Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg...

22
Trabalho de Final de Mestrado Integrado em Medicina Doença de Hirschsprung Caso Clínico Inês Gonçalves Nunes, 12772 Orientador: Dra. Joana Rios Regente: Prof. Doutora Maria do Céu Machado Clínica Universitária de Pediatria 2015/2016

Transcript of Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg...

Page 1: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

Trabalho de Final de Mestrado Integrado em Medicina

Doença de Hirschsprung

– Caso Clínico –

Inês Gonçalves Nunes, 12772

Orientador: Dra. Joana Rios

Regente: Prof. Doutora Maria do Céu Machado

Clínica Universitária de Pediatria

2015/2016

Page 2: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 2

CONTEÚDO

Abreviaturas ................................................................................................................. 3

Resumo ......................................................................................................................... 5

Abstract ........................................................................................................................ 5

Introdução ..................................................................................................................... 6

Etiologia ....................................................................................................................... 6

Fisiopatologia ............................................................................................................... 7

Classificação ................................................................................................................. 7

Epidemiologia ............................................................................................................... 8

Aspetos Genéticos ......................................................................................................... 8

Clínica ........................................................................................................................ 10

Enterocolite Associada à Doença de Hirschsprung – ECAH .................................... 11

Diagnóstico ................................................................................................................. 11

Tratamento .................................................................................................................. 14

Futuro...................................................................................................................... 14

Caso Clínico ............................................................................................................... 15

Internamento na Unidade de Cuidados Intensivos .................................................... 16

Internamento no Serviço de Cirurgia Pediátrica ....................................................... 17

Discussão .................................................................................................................... 19

Conclusão ................................................................................................................... 20

Agradecimentos .......................................................................................................... 20

Bibliografia ................................................................................................................. 21

Page 3: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 3

ABREVIATURAS

ACP auscultação cardio pulmonar

aPTT tempo de tromboplastina parcial ativada

bpm batimentos por minuto

CCN células da crista neural

CE concentrado eritrocitário

cm centímetros

DH doença de Hirschsprung

EB excesso de bases

ECAH enterocolite associada à doença de Hirschsprung

EDNRB recetor de endotelina tipo B

END3 endotelina 3

fig. figura

g/dl gramas por decilitro

H&E hematoxilina e eosina

HBA hospital Beatriz Ângelo

HCO3 bicarbonato

HSM hospital de Santa Maria

IPATIMUP instituto de patologia e imunologia molecular da universidade do Porto

IV intravenoso

Kg quilogramas

L/min litros por minuto

MAP pressão arterial média

mcg/kg/min microgramas por quilo por minuto

mEq/L milequivalentes por litro

mg/dl miligramas por decilitro

mg/kg miligramas por quilo

mm milímetros

mmHG milímetros de mercúrio

mmol/L milimole por litro

O2 oxigénio

ºC graus centígrados

Page 4: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 4

pCO2 pressão parcial de dióxido de carbono

PCR proteína C reativa

RET recetor tirosina cinase

seg segundos

SNE sistema nervoso entérico

SO serviço de observação do serviço de urgência

SU serviço de urgência

TP tempo de protrombina

TRC tempo de reperfusão capilar

UCIPed unidade de cuidados intensivos pediátricos

uL microlitros

Page 5: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 5

RESUMO

A doença de Hirschsprung é uma doença congénita rara que afeta a motilidade

intestinal. É caracterizada por aganglionose duma porção variável e distal de intestino,

consequência de um erro durante a formação do sistema nervoso entérico, durante o

desenvolvimento embrionário, que resulta na ausência de peristaltismo, com

consequente obstrução funcional. Para confirmação do diagnóstico é necessária uma

biópsia retal que confirme a ausência de células ganglionares, e o único tratamento

curativo é a cirurgia.

Neste trabalho é descrito um caso de um lactente com um quadro de choque

séptico por megacólon tóxico, secundário a enterocolite, em que foi feito o diagnóstico

de doença de Hirschsprung.

ABSTRACT

Hirschsprung disease is a rare congenital disease that affects intestinal motility.

It is characterized by aganglionosis in a variable and distal portion of the gut,

consequence of a failure in the formation of the enteric nervous system, during the

embryonic development. This results in absent intestinal peristalsis, with consequent

functional obstruction. Definitive diagnosis is based in the evaluation of rectal suction

biopsies, demonstrating the absence of ganglion cells, where the only curative treatment

is surgery.

In this analysis, it is described a case of an infant with septic shock by toxic

megacolon, secondary to enterocolitis, diagnosed later with Hirschsprung disease.

Page 6: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 6

INTRODUÇÃO

A Doença de Hirschsprung ou Aganglionose Intestinal é uma doença congénita

que afeta a motilidade intestinal. A sua etiologia e patogénese são bastante complexas, e

até à data não são completamente percebidas,1 mas sabe-se que resulta de uma

complexa interação espaço-temporal, entre células migrantes, desenvolvimento de

neurónios e intestino.2

É uma doença rara, que quando não tratada tem uma elevada morbilidade3,

podendo mesmo ser fatal nos casos mais graves, que compliquem com obstrução

funcional, perfuração intestinal ou enterocolite,4 a complicação mais grave da DH.

5,6

Atualmente, a mortalidade tem vindo a diminuir, de 80% para 13%, o que se

deve principalmente ao aparecimento de exames complementares que permitem um

diagnóstico mais precoce, e à melhoria das diferentes formas de tratamento

conservador.4

ETIOLOGIA

A DH é uma doença que resulta de uma ausência do Sistema Nervoso Entérico

(SNE), numa extensão variável e distal de intestino.2

O SNE é responsável pela inervação intrínseca do aparelho gastrointestinal. É

constituído por vários tipos de neurónios e células da glia, agrupados em gânglios,

distribuídos por dois plexos intramusculares7 (fig.1), o plexo mioentérico de Auerbach,

situado entre as camadas longitudinal e circular de músculo liso (presente deste o

esófago ao ânus), e o plexo submucoso de Meissner, anatomicamente interno ao anterior

(presente apenas nos intestinos), que são responsáveis pelo controlo da motilidade

intestinal, e pela regulação do fluxo sanguíneo, das trocas ao nível do epitélio e da

secreção hormonal.7,8

Todas as células do SNE provêm integralmente das células da crista neural.7,9

Aquando do desenvolvimento embrionário, entre a 5ª e a 12ª semana de gestação ocorre

a migração das CCN, num sentido crânio-caudal, desde o esófago até ao canal anal,5

células que vão originar até à 16ª semana de gestação, primeiro o plexo mioentérico de

Auberbach, e depois o plexo submucoso de Meissner.5 Uma interrupção na migração

das CCN resulta na ausência de células ganglionares parassimpáticas intrínsecas, ou

Page 7: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 7

Fig 1. Organização do Sistema Nervoso Entérico.

seja, na aganglionose de todo o intestino distal à interrupção.10

(1)

. Quanto mais precoce

for, maior será o segmento agangliónico resultante.5

Além da migração das CCN, todo o processo de formação dum SNE funcional

requer uma coordenação entre a migração, proliferação, diferenciação e sobrevivência

destas células.8 Qualquer factor que interfira em alguma destas etapas, ou que provoque

alterações no micro ambiente favorável a estes eventos, potencia o desenvolvimento

incorreto do SNE, podendo contribuir para aganglionose intestinal, ou seja, a DH.2

FISIOPATOLOGIA

A fisiopatologia fundamental da doença baseia-se na obstrução funcional,

causada pela falta de inervação parassimpática intrínseca dum segmento de intestino,

que resulta na ausência de peristaltismo.5,10

Além disso, o segmento agangliónico

permanece contraído, o que leva à obstrução intestinal, com consequente distensão do

intestino proximal e formação de um megacólon.8 Apesar da exaustiva investigação, a

fisiopatologia da DH ainda não está completamente esclarecida, não se encontrando

uma explicação para a ocorrência da contração mantida do segmento aganglionar do

intestino.5,10

CLASSIFICAÇÃO

Como já foi referido anteriormente, aquando do desenvolvimento do SNE, as

CCN migram numa direção crânio-caudal ao longo do trato gastrointestinal. A

(1) São designadas de Neurocristopatias, as patologias consequentes de um defeito no desenvolvimento

das células da crista neural.8

Page 8: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 8

patogénese da doença deve-se a uma interrupção da migração das células precursoras do

SNE, pelo que, dependendo da zona onde ocorre, surgem diferentes classificações da

doença e quanto mais precoce for a interrupção, maior será o segmento afetado.

No ser humano, o processo demora cerca de 7 semanas. Os neuroblastos

derivados da crista neural surgem no esófago pela 5ª semana, atingindo o íleo distal

pelas 7 semanas, o cólon transverso às 8 semanas, e demorando mais 4 semanas a

atingir o reto distal.2 Assim, se a migração for interrompida entre as 10 e as 12 semanas,

a aganglionose será limitada ao reto e ao cólon sigmóide, resultando na doença de

segmento curto ou retosigmóide. Por outro lado, se ocorrer por volta das 8 semanas,

será a partir do ângulo esplénico do cólon ou do cólon transverso, resultando na doença

de segmento longo. A forma de doença mais grave, mas também rara, é a aganglionose

total do cólon, em que a ausência de células ganglionares se estende desde o duodeno ao

reto,10

estando associada a elevados níveis de morbilidade e mortalidade2 (tabela 1).

Existe ainda a doença de segmento ultra curto, uma variante que afeta somente o reto

distal.8

Classificação Frequência

Doença de segmento curto 74-80%

Doença de segmento longo 12-22%

Aganglionose total do cólon 4-13%

Tabela 1: Frequência dos vários tipos de DH.10

EPIDEMIOLOGIA

A DH é uma doença rara que ocorre em cerca de 1/5000 nascimentos.2,8

A

transmissão genética é complexa e tem uma penetrância dependente do sexo,10

havendo

uma maior prevalência no género masculino,8 num ratio de 4:1 na doença de segmento

curto, mas de 1:1-2:1 na doença de segmento longo.10

Cerca de 15% dos casos

permanecem por diagnosticar até aos 5 anos de idade, e em alguns casos os doentes

podem permanecer mesmo sem sintomas até à adolescência.4

ASPETOS GENÉTICOS

Nos últimos anos têm sido feitos progressos significativos para uma melhor

caracterização molecular da doença, e aspetos como o risco aumentado em irmãos de

indivíduos afetados, o facto da prevalência entre sexos ser diferente, a associação da

Page 9: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 9

doença a outros síndromes e anomalias cromossómicas, têm corroborado a importância

da pesquisa de fatores genéticos na sua patogénese.10

O facto de existirem indivíduos

portadores de mutações identificadas como major para a DH, que não manifestam a

doença, reforça os complexos mecanismos multigénicos da formação do SNE e o

potencial papel dos fatores ambientais.2

Estudos genéticos já identificaram mutações em 10 genes diferentes,10

correspondendo aproximadamente a 50% de todos os casos conhecidos. As mutações

mais frequentemente encontradas são no gene RET (7-35% dos casos esporádicos),

seguido do gene EDNRB (7%), e do gene END3 (< 5%)10

. No gene RET, o mais

suscetível para a DH,11

já foram descritas mais de 20 mutações diferentes, algumas

associadas a fenótipos particulares de doença, nomeadamente à doença de segmento

curto ou à doença de segmento longo.10

A DH surge isolada em 70% dos casos.11

Em 4-35%2 dos casos surge associada

a síndromes e anomalias congénitas (mais frequentes as gastrointestinais, seguidas pelas

do sistema nervoso central e génito-urinárias), tais como trissomia 21 (2-15% dos

casos10

), defeitos do septo cardíaco, síndrome da hipoventilação central congénita,

neoplasia endócrina múltipla tipo 2, espinha bífida e neurofibromatose8,10

(tabela 2).

Sendo uma neurocristopatia, a DH aparece muitas vezes associada a outras

neurocristopatias, como o síndrome de Waardenburg.2

Ânus imperfurado Microcefalia

Atraso mental Neoplasia endócrina múltipla tipo 2A

Atrésia do cólon Neoplasia endócrina múltipla tipo 2B

Atrésia do duodeno Neurofibromatose tipo 1

Atrésia do intestino delgado Polidactilia pós axial

Criptorquidia Síndrome congénito de hipoventilação central

Disautonomia Síndrome de DiGeorge

Distrofia muscular congénita Síndrome de Smith-Lemli Opitz

Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg

Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada

Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

Hidrocefalia congénita ligada ao X (por

estenose do aqueduto de Sylvius) Trissomia 21

Tabela 2: Anomalias que podem surgir associadas à DH.2

Page 10: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 10

Fig 2. Distensão abdominal em lactente com DH.5

A DH pode ser hereditária (2.8% a 12% dos casos têm história familiar da

doença),12

ou pode resultar de mutações espontâneas, apenas num ou em vários genes.

O facto do desenvolvimento do SNE envolver imensos eventos celulares e moleculares,

justifica a diversidade genética observada na DH.2

CLÍNICA

O quadro de apresentação típico é um lactente com distensão abdominal (fig.2),

atraso na eliminação de mecónio (> 24 horas), vómitos biliosos e intolerância

alimentar.10

Quando o diagnóstico é feito tardiamente na infância, tratam-se geralmente

de casos de doença de segmento curto, que se apresentam com obstipação crónica,

distensão abdominal, vómitos e atraso do crescimento.8 Estes aspetos não são

obrigatórios, apesar da maioria dos recém-nascidos de termo saudáveis ter a primeira

dejeção entre as primeiras 24-48 horas, apenas 60-90% das crianças com DH teve um

atraso na eliminação de mecónio,10

contudo a hipótese deve ser considerada em

qualquer criança que tenha tido dificuldade na eliminação de fezes no período

neonatal.10

Em alguns casos, o toque retal pode revelar um esfíncter e um canal anal

contraídos, ou até mesmo aliviar uma obstrução intestinal aguda e facilitar a passagem

de mecónio.10

Em 10% dos casos de DH, os doentes podem apresentar-se com um quadro de

enterocolite – ECAH8.

Perante uma suspeita de DH devem ainda ser considerados alguns diagnósticos

diferenciais, nomeadamente outras causas de obstrução intestinal (íleus meconial,

Page 11: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 11

atrésia intestinal, malformação anorretal, má rotação),13

e outras causas de atraso na

eliminação de mecónio (volvo, fibrose quística, imaturidade funcional do cólon,

síndrome do cólon esquerdo hipoplásico, narcóticos, alterações eletrolíticas,

hipotiroidismo e sépsis).10

Enterocolite Associada à Doença de Hirschsprung – ECAH

É uma inflamação intestinal caracterizada clinicamente por febre, distensão

abdominal, diarreia e sépsis.12

É a principal causa de morte de crianças com DH.13

Quando não é identificada a tempo, pode evoluir para megacólon tóxico, que pode ser

fatal,10

pelo que o tratamento deve ser iniciado de forma precoce e agressiva com

antibioticoterapia de largo espectro, administração intravenosa de fluídos, irrigações

retais e colocação de sonda naso-gástrica.12,13

Se a criança se apresentar com quadro de

enterocolite grave ou em sépsis, deve ser admitida numa unidade de cuidados

intensivos, proceder-se à reposição de fluídos agressiva, e por vezes é necessário

recorrer a vasopressores e suporte ventilatório.12

Se não houver resposta a estas

medidas, deve ser colocado um estoma, da mesma forma que têm indicação para

estoma, doentes com perfuração intestinal, malnutridos, ou com quadro de distensão

maciça do intestino proximal.13

A descompressão do cólon com irrigações retais ou

mesmo com a estimulação digital retal é importante para diminuir o diâmetro do cólon,

para prevenir e para tratar a enterocolite.13

O risco de desenvolver enterocolite está aumentado em casos com história

familiar, trissomia 21, doença de segmento longo, história de episódios prévios de

ECAH,12

e é mais frequente em doentes cujo diagnóstico é realizado tardiamente, o que

sublinha a importância de um diagnóstico precoce.10

A incidência de ECAH em

crianças com diagnóstico feito na primeira semana de vida é de 11%, enquanto que em

crianças em que o diagnóstico é feito depois da primeira semana é de 24%.12

DIAGNÓSTICO

Com a melhoria e a sofisticação dos métodos de diagnóstico, a idade de

diagnóstico da DH tem vindo a diminuir consideravelmente nos últimos anos.10

A

maioria dos diagnósticos é feita no período neonatal,8 com base nos dados da história

clínica e do exame objetivo, complementados por outros exames e métodos.

O gold standard para a confirmação ou exclusão do diagnóstico é a biópsia retal,

em que a avaliação anatomopatológica revela a ausência de células ganglionares nos

Page 12: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 12

plexos submucoso e mioentérico.4,13

O procedimento mais usado para análise do

fragmento de biópsia é a coloração com hematoxilina e eosina.14

Contudo, encontrar

células ganglionares ou provar a sua ausência requer inúmeros cortes histológicos, o que

além de ser um processo demorado, é suscetível de erros, pelo que têm sido

introduzidos novos métodos de avaliação complementares à histologia standard, para

auxiliar o diagnóstico.14

Podem ainda ser encontrados troncos nervosos hipertrofiados

na submucosa,1 que correspondem a nervos pré ganglionares parassimpáticos

extrínsecos, cujo número de fibras está aumentado no segmento agangliónico. A

libertação contínua de acetilcolina por estas fibras resulta numa excessiva acumulação

de acetilcolinesterase.5 A deteção de acetilcolinesterase feita por métodos

histoquímicos5 é o único método auxiliar de diagnóstico com valor preditivo positivo.

1

Como desvantagens há a realçar o facto de precisar de tecido fresco congelado para

poder ser aplicado, de haver um alto índice de discordância entre os diferentes

observadores, e originar muitos falsos positivos assim como falsos negativos.14

As

concentrações séricas e eritrocitárias de acetilcolinesterase também têm sido

encontradas aumentadas nos doentes com DH.5

Outro método recentemente introduzido foi a coloração imunohistoquímica da

calretinina que destaca, pela presença desta proteína, as células ganglionares e os plexos

nervosos, num reto normal.1 A ausência desta coloração na parede intestinal é

característica da DH.14

Apesar de alguns estudos ainda mostrarem resultados

controversos em relação ao uso deste método, este tem-se mostrado muito útil e válido,

com valores de diagnóstico superiores, comparativamente ao uso da coloração de

H&E.14

Apesar da biópsia intestinal ser o gold standard do diagnóstico, o primeiro

exame complementar de diagnóstico é o clister opaco.4,8

É um exame feito com bário,

em que se procura pela presença e pela localização da zona de transição (zona onde há

uma diferença significativa de diâmetro entre o intestino dilatado e o intestino não

dilatado – fig.3a).4 Pode mostrar também contrações irregulares do cólon (fig.3b),

mucosa irregular (sugerindo enterocolite), e um índice retosigmóide anormal (ratio entre

o maior diâmetro do reto e o maior diâmetro da sigmóidea, que é considerado anormal

se for <1).4 Vários estudos têm documentado que em cerca de 10% dos recém nascidos

com DH, o clister opaco não revela zona de transição, tal como em crianças que tenham

um segmento agangliónico muito curto. Por outro lado, o estudo pelo clister opaco nem

Page 13: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 13

sempre é assertivo na identificação da zona de transição, uma vez que em 12% casos a

zona de transição radiológica não corresponde à zona de transição patológica.

A manometria anorretal é outra técnica utilizada, antes de se proceder à biópsia.

Avalia a presença de reflexo inibitório retoanal, que está ausente na DH. É um exame

que tem uma significativa taxa de falsos positivos. A radiografia abdominal também

pode ser uma opção inicial. Mostra uma zona de transição entre um segmento de cólon

preenchido por gás e um cólon distal não dilatado, como em forma de funil.4

Tendo em conta as possíveis complicações associadas à realização da biópsia,

cada vez mais se tentam encontrar métodos não invasivos, ou aumentar a sensibilidade

dos exames complementares disponíveis, nomeadamente do clister opaco.

O diagnóstico pré-natal ainda não é possível com os métodos atuais de

intervenção fetal. Por um lado, o facto da doença ser esporádica em 90% dos casos, de

ter uma etiologia genética bastante complexa, e uma penetrância variável para as

mesmas mutações, faz com que a seleção genética não seja uma opção fiável.15

Por

outro lado, o diagnóstico in utero por ecografia também não é exequível, pois nem o

SNE é funcional antes do nascimento, nem a dilatação intestinal é observável.2(2)

Fig 3. Clister opaco de lactentes com DH, evidenciando em a. zona de transição;5 b. contrações

irregulares do cólon.4

(2) Isto porque, antes das 25 semanas raramente é possível visualizar um cólon dilatado com sinais de

obstrução (mesmo aquando do nascimento, a maioria dos bebés com DH não apresentam distensão

abdominal, pois é uma característica que se vai instalando progressivamente nos primeiros dias de vida);15

e, apesar de, quer nos animais quer nos humanos, as principais estruturas responsáveis pela motilidade

intestinal estarem presentes, o SNE está relativamente quiescente até ao final da gestação, e a

contractilidade do cólon é mediada por outros fatores.2

a

Page 14: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 14

TRATAMENTO

O tratamento da DH é cirúrgico. O princípio básico e comum a todos os

procedimentos é a remoção do segmento de cólon agangliónico, com reanastomose do

intestino (segmento gangliónico mais distal) ao ânus.2 A anastomose é feita de

preferência imediatamente acima do ânus, a um nível que previna a ocorrência de

obstrução funcional, e que ao mesmo tempo preserve a continência fecal.16

Crianças

mais velhas que apresentem um cólon extremamente dilatado podem requerer semanas

ou meses de irrigações retais, para que o cólon recupere o seu diâmetro antes da cirurgia

definitiva, e em crianças com uma dilatação particularmente acentuada do cólon

proximal, pode ser necessária uma colostomia prévia para se poder fazer uma correta

descompressão.13

Apesar de ser um tratamento life saving, tem as suas possíveis complicações,

quer agudas (estenose da anastomose, enterocolite) quer crónicas (obstipação,

incontinência fecal),11

que podem piorar o prognóstico.

A correção cirúrgica da DH tem sofrido uma grande evolução na última década.

As intervenções cirúrgicas têm progredido de dois e três tempos, para apenas um único

tempo cirúrgico e as técnicas cirúrgicas têm vindo a ser melhoradas, sendo utilizadas

cada vez mais técnicas minimamente invasivas.

Futuro

Uma das grandes áreas de investigação atual é a possível terapêutica com células

estaminais.11

Recentemente, foram isoladas de crianças e de adultos, com e sem DH,

células do SNE que quando cultivadas in vitro se replicam, e quando transplantadas

para modelos animais com DH proliferam originando neurónios e células da glia

funcionais.2 Estes resultados apoiam a existência de um reservatório de células

estaminais, com grande capacidade proliferativa e de diferenciação, junto às células

migrantes da crista neural, que perspetivam uma futura terapêutica da aganglionose,

assente na transplantação de células estaminais.2

Page 15: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 15

CASO CLÍNICO

V.M.C., lactente, sexo masculino, nascido a 28-04-2014 (8 meses), raça

caucasiana, natural de Loures, 8.5 Kg e 70 cm de comprimento.

Nasceu no Hospital Beatriz Ângelo, parto eutócico, duma gestação de 40

semanas + 4 dias, não vigiada, com índice de APGAR de 10/10, e antropometria ao

nascimento de 3.140 Kg e 46.5 cm. A primeira eliminação de mecónio ocorreu nas

primeiras 24 horas, após estimulação.

Fez leite materno exclusivo até aos 5 meses, quando iniciou a diversificação

alimentar que progrediu sem intercorrências. História pessoal de obstipação desde os 4

meses, com necessidade de estimulação diária para evacuar, estando nesta data

medicado com supositórios de glicerina 2-3 vezes por semana. Esteve internado na

primeira semana de vida por hiperbilirrubinémia e para esclarecimento da situação

social. Sem intervenções cirúrgicas ou alergias e sem antecedentes familiares relevantes.

Aparentemente bem até dia 29-12-2014, altura em que iniciou quadro de febre

(39ºC), vómitos, irritabilidade e dejeções diarréicas. Recorreu ao SU do HBA,

apresentando-se com bom estado geral e hidratado, teve alta com terapêutica

sintomática e regressou 5 horas depois, por persistência do quadro. Nessa admissão

apresentava-se queixoso, com gemido, irritabilidade, palidez da pele e das mucosas,

TRC = 3 seg, sem outros sinais de desidratação, sem sinais meníngeos, sem sinais de

discrasia hemorrágica, ACP normal, abdómen normal, otoscopia e observação da

orofaringe normais. Analiticamente com hemoglobina de 10.3 g/dl, 4.100 leucócitos/uL

(com 39,8% de neutrófilos), 413 000 plaquetas/uL, TP 15.6 seg, aPTT 42.2 seg e PCR

de 7.6 mg/dl, e gasometricamente pH 7.35, pCO2 de 31 mmHg, HCO3 17.1 mEq/L, EB

–7.5 mmol/L e lactatos 23 mg/dl.

Ficou internado em SO. Por persistência do quadro foi efetuada punção lombar,

que foi traumática, tendo realizado uma toma de ceftriaxone (100 mg/kg/dia IV). Na

manhã seguinte observou-se um agravamento do quadro, surgindo instabilidade

hemodinâmica com taquicardia (180 bpm), hipotensão (MAP 50 mmHg), TRC = 3 seg,

pulsos periféricos não palpáveis e centrais filiformes, e agravamento dos parâmetros

analíticos com leucopenia (leucócitos 2200/uL), trombocitopenia (187 000

plaquetas/uL), alterações da coagulação (TP 24.1 seg, aPTT 52.6 seg), acidose

metabólica (pH 7.19, pCO2 de 36 mmHg, HCO3 13.8 mEq/L, EB -13.3 mmol/L e

Page 16: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 16

lactatos 39 mg/dl), e subida da PCR (23 mg/dl), tendo-se associado metronidazol (6/6h)

e vancomