico ou no), pelasimples razo de considerarem que, quer as primeiras , quer o segundo,se encontram topicamente dependentes , ou seja, dependentes de umconjunto regras de inferncia que se aplicam tanto num caso como nooutro. o que acontece com Joo Buridano e Marslio de Inghen. Em par-ticular, o segundo destes dois autores, nas suas Parva Logicalia47 , divideo que chama consequentia formalis em syllogistica e non - syllogistica.

    No 15 do Livro V das Sumulae Logicales, de Pedro Hispano,podemos encontrar o seguinte exemplo: todo o homem corre; logo,Scrates corre. A suppositio personalis no aqui confusa, como noanterior exemplo de Kilwardby, mas sim determinata (ou seja, falamosde Scrates e no de um homem qualquer), porm , tal no relevantepara o nosso problema. Pedro Hispano nota que, quando um universal subsumido universalmente (como ocaso , no exemplo citado, emtodo o homem), legtimo concluir-se em relao a uma das suaspartes, pela aplicao da mxima : tudo o que predicado do todoem quantidade tambm predicado de qualquer uma das suas partes.O tpico a toto in quantitate deu um poderoso impulso ao desen-volvimento da teoria das consequncias48 . Num estado mais refinadoda teoria , perguntar - se-ia, a partir do exemplo anterior, o que acon-tece no caso de Scrates ter j morrido; a suspeita de que algumasconsequentiae valem apenas ut nunc (ou seja, no momento em queso ditas ), ao passo que outras valem para qualquer momento - algode semelhante ao que vimos suceder na doutrina da suppositio - levara reconhecer que esta consequncia j no pode ser considerada vlida49.

    Chegamos , assim , seguinte definio de consequentia : proposiohipottica , composta por um antecedente e por um consequente liga-dos por uma conjuno condicional , de tal modo que, se forem postos

    de Pedro Hispano, toda a seco intitulada De falacia secundum consequens , do TratadoVII, De Falaciis, explorara este tema , numa linha semelhante que ser , um pouco maistarde, quer a de Lambert de Auxerre, quer a de Roger Bacon.

    47 Esta obra , tanto quanto sabemos , no foi ainda publicada . Informaes sobre adata da sua composio ( entre 1359 e 1379, provavelmente), o modo como chegou atns e, fundamentalmente , sobre o seu contedo, podem encontrar- se em E. P. Bos, JohnBuridan and Marsilius of Inghen on consequences , in Jan Pinborg (ed.), The Logic ofJohn Buridan (Acts of the 3. rd European Symposium on Medieval Logic and Semantics,Copenhagen , 16.-21. November 1975), Copenhagen, Museum Tusculanum , 1976, pp. 61- 69.

    48 Cf. Peter of Spain , Tractatus, p. 64.49 Marslio de Inghen insistir fortemente nesta questo . Cf. E. P. Bos, art . cit., pp.

    64-65.

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    simultaneamente, impossvel que o primeiro seja verdadeiro e osegundo falso50. Na simbologia do clculo proposicional:

    [(P -* q) = -(p ^ -q)1

    Desta definio, podemos facilmente concluir que a consequncia uma inferncia, mas que nem todas as inferncias so consequn-cias. Ii o caso do silogismo, cujo estudo, no entanto, a partir dos finaisdo sculo XIII, tender, progressivamente, a ser englobado no mbitomais vasto das inferncias. E claro que possvel enunciar uni silogis-mo em Barbara do seguinte modo: "se todo B A e todo C B, entotodo C A", mas, neste caso, a implicao est baseada na necessidadede uma consecuo. Era o que j dizia Abelardo: no caso do silogis-mo, a conjuno condicional si equivale conjuno causal quia, querdizer, estamos perante uma relao necessria, em que o antecedente a causa do consequente51. No mesmo sentido, dir mais tarde WalterBurley, j no sculo XIV, no seu De Puritate Artis Logicae TractatusLongior, que, numa consequentia correcta - ao invs do que aconteceno caso do silogismo -, do oposto do antecedente no se segue o opostodo consequente. Mas bvio que nem sempre encontramos nos medie-vais uma completa distino entre a proposio analisada nos seustermos (aquela que serve de base ao silogismo aristotlico) e a pro-posio por analisar (que se encontra na base do moderno clculoproposicional, mas fora j utilizada pelos megricos e pelos esticos,na sua doutrina das frases condicionais), para que esta questo pudes-se ser resolvida com clareza. Pedro Hispano foi, provavelmente, umdos autores deste perodo que mais claramente percebeu a naturezadas proposies por analisar, aquelas, justamente, que servem de baseao moderno clculo proposicional. No tratado I, De Introductionibus,do seu Tractatus, ao investigar as proposies hipotticas e as suassubdivises, distingue com nitidez entre aquelas que so ligadas pelaconjuno et, as que so ligadas pela conjuno vel e as que so liga-das pela conjuno si. Tal distino corresponde ao que, hoje em dia,

    511 Cf. 1. M. Bochenski, Histria de Ia Lgica Formal, trad. de Milln Bravo Lozano,Madrid, Ed. Gredos S. A., 1966, p. 203.

    51 Alis, Abelardo mais no faz do que retomar a definio cannica de silogismocomo conhecimento pela causa. Cf. Aristteles, Analticos Posteriores, 71 b 20: [...] tambm necessrio que a cincia demonstrativa parta de premissas que sejam verdadeiras,primeiras, imediatas, mais conhecidas que a concluso, anteriores a ela, e relativamente qual elas sejam a causa.

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    chamaramos, respectivamente, uma conjuno, uma disjuno e umaimplicao52.

    De um modo geral, podemos formular as duas regras seguintespara a formao de consequncias vlidas:

    1) de algo verdadeiro nunca se segue algo de falso; de proposiesfalsas pode seguir-se uma proposio verdadeira.

    2) Se o consequente falso, o antecedente tambm falso. E o quenos diz o modus tollendo tollens do silogismo condicional, o que pode-mos formular do seguinte modo, na linguagem do clculo proposicional:

    [(p---> q)^-,q] -*-,p

    Regra geral, os medievais admitem que s so vlidas as conse-quncias do tipo das que foram defendidas na antiguidade por Diodorode Crono: se se p, ento q verdade num certo tempo, deve s-lo emqualquer tempo. Mas tambm admitem a chamada consequentia peraccidens, ou seja, a existncia, no de uma relao natural entre o que expresso em duas proposies, mas sim de uma coincidncia tempo-ral entre o que expresso numa e noutra. (Algo que poderamos talvezaproximar da implicao material no sentido de Flon de Mgara, que,segundo o testemunho de Sexto Emprico, defendia que uma frasedeclarativa condicional perfeita simplesmente aquela que no comeacom uma verdade e termina com uma falsidade53.)

    Se nos debruarmos, agora, sobre a origem do problema, verifica-mos que no possvel saber-se qual a influncia real que ter exer-cido, na Idade Mdia, a doutrina megrico-estica das frases condi-cionais, embora houvesse referncias a ela nas obras de Ccero e deBocio. Mas a discusso deve ter tido origem na interpretao de umapassagem de Aristteles, Primeiros Analticos, II, 4, em que se diz queuma concluso no se pode seguir simultaneamente de uma proposi-o e da sua negao. Kilwardby, por exemplo, afirmava que do ser e dono-ser pode seguir-se o mesmo: por exemplo, Deus existe, quer eu estejade p, quer esteja sentado. Defendia, tambm, que do necessrio segue--se a qualquer outra coisa, tal como do impossvel se segue qualquer coisa.(Consequentia accidentalis.) Estas duas ltimas teses sero tambm defen-didas, no sculo seguinte, por Walter Burley, no Tractatus Brevior54.

    O que certo que a doutrina das consequentiae se desenvolveu

    52 Sobre este assunto , cf. Joseph P. Mullally , The Summulae Logicales of Peter ofSpain, Indiana , The University of Notre Dame Press, 1945, pp . XXV-XXVIII.

    53 Cf. Sexto Emprico , Adversus Mathematicus , 1, 309.54 Cf. Norman Kretzmann , Anthony Kenny, Jan Pinborg , op. cit., p. 294.

    Revista Filosfica de Coimbra - n.' 28 (2006 ) pp. 301-322

  • 322 Carlos Morujo

    a partir da discusso dos tpicos, entendidos, de acordo com uma defi-nio j apresentada por Ccero nos Topica e por Bocio no Livro 1 deDe Topicis Differentiis, como a sede de um argumento. Dito de outromodo: um tpico garante a validade de uma inferncia, apresentandoa regra geral sob a qual ela foi feitaSS. Ora, segundo uma tendnciaque culminar em William of Ockham, os silogismos categricos daprimeira figura em Barbara e Celarent, nos quais todos os restantessilogismos so redutveis por converso, constituem inferncias vlidaspela aplicao do tpico chamado dictum de onini et nullo. O silo-gismo, em geral, torna-se vlido, no s pela disposio dos seus trstermos na maior e na menor, mas tambm (e sobretudo) em virtude demeios extrnsecos ao prprio silogismo, a saber, regras de conse-quncia56.

    Abstract : This essay approaches two of the main contributions of mediaevallogic to the history of logic and the philosophy of language: the doctrine ofsuppositio and that of consequentiae. The aim here is to demonstrate thatalthough mediaeval logic depended on the syntactical structure of Latin , authorsmanaged to reach a high level of understanding regarding strictly logicalproblems, not only anticipating some theories from modern semantics , but alsopredicate calculus and sentential calculus. This research, especially after the13th century , developed in complete isolation from Aristotelian logic,particularly its doctrines of syllogism and declarative sentence. It also revealedenormous originality and creativity regardless of the contribution ( which wasin any case reduced) that stoic logic known from the works of Cicero andBoethius may have had.

    55 Cf. a definio de tpico (topos) em Aristteles, Retrica, 1, 2, 1358 a 10 e segs.:Os silogismos dialcticos e retricos tratam daquelas coisas s quais nos referimos comosendo os tpicos . Estes so comuns aos problemas que tratam do comportamento correcto,aos problemas fsicos e polticos e a muitos outros que diferem em gnero entre si, como,por exemplo , o tpico do mais e do menos.

    5,1 Norman Kretzmann, Anthony Kenny, Jan Pinborg, op. cit., pp. 294-297.

    pp. 301 - 322 Revista Filosfica de Coimbra - n." 28 (2006)