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Coordenadas para uma Mudança de Rumo Síntese do estudo “Uma Alemanha Sustentável em um Mundo Globalizado” elaborado pelo Instituto de Wuppertal para o Clima, Meio Ambiente e Energia

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Coordenadas para uma Mudança de Rumo

Síntese do estudo “Uma Alemanha Sustentável em um Mundo Globalizado” elaborado pelo Instituto de Wuppertal para o Clima, Meio Ambiente e Energia

Coordenadas para uma Mudança de Rumo

Coordenadas para uma Mudança de Rumo

Título original em alemão: Wegmarken für einen Kurswechsel. Eine Zusammenfassung der

Studie Zukunftsfähiges Deutschland in einer globalisierten Welt des Wuppertal Instituts

für Klima, Umwelt, Energie.

Editado por Pão para o Mundo, www.brot-fuer-die-welt.de; BUND Amigos da Terra

Alemanha, www.bund.net; Serviço das Igrejas Evangélicas na Alemanha para o

Desenvolvimento (EED), www.eed.de

Autor da síntese: Uwe Hoering

Tradução: Marten Henschel, textdesign

Equipe de redação: Michael Frein, Jürgen Reichel, Jule Rode (coordenação), Danuta

Sacher, Klaus Seitz.

Abril de 2009

Impresso em papel 100% reciclado com balanço neutro de CO2, certificado com o selo

Blauer Engel (Anjo Azul).

Conteúdo

2 Editorial

4 Introdução

6 Nossa posição atual

7 Longe de cumprir as tarefas de casa

9 Mundo afora, pegadas gigantes

A globalização contra-ataca

10 Os perdedores da globalização

12 Uma questão de justiça

13 No rumo errado

13 Que tipo de crescimento?

14 A supremacia do mercado

15 A civilização fóssil

16 Continuísmos

17 Em busca da medida certa

18 É hora de mudar!

19 Paradigmas 19 Peregrinos com direitos iguais

20 O bem-estar ecológico

22 A sociedade participativa

22 A economia plena

24 Mares a navegar

24 Transição para a economia solar

26 Potenciais do uso eficiente dos recursos

27 O primado da política

27 O renascimento das regiões

29 A partilha eqüitativa do trabalho

30 Rumo a uma política interna mundial

31 Responsabilidade ao longo de cadeias produtivas globais

33 Novas regras no comércio mundial

34 O exercício da cidadania

35 O privado é público

36 Protagonistas da mudança de rumo

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O estudo Uma Alemanha Sustentável em um Mundo Globalizado foi publicado em meados de outubro de 2008, em meio à plena eclosão da crise no mercado financeiro. Em pouco tempo, a crise financeira assumiu feições de crise eco- nômica, tendo atingido quase todos os países, cada qual em sua própria medida. Pegos de sur-presa, os governos mostraram reações febris: além de propor uma regulação dos mercados financeiros que ainda carece de implementação, primaram por medidas emergenciais, abrindo os cofres para salvar bancos e empresas com problemas de liquidez e injetando rios de di-nheiro nas economias nacionais. Com isso, op-taram pela estabilização, pelo continuísmo na rota do crescimento. Para depois da tempestade, eles avistam, desde já, a recuperação das taxas de crescimento. Essas reações de costume são ob-soletas e fatais. Por um curto espaço de tempo, a quebradeira dos bancos abalou a confabulação de que é possível continuar, ad infinitum, fazen- do dívidas. Superado o choque inicial, o Estado começou a emitir títulos de dívida pública para voltar à velha rota do crescimento. Por mais fá-cil que pareça tomar a rota de sempre, ela não vai nos levar em direção a uma Alemanha sus-tentável.

Frente aos sinais de alerta da crise econômi- ca e de suas repercussões nas bolsas de valores, os gritos da natureza e dos que vivem ao largo do pregão passam despercebidos. Seu clamor é indício de uma crise mais profunda, é eco da po-breza e da fome no mundo, da degradação das bases naturais da vida.

Desde a ECO 92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimen- to, o princípio do desenvolvimento sustentável indica a saída desta crise da humanidade. O es-tudo Uma Alemanha Sustentável em um Mundo Globalizado apresenta um balanço sóbrio dos

progressos, na Alemanha e no mundo todo. Apesar da retórica da sustentabilidade, de algu-mas mudanças isoladas e projetos promissores, o estudo chega à conclusão que a Alemanha e o mundo ainda não entraram na rota da susten-tabilidade. Pelo contrário: as mudanças climáti-cas, a perda de biodiversidade, a fome e outros problemas mais estão se agravando. Estamos distantes milhares de léguas de um regime eco- nômico e de um modelo de bem-estar sustentá- veis que possam ser aplicados mundialmente. Concomitantemente, o espaço de tempo em que é possível virar o leme torna-se cada vez mais exíguo. Por isso, o estudo enfatiza a neces-sidade de efetuar uma verdadeira guinada. Ele indica rotas: a nível internacional e nacional, nas esferas empresarial e municipal e no que tange o estilo de vida de cada um de nós. O es-tudo pleiteia o primado da política sobre a eco- nomia, afirma a prevalência do bem comum sobre os fins lucrativos, e reivindica uma re-construção da sociedade industrial com vistas a uma reforma ecológica e a uma economia sus-tentável. Ele postula uma dupla mudança: a tecnológica e a civilizatória.

Guinadas radicais como essa precisam ser preparadas e pressupõem um amplo debate so-cial. Com a publicação do estudo em forma de livro, os editores pretenderam incentivar esse debate. A boa aceitação do estudo pelo público prova que a sociedade – nestes tempos marcados pela falta de segurança, pela perda de rumo e aversão crescente a discursos políticos vazios – está interessada e pronta a debater temas como crescimento e valores, capitalismo e justiça, glo-balização e regionalização.

Além dos muitos que leram o livro, outros tantos discutiram seu conteúdo nos numerosos debates organizados por voluntários e colabo-radores das organizações editoriais que, juntos,

Editorial

Editorial 3

realizaram vários destes eventos. No intuito de ampliar o debate, envolvendo cada vez mais pessoas, apresentamos esta síntese. Ademais, es-tamos preparando uma exposição e material didático para divulgar o tema nas escolas. Em forma de monografia, esta síntese condensa o conteúdo principal do estudo e, traduzida para os idiomas inglês, espanhol, francês, português e russo, divulga-o em escala global.

Uma Alemanha Sustentável em um Mundo Globalizado se refere à situação concreta da Ale-manha, mas muitos dos problemas e soluções apresentados são extensivos à realidade de ou-tros países industrializados. O estudo põe em foco a globalização e seus impactos, bem como a necessidade de desenvolver novos modelos. Tendo em vista que o estudo assume o compro-misso de promover a justiça internacional, nós, os editores, pretendemos levar o debate para

além das fronteiras da Alemanha, principal-mente a nossos parceiros e contrapartes inter-nacionais. A Uwe Höring, autor desta síntese, nossa consideração e agradecimentos! Afinal, não foi fácil condensar em quarenta as mais de 600 páginas do estudo.

Fazemos votos que esta síntese anime o des- envolvimento de idéias alternativas e a induza a descoberta de novas rotas de ação. Nossas or-ganizações partilham a convicção de que é pos-sível enfrentar as crises atuais com esperança. Por isso, encerramos o estudo com uma frase que Antonio Gramsci escreveu na prisão: “Por mais que eu seja pessimista pela inteligência, pela vontade sou otimista.” Cristãos poderiam acrescentar aqui o que se lê em Provérbios 12,28: “Na vereda da justiça está a vida.“

BUND Amigos da Terra AlemanhaProf. Dr. Hubert Weiger, Presidente

Dr. Angelika Zahrnt, Presidente de Honra

Pão para o Mundo Cornelia Füllkrug-Weitzel , Diretora-Presidente

Serviço das Igrejas Evangélicas na Alemanha para o Desenvolvimento

Wilfried Steen, Diretor

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crises energética, alimentar e, mais recentemen- te, a financeira com suas repercussões na eco-nomia real. A exemplo da crise dos anos 30 do século passado, ela ameaça solapar os alicerces da economia global. Cresce a sensação de que agora é hora de agir. O quadro fica ainda mais dramático devido à ascensão dos países emer-gentes - sobretudo da China e da Índia - que traz consigo um aumento vertiginoso do con-sumo de recursos e das emissões de gases de efeito estufa. Cresce a consciência de que o fu-turo do planeta está em jogo. Aos poucos se descobre que é necessário virar o leme.

Embora todo o mundo seja a favor da sus-tentabilidade, nem todos falam da mesma coisa quando se referem a ela. Não são raros os casos em que o conceito é usado como um rótulo qualquer, reduzido a uma única dimensão ou até mesmo esvaziado de qualquer sentido. Ape-sar do tom preocupado dos discursos oficiais sobre a crise climática e os impactos da globali-zação, o dia-a-dia da política, indústria e socie-dade segue seu curso habitual. Com a exporta-ção do modelo de industrialização calcado nos combustíveis fósseis, os países ricos continuam contribuindo para a destruição ambiental do planeta. Por meio da liberalização da economia global, eles obtêm acesso a todos os mercados e países. Para os pobres, contudo, o desenvolvi-mento tardio, ou recuperador, revelou-se uma promessa vazia. Acompanhada da pauperização e miséria, a locupletação sem pudores vem, há tempos, insinuando que a liberalização econô-mica e a globalização não promovem a justiça.

A visão da sustentabilidade sob a forma do desenvolvimento duradouro pretende indicar uma saída. Ela almeja nada menos que uma mudança radical de rumo, uma verdadeira guinada em todas as áreas. A meta consiste em preservar as bases naturais da vida, garantir a

A Alemanha precisa se tornar sustentável! Quem afirma isso aparentemente faz chover no molha- do, afinal, a sustentabilidade, também chamada de desenvolvimento duradouro, é o conceito da hora: hoje em dia, é rara a empresa que não ela-bora seu relatório de impacto ambiental ou de sustentabilidade e não adota um sistema de ges-tão ambiental. O governo federal da Alemanha preparou sua Estratégia de Sustentabilidade e, para ajudar a colocá-la em prática, instituiu um Conselho Consultivo de Desenvolvimento Sus-tentável. Estas ações são respaldadas pelas Na-ções Unidas, que instituíram o período de 2005 a 2014 como a Década da Educação para o De-senvolvimento Sustentável.

Paralelamente à ampla difusão do conceito, a opinião pública mudou: Al Gore foi premiado com um Oscar por Uma verdade inconveniente, documentário que lhe valeu o Prêmio Nobel da Paz em 2007, dividido com o Painel Intergover-namental sobre Mudanças Climáticas das Na-ções Unidas (IPCC). As vendas de produtos or-gânicos e o comércio justo estão em franco cres- cimento, e as energias renováveis respondem por 17 por cento da matriz elétrica da Alemanha. Astros e estrelas de Hollywood passeiam em carros com motor híbrido, e até os jornais sensa-cionalistas começaram a ocupar-se da proteção do clima. A sustentabilidade está em moda.

Será que se foram os tempos do frenesi neo-liberal e da globalização triunfante? Pelo menos era isto que indicavam as primeiras reações dos políticos ao agravamento da crise financeira mundial, no final de 2008. E a crise climática co-meça a despertar a sinistra suspeita, entre políti-cos, empresários e a sociedade em geral, de que a natureza partiu para o contra-ataque. Como se isso não bastasse, as mudanças climáticas come-çam a pôr em xeque a estabilidade da economia mundial. Motivo de grande preocupação são as

Introdução

Introdução 5

mais nada, trata-se de definir em que medida a Alemanha tem contribuído para a crise atual. Qual é nossa posição atual? Quais foram os progressos? Quais são as coordenadas princi-pais que induzem a contradição contumaz en-tre a realidade, por um lado, e o discurso e as necessidades, por outro? Quais são, enfim, as manobras necessárias para efetuar uma verda-deira guinada?

Paradigmas importantes, tais como uma nova acepção do crescimento e bem-estar, ema-nam da análise do status quo. Estes paradigmas podem servir de bússola para mudanças, para ações políticas e práticas sociais, ou seja, para os tantos mares a navegar rumo a uma socie-dade sustentável. Exemplos positivos, modelos e soluções não faltam. Trata-se, agora, de im-plementá-los a despeito de interesses, costumes e relações de poder antagônicas.

justiça social e o direito de todos os países ao desenvolvimento socioeconômico equilibrado, sólido e soberano.

Porém, as estratégias de sustentabilidade predominantes estão longe de efetuar essa mu-dança radical. Se muito, propõem pequenas correções. Entre discurso e prática abre-se um fosso abissal. As abordagens existentes não lo-graram conjugar a proteção do meio ambiente com estabilização econômica e redução da po-breza. Como sempre, prevalecem os interesses econômicos – na obrigatoriedade do cresci-mento, na lógica da concorrência e no lucro dos acionistas.

Na prática, a interpretação do triângulo da sustentabilidade, constantemente evocado, cos-tuma distorcer sua intenção original: para su-perar os conflitos inerentes ao desenvolvimen-to, ou seja, os atritos entre suas vertentes ecoló-gica, social e econômica, o conceito original da sustentabilidade atribuía importância e peso iguais a elas. Porém, tão logo surgiu o argumen-to de que essa equiparação não deveria ser se-guida à risca e que conviria aplicá-la de forma um tanto mais flexível e dinâmica, o selo da sus-tentabilidade começou a servir para justificar o business as usual, o mero continuísmo. Ou seja, enquanto os interesses econômicos são coloca-dos em primeiro plano, questões sociais e eco-lógicas, se e quando oportuno, aparecem ape-nas como adendo. De acordo com esta lógica, uma auto-estrada é socialmente correta por gerar emprego; e com uma pequena reserva ecológica à beira da estrada, a rodovia se torna supostamente sustentável por garantir lucro, emprego e a sobrevivência de alguns anfíbios.

Este ideário há de ser superado. Metas eco-nômicas carecem de um marco regulatório e, eventualmente, limitador, lastreado nos direitos humanos e em limites ecológicos. Nisto é fun-damental regular e estimular os mercados de modo que sirvam ao bem comum em sua di-mensão social global.

O que é preciso para a Alemanha se tornar sustentável num mundo globalizado? Antes de

Triângulo da Sustentabilidade

Econômico So

cial

Ecológico

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para o uso econômico dos recursos. Não obstante, o consumo alemão de maté-

rias-primas, como minérios, petróleo e carvão mineral, aumentou. A demanda de produtos vegetais e animais não diminuiu. Há 15 anos, o consumo de energia primária mantém-se está-vel num patamar elevado. O volume de adubos químicos e pesticidas, nocivos ao meio am-biente, não foi reduzido. Poucos são os esforços para diminuir o volume de resíduos, e a recicla-gem deixa a desejar. Edifícios e uma malha viá-ria cada vez mais densa impermeabilizam o solo em um país densamente povoado. Há dé-cadas, novas construções cobrem, ano após ano, um elevado contingente de terras. Por mais louvável que seja a acentuada redução das emissões de CO2, registrada desde o início dos anos 90, convém lembrar que ela, antes de tudo, deve ser atribuída à reestruturação dos setores industrial e energético no Leste alemão no período posterior à reunificação. Apesar da melhor qualidade do ar, as metas de redução da maioria dos poluentes não foram cumpridas.

A exemplo de outros países industrializados, a Alemanha é uma sociedade de crescimento. Não é só a economia nacional que gira em torno do crescimento. Para muitos, o crescimento conti-nua sendo a condição sine qua non para solucio- nar os problemas sociais – para superar o des-emprego, financiar os sistemas de seguridade social, reduzir a dívida pública e proteger, com eficiência, o meio ambiente. Este enfoque no crescimento, contudo, sobrecarrega o meio am-biente e não pode ser conciliado com a susten-tabilidade.

A maior parte dos problemas ambientais resulta da satisfação de nossas necessidades, de nossos padrões e costumes. Quem come, bebe, mora e se locomove, principalmente quando o faz de carro ou avião, consome matéria-prima

Em 1992, os chefes de estado e governo de 176 países se reuniram no Rio de Janeiro. Na ECO 92, Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, eles integraram o conceito do desenvolvimento sustentável às agen-das locais, nacionais e internacionais. Quatro anos mais tarde, as organizações não governa-mentais BUND e Misereor publicaram o pri-meiro estudo Alemanha Sustentável, de autoria do Instituto de Wuppertal para o Clima, Meio Ambiente e Energia. O estudo desencadeou um intenso debate em torno da sustentabilidade. O que foi feito desde então? Houve progressos? A Alemanha, enfim, se tornou mais sustentável?

Longe de cumprir as tarefas de casa

Passados doze anos desde a publicação do primeiro estudo Alemanha Sustentável, o ba-lanço ambiental é desanimador: as metas de curto prazo, em sua maioria, não foram atingi-das. E frente às atuais tendências do desenvolvi-mento, tudo indica que as metas de longo prazo tampouco serão alcançadas. Não houve mudanças profundas, e as poucas correções de rumo não são suficientes para uma guinada de verdade.

Assim sendo, a sustentabilidade da Alema-nha praticamente não aumentou. Por mais que o governo alemão tenha adotado sua Estratégia Nacional de Sustentabilidade e o Programa de Proteção do Clima, as medidas são insatisfató-rias, e sua implementação deixa a desejar. Em algumas áreas, tais como a da luta contra a chuva ácida, registraram-se melhorias parciais, porém consideráveis. No setor das energias re-nováveis, a Alemanha ocupa hoje uma posição de destaque, oferecendo políticas e tecnologias

Nossa posição atual

Nossa posição atual 7

tais como, metais e petróleo, importados em grande volume pela Alemanha, agrava o ônus ambiental nos países fornecedores. São incontá-veis as regiões fora da Alemanha nas quais vas-tas áreas agrícolas são utilizadas para suprir a demanda alemã de ração animal e agrocombus-tíveis. Viagens de longa distância, serviços de transporte e cadeias produtivas transnacionais, cujas etapas de produção ocorrem em vários países, contribuem para o aumento das emis-sões, sendo o transporte aéreo um dos princi-pais responsáveis pelos problemas climáticos. Ou seja, a pegada ecológica da Alemanha é bem maior que aquela que lhe caberia – vivemos às custas do meio ambiente dos outros.

Para os outros países, o sucesso da Alemanha na economia global acarreta prejuízos. Ao longo de décadas, a exportação de produtos Made in Germany ia de recorde em recorde. Nos países importadores, em que a indústria na-cional perdia mercado para os produtos alemães,

em grande quantidade e causa volumosas emis-sões. Vejamos o exemplo da alimentação: a pro-dução agrícola, o beneficiamento, as fábricas de gêneros alimentícios, a distribuição, o armazena-mento e a preparação dos alimentos pelo consu-midor final – todos os elos desta cadeia afetam o meio ambiente. Por maior que sejam sua consci-ência ecológica e seu consumo de produtos or-gânicos, as pessoas pertencentes às camadas so-ciais mais altas – aqui definidas por renda, nível de instrução e profissão – contribuem sobrema-neira para os problemas ambientais.

Mundo afora, pegadas gigantes

Além de ser um dos atores proeminentes da economia global, a Alemanha, de modo geral, ganha com a globalização. O campeão mundial de exportações lucra com a venda crescente de mercadorias alemãs no mundo. Com isso, con-segue manter e criar empregos, em sua maioria altamente qualificados, aumentar o lucro das empresas e incentivar o crescimento econômico. Os já elevados investimentos de empresas ale-mãs no exterior continuam crescendo. No sen-tido inverso, a Alemanha recebe muitas merca-dorias e investimentos do exterior.

A corrida global pela rentabilidade do capi-tal é tida como cerne da globalização contempo-rânea. Ao mesmo tempo, o crescente comércio exterior da Alemanha, que exporta principal- mente automóveis, máquinas e produtos quími-cos, desloca certos problemas ecológicos para o exterior. O que é propagado como aproveita-mento de vantagens competitivas, por exemplo por meio da transferência ao exterior de pro-cessos siderúrgicos de maior consumo energé-tico, na realidade não melhora o balanço am-biental da Alemanha. A produção de têxteis e confecções, brinquedos e computadores desti-nados ao consumo no mercado alemão eleva as emissões de CO2 nos países produtores. A ex-tração e o beneficiamento de matérias-primas,

A pegada ecológicaO exercício da atividade econômica consome florestas, água,

solo, carvão, petróleo, gás natural, urânio, espaço para depósi-

tos de lixo e biomassa para o seqüestro de emissões. A pegada

ecológica calcula esta demanda de meio ambiente e recursos,

convertendo-a em um índice de área. Em 2003, a pegada ecoló-

gica per capita nos países industrializados tradicionais foi seis

vezes maior que nos países pobres e duas vezes a dos países

emergentes. Enquanto, desde 1975, a pegada diminuiu nos paí-

ses pobres, suas dimensões cresceram muito nos países indus-

trializadas e emergentes.

Pegada ecológica/per capita1975

em hectares globais

Países industrializadosEUA, UE dos 15, Canadá, Japão, Austrália

Países emergentes(seleção de 16 países)

Países pobres(seleção de 12 países)

Pegada ecológica/per capita2003

em hectares globais

Variação1975 - 2003

em %

Fonte: Uma Alemanha Sustentável em um Mundo Globalizado, p. 72

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drões de consumo e produção, fundamentados no uso excessivo de recursos e em graves impac-tos ambientais, a Alemanha ocupou uma parcela desproporcional do espaço ambiental mundial que, por natureza, é limitado. Uma das conse- qüências é a evasão de riquezas para a Alemanha.

Este não é o único lado obscuro da globali-zação. Na própria Alemanha, a estratégia da liberalização econômica carece de políticas so-ciais compensatórias. Os salários estão em queda há anos, e as diferenças de renda, sempre mais acentuadas. A redistribuição dos lucros obtidos pelas exportações é insuficiente. Uma Alemanha que toma a frente nas exportações e no lucro das empresas e que, ao mesmo tempo, entre os paí-ses industrializados é lanterninha no âmbito das políticas salariais, sociais e de ensino, está longe de ser um exemplo de sustentabilidade. E a su-plantação de produtores nacionais por exporta-ções alemãs contradiz a política de justiça inter-nacional e vizinhança global, propagada há doze anos pelo estudo Alemanha Sustentável.

Ao mesmo tempo, os riscos e as desvanta-gens da globalização tendem a potencializar-se. Hoje, a economia alemã é extremamente de-pendente de exportações. Frente aos limites de crescimento dos mercados, seria equivocado apostar em um aumento contínuo das exporta-ções que, além disto, não seria nada oportuno. Além do mais, há indícios de que estão conta-dos os dias da globalização acelerada, movida a energia e combustível de baixo custo e poten-cializada pela abertura progressiva dos merca-dos e a rentabilidade vertiginosa da especulação financeira. A nível internacional, as negociações da OMC com vistas a uma futura liberalização do comércio chegaram a um impasse. Um nú-mero crescente de países insiste em proteger seu mercado interno de concorrentes estrangei-ros mais fortes, especialmente no que diz res-peito ao suprimento de gêneros alimentícios (segurança alimentar). Após ter passado de seu pico, o petróleo vai se tornar um bem escasso e caro, causando uma elevação drástica dos cus-tos de transporte.

muitas vezes isto significava problemas econô-micos e de emprego. Estas perdas de capacidade econômica autônoma não apenas ferem os pre-ceitos da justiça econômica, colocam também em risco a diversidade e sustentabilidade do pla-neta. Mundo afora, a preponderância econômica da Alemanha e de outros países industrializados afeta e suplanta as peculiaridades sociais, cultu-rais e ecológicas das economias locais, ao ponto de uniformizá-las, de exterminá-las.

Destarte, a Alemanha, um país industriali-zado por excelência, tem contribuído de diver-sas maneiras para a perpetuação do quadro de crises e injustiça no mundo. Por meio de ex-portações e investimentos estrangeiros, a Ale-manha tem participado da construção de um regime econômico internacional que carece de sustentabilidade. Boa parte do lucro que o país obteve nos mercados globais é fruto da exten-são de uma economia social e ambientalmente predadora aos países emergentes. Com seus pa-

Renda real médiaem euros (preços de 2000)

Desigualdade de rendaCoeficiente de Gini

novos Estados federados (antiga RDA)

antigos Estados federados (antiga RFA)

Alemanha

Média

Renda real e desigualdade de renda na Alemanha

Fonte: Uma Alemanha Sustentável em um Mundo Globalizado, p. 168

Nossa posição atual 9

seja pelo degelo dos icebergs. Pesquisas funda-mentadas indicam que as mudanças climáticas põem em xeque a estabilidade da economia mun-dial. Tudo indica que a natureza contra-ataca.

Nem todos têm a mesma responsabilidade pela poluição e exploração excessiva dos recur-sos: no passado, os países industrializados com suas pegadas ecológicas desproporcionais fo-ram os principais responsáveis por essa dose global insustentável. Contudo, tal assimetria na apropriação dos recursos globais está mudando nos últimos tempos: os países emergentes estão chegando perto, a todo vapor. A globalização contra-ataca!

A ascensão dos países emergentes na Amé-rica Latina e Ásia, sobretudo da China e Índia, é um acontecimento histórico de dimensões mundiais. Para os países emergentes, está se cumprindo a promessa de que um dia iriam chegar perto dos países industrializados. Nesta corrida, eles contam com o apoio de empresas do Norte. Sua busca frenética por mão-de-obra barata, redução de custos e novos mercados é propelida, freqüentemente, por acionistas e corretores da bolsa de valores para os quais o shareholder value, a cotação das ações, é a prin-cipal grandeza econômica. Na maioria dos países industrializados, a renda real começou a

A economia exportadora da Alemanha, por-tanto, tem de preparar-se o quanto antes para o declínio da globalização movida a energia fós-sil. Para a economia exportadora alemã resta apenas uma saída: transformar-se em um pres-tador de serviços nas áreas de tecnologia de manejo eficiente de recursos, da mobilidade in-teligente, do suprimento e do tratamento ecoló-gico de resíduos. Exemplos promissores e profí-cuos não faltam. Em vez de contribuir para que “cada chinês possa comprar seu carro próprio” o que, afinal, tornaria real o pesadelo da sociedade global motorizada, a indústria exportadora deve-ria levar a sério o fato de as sociedades industria-lizadas serem referência mundial: poderia dedi-car-se, por exemplo, ao planejamento e à imple- mentação de sistemas de transporte público ca-pazes de garantir a mobilidade da população global, cada vez mais numerosa, com menor im-pacto climático.

A globalização contra-ataca

À semelhança das melhorias obtidas na Alema-nha desde a Cúpula da Terra em 92, é possível constatar algum progresso a nível internacional: basta citar o Protocolo de Quioto sobre as mu-danças climáticas e o Protocolo de Cartagena so-bre a biossegurança no comércio internacional de organismos geneticamente modificados. Nas relações Norte-Sul, houve esforços com vistas ao combate à pobreza (Metas de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas) e ao alívio do ônus da dívida para os países mais pobres. Feliz-mente, as políticas comerciais e de subsídios dos países industrializados começaram a ser percebi-das como nocivas para os países e produtores no Sul. Além disso, hoje se sabe que os pobres serão as principais vítimas das mudanças climáticas.

Mudanças profundas, entretanto, deixaram de acontecer. A diversidade da fauna e flora está di-minuindo - na Alemanha, na Europa, no mundo todo. A concentração de CO2 na atmosfera continua aumentando, os impactos do efeito estufa ficam patentes, seja pelo furacão Katrina,

O pico do petróleo

Apesar das reservas limitadas de recursos fósseis, o consumo vem

crescendo a taxas que, em função do acentuado crescimento

econômico global desde o final dos anos 90, superam as previsões.

Quase todos os especialistas acreditam que a produção global de

petróleo vai atingir seu zênite nos próximos dez a quinze anos.

Depois deste pico, o fosso entre a demanda crescente e a pro-

dução em queda acentuada vai aumentar a passos largos. O poten-

cial de extração já começou a cair em quase metade dos países

produtores de petróleo, entre os quais os Estados Unidos,

Noruega, Reino Unido e México.

10 Coordenadas para uma Mudança de Rumo

de petróleo e da erosão da biodiversidade, partiu de uma apropriação extremamente desigual dos recursos naturais do planeta. Há tempos, a conta ambiental global entrou no vermelho. E diante da ascensão das potências econômicas emergen-tes, a má distribuição dos recursos assume fei-ções sombrias.

Os perdedores da globalização

Enquanto países como a China, Índia ou o Brasil competem com os países industrializados tradicionais pela supremacia econômica e, desde há pouco, política, a outros países resta apenas a marginalização. O quinhão do conti-nente africano no comércio internacional acaba de cair para menos de 2%. A globalização de uma minoria vem acompanhada da marginali-zação da maioria, principalmente daqueles que têm dificuldade de acompanhar o ritmo da con-corrência que ganhou ímpeto ainda maior com a globalização. Para a maior parte dos países, as promessas de desenvolvimento não passaram de uma quimera. A promessa vazia se explica por motivos como estrutura econômica dependente e sem diversificação, instituições públicas insu-ficientes e uma infra-estrutura deficiente, her-dados de um passado colonial. Com o chamado desenvolvimento, muitos países se endividaram excessivamente e tiveram seus recursos escoa-dos. Em lugar de promover o desenvolvimento sustentável, os programas de ajuste estrutural, através do desmonte das políticas sociais e da importação de produtos agrícolas baratos, debi-litaram os países e suas economias nacionais. Nem mesmo os ganhos de crescimento registra-dos por alguns países africanos ao longo dos úl-timos anos são suficientes para diminuir a dis-tância dos países industrializados e emergentes. Por volta de 1980, a desigualdade entre os países começou a crescer consideravelmente, abrindo um fosso econômico cada vez mais profundo.

cair. Por cima disto, a diferença entre as rendas mais altas e mais baixas está aumentando, acen-tuando as desigualdades sociais existentes. Será que os vencedores da globalização já não resi-dem mais em Londres e Los Angeles e, sim, em Xangai, Bangkok e Hanói?

O desenvolvimento recuperador de países emergentes como a China e Índia nos moldes de desenvolvimento dos países industrializados avo-luma, em muito, as emissões de gases de efeito estufa e acelera a demanda de recursos, do pe-tróleo e dos minérios aos gêneros alimentícios. No modelo de desenvolvimento dominante, sua saída do subdesenvolvimento e da subordinação os leva a uma transição imediata para uma eco-nomia ambientalmente predatória. O desenvol-vimento da Europa, realizado a troco do caos cli-mático, do esgotamento progressivo das reservas

População em 2004em mil (em %)

Consumo de energia em 2004em mil toneladas de equivalentes de petróleo (em %)

Outros

Outros

OutrosOutros

Países BRICPaíses BRIC

Países BRIC

Países industrializados

Países industrializados

Países BRIC 8408

Países industrializados

Países industrializados

Emissões de CO2em milhões de t (%)

Países industrializados: Austrália, UE dos 15, Islândia, Israel, Japão, Canadá, Malta, Nova Zelândia, Noruega, Suíça, EUAPaíses BRIC: Brasil, Rússia, Índia, China

PIB em 2004 em milhões $ internacionais

Desigualdade no espaço ambiental

Fonte: Uma Alemanha Sustentável em um Mundo Globalizado, p. 124

11Nossa posição atual

mundo perde a Paz. Isso se aplica, por um lado, a conflitos geopolíticos: países que não possuem recursos essenciais nem dinheiro para adquiri - los a preços que, a longo prazo, tendem a subir, ficam a ver navios. Por outro lado, diversos paí-ses experimentam conflitos internos: há mani-festações contra usinas termelétricas e projetos de mineração, contra monoculturas de agro-combustíveis e produtos de exportação que ti-ram o sustento da população local. As pescas industrial e artesanal disputam estoques de pei-xes cada vez mais escassos, e favelados procu-ram conquistar o acesso à água limpa. A neces-sidade de utilizar os ecossistemas para garantir o sustento freqüentemente entra em conflito com atores poderosíssimos que pretendem ex-plorar estes ecossistemas como bens econômi-cos na intenção de maximizar seus lucros. Assistimos à disputa entre sustento e luxo. A pretensão da propriedade particular acomete os bens de domínio público que deveriam ser uti-lizados em benefício de todos.

A exemplo disso, a desigualdade interna das sociedades vem se tornando ainda mais grave: nos hemisférios norte e sul, o aumento da renda na-cional é realizado a troco de um abismo cada vez maior entre ricos e pobres. Por um lado, a globa-lização fez emergir uma classe internacional de consumidores cujo padrão de consumo equivale ao das sociedades de consumo ocidentais. A pro-pagação destes padrões, entretanto, afeta a bios-fera, principalmente por elevar a demanda de carne, automóveis e eletrodomésticos.

A outra face do bem-estar desta classe inter-nacional de consumidores é a pobreza perpetu-ada nas camadas sociais inferiores. Sem-terra, favelados, pequenos agricultores, vendedores ambulantes, mulheres que trabalham sozinhas e trabalhadores migrantes, sem voz nem vez, não têm como alcançar melhorias duradouras. Muitos são vítimas de uma política de ajustes es-truturais, que leva os pequenos agricultores à ru-ína. Enquanto que os recursos minerais, a água e o solo são explorados para que os ricos possam viver acima de suas posses, aos pobres só restam a exclusão e a pobreza. Os que não têm culpa pelo declínio ambiental global ficam em apuros: a escassez de recursos coloca em jogo sua sobre-vivência.

O que os países industrializados têm em abundância, faz falta nos países pobres: seu consumo de adubos, pesticidas, petróleo, car-vão e tecnologia, entre outros recursos, é infini-tamente menor. Sem os recursos mínimos, so-bretudo energéticos, não há como escapar nem da penúria de dinheiro, nem da marginalização. Estes países, portanto, têm o direito de usar um contingente adicional de recursos em prol de seu desenvolvimento, elevando-os a um pata-mar que proporcione uma vida digna a todos os seus habitantes (linha de dignidade).

Convém lembrar que os recursos, em sua maioria, são limitados. Os limites das reservas de petróleo, terra e água já foram avistados. Por isso, o problema da distribuição dos recursos se torna mais premente e os conflitos tornam-se cada vez mais acirrados. Faminto de recursos, o

Combustíveis e fome

A contribuição dos agrocombustíveis – equivocadamente deno-

minados biocombustíveis – para a proteção do clima é mais que

dúbia. Produzidos em vastas áreas, os agrocombustíveis destroem

ecossistemas importantes e afetam o abastecimento de produtos

de alimentação humana e animal. Tendo em vista as elevadas im-

portações, especialmente de óleo de palma, a maior parte dos paí-

ses consumidores, entre os quais a Alemanha, não consegue

reduzir sua dependência de recursos externos.

12 Coordenadas para uma Mudança de Rumo

de recursos naturais. Para que a água no subsolo seja suficiente para abastecer os poços comunitá-rios, a sede do agronegócio e da indústria tem de ser reduzida. Em decorrência da apropriação de-sigual de recursos, os países pobres podem ser privados de suas bases de sobrevivência. A explo-ração excessiva de recursos por uns agrava o subdesenvolvimento de outros.

Enquanto os países industrializados insisti-rem na apropriação desmesurada do patrimônio natural do planeta, eles continuarão excluindo nações inteiras da utilização eqüitativa da bios-fera. A convivência eqüitativa e pacífica entre as nações apenas será possível sob a condição de ricos reduzirem sua demanda de recursos. Com o atual nível de consumo dos países industriali-zados, o mundo não vai se tornar mais justo. Temos duas opções: ou encontramos formas de bem-estar com consumo menor de recursos naturais, ou tentamos salvar o meio ambiente excluindo os pobres.

Diante das experiências e dos impactos nega-tivos, cidadãos da Alemanha e de outros países começaram a questionar a política da globaliza-ção. É evidente o fracasso do paradigma neolibe-ral, que prometia crescimento e bem-estar para todos em troca de liberalização econômica, livre- - comércio e privatizações. É preciso promover a justiça global sem transformar a terra em um planeta inóspito. Por isso, urge questionar e rein-ventar o modelo de bem-estar da modernidade industrial. No século 21, sem ecologia não ha-verá nem justiça nem segurança. Mutatis mu-tandis, são falhas as respostas aos desafios eco-lógicos que não levam em consideração a justiça social.

Uma questão de justiça

Não resta dúvida que a globalização para a Ale-manha e outros países, nos últimos anos, foi uma história de sucesso. De um modo geral, o bem- - estar material no mundo cresceu. Concomitan-temente aumentaram a injustiça, os conflitos e a discórdia, a destruição ambiental e o saque aos recursos necessários para garantir a sobrevivên-cia. A elevação dos preços faz sentir na pele a es-cassez dos recursos e repercute em quase todas as dimensões da vida e em inúmeros setores eco-nômicos. Frente ao crescimento econômico sem geração de emprego, o pleno emprego transfor-mou-se numa miragem. As crises econômicas aguçam as crises da fome e da pobreza. O cresci-mento do PIB não traz bem-estar para todos. Pelo contrário: até nos países emergentes, ele vem acompanhado de um agravamento das desi-gualdades sociais. A maior parte dos países em desenvolvimento é caracterizada por uma po-breza continuada.

O ônus ecológico também é distribuído de forma desigual: populações e países pobres so-frem bem mais que os abonados, que têm como se proteger ou pagar para libertar-se dos proble-mas. O sucesso econômico vem acompanhado da redistribuição da riqueza, de baixo para cima. E os custos ambientais são externalizados aos países do Sul, aos pobres.

Pouco a pouco, a disputa pelos recursos, cau-sada pelo crescimento econômico e acirrada, ainda mais, pela globalização, começa a ser deba-tida por governos e opinião pública como uma questão de segurança nacional. Em função disto, a agenda ambiental começou a ser subordinada à agenda de segurança. Entretanto, não se deve perder de vista que os conflitos por matéria-prima, pela base de sustento e pelos bens de do-mínio público são, antes de tudo, uma questão de justiça. Quem tem direito à terra, água, petró-leo ou à atmosfera? Qual é a extensão destes di-reitos? Boa parte dos pobres da Terra apenas terá seu direito à vida assegurado caso a classe global dos que consomem muito reduza sua demanda

13No rumo errado

nem descontados do saldo de desenvolvimento econômico, o valor agregado subia a taxas jamais vistas.

É preciso discernir, entretanto, o crescimento da renda nacional, normalmente medido pelo Produto Interno Bruto, do aumento da quali-dade de vida. Visto que são cegos a questões de qualidade e distribuição, índices meramente econômicos como o PIB são impróprios para medir a qualidade de vida. Assim sendo, vários fatores que determinam a qualidade de vida passam despercebidos. Citamos, a título de exemplo, inclusão e integração social, qualidade do trabalho, bens de domínio público como os espaços naturais, ou o índice de desigualdade social. Crescimento econômico e aumento da qualidade de vida não são automaticamente pa-ralelos entre si. Apesar da escalada do Produto Nacional Bruto na Alemanha, o índice nacional de satisfação subjetivo não sobe há anos.

Como se isso não bastasse, o crescimento eco-nômico capitalista, além do capital natural, gasta e desgasta capital social por meio da profunda al-teração das relações sociais: o crescimento eco-nômico degrada culturas agrícolas e rurais e fra-giliza relações familiares e comunitárias. A socie-dade da concorrência e do consumo modifica valores, práticas e atitudes - quanto maior a in-dividualização, menor a solidariedade. Estas mudanças podem sobrecarregar e até romper relações sociais existentes. Além dos custos ecoló- gicos manifestos na degradação ambiental, há os custos sociais causados pelo crescente número de perdedores. Tendo em vista que os custos su-peram os benefícios do crescimento, parece que principalmente os países industrializados aca-bam de entrar em uma fase de crescimento anti- econômico. Esta contradição aparentemente não consegue abalar os alicerces do sistema socioeco-nômico. Eis o motivo: a curto prazo, um número

No rumo errado

Quais são as causas desse péssimo balanço? Por que não houve mudança de rumo? Quais são as coordenadas deste rumo que, apesar de todos os conhecimentos e declarações e de algumas inicia-tivas promissoras, continua agravando a destrui-ção ambiental, a suscetibilidade a crises e a injus-tiça? Essas perguntas são fundamentais para encontrarmos a resposta ao desafio da hora: é preciso identificar os mecanismos fundamentais que tem de ser alterados para uma verdadeira guinada, para que não nos contentemos com medidas paliativas ou maquiagens, para que não nos deixemos iludir por promessas vazias que apenas servem para perpetuar o status quo.

Que tipo de crescimento?

Uma das coordenadas do rumo atual é o impe-rativo do crescimento, uma idéia que continua a dominar o discurso político. Com promessas do tipo “o bolo tem que crescer primeiro”, polí-ticos e empresários relegam ao segundo plano a distribuição da riqueza. Administrado como calmante, o crescimento é usado para apaziguar reivindicações redistributivas e mitigar conflitos sociais, nacionais e internacionais. Destarte, a produtividade, o lucro das empresas e a rentabi-lidade de suas ações se tornam mais importan-tes que a justiça social.

O crescimento econômico costuma ser me-dido pelo Produto Interno Bruto, o PIB. Por muito tempo, o consumo de energia e matéria- - prima acompanhava o ritmo das taxas de cres-cimento econômico. Ao longo de dois séculos, as reservas supostamente infindáveis de petróleo, gás natural e carvão proporcionavam o cresci-mento da indústria, transporte e do bem-estar. Como os serviços da natureza e os custos da de-gradação ambiental não eram monetarizados, isto é, nem debitados às contas empresariais,

14 Coordenadas para uma Mudança de Rumo

A supremacia do mercado

Isso posto, não é possível manter a pretensão de que o crescimento econômico é o propulsor de-cisivo do desenvolvimento social. Ao contrário, a guinada rumo à sustentabilidade nos obriga a dar adeus às crenças do crescimento e do neoli-beralismo, ao ideário que pregava a desregula-mentação necessária da economia, a prioridade da eficiência econômica sobre todos os demais objetivos sociais, tais como a ecologia e justiça, a liberalização progressiva dos mercados e a privatização dos serviços públicos básicos.

Antes de mais nada, é hora de dar adeus à idéia de que o mercado - quanto mais livre de políticas regulamentadoras, melhor - oferece so-luções para todos os problemas. A força do mer-cado consiste na sua capacidade de incentivar, por meio da concorrência, a melhor utilização possível de capital, material, pessoas e tempo, as-segurando, com isso, uma perfeita alocação dos

suficiente de pessoas obtém benefícios com a privatização dos lucros; as perdas, por sua vez, são socializadas ou simplesmente ignoradas.

Um crescimento de viés estritamente econô-mico fere os preceitos da sustentabilidade global. Além de ter se tornado um fim em si mesmo, se-guir o imperativo do crescimento representa um perigo público, uma prática autodestrutiva. A ascensão dos pujantes países emergentes provou que o modelo de desenvolvimento convencional não é compatível com a conservação da biosfera. Um desenvolvimento recuperador que procura imitar o modelo de crescimento e bem-estar dos países industrializados não promove a justiça so-cial. Ao contrário, acentua as desigualdades so-ciais. O quadro da pobreza será agravado mais ainda pelas mudanças climáticas, principalmente no hemisfério sul. Um capitalismo com mais- - valia social e ecológica apenas será possível no dia em que o crescimento voltar a ser apenas uma entre várias opções.

Produto Interno Bruto / per capita

Índice de Satisfação de Vida

Crescimento econômico e Índice de Satisfação de Vida na Alemanha

Fonte: Uma Alemanha Sustentável em um Mundo Globalizado, p. 112

15No rumo errado

recursos econômicos. O mercado se sai relativa-mente bem enquanto a lógica da concorrência prevalece, o que, porém, não ocorre automatica- mente nem é universal: em função de seu peso político e econômico, construído sobre sua van- tagens de desenvolvimento e sobre o poder de mercado exercido por grupos empresariais, os países industrializados exercem a hegemonia sobre os países do Sul. Os países ricos não se cansam de usar o sobreendividamento, as nego-ciações multinacionais e bilaterais sobre acor-dos de livre-comércio, os subsídios e patentes para impor seus interesses particulares, sejam políticos, sejam econômicos.

Convém lembrar que o mercado é cego para a causa da ecologia e justiça: além de ser inca- paz de limitar o consumo de recursos naturais, o mercado não é apto para assegurar uma dis-tribuição justa e eqüitativa dos bens. Ou seja, ele não é um instrumento adequado para reali-zar a guinada necessária. Cabe a políticos, go- vernos e sociedade civil evitar que o capital na-tural e social de uma nação seja depauperado por um ideário cujo único norte é a eficiência econômica. Para que uma economia possa so-breviver, os bens de domínio público, tais como o meio ambiente e a qualidade de vida, não po-dem ser relegados ao segundo plano e a avidez por lucro não deve prevalecer sobre o bem co-mum.

A civilização fóssil

Os recursos fósseis têm sido combustível e lubri-ficante do desenvolvimento do sistema industrial moderno. São matéria-prima de diversos produ-tos, entre os quais os da indústria química, acio-nam usinas, fornecem calor e energia elétrica e sustentam o sistema de transporte mundial que permite globalizar mercadorias e investimentos. A abundância supostamente infindável dos re-cursos fósseis foi questionada apenas durante a crise do petróleo, que, no início dos anos 70, mostrou a dependência e vulnerabilidade da sociedade industrial do bem-estar.

Este caminho de desenvolvimento, que aposta em recursos não renováveis, exige grandes quan-tias de capital, prioriza estruturas tecnológicas de grande porte e confia numa ampliação conti-nuada da oferta de energia. Em decorrência desta opção, surgiu um gigantesco sistema tec-nológico e industrial com métodos de fabricação centralizados, produção em massa, cadeias pro-dutivas e logísticas transnacionais, e estruturas rígidas de poder, interesses e lucros. A sina do desenvolvimento fóssil-cêntrico polariza o mundo: em um de seus pólos encontramos os países pro-dutores ricos em recursos, como os estados do Golfo Árabe, e os consumidores economica-mente fortes; no outro pólo estão os países eco-nomicamente fracos para os quais qualquer su-bida do preço do petróleo é uma questão de sobrevivência. Ao mesmo tempo, este modelo promove a militarização, que se torna necessária para garantir o suprimento do produto do qual depende a sua sobrevivência.

Acordos de Parceria Econômica – parceiros desiguaisAo longo de quatro décadas, desenvolvimento foi o lema da co-

operação entre a União Européia e os países ACP, um grupo de 77

países, em sua maioria pobres, da África, do Caribe e do Pacífico.

Para promover o desenvolvimento, estes países gozavam de

acesso preferencial ao mercado europeu. Hoje, os chamados

Acordos de Parceria Econômica (APEs) são regidos pelo conceito

de comércio. Ainda que os acordos incluam metas como o com-

bate à pobreza e a promoção da mulher, o objetivo principal da

União Européia consiste em derrubar as barreiras comerciais dos

países ACP. A pretendida redução das tarifas aduaneiras, todavia,

diminuiria as receitas dos estados ACP, restringindo sua margem

de manobra no âmbito das políticas sociais. Além do mais, acirraria

a competição não só entre o agronegócio europeu e os pequenos

agricultores no Sul, mas também entre os grupos empresariais da

Europa e as pequenas empresas na África. Em prol das empresas

européias, a União Européia pretende melhorar o acesso aos mer-

cados, proteger a propriedade intelectual e alterar o regime de in-

vestimentos, medidas essas que beneficiam principalmente os

europeus.

16 Coordenadas para uma Mudança de Rumo

É um beco sem saída. As três crises – aque- cimento global, esgotamento das reservas e degradação ambiental – intrinsecamente ligadas entre si, são sintomas da síndrome da sociedade industrial, ou seja, de sua dependência de maté-rias-primas limitadas cuja extração e utilização é prejudicial ao meio ambiente. Pelo que muito indica, as terapias propostas por investidores de grande porte, que tentam salvar o paciente ad-ministrando doses de energia atômica e agro-combustíveis, apenas servem para salvaguardar seus lucros diante das adaptações necessárias ao caos climático e ao pico do petróleo.

Frente ao poder dos fatos, aos interesses con-vencionais e ao arraigamento do sistema econô-mico dominante na consciência global, as alter-nativas não têm vida fácil. Entretanto, o conti- nuísmo deixou de ser uma opção. As mudanças climáticas clamam por uma mudança civilizató-ria, pela transição para a civilização pós-fóssil. Em vez de seguir a rota do desenvolvimento de-rivada de recursos fósseis, precisamos tomar o rumo das energias solares, velejando em direção a uma sociedade que consome cada vez menos energia. A transição necessária e integral para energias e meios renováveis, para uma vasta rede de pequenos sistemas de abastecimento e uma acentuada redução do consumo contraria, por completo, as estruturas de geração e distribuição atuais e os interesses de lucro e poder dos gigan-tes do mercado energético.

Continuísmos

É óbvio que guinadas como essas enfrentam um sem-número de contratempos e obstáculos, erguidos de indiferença, interesses particulares, falta de habilidades e desconhecimento de alter-nativas.

Um dos principais entraves são os mil e um lobistas, os obreiros das associações empresa-riais. Na intenção de construir novas usinas ter-melétricas movidas a carvão e questionar as de-cisões políticas pela saída progressiva da gera- ção de energia nuclear, a indústria de energia

elétrica alerta que vai faltar luz. A indústria automobilística é teimosa: produzindo carrões sedentos de combustível, continua apostando no segmento de luxo e alta velocidade. As in-dústrias química e agrícola se recusam a dar adeus a adubos químicos e pesticidas e não se cansam em afirmar que, com isso, apenas nos restaria o declínio econômico.

Para evitar uma inversão de rumo, não fal-tam os que, dissimulando suas verdadeiras in-tenções, proclamam que a solução é investir na modernização ecológica da sociedade industrial. Eles alegam que o progresso e a inovação tecno-lógica são solução para os problemas ambientais e prometem milagres: afinal, isso traria benefí-cios para nossa economia exportadora e para os países do hemisfério sul, superando tanto os problemas ambientais quanto os da pobreza. Estas propostas apenas servem para protelar uma mudança fundamental.

Além disto, o coro de lobistas, os asseclas da modernização e políticos do Norte intentam fortalecer a posição de suas indústrias contra as economias nacionais do Sul, usando sua influ- ência em Bruxelas, sede da União Européia, e Genebra, na Organização Mundial do Comércio (OMC), para derrubar barreiras que dificultam o comércio sem limite, a exportação de tecnolo-gia e os investimentos estrangeiros. Com motes continuístas do tipo “é preciso continuar” e “va-mos adiante”, eles inibem a guinada cada vez mais urgente.

Além do mais, a mudança esbarra nas resis-tências inerentes à economia capitalista, tais como a lei da concorrência, que força as empre-sas a maximizar o lucro. Empresas cujas ações são cotadas na bolsa de valores vivem sob o jugo do lucro dos acionistas. Quando as bolsas de Xangai, Mumbai ou São Paulo prometem renta-bilidade maior que as de Nova Iorque ou Frank-furt, estes cotistas, muitos dos quais investidores internacionais, não perdem tempo para reorga-nizar suas carteiras de investimento e podem acabar, em frações de segundos, com a cotação de qualquer empresa. A situação é agravada

17No rumo errado

pelos condicionalismos, as tantas estruturas que surgiram ao longo dos anos e barram, hoje, o ímpeto da mudança: a malha rodoviária e o lobby dos motoristas são ávidos por novos in-vestimentos; a dissolução do agregado familiar, o individualismo crescente e o desejo de inde-pendência fazem crescer a demanda de casas e apartamentos; e as cidades crescem sem parar com ocupação desordenada do espaço disponível.

Não por último, os costumes que nos são tão caros, as necessidades, expectativas, pretensões e os pequenos prazeres do dia-a-dia inibem a mu-dança: ir às compras sem um sistema de trans-porte público adequado, a pretensão da mobili-dade constante, a ampla variedade de atividades de lazer e habitações cada vez mais confortáveis – sem consumo de energias fósseis nada disto funciona. Sem imaginação, idéias e exemplos positivos, é difícil vislumbrar alternativas e indu-zir à mudança reconhecidamente necessária.

Diante de tudo isso não é de estranhar-se que as guinadas, as mudanças do rumo energético, de transporte e agrícola, deixam de acontecer, seja na Alemanha e Europa, seja nos países emergentes e no mundo.

Em busca da medida certa

O modelo industrial vigente, obviamente, apre-senta uma série de propostas e tentativas para solucionar os problemas existentes. Citamos, em primeiro lugar, o paradigma da dissociação entre o crescimento econômico e o consumo de recursos. Na agenda da sustentabilidade, o de-bate sobre o potencial e os limites do uso mais produtivo e eficiente dos recursos ocupa uma posição de destaque. Embora a tendência atual, de dissociação relativa, na qual o consumo de recursos cresce em menor ritmo que o cresci-mento econômico, seja um primeiro passo, ela não é suficiente. Ao mesmo tempo, está em curso a dissociação em função da reestruturação da economia: o setor terciário costuma consumir menos matéria-prima que a indústria; a inova-ção tecnológica permite encontrar sucedâneos

para substâncias que ainda contribuem para a poluição da atmosfera e dos recursos hídricos. Mas, tudo isso não é suficiente. Nos próximos 50 anos, os países industrializados precisam reduzir seu consumo de energia e matérias-primas em 80 a 90 por cento sob pena de não obter uma redução de 60 por cento das emissões globais de carbono. Para cumprir esta meta, não basta dis-sociar, ou seja, explorar os recursos de forma mais produtiva. Ganhos de eficiência até podem originar uma elevação do consumo total, por exemplo quando automóveis mais econômicos induzem as pessoas a utilizá-los com mais fre-qüência. Este fenômeno costuma ser chamado efeito rebote.

O paradigma da consistência, que pretende compatibilizar a produção e o consumo com o meio ambiente, propõe uma estratégia parecida. Citamos, a título de exemplo, a agricultura orgâ-nica e a produção de detergentes e plásticos com base em substâncias degradáveis. Muito antes de reduzir o consumo de material e energia, esta estratégia aposta na sintonização da tecnologia com a natureza. Apesar destes pesares, estas pro-postas são priorizadas, afinal, elas permitem al-gumas correções de rumo sem questionar, a fun- do, os interesses do capital e os costumes.

Elevar a eficiência e consistência, no entanto, não é suficiente para fazer frente aos desafios da hora. A travessia em direção à economia susten-tável apenas será possível se seguirmos uma rota dupla: apostar na tecnologia e, de forma inteli-gente, restringir a produção econômica. Para in-verter o rumo, para uma verdadeira guinada, a eficiência e consistência exigem, como comple-mento, uma política de suficiência ou auto-res-trição. Caso contrário, os ganhos de eficiência e consistência serão levados pelo vento da dinâ-mica expansiva. Além das propostas de solução técnicas e das novas exigências às instituições públicas no sentido de regulamentar o uso de recursos, nossa viagem em direção a um futuro sustentável requer uma alteração profunda dos padrões de consumo. É preciso buscar e encon-trar a medida certa.

18 Coordenadas para uma Mudança de Rumo

Encontrar a medida certa pressupõe um cres-cimento menor, até um encolhimento da econo-mia, o que, para uma sociedade de crescimento, representa um cenário assustador. Uma socie-dade que almeja a sustentabilidade, preparan-do-se para o futuro, precisa abdicar do impera-tivo do crescimento. Esta é a condição sine qua non para uma reestruturação objetiva rumo a padrões de produção e consumo sustentáveis, a uma verdadeira modernização ecológica. Ao mesmo tempo, essa é a única maneira de confe-rir qualidade social e ecológica ao mundo eco-nômico.

Isto não significa pôr fim ao crescimento. Devem crescer, sim, a eficiência energética e ma-terial, o uso de energias renováveis, a agricul-tura ecológica e o comércio justo, ou seja, tudo que promove, simultaneamente, a sustentabili-dade e a qualidade de vida. Por outro lado, é preciso diminuir tudo que contribui para a ex-ploração excessiva dos recursos e do meio am-biente, para a transferência de riscos e para a falta de coesão social, isto é, o uso de energias fósseis e nucleares, o transporte aéreo, o uso do automóvel, a especulação financeira e o endivi-damento de países pobres. Para alcançar a sus-tentabilidade é preciso escolher, desde já, um rota que nos leve a uma economia na qual to-dos, sem depender de crescimento permanente, tenham uma vida viçosa.

É hora de mudar!

Frente aos indícios e provas, não há como negar que o modelo de desenvolvimento predomi-nante carece de sustentabilidade ecológica e so-cial. O modelo atual nem garante a sustentabili-dade econômica. Economia, Estado e sociedade estão em uma encruzilhada. É preciso uma mu-dança de rumo radical. É hora de questionar os pilares fundamentais e os credos do modelo de desenvolvimento dominante, ou seja, o cresci-mento econômico permanente, bem como a supremacia do mercado e das energias fósseis. Os propostas imanentes a este modelo provaram

ser inadequadas para enfrentar a crise. Para criar justiça e paz e preservar as bases naturais da vida para as gerações vindouras em um mundo de recursos limitados, no qual quase um bilhão de pessoas têm muito terreno a recuperar para sair da fome e pobreza, no qual a desigualdade, a injustiça e os conflitos estão em franco cresci-mento, precisamos desenvolver e implementar um novo modelo de bem-estar que poupe os recursos disponíveis.

A transição necessária para uma civilização pós-fóssil requer, em primeiro lugar, uma mu-dança do hardware social: dos edifícios e usinas aos têxteis e confecções, a fabricação e utilização de todos os produtos deve ser realizada com menos recursos e tornar-se compatível com o meio ambiente. Em segundo lugar, é preciso criar marcos regulatórios e institucionais ade-quados para garantir o respeito dos direitos humanos e evitar que a dinâmica econômica ultrapasse a capacidade de regeneração da bios-fera. Em terceiro lugar, esta transição clama por novos paradigmas: a conduta da vida privada, a ética profissional, as prioridades na comuni-dade e sociedade – a vida quotidiana, a prática econômica e política exigem novas bússolas.

19

influência política. Os pobres são atores de potencial não realizado, são cidadãos que, priva-dos de direitos, posses, e participação política, vivem à míngua. O crescimento econômico, por si só, não oferece nenhuma saída da pobreza. O seu combate exige, antes de mais nada, um re-forço dos direitos e da autonomia. Não se obtém a superação duradoura da pobreza com empre-sas, especialistas ou investidores vindos de fora. Os próprios pobres precisam tornar-se sujeitos de sua história, por meio de um programa de empoderamento que amplia sua margem de manobra e busca uma deslocação do poder.

Uma das ferramentas políticas mais impor-tantes é a Declaração Universal dos Direitos Hu-manos com a qual as Nações Unidas, em dezem-bro de 1948, lançaram a pedra jurídica fundamental para a construção de uma socie-dade mundial: de acordo com a declaração, to-dos os seres humanos são cidadãos de um es-paço jurídico transnacional. Dotada deste cânone de direitos humanos, a sociedade mun-dial ganhou sua Constituição. Por lhe faltar um Estado, existe um fosso abissal entre o discurso e a realidade dos direitos humanos na sociedade mundial. Assim sendo, cabe aos estados, dentro e até fora de seu território nacional, velar pelo cumprimento dos direitos humanos daqueles que não têm esta capacidade. Ou seja: são res-ponsáveis por coibir danos ecológicos e sociais por processos produtivos, investimentos estran-geiros, medidas protecionistas, pela liberalização, privatização e por transações financeiras. Mundo afora, a sobrevivência deve prevalecer ao lucro, e a dignidade humana, ao ganho de poder.

As empresas cujo raio de ação e, portanto, âmbito de responsabilidade tendem a transna-cionalizar-se, igualmente estão sujeitas ao prin- cípio da prevalência dos direitos humanos e da dignidade humana. O direito dos cidadãos

As visões que animam a luta por um mundo sus-tentável se refletem em quatro paradigmas: o cos-mopolita, cujo objetivo é a realização da cidada-nia global; o ecológico, que esboça uma nova forma de bem-estar; o sociopolítico, que defende a sociedade participativa, e, por fim, o político-econômico, que enfoca os pilares de sustentação de uma economia integral ou holística.

Peregrinos com direitos iguais

A sustentabilidade da Alemanha também vai de-pender do seu desempenho em prol dos que, nesta terra, não têm voz nem vez. Sem uma reforma das estruturas de poder e riqueza, a plena realização dos direitos humanos não será possível. Essa re-forma inclui uma mudança de rumo das políticas comercial e de relações exteriores da Alemanha e Europa frente aos países menos privilegiados.

A demanda do mundo rico repercute na situa-ção de vida em muitos países. Quando perdem sua fonte de renda para os navios pesqueiros europeus, pescadores senegaleses desemprega-dos se lançam ao mar, em pequenas embarca-ções, tentando fugir para a Europa. Embora muitos considerem a pobreza um fator de risco a ser superado por meio de estratégias de cres- cimento e políticas de desenvolvimento, para os marginalizados, os ricos são um perigo: famin-tos de um padrão de vida sempre mais elevado, comprometem a realização dos direitos funda-mentais dos pobres.

Estruturas sociais e econômicas consolidadas que beneficiam, permanentemente, um determi-nado grupo em detrimento de outros são uma das principais causas da pobreza. As origens da pobreza são a falta de poder, de segurança e

Paradigmas

Paradigmas

20 Coordenadas para uma Mudança de Rumo

governos dos países industrializados devem adotar condições de amortização que permitam aos países devedores honrar seu compromisso com os direitos humanos sociais. Além disto, uma política com foco nos direitos humanos sempre vai consultar os atingidos, respeitar seus direitos fundamentais e criar instâncias de re-curso e controle.

Os direitos fundamentais, o direito à vida digna deve prevalecer sobre a pretensão a um padrão de vida mais elevado. Um terço da hu-manidade, principalmente os povos indígenas, apenas vai viver com dignidade caso as eco- nomias do bem-estar passem por um enxuga-mento. Por isso, uma política cosmopolita vai reduzir o consumo de recursos nos países in-dustrializados para evitar que as necessidades de bem-estar de uma parcela da sociedade glo-bal afetem as necessidades de sustento da outra. Tendo em vista que as mudanças climáticas figuram entre as principais ameaças aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais e ten-dem a agravar o quadro da pobreza mundial, a proteção do clima deve ocupar um lugar de destaque na agenda dos direitos humanos. Uma política ecológica é nossa única opção para fazer desta terra um planeta hospitaleiro para um nú-mero crescente de seres humanos.

O bem-estar ecológico

Melhor, diferente, menos – esta é a fórmula, este é o norte no caminho à economia sustentável. No futuro, a geração do bem-estar deve consumir menos recursos e causar menos destruição am-biental. Está na hora de aprender que melhorar de vida significa muito mais do que aumentar seu bem-estar material.

Por dois séculos, a missão principal do pro-gresso tecnológico e científico consistia em in-crementar a produtividade de capital e trabalho. Além disto, este progresso tem ampliado a oferta de mercadorias. Sua fabricação, ávida de recursos, e as emissões e os resíduos causados

Direitos Humanos – um compromisso amploAs liberdade de reunião e associação, religião e credo, a proibição

da tortura, escravidão e discriminação são alguns dos direitos hu-

manos fundamentais que, por meio do Pacto Internacional sobre

os Direitos Civis e Políticos (Pacto Civil), de 1966, foram integrados

ao direito internacional como normas vinculantes.

Menos conhecido é o Pacto sobre os Direitos Humanos Econômi-

cos, Sociais e Culturais (Pacto Social), aprovado no mesmo ano. No

seu parágrafo 1º do artigo 2º, os Estados Partes, entre os quais a

Alemanha, se comprometem “a adotar medidas [...] até o máximo

de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressiva-

mente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos di-

reitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a

adoção de medidas legislativas.”

Os direitos consagrados no Pacto Social incluem o direito à ali-

mentação, o direito à educação e o direito à saúde. A realização

destes direitos deve acontecer “tanto por esforço próprio como

pela assistência e cooperação internacionais”.

O Pacto Civil e o Pacto Social formam um conjunto. Nos preâmbulos

de ambos os pactos se lê que eles foram celebrados “reconhecendo

que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Hu-

manos, o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria,

não pode ser realizado a menos que se criem as condições que per-

mitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e cul-

turais, assim como de seus direitos civis e políticos.”

prevalece sobre o direito das empresas por mais que este último tenha sido ampliado e incremen- tado na época da globalização. Direitos impli-cam deveres, tais como o de verificar em que me-dida os negócios de uma empresa afetam os di-reitos humanos, econômicos, sociais e culturais.

De semelhante modo, a política nacional do século 21 não pode ater-se à promoção de inte-resses nacionais: a política dos estados nacio-nais precisa transformar-se em uma política in-terna global. Os direitos à existência prevalecem sobre o interesse de liberalização econômica. Isso posto, poderia abdicar-se de exportações que possam comprometer a alimentação ou o emprego nos países importadores. Em sua fun-ção de credores de países superendividados, os

21

estruturas econômicas descentralizadas com baixa demanda de capital. A produção e comer-cialização de mercadorias e energia em cadeias logísticas longas que dão a volta ao mundo vão ser coisa do passado. Redes econômicas regio-nais vão suplantar muitas das redes econômicas globais. As velhas tendências de concentração econômica que engendraram empresas gigantes e poderosas dão lugar a uma estrutura econô-mica na qual um universo de pequenos produ-tores em muitos lugares da Terra garante o abas-tecimento de mercadorias, energias e serviços.

Embora essas medidas possam contribuir para diminuir o tamanho da pegada ecológica de uma economia nacional, não vão, por si só, ocasionar a redução necessária do consumo de recursos naturais e ambientais. Em função disso, a auto-restrição da capacidade econômica e tec-nológica é parte integrante da paradigma da eco-nomia sustentável. Não há como fugir da per-gunta “o que é suficiente?”. Conter o consumo material exagerado e excessivo pode dar espaço a uma vida diferente e melhor. Satisfação não exige necessariamente dinheiro: ela pode ser ad-quirida por mutirões, redes de voluntários, cen-tros de cidadania, oficinas comunitárias, associa-ções de escambo, cooperativas de compras e microempresas, por coesão social e participação política. Assim, o bem-estar econômico vem acompanhado de um novo bem-estar social.

Dono de seu comportamento de compras e práticas de consumo, o consumidor está com quase tudo na mão para contribuir para uma melhoria da situação mundial: basta dar adeus a eletrodomésticos papa-energia, optar por pro-dutos ecológicos e seguir o ideal da suficiência negando as ofertas da sociedade da opulência supérflua e dos produtos descartáveis.

Para o capitalismo, no entanto, a suficiência é algo escabroso, afinal, é difícil combinar volu-mes de produção decrescentes com a ambição da agregação de valor progressiva e contínua. Porém, a futura sustentabilidade do capitalismo apenas terá uma chance caso consiga resolver este quebra-cabeças.

por seu consumo agravaram a destruição am-biental, acelerando as mudanças climáticas e contaminando o ar, a água e o solo.

Para reduzir o consumo de recursos ambien-tais (desmaterialização) é necessário usar tecno-logias, estabelecer relações organizacionais e adotar costumes adequados. Esta redução drás-tica pode ser obtida, em parte, por uma utiliza-ção mais produtiva dos recursos. Assim sendo, o aumento contínuo da oferta poderia ser subs-tituído por uma melhor gestão da procura. O universo de objetos do bem-estar ecológico será formado por produtos cuja fabricação de-manda poucos recursos – com ênfase nos re-cursos não renováveis, ou seja, por objetos de baixo consumo, duráveis, facilmente reutilizá-veis. O acúmulo de equipamentos na proprie-dade individual que, na maior parte do tempo, ficam parados, será substituído por modelos de uso temporário: equipamentos são alugados, o uso de automóveis é compartilhado. Daí sur-gem as mais variadas possibilidades para o uso econômico e racional dos recursos.

Uma economia ecológica depende de uma nova base de recursos. Dentro do possível, os recursos fósseis são substituídos, principal-mente por substâncias não nocivas ao meio ambiente e por energias que emanam do sol que, em sua maior parte, são renováveis e não emitem emissões. Células fotovoltaicas e turbi-nas eólicas marcam os primeiros passos em di-reção a um sistema de energia solar. Na era pós-fóssil, substâncias químicas sintéticas, me-tais e minérios são substituídos por substâncias biológicas e por processos que imitam os da natureza. A agricultura orgânica é um bom exemplo desta compatibilidade ambiental: en-quanto a agricultura convencional industrial consome recursos em excesso e contamina o meio ambiente com adubos e venenos, a agri-cultura orgânica acompanha os ciclos naturais e utiliza os recursos disponíveis com mais di-versificação e maior grau de aproveitamento.

Além do mais, usinas solares, pequenas cen-trais hidrelétricas e geradores eólicos fomentam

Paradigmas

22 Coordenadas para uma Mudança de Rumo

sobre os próprios trabalhadores. Serviços públi-cos básicos, tais como: saúde, ensino, transporte público, luz, gás encanado, água e saneamento público, são entregues à mão privada o que, muitas vezes, aumenta os custos, agrava a ex- clusão e acarreta problemas familiares adicio-nais que, por sua vez, repercutem principal-mente na mulher.

O rompimento deste ciclo de exclusão e res-trições requer mudanças nos fundamentos polí-ticos, sociais e econômicos da sociedade atual: o trabalho de cuidados familiares não pode per- manecer à margem e restrito ao âmbito pri-vado; uma ampliação dos serviços públicos bá-sicos deve permitir novas formas igualitárias de convivência. O trabalho deve ser distribuído eqüitativamente, adotando fórmulas como “um terço do tempo para ganhar dinheiro, outro terço para cuidar da família, e um para a comu-nidade”. A mudança no mundo do trabalho deve vir acompanhada de uma seguridade social satis-fatória, novas políticas para migrantes e refugia-dos, e maiores oportunidades de participação política por medidas como o fortalecimento da democracia direta. A base de uma sociedade sus-tentável será um novo contrato social que ga-ranta, a todos, o direito de participação.

A sociedade participativa

A guinada rumo à ecologia e eqüidade internacio-nal não será fácil: diferenças de renda crescentes, os riscos elevados da pobreza e uma sensível perda de solidariedade social podem bloquear o leme. Quem se sente injustiçado ou excluído dificilmente estará disposto a apoiar as mudanças necessárias. Por isso, uma política de sustentabilidade há de ser conjugada com uma política de participação social eqüitativa para que todos os membros da socieda-de possam realizar seu potencial.

A participação, seja do desenvolvimento econô-mico, social e cultural, seja de decisões políticas, é um direito humano. Não obstante, um nú-mero crescente de pessoas é afastado ou até privado deste direito. Quanto maior a riqueza, mais amplas as oportunidades de explorar seu pleno potencial individual, mais freqüentes as realizações pessoais e mais intensa a participa-ção. Do outro lado vivem os que sofrem de des- emprego, divisão do trabalho por gênero e xe-nofobia, fatores responsáveis por tantas formas de exclusão, por condições de vida inseguras e antagonismos.

O trabalho remunerado, outrora fator central da integração social, há tempo deixou de garan-tir a existência e participação de todos. A pres-são sobre o trabalho assalariado em tempo in-tegral vem aumentando já há anos: padrões trabalhistas, de segurança e qualidade são eli-minados; os salários são achatados. Pouco valor é dado a áreas importantes como a do trabalho de cuidados, que normalmente não é remune-rado e costuma ser realizado por mulheres sem apoio para conjugar família com emprego. A despeito de suas capacidades diversificadas, migrantes freqüentemente são vistos como pro-blemáticos e excluídos da participação.

O desmonte do Estado social reduziu as oportunidades de capacitação e participação ativa, na vida política e social. A precarização do trabalho continua; em decorrência do corte de benefícios sociais, riscos elementares recaem

23Paradigmas

operacional do capitalismo deve ser submetido a uma reprogramação adicional e fundamental, e chegar à terceira geração.

Visto que a biosfera, tal como o mundo-de-vida, é patrimônio da humanidade e a utilização dos bens da natureza é um direito fundamental de todos, o direito de propriedade particular e a comercialização dos bens da natureza, por prin-cípio, estão limitados. Assim, o volume de maté-rias-primas extraídas da natureza não pode ser superior à sua capacidade regenerativa, e as emissões devem ser reduzidas a um nível que não seja prejudicial ao clima mundial. Limita-ções e restrições, entretanto, tendem a agravar os problemas de partilha e acirrar os conflitos existentes. A pergunta crucial é saber se essa partilha será feita de acordo com os direitos, o poder de compra, a necessidade ou simples-mente por força do poder.

Precisamos de uma economia que integre todas as dimensões da meta de sustentabilidade. Para tanto, a economia de mercado deve ser re-modelada, a economia do mundo-de-vida e, com isso, a sociedade civil valorizadas, e a natu-reza protegida contra as pretensões do capital monetário: em sua função reguladora, o Estado tem de impedir que os atores de mercado, na busca por benefícios privados, promovam a exploração excessiva do patrimônio público, natural e social. Essa regulação inclui uma revi-são do direito da concorrência para coibir que empresas obtenham vantagens competitivas pela socialização dos custos ecológicos e sociais de seus negócios. Requer, ademais, uma revisão da constituição empresarial: ao lado das regalias concedidas por lei às sociedades de capital, es-sas devem cumprir deveres ecológicos e sociais. Na economia ecossocial de mercado, portanto, a regulação política tem o primado sobre a lógica do mercado. Este princípio está consa-grado na constituição da Alemanha de 1949: “A propriedade obriga. Seu uso também deve servir ao bem da coletividade.”

A economia plena

Além da economia do dinheiro, o bem-estar depende da economia da natureza e da economia do mundo em que vivemos o nosso dia-a-dia. Uma economia ecossocial de mercado fará uso de mecanismos regula-tórios para garantir que o capitalismo promova o bem-estar no sentido amplo e pleno de economia. Para fazer esta releitura da economia, o papel do Estado há de ser revisto e a sociedade civil, valorizada.

O conceito de economia transcende em muito a economia do dinheiro. A economia do Lebens- welt, do mundo-de-vida, que, em boa parte não é monetária, contribui decisivamente para o bem-estar. Citamos, a título de exemplo, as diver-sas formas de trabalho próprio, o trabalho de cuidados e assistência, o trabalho cidadão, comu-nitário e voluntário. A economia deste mundo-de-vida é o alicerce da economia do dinheiro, um pilar invisível que, ao lado do segundo pilar, o da economia do lucro, ou seja, de mercado, sustenta a economia nacional.

O terceiro pilar da economia e do bem-estar social é a natureza. Tácita e silenciosa, a natu-reza presta uma ampla gama de serviços, tais como a regulação do clima e do ciclo de água, ou a fertilidade do solo, dos quais a economia comercial se apropria a custo zero sem que nin-guém o perceba. A exemplo dos serviços presta-dos pelo mundo-de-vida, a maior parte dos ser-viços da natureza é despercebida, muitos dos quais não monetarizáveis, ou seja, quantificáveis em dinheiro.

Até o presente momento, as regras do jogo são definidos pelo sistema operacional do capi-talismo que atribui direitos de propriedade e or-ganiza a distribuição de prejuízos e benefícios. A economia social de mercado trouxe consigo uma certa civilização social do capitalismo: o Estado transformou-se em Estado social, o mo-vimento operário, em sindicato e parceiro so-cial. Hoje é preciso verificar a ligação com o ter-ceiro pilar, com a natureza. Para implementar uma economia ecossocial de mercado, o sistema

24 Coordenadas para uma Mudança de Rumo

Mares a navegar

A guinada não acontecerá num toque de magia, e Dom Sebastião não vai voltar. A política, eco-nomia e sociedade civil são conclamadas a le-vantar âncora e iniciar sua travessia em direção ao novo modelo civilizatório, duradouro e sus-tentável, em todos os setores, em todas as áreas. A política precisa redefinir suas prioridades, a economia, contentar-se com menos recursos e reduzir a poluição ambiental, o jogo do mer-cado exige uma mão reguladora, e as políticas sociais, novas abordagens integrais. Cidadãos e cidadãs podem usar as opções existentes no ní-vel local reconstruindo a comunidade para seus filhos e netos. Numa nova estrutura de coope-ração internacional, a Europa e suas empresas devem assumir uma responsabilidade global, seja pela proteção da biosfera, seja pelos direitos humanos e pela cidadania.

Para tanto, cabe fortalecer, ampliar e articular entre si os diversos modelos, idéias e soluções existentes, afirmando e implementando-as a des-peito das adversidades e contra o poder suposta-mente pétreo do status quo. Na rota em direção à sociedade sustentável, muitos são os mares que podem ser navegados.

Transição para a economia solar

A conjugação da economia com a natureza de- manda, antes de tudo, uma outra base de recur-sos. Tendo em vista as tantas tecnologias que permitem transformar e utilizar as energias solar, eólica, geotérmica e de biomassa, as fon-tes e matérias-primas fósseis podem ser suplan-tadas.

Coletores solares• são usados, principalmente, para aquecer água encanada e ambientes. Além dessas instalações de calefação, a construção

civil pode utilizar a energia solar passiva-mente: nas zonas mais frias da Terra, jardins de inverno e janelas que dão para o sol do meio-dia captam a energia solar.Na Alemanha, além de usinas hidrelétricas •existentes há tempo, a energia eólica reve-lou-se uma das principais opções para a gera-ção de energia elétrica renovável. O potencial é enorme, principalmente em parques eólicos marítimos. Variadas e sempre mais difundidas são as apli- •cações de matérias-primas vegetais nas in-dústrias química, petroquímica, farmacêutica e construção civil, tais como materiais de construção e isolamento.

O foco, tanto das soluções como das polêmicas, é o conflito entre dois modelos antagônicos: utilização de energias renováveis versus cons-trução de novas usinas termoelétricas movidas a carvão e prorrogação dos prazos operacionais das usinas nucleares existentes. No fundo, não há quem ponha em dúvida que as energias renová-veis sejam a energia do futuro. Suas vantagens são evidentes: de efeito climático quase neutro, diversificam a matriz energética, reduzem a de-pendência de importações, e contribuem, em boa medida, para o suprimento seguro e a pre-venção de crises e conflitos. Além disto, usinas termelétricas de pequeno porte, coletores solares e bombas térmicas promovem a geração descen-tralizada, aproximando os locais de geração e consumo, ressocializando um setor econômico altamente monopolizado. A demanda bastante reduzida de investimentos e infra-estrutura per-mite que novos atores tenham acesso ao mer-cado. Uma nova correlação de forças no mer-cado de energia elétrica avivaria a concorrência.

A polêmica principal gira em torno da es-colha da rota e do horizonte temporal. Construir novas estruturas demanda tempo, fato pelo qual

25Mares a navegar

usinas fósseis, por um certo tempo, podem ser necessárias. Para esse interregno, a melhor opção seriam as modernas usinas de gás natural. As en-ergias renováveis ainda costumam ser mais caras que as convencionais. Por isso, sua difusão de-pende de apoio financeiro. Além disto, há várias perguntas que carecem de respostas. Citamos, a título de exemplo, a ampliação de parques eóli-cos e os possíveis conflitos com a legislação am-biental e comunidades vizinhas.

No setor energético, os protagonistas de sem-pre estão à espreita, prestes a lançar-se sobre as energias renováveis. Sua entrada no setor se dará por parques eólicos marítimos e a impor-tação de energia elétrica, tal como a energia solar do Norte da África, sem a qual a procura energética da Alemanha e Europa, salvo a sua queda, provavelmente não poderá ser suprida. Há o perigo de o suprimento de energia, a exemplo do passado, estar concentrado nas

mãos de poucas empresas, ou seja, que a central-ização do setor continue, apesar da substituição das energias fósseis pelas renováveis.

Essa é uma questão política: cabe aos políticos definir metas claras para fomentar o suprimento de energia solar, articulado em redes e descen-tralizado, e estipular o marco regulatório da economia. As empresas devem receber a oportu-nidade de aproveitar o potencial econômico da adequação. O consumidor, por sua vez, pode contribuir para a mudança dos padrões energéti-cos optando por fornecedores de energia elétrica limpa e por um consumo mais consciente.

Evolução climaticamente compatível da matriz energética

Fonte: Uma Alemanha Sustentável em um Mundo Globalizado, p. 332

26 Coordenadas para uma Mudança de Rumo

Muitos simplesmente o desconhecem ou su-põem que as tecnologias necessárias são dema-siado caras. Em vez de incrementar ainda mais a eficiência do trabalho, convém usar o pro-gresso tecnológico para melhorar a eficiência dos recursos ao longo das cadeias produtivas e de agregação do valor, do fornecedor de maté-ria-prima até o consumidor final.

Na dinâmica econômica, porém, existem forças poderosas que resistem à exploração dos potenciais de eficiência: não são raras as em-presas que priorizam o lucro imediato em de-trimento de investimentos de melhoria cujos efeitos apenas são sentidos no longo prazo. Convém acrescentar, ainda, que soluções técni-cas, por si só, não são suficientes para um au-mento significativo da eficiência dos recursos. A demanda de recursos depende, antes de tudo, dos padrões produtivos. Vejamos os camarões do Mar do Norte: pescados na costa norte da Alemanha, são transportados para o Marrocos, onde são descascados antes de voltar às prate-leiras dos supermercados alemães. Suas viagens somam milhares de quilômetros. O consumi-dor tem um poder de co-decisão: seu estilo de vida, seus padrões de consumo, seu dia-a-dia são importantes para que mercadorias e servi-ços eficientes, produzidos com baixo consumo de recursos, possam se afirmar no mercado. As compras governamentais, que fazem da mão pública um dos maiores consumidores, podem se tornar referência.

O exemplo da co-geração, que se destaca pelo uso mais eficiente de combustíveis, mostra que, além disso, é necessária a ação política. Condições básicas adequadas podem servir de incentivo e superar a relutância dos fornecedo-res tradicionais. Uma opção seriam padrões e selos de eficiência atribuídos a eletrodomésti-cos, máquinas, instalações, prédios e processos: além da classificação energética, estes selos poderiam indicar o volume de água e recursos usados durante a produção.

Potenciais do uso eficiente dos recursos

A reconstrução da economia com base em ener-gias e substâncias solares apenas será viável quando acompanhada de uma redução acentu-ada do consumo. Algumas experiências já exis-tem: em função da elevação do preço dos insu-mos, matéria-prima e energia, empresas se vêem obrigadas a aumentar a eficiência para assegurar a competitividade e o crescimento. Boas práticas nos setores de energia, transporte, construção civil, água e saneamento básico, agricultura e pecuária e alimentação mostram que é possível aumentar a eficiência e reduzir o consumo. Na Alemanha, observa-se uma certa dissociação en-tre crescimento econômico e consumo de recur-sos. O uso eficiente de água, energia, etc. reduz os problemas ambientais, a dependência de im-portações caras e, ademais, pode conter o au-mento do custo de vida das famílias.

Casas e fábricas, motores e materiais – o potencial de economia ainda não foi esgotado. A implementação geral e sistemática desse po-tencial, contudo, é um empreendimento difícil.

A co-geração coibida

Diferentemente de usinas convencionais, cuja eficiência de con-

versão energética varia de 35 a 45%, as usinas de co-geração uti-

lizam o calor residual, aproveitando, com isso, 80 a 90% do poten-

cial energético dos combustíveis. Enquanto, no início do milênio,

a co-geração respondia por aproximadamente 11% da matriz elé-

trica alemã, nos Países Baixos e na Finlândia chegava a quase 40%

e, na Dinamarca, a nada menos que 50%. Até o ano 2020, o governo

federal da Alemanha pretende dobrar a cota da co-geração para

25%. Frente à falta de incentivos, especialistas do setor energético

não acreditam que essa meta seja realista.

27

A crise financeira provou, ainda, que os mer-cados financeiros carecem de regulação para proteger as economias contra crises e seus efei-tos sociais. Produtos financeiros de alto risco poderiam ficar sujeitos à autorização, e a tran-sações de curto prazo poderia ser imposta uma taxa sobre a circulação de títulos e valores. Tra-ta-se, portanto, de garantir que os mercados financeiros, atualmente a serviço do retorno imediato e do alto lucro, voltem a assumir seu papel original, ou seja, servir de intermediador entre investidores e produção real.

É sabido que medidas desse gênero despertam fortes resistências. Afinal, empresas e setores eco-nômicos, nomeadamente os setores energético, automobilístico, agrícola e pecuário, têm muito a perder. Associações da indústria e lobistas não se cansam de pressionar parlamentares e governos no sentido de abrandar projetos de leis ambien-tais. Uma economia ecossocial de mercado ape-nas será possível caso a política retome o pri-mado sobre a economia.

O renascimento das regiões

Em tempos de carestia de combustíveis e recur-sos, convém reduzir o trânsito, as distâncias e o volume de cargas, isto é, encurtar cadeias de agregação de valor. Isso gera oportunidades para uma retomada da economia regional que, outrora, sofreu uma perda de peso substancial em função dos processos de concentração e pri-vatização e da priorização do mercado global. Induzidos pela economia solar e incentivados pela possibilidade de gerar energia e recursos nos níveis local e regional, novas estratégias de desenvolvimento regional entram em cena.

A implementação dessas estratégias regionais deve partir, sobretudo, dos potenciais específicos que podem variar bastante, de região para re-gião. Uma opção são matérias-primas vegetais, tais como agrocombustíveis, cujo cultivo reduzi-ria as importações dos países tropicais que, de forma alguma, são justificáveis. Além disso, a re-ciclagem, o reaproveitamento de entulhos, por

O primado da política

Com a Lei de Energias Renováveis, o governo alemão desencadeou um verdadeiro boom de energia eólica, tecnologia solar e bioenergia. Ela comprova que o Estado é capaz de fomentar a inovação tecnológica de ponta, de baixo con-sumo e inteligência ecológica, incentivando os mercados rentáveis do futuro.

Intervenções políticas podem, outrossim, fomentar o investimento em bens de domínio público: assim, a agricultura – nos moldes da multifuncionalidade – pode contribuir tanto para a preservação da paisagem quanto para a proteção do meio ambiente e do clima. Verbas de fomento que até agora priorizaram o agro-negócio, ou seja, a agricultura e pecuária indus-triais, ávidas por recursos e nocivas ao meio ambiente, poderiam ser redirecionadas em prol de um desenvolvimento sustentável da agricul-tura e do meio rural.

O Estado tem as mais variadas possibilidades de influir na produção, no mercado e na con-corrência para que promovam o bem comum, para que contribuam para a causa da ecologia e da eqüidade. Ao lado da legislação, de fomento e incentivos, sobretudo financeiros, ele pode recorrer a medidas técnicas, tais como, padrões técnicos aplicáveis à eficiência energética dos produtos e limites quantitativos para que os certificados de emissões se tornem um bem es-casso e, portanto, caro. Ao interferir na forma-ção de preços, o Estado pode evitar que custos sociais sejam debitados à sociedade ou aos mais fracos e assegurar preços que reflitam os custos verdadeiros. Reformas fiscais podem frear o con- sumo ambiental indesejável, ao mesmo tempo reduzindo a desigualdade social e promovendo a justiça. Assim, a receita pública gerada por impostos sobre o consumo de recursos, que au-mentariam o custo de vida, poderia reverter em benefício da população em forma de prêmio ecológico ou fonte de financiamento de uma seguridade social ampla e integral.

Mares a navegar

28 Coordenadas para uma Mudança de Rumo

Fortalecer as relações econômicas locais traz muitas vantagens: distâncias curtas entre pro-dutores e consumidores, entre as unidades de produção, beneficiamento e transformação de matérias-primas, fortalecem a autonomia e a estabilidade econômica na região. Distâncias curtas criam transparência e confiança na qua-lidade do produto, geram emprego e renda e evitam viagens e transportes supérfluos. Dis-tâncias curtas incrementam a participação ci-dadã, melhoram relações sociais e proporcionam uma cooperação mais estreita entre empre- sários, políticos e atores da sociedade civil em busca de soluções sustentáveis para problemas regionais (Agenda 21). Elas incentivam a auto-estima e a identidade cultural. O meio ambiente é beneficiado por meio da circulação regional de recursos. A nível regional, criar um equilíbrio entre as sustentabilidades ecológica, econômica e social é mais fácil que a nível global. Afinal, nas regiões, as margens de manobra políticas costumam ser maiores que nos níveis nacionais e global.

Em vez de rezar na cartilha do paradigma de crescimento tradicional cujo único e exclusivo norte é o mercado global, os incentivos econô-micos e agrícolas concedidos no âmbito das po-líticas regionais devem ser direcionados às pe-quenas e médias empresas na região. Convém dar ênfase em cadeias de agregação de valor e na comercialização de mercadorias e serviços na própria região; taxas e impostos podem ser utili-zados para fins de regulação ecológica.

meio da mineração urbana, e processos produ-tivos que reutilizam, ao máximo, os resíduos, podem ajudar a suprir a demanda de recursos.

No meio urbano, distâncias mais curtas po-dem reduzir o trânsito, a poluição ambiental, o consumo de combustíveis e os custos de cons-trução e manutenção da malha rodoviária. Po-líticas habitacionais e projetos de construção civil oferecem um amplo leque de oportunida-des: com o apoio a construções e habitações ecológicas, é possível diminuir a demanda de recursos e energia e limitar a ocupação do solo, que, quando se dá de forma desordenada, afeta principalmente as terras agrícolas.

Os potenciais da economia regional manifes-tam-se, antes de tudo, na agricultura: a aproxi-mação de produção e consumo encurta as ca-deias produtivas, abre vias de comercialização direta com balanços ambientais mais favoráveis, promove a cooperação e facilita a comunicação sobre produtos e processos produtivos. Isso se aplica, sobretudo, à agricultura orgânica: gêne-ros alimentícios orgânicos oferecem inúmeras oportunidades de agregar valor na própria re-gião e proporcionam a criação de cadeias pro-dutivas alternativas e ecológicas.

Moedas regionais

A cooperação entre produtores e consumidores pode ser intensifi-

cada por meio de moedas regionais. No fundo, são vales ou meios

de troca cuja circulação fica restrita a uma determinada região,

como o Chiemgauer, moeda na região de Rosenheim, na Baviera.

Essas moedas, que na Alemanha costumam ser emitidas com pa-

ridade 1:1 com o euro, a moeda nacional e européia, servem para

pagar contas, mercadorias e trabalhadores. Para garantir a circula-

ção contínua da moeda regional, sua reconversão em moeda nacio-

nal fica sujeita a um desconto de 5 a 10 por cento. Esse incentivo

a ciclos econômicos regionais beneficia, principalmente, as peque-

nas e médias empresas. Em 2007, o faturamento em Chiemgauer

foi superior a 2 milhões de euros.

29Mares a navegar

há de ser valorizada social e financeiramente, não por último para estabelecer relações justas e eqüitativas entre os gêneros.

A redistribuição do trabalho traria vários be-nefícios, entre os quais uma melhoria do estado de saúde em função de cargas físicas e psíquicas reduzidas e mais tempo livre. Homens e mulhe-res teriam como participar, com igualdade de oportunidades, do trabalho remunerado, cada qual conforme suas necessidades. Os papéis e as relações entre os gêneros seriam transformados, as tarefas familiares, redistribuídas. Ademais, uma redução da jornada de trabalho seria capaz de mudar os padrões de consumo, diminuir a demanda de recursos e energia e evitar danos ambientais. Na esfera das políticas sociais, uma partilha mais justa do trabalho remunerado

A partilha eqüitativa do trabalho

A justiça social é parte integrante e imprescin- dível da sociedade sustentável. Justiça social exige a distribuição e redistribuição do trabalho em suas três vertentes: o trabalho remunerado, de cuidados e o trabalho comunitário. Tendo em vista que o pleno emprego, em sua acepção tradicional, revelou-se uma miragem, é preciso criar regimes de emprego mais realistas. O mo-delo atual – emprego para uns, desemprego para outros – poderia ser substituído pelo tra-balho remunerado para todos com jornadas curtas e flexíveis. Paralelamente, a outra parcela do trabalho, ou seja, a do trabalho de cuidados,

média da jornada anual real (em jornada integral/assalariados)

média da jornada anual real (em jornadas integral e parcial/assalariados e autônomos)

média da jornada anual real com redistribuição (em jornadas integral e parcial/assalariados e autônomos)

Exercíco hipotético: jornada de trabalho remunerado com distribuição idêntica do volume de trabalho à população economicamente ativa em potencial, 1970-2005

Fonte: Uma Alemanha Sustentável em um Mundo Globalizado, p. 433

30 Coordenadas para uma Mudança de Rumo

do desmatamento das florestas primárias chega-ram ao impasse porque os países industrializa-dos e os países em desenvolvimento se respon- sabilizam mutuamente por problemas e soluções. Em vez de jogarem a culpa uns nos outros, deveriam encontrar mecanismos para estabelecer um equilíbrio entre as pretensões, desejos e necessidades de ricos e pobres.

Os impasses atuais da política climática ape-nas serão superados caso os países industriali- zados reduzam maciçamente suas emissões e passem a adotar uma base energética solar. Sem isso, o hemisfério sul não terá como se desen- volver. Além disto, os países em desenvolvi-mento devem contar com apoio financeiro e tecnológico para entrar na era solar. Na ade-quação às mudanças climáticas que se mostram incontornáveis, os países mais pobres precisam de ajuda.

O segundo fator condicionante são as refor-mas institucionais: os organismos internacio-nais encarregados da proteção ambiental, tais como o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), e as organizações internacionais de Direitos Humanos devem ser reformadas e empoderadas. Caso contrário, não terão como se afirmar perante as poderosas organizações de comércio multilaterais (OMC, etc.) e os organismos financeiros internacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacio-nal, etc.). Em vez de propagar o desenvolvi- mento recuperador com seus nefastos impactos ecológicos, econômicos e sociais, o FMI e o Banco Mundial deveriam apoiar a transição para a sociedade solar. Requisitos adicionais são a participação – em pé de igualdade – dos paí-ses do Sul nos órgãos de decisão destas entida-des, a transparência e a obrigação de prestar contas. Alocada em um fundo fiduciário, a at-mosfera do planeta Terra poderia ser tirada do domínio econômico e político e transferida ao domínio público e coletivo. Destarte, os certifi-cados de poluição seriam distribuídos eqüitati-vamente, e a atmosfera seria livrada de cargas excessivas.

atenuaria o problema do desemprego e amplia-ria, com isso, a base financeira dos sistemas de seguridade social.

Por um lado, o desafio político consiste em prover a partilha justa e eqüitativa do trabalho remunerado e assegurar um sistema sólido de seguridade social. Por outro, é necessário criar as condições sociais e financeiras para a valorização do trabalho de cuidados e do trabalho comuni-tário. Para dar conta desse desafio, a Alemanha precisa investir pesado em educação e qualifica-ção, introduzir o salário-mínimo e um imposto de renda negativo que, a longo prazo, deve ser complementado por um programa de garantia de renda mínima para todos. Dessa forma, a se-guridade social poderia ser dissociada do traba-lho remunerado. Essa nova política social, que deve abranger todas as formas de trabalho, asse-guraria a seguridade social e proveria os serviços públicos básicos, criando as condições necessá-rias para a atividade comunitária e social e a realização de potenciais individuais. O âmago da questão é a universalização de bens e serviços públicos, ou seja, a satisfação gratuita das neces-sidades básicas para todos os cidadãos.

Rumo a uma política interna mundial

Todas as políticas devem ser redirecionadas em prol da sustentabilidade e da proteção do clima. As crises ambientais evidenciam a ligação indis-solúvel entre os países do planeta Terra. Essa des-coberta clama por uma política interna mundial capaz de sintonizar as políticas externa, ambien-tal e de cooperação para o desenvolvimento. A governabilidade do mundo apenas será assegu-rada com uma política ambiental, que prima pela cooperação, e com novas políticas de segu-rança e comércio global.

A justiça é um dos fatores condicionantes do sucesso. Muitas rodadas de negociação interna-cionais sobre a proteção do clima, a preservação e utilização eqüitativa da biodiversidade e o fim

31Mares a navegar

to de resíduos – a responsabilidade de empresas, consumidores e políticos transcende as frontei-ras nacionais. A elevada demanda de recursos, a poluição ambiental e as condições de trabalho indignas e indecentes, principalmente da mu-lher, são os problemas centrais das cadeias glo-bais, produtivas e de agregação de valor, que cla-mam por soluções conjuntas. A solução seriam salários condizentes e preços justos que refletem os custos ecológicos da produção e distribuem, eqüitativamente, o valor agregado.

Às empresas, lança-se o seguinte desafio: ao transferirem a produção a outros países, elas conseguem se livrar dos ônus social e ecológico que lhes seriam imputados nos países indus-trializados. Não são raros os países que não respeitam nem a sua própria legislação traba-lhista, quanto menos os direitos humanos, tais como as normas fundamentais do trabalho da

A prevenção e solução de conflitos apenas é possível caso a política assuma feições de uma verdadeira Política da Terra que relegaria ao segundo plano os interesses nacionais e parti-culares, priorizando o bem comum global. En-tre as condições para a construção de uma nova estrutura global e sustentável, destacamos a da prevalência universal dos tratados de direitos humanos e proteção do meio ambiente sobre quaisquer acordos comerciais.

Responsabilidade ao longo de cadeias produtivas globais

Em uma economia globalizada, na qual a pro-dução e o consumo estão interligados em escala global – da extração de matéria-prima, via trans- formação, até o comércio no varejo e o tratamen-

Cadeia de agregação de valor

Fonte: Uma Alemanha Sustentável em um Mundo Globalizado, p. 485

32 Coordenadas para uma Mudança de Rumo

compromissos de Responsabilidade Social Em-presarial, entre outras razões por temer o poder de mercado de consumidores cada mais críticos e conscientizados por meio das campanhas da sociedade civil contra os danos ambientais e o desrespeito a normas sociais. Nos setores têxtil e confecções, cafeicultura e silvicultura, organi-zações ambientais e sindicatos iniciaram uma cooperação com empresas e, em parte, com entidades governamentais no intuito de definir padrões ecológicos ou sociais aplicáveis à atua-ção empresarial (iniciativas multi-stakeholder). Citamos, a título de exemplo, o Forest Steward- ship Council (FSC), um conselho de manejo florestal que concede um selo de madeira sus-tentável.

Com seu comportamento de compra, o con-sumidor pode contribuir para que os produtos, no seu ciclo de vida, de suas origens ao trata-mento final, se tornem mais sustentáveis. Nisso, os selos ambientais e de comércio justo lhe servem de bússola. Em igual medida, os consu-midores institucionais, tais como o Estado, os estabelecimentos públicos e as igrejas, devem analisar suas compras à luz de padrões sociais e ambientais. Além de sua demanda considerável, suas decisões têm caráter referencial.

Acordos voluntários e o poder do consumi-dor, entretanto, não serão suficientes para con-ferir justiça e sustentabilidade às cadeias produ-tivas globais. Os instrumentos existentes devem vir acompanhados de um marco regulatório que garanta transparência e estipule as regras a serem seguidas por todos os atores. No âmbito da política reguladora institucionalizada (Ordnungspolitik), cabe ao Estado fazer uso de leis e incentivos adequados para complementar os acordos voluntários por normas vinculantes e, eventualmente, sanções.

Uma parte dos países em desenvolvimento le-vanta objeções: para eles, padrões sociais e am-bientais equivalem a barreiras comerciais que comprometeriam suas vantagens competitivas e as exportações para os países industrializados. Quando da definição e redação desses padrões,

Organização Internacional do Trabalho (OIT). A liberdade sindical não existe, o salário mínimo é baixo por opção. Aos países pobres costuma restar uma pequena parcela do valor agregado. Em soma, lucros e custos sociais e ecológicos são distribuídos, de forma extremamente desigual, entre os investidores, países e povos inteiros.

A responsabilidade empresarial pode ser assumida por compromissos voluntários e por uma atuação mais ciente das implicações so-ciais e ecológicas da atividade comercial. Um número crescente de empresas vem assumindo

O comércio pode ser eqüitativo

A idéia de estabelecer relações comerciais justas e eqüitativas entre

consumidores no Norte e produtores no Sul surgiu nos anos 70, a

partir de uma crítica das relações injustas do regime de com-

ércio mundial. O objetivo inicial consistia em criar estruturas comer-

ciais paralelas, contornando os grupos empresariais, para pôr fim à

exploração do Sul e substituir a lógica da maximização do lucro por

uma lógica da eqüidade. No comércio justo, os contratos com os

produtores definem condições de trabalho e níveis salariais.

O preço pago pelo café, açúcar, chá e uma gama crescente de ou-

tros produtos garante o sustento, cobre os custos de produção e

inclui, além disso, um prêmio de comércio justo que reverte em be-

nefício de projetos comunitários. O preço dos produtos do comér-

cio justo costuma superar, em muito, o preço pago no mercado

internacional convencional. As relações comerciais e os contratos

do comércio justo são de longa vigência e promovem o desenvolvi-

mento organizacional de cooperativas de pequenos agricultores,

sindicatos e entidades afins. Para além do produto com sua mais-

- valia social, o consumidor recebe informações e é conscientizado,

principalmente ao fazer compras nas lojas de comércio justo.

Os produtos começaram a sair do nicho das lojas de comércio justo

e marcar presença nas prateleiras dos supermercados. Enquanto

uns saúdam o faturamento crescente que gera renda estável para

mais de um milhão de famílias produtoras, outros criticam que,

com isso, a intenção original do comércio justo, ou seja, a con-

testação do regime comercial vigente, foi relegada ao segundo

plano.

33Mares a navegar

Ninguém põe em dúvida a necessidade do comércio e dos investimentos estrangeiros. Não obstante, uma economia global mais ecológica e eqüitativa exige regras.

A título de exemplo, citamos as regras que assegurem aos governos nacionais uma margem de manobra e flexibilidade suficientes para sal-vaguardar a economia local, reduzir a taxa de desemprego e combater a pobreza. Outro exem-plo são as regras que favorecem o comércio de mercadorias produzidas de maneira justa e sus-tentável. Imaginemos que a indústria têxtil de um determinado país desrespeite os direitos da mulher. Neste caso, os produtos poderiam ser sujeitos a uma alíquota mais elevada (acesso di-ferenciado ao mercado). Para evitar o endivida-mento excessivo de países e prevenir crises fi-nanceiras como a crise asiática do final dos anos 90, recomenda-se equilibrar as balanças comer-ciais. Regras de investimento internacionais po-dem ser aplicadas para garantir que os estados cumpram suas obrigações extraterritoriais e para obrigar as empresas a observar, em sua atu-ação global, os direitos humanos definidos pelas Nações Unidas, os padrões ambientais interna-cionais e as convenções de combate à corrupção.

Em qualquer caso, os países mais fracos do hemisfério sul devem receber tratamento dife-renciado e preferencial, assegurando que eles te-nham vez no jogo de competição desigual com os países industrializados e emergentes. Por ou-tro lado, importa conter o poder de mercado das empresas transnacionais. Para isso, são necessá-rias medidas que inibam a concorrência desleal e a formação de monopólios e cartéis. Trata-se de estabelecer relações de eqüidade entre os diver-sos atores do mercado.

Ademais, a política comercial sofre de uma grave insuficiência democrática. Debates públi-cos são uma raridade, a influência de parlamen-tares e da sociedade civil é limitada. Enquanto isso, os grupos de interesse, particularmente o lobby das indústrias, exercem muita influência sobre as negociações e decisões no âmbito da política comercial. Esse quadro apenas vai

portanto, convém ouvir e respeitar os interesses de todos os envolvidos, nomeadamente do setor produtivo e dos trabalhadores nos países em desenvolvimento. Ademais, os investimentos es-trangeiros deveriam priorizar a cooperação para o desenvolvimento e as parcerias de longo prazo. O retorno imediato e o lucro fácil resultam de vantagens comparativas que acarretam elevados custos sociais e ambientais e, no fim das contas, são pagos pela população local.

Novas regras no comércio mundial

À Alemanha cabe uma responsabilidade espe-cial: como campeão mundial de exportações, o país é obrigado a sintonizar suas relações eco-nômicas com as questões ambientais e sociais do mundo. Os instrumentos públicos atuais, tais como o seguro de crédito às exportações de empresas alemãs, priorizam o fomento a expor-tações e investimentos estrangeiros, relegando ao segundo plano a proteção do meio ambiente e os direitos humanos. Além disso, induzem os países do hemisfério sul a contrair dívidas. Em vez disso, o Estado poderia apoiar empresas ale-mãs que contribuem para a consolidação eco-nômica desses países por meio da exportação de produtos e processos produtivos que reduzem a demanda de recursos.

Desde sua fundação em 1995, a Organização Mundial do Comércio (OMC) vem definindo as regras para diversas arenas importantes do jogo comercial global. Paralelamente aos acordos multilaterais da OMC, observa-se uma multi-plicação dos acordos bilaterais, de comércio e investimento, principalmente após o fracasso aparente das negociações da rodada de Doha no decorrer da qual a OMC intentou a liberali-zação progressiva do comércio. No fundo, todas as negociações e acordos intencionam a remo-ção de barreiras comercias e obstáculos de in-vestimento para proporcionar ao capital global o acesso a novos mercados.

34 Coordenadas para uma Mudança de Rumo

interesses é relativamente menor, tais como crianças, adolescentes e migrantes. Ao mesmo tempo, a participação da sociedade civil não deve ser usada para se esquivar de uma respon-sabilidade, por exemplo quando uma adminis-tração municipal, no intuito de se desonerar da manutenção de canchas esportivas ou piscinas públicas, delega a decisão à comunidade.

Ao cidadão conscientizado não faltam opor-tunidades de ação, tais como a promoção das energias renováveis, medidas de redução da demanda de energia, criação de um sistema de transporte municipal que melhore a qualidade de vida urbana e altere os padrões de mobili-dade, parcerias de cidades e projetos de coope-ração internacionais, e atividades de formação no âmbito da política de cooperação para o desenvolvimento. A democracia e o Estado de direito oferecem oportunidades variadas para

participar da luta, • por exemplo, em projetos urbanos, tais como a elaboração do plano di-retor, programas de desenvolvimento urbano ou proteção do clima;participar da defesa • contra a privatização de serviços públicos, tais como centrais de abas-tecimento e empresas municipais, contra me-gaprojetos como rodovias, aeroportos e novas usinas que, por décadas, perpetuariam o de-senvolvimento não sustentável;participar do aperfeiçoamento• , conjugando as habilidades técnico-profissionais dos ad-ministradores com a capacidade comunitária, dos experts em assuntos do cotidiano (usuá-rios do transporte público, etc.);participar da realização • quando grupos co-munitários se tornam co-produtores da ad-ministração municipal (ver exemplo no box).

Os cidadãos podem solicitar a revisão de projetos e apelar à justiça Outras formas de participação popular – de democracia direta – são as petições e os plebiscitos.

mudar se o Parlamento Europeu e o Parlamento da República Federal da Alemanha adquirirem um peso maior nas decisões. Em todos os níveis, os processos de decisão devem se tornar mais transparentes, com maior participação da socie-dade civil e dos atingidos. Por fim, a política comercial, em vez de ir contra, deve ser harmo-nizada com os objetivos ambientais e do desen-volvimento.

O exercício da cidadania

O desenvolvimento sustentável necessita da participação cidadã. A economia privada e a ad-ministração pública, para os quais a sustentabi-lidade nem sempre ocupa o primeiro lugar, ca-recem de um contrapeso de organizações e associações cidadãs em todos os níveis.

A esfera local oferece as melhores oportuni-dades de participação política. Para tanto, a so-ciedade civil há de ser informada a tempo e de-talhadamente sobre os projetos em andamento e as decisões a tomar. Isso se aplica, sobretudo, a grupos sociais cujo potencial de afirmar seus

Os insurgentes elétricos de Schönau

Após o desastre nuclear de Chernobil, em 1986, cidadãos de

Schönau, uma pequena cidade na Floresta Negra, optaram por dar

adeus à energia nuclear: compraram a rede local de distribuição

de energia elétrica e fundaram sua própria geradora, a Elektrizi-

tätswerke Schönau. O capital necessário foi obtido por doações e

por cotas de sócios privados, muitos dos quais são moradores da

cidade de Schönau. A energia elétrica é gerada por centrais foto-

voltaicas, hidrelétricas e de co-geração de baixo impacto climático.

Desde a liberalização do mercado, esses insurgentes do Sul da

Alemanha vendem sua energia elétrica em todo território alemão

e já abastecem mais de 50.000 domicílios.

35Mares a navegar

Um estilo de vida novo e sustentável, em que a idéia do consumo dá lugar à idéia da utiliza-ção de mercadorias, contribui para a redução da demanda e para a satisfação pessoal. Quem reduz sua jornada de trabalho pode aumentar seu bem-estar e se tornar uma pessoa mais con-tente. Afinal, ganha tempo para a convivência e para os projetos pessoais. Os filósofos nos ensi-nam que existem dois caminhos para chegar à felicidade: ou a plena satisfação ou a contenção das necessidades, sendo este o caminho mais direto e seguro.

As igrejas – um peso pesado do mercado

Estima-se que as igrejas católica e protestantes da Alemanha,

incluindo suas entidades assistenciais e filantrópicas, comprem

algo em torno de 120.000 automóveis por ano. Caso utilizassem

seu poder de mercado comprando carros econômicos, colocariam

em prática o apelo de preservar a integridade da Criação e, além

de ganhar credibilidade, dariam um sinal para uma grande virada.

O primeiro passo foi dado: desde janeiro de 2008, o projeto Com-

prando o futuro vem submetendo as compras das igrejas a uma

análise profunda. A meta consiste em garantir que as compras das

igrejas correspondam a critérios ecológicos e sociais.

O privado é público

O estilo de vida individual importa sim: ao ir às compras, levando em consideração questões ambientais e de solidariedade com os mais fra-cos, o consumidor pode tomar decisões políti-cas, ou seja, fazer sua opção cidadã. Há várias formas para suprir as necessidades básicas, isto é, alimentação, habitação e mobilidade: umas são mais, outras menos nocivas ao meio am-biente e aos produtores. Idéias e soluções inova-doras permitem adequar os padrões de con-sumo sem ter de conformar-se com perdas de bem-estar. Entretanto, nem todos podem se dar ao luxo desse novo conceito de consumo. Para quem tem o dinheiro contado, é mais difícil optar por um estilo de vida diferente.

A começar pela a estratégia de compras: ao dar preferência a selos ecológicos regionais, ao comprar produtos do comércio justo e reduzir o consumo de carne, o consumidor decide se e em que medida a produção e o comércio cau-sam problemas ecológicos e sociais. O setor ha-bitacional também pode se tornar mais susten-tável: basta pensar em casas novas com emissão zero e em reformas dos prédios existentes cuja demanda energética pode ser reduzida em muito por meio de equipamentos eficientes e da energia solar. Quem tem dinheiro sobrando pode aplicá-lo em fundos de investimento eco-lógicos e ignorar as ações de empresas que des-respeitam a legislação ambiental e trabalhista. Por que não reduzir a velocidade para econo-mizar combustível, deixar o carro na garagem, substituindo-o pela bicicleta, o transporte pú-blico ou optar pelo uso compartilhado de um automóvel com outras pessoas (car sharing)?

36 Coordenadas para uma Mudança de Rumo

Protagonistas da mudança de rumo

Teremos uma Alemanha sustentável em um mundo globalizado? Essa pergunta atinge os alicerces de nosso modelo civilizatório. Vamos recorrer a uma alegoria: nosso superpetroleiro, um monstro de aço movido a combustíveis fósseis, difícil de manobrar e fonte de perigo constante para o meio ambiente, deve ser trans-formado em um moderno veleiro, um iate de alto desempenho, ágil e versátil, propelido pelo vento que emana da energia solar, com potência e velocidade reduzidas, limpo e sem risco. Por mais que ambas as embarcações sejam úteis para transportar pessoas e carga, uma o faz em sinto-nia com a natureza, enquanto a outra é uma besta ávida que devora a natureza.

As coordenadas para zarparmos com destino a uma Alemanha sustentável em um mundo glo- balizado, fazendo frente a desafios locais, nacio-nais e globais, são as seguintes:

Precisamos nos contentar com menos recur-•sos, reduzindo principalmente nossa demanda de energia fóssil, e efetuar uma tripla guinada, nos setores agropecuário, energético e de trans- porte, partindo em direção a uma sociedade que economize energia.Tendo em vista que essa guinada reduz as de-•pendências e restringe o potencial de conflitos, ela também promove a sustentabilidade econô-mica. Para tornar a economia mais sustentável e, ao mesmo tempo, menos suscetível a crises, é preciso regulamentar os mercados e retirar pri-vilégios concedidos aos interesses do capital.O equilíbrio e a justiça sociais clamam por um •novo regime de trabalho e partilha bem como pela redistribuição de renda e patrimônio.

No que depender da tecnologia, o novo veleiro pode ser construído o quanto antes. Energias re-nováveis e estratégias de redução da demanda

que podem ser usadas para a reforma de casas e edifícios, a modernização de instalações indus-triais e a produção de aparelhos elétricos de baixo consumo – vários são os caminhos que permi-tem, desde já, efetuar a guinada energética. No setor de transporte, a guinada pode ser reali-zada pela ampliação dos sistemas de transporte público, pela limitação do consumo e pela co-brança de impostos sobre o querosene de avia-ção. Na agropecuária, a guinada pode ser indu-zida pela agricultura orgânica, que apresenta alternativas às tecnologias de produção conven-cionais e seu elevado consumo de energia.

Frente à omissão e inércia quase generalizada dos governos, cientistas, empresários, associações e grupos da sociedade civil de muitos países co-meçaram a adquirir conhecimentos e experiên-cias práticas para tornar a sociedade e a economia mais verdes e mais justas. Entre as convicções bá-sicas deste Movimento internacional sem nome, se destaca o seguinte: os direitos dos seres huma-nos e a rede vital da natureza são mais impor-tantes que os bens e o dinheiro.

Incontáveis são as iniciativas e atividades nas quais pipocam alternativas: da agricultura or-gânica ao comércio justo e eqüitativo, das casas de consumo energético zero à indústria solar, dos grupos de bairro a jardins e hortas intercul-turais às redes de pesquisa globais. Os setores econômicos ecoeqüitativos e o uso de energias renováveis estão em franco crescimento. Até o momento, os europeus conseguiram barrar o uso da tecnologia genética na alimentação. Em-presas desenvolvem produtos com design ecoefi-ciente e processos de produção que demandam menos insumos. Municípios desaceleram o trânsito e fazem reformas em prédios públicos para reduzir seu consumo de energia.

37Protagonistas da mudança de rumo

na base normativa das relações de troca inter-nacionais. Os subsídios à exportação dos países do Norte, que prejudicam a produção nos paí-ses pobres, achatando os preços e levando à ruína pequenos agricultores e empresas, devem ser abolidos. Acordos comerciais devem assegurar que as relações comerciais promovam a causa dos direitos humanos e do meio ambiente. Aos países em desenvolvimento deve ser reservado o direito de controlar o volume e a qualidade das importações, para que possam salvaguardar a agricultura familiar e obter a soberania alimen-tar. Por meio de medidas eficazes, empresas transnacionais devem ser obrigadas a observar padrões sociais e ambientais.

Processos desta envergadura costumam vir acompanhadas de conflitos, de manifestações contra usinas nucleares e termelétricas movidas a carvão até correntes humanas em cúpulas eco-nômicas e disputas parlamentares. Quem se pro-põe a remodelar as estruturas econômicas mexe com regalias e contraria interesses poderosos. E para evitar a mudança necessária, os donos da situação não se cansam de apregoar soluções ob-soletas, tais como: o aumento das exportações de alimentos, uma nova revolução verde conjugada com a tecnologia genética, termelétricas a cavão, energia nuclear e monoculturas de agrocombus-tíveis.

Na viagem à sustentabilidade, os políticos po-dem encontrar aliados no empresariado e, prin-cipalmente, na sociedade civil. Sem a força da sociedade civil não será possível virar o leme e partir em direção a uma Alemanha sustentável. A guinada necessária vai depender, em muito, do Movimento internacional sem nome em prol de um mundo sustentável, que precisa andar de vento em popa e ganhar ímpeto em tempo hábil.

Esses esforços, porém, não serão suficientes para realizar a mudança civilizatória. É verdade que os precursores da mudança oferecem excelen-tes saídas e são influentes, afinal eles estão bem articulados e apresentam propostas convincentes. Agora é hora de aplicar suas idéias e iniciativas, reproduzindo-as em grande escala. A remodela-ção apenas vai funcionar com apoio maciço da política, principalmente quando se trata de tornar a economia internacional mais justa.

Para que o Estado em sua função de repre-sentante legítimo da coletividade possa afirmar o bem comum, é preciso restaurar o primado da política. Para tanto, a política precisa retomar sua consciência e convicções. Nos processos de formação da opinião pública e de decisão, im-porta fazer recuar os interesses do capital, afir-mar e aumentar a independência do Estado frente à indústria e seu lobby, e suspender, de uma vez por todas, o desmonte da autoridade pública propagada, por longos anos, pelo neoli-beralismo. Além da obrigação de servir ao bem da coletividade, a conjugação da propriedade particular com o bem comum, consagrada na constituição da Alemanha, acarreta a responsa-bilidade pelo ambiente natural.

Assim sendo, a política é obrigada a estipular um marco regulatório e criar mecanismos de contenção sistêmicos para controlar o compor-tamento e as práticas de consumidores e pro-dutores. Isso implica que as empresas devem consentir com a aplicação de padrões sociais e ambientais a seus produtos e processos. Além disso, as redes de energia elétrica, água, esgoto e gás encanado afiguram um monopólio natural a ser administrado sempre pela mão pública.

A sustentabilidade deve irromper nas políticas comerciais: para prevenir danos e aumentar os benefícios das relações comerciais, o meio am-biente e os direitos humanos devem constituir-se

38 Coordenadas para uma Mudança de Rumo

seja, atingir todos, cada qual conforme seu po-tencial econômico. Políticas ambientais que não sejam, ao mesmo tempo, políticas sociais estarão condenadas ao fracasso. Caso aumente o fosso da desigualdade social, jamais atingiremos a sus-tentabilidade. A Paz nas relações entre o Estado, a economia e a sociedade civil, entre o ser hu-mano e a natureza, entre países pobres e ricos pressupõe um novo contrato social.

Embora não exista nenhum motivo para nos entregarmos a um otimismo desmedido, os ru-mos da História são imprevisíveis. Ela vem cheia de surpresas, como a queda do muro de Berlim e a vitória do movimento contra o apartheid na África do Sul, ou, como disse o jornalista, polí-tico e filósofo italiano Antonio Gramsci: “Por mais que eu seja pessimista pela inteligência, pela vontade sou otimista.”

Ela pressupõe que todos ampliem seu hori-zonte, articulem entre si idéias e ações e encon-trem novas formas de cooperação. Ou seja, os empresários devem contentar-se com lucros mais modestos; os políticos abandonar seu es-tilo imediatista e primar por estratégias susten-táveis de longo prazo, não pensando exclusiva-mente na competitividade da produção na Alemanha; a felicidade do cidadão não pode depender do consumo; as lojas de 1,99 devem deixar de ser opção ou necessidade; os sindica-tos, além de representar os trabalhadores assa-lariados, devem defender a causa dos trabalha-dores desempregados, precários e informais. Os investidores, empresários e consumidores, que habitam os bolsões de riqueza desta Terra, são convocados a partilhar com os menos favo-recidos sua prosperidade e o poder que exer-cem sobre a natureza.

Para tanto, é preciso uma nova relação entre Estado e cidadão. Sem ela, as reformas não con-tarão com o respaldo necessário, uma vez que estas, além de aumentar o custo de vida, de-mandam a cooperação ativa, a renúncia e certos sacrifícios. As medidas devem ser convincentes e compreensíveis, transparentes e universais, ou

Porém, seria ingênuo pensar que, para mudar o comportamento e as práticas individuais, basta ter consciência de problemas e carências. Por-tanto, à indústria, aos empresários, se lança o apelo de assumirem sua responsabilidade empre-sarial por um mundo sustentável. Patrocínios culturais e esportivos, obras de caridade e filan-tropia são insuficientes. O que é preciso é pôr fim à externalização de custos sociais e ambientais, fornecendo mercadorias e serviços de baixo con-sumo de recursos que facilitem ao consumidor a opção por um estilo de vida sustentável.

Salvo certos nichos, a consciência por si só não será suficiente para que a economia abdi-que do princípio da maximização do lucro e o substitua por metas do bem comum social e ambiental. Portanto, compete ao Estado tomar diligências adequadas para instruir consumido-res e empresários. O Estado deve fazer uso das políticas reguladoras institucionalizadas e am-pliar sua margem de manobra para recuperar o terreno perdido. Isto se aplica tanto à esfera do Estado nacional quanto à esfera internacio-nal (Nações Unidas, Organização Mundial do Comércio, etc.).

O poder público do Estado, contudo, precisa ser controlado pela sociedade. Para isso, convém reforçar a posição dos meios de comunicação social e, principalmente, das organizações não governamentais. Ao mesmo tempo, as ONGs não podem fugir à pergunta sobre em que me-dida sua atuação promove a sustentabilidade.

Não por último, cabe às igrejas exercer seu papel de peso e servir de referência no âmbito da mudança de rumo. A elas é lançado o apelo de envidarem esforços adicionais em prol de uma sociedade sustentável. Ou seja, as igrejas têm a tarefa de adotar modelos econômicos e laborais sustentáveis em sua própria estrutura institucional. Nisto, podem fazer referência e dar continuidade aos debates ecumênicos sobre o futuro do planeta, com Paz, Justiça e Integri-dade da Criação.

Uma Alemanha Sustentável em um Mundo Globalizado – um desafio lançado a todos

Um viver diligente – um mandamento a ser seguido por todos

Nossa tarefa consiste em adequar o estilo de vida ao que é demandado pela

responsabilidade global. Nas vilas e cidades, nos bairros e nas comunidades,

nós, que somos consumidores, moradores, habitantes e viajantes, somos

convocados a não contribuir para a exploração excessiva da biosfera e dos

recursos naturais, a não suprir nossas necessidades às custas de nossos

congêneres.

Serviço das Igrejas Evangélicas na Alemanha para o Desenvolvimento (EED)

Ulrich-von-Hassell-Str. 76, 53123 Bonn, AlemanhaFone +49 (0)228-8101-0www.eed.de

BUND – Amigos da Terra Alemanha

Am Köllnischen Park 1, 10179 Berlin, AlemanhaFone +49 (0)30-27586-469www.bund.net

Brot für die Welt – Pão para o Mundo

Stafflenbergstr. 76, 70184 Stuttgart, AlemanhaFone +49 (0)711-2159-0www.brot-fuer-die-welt.de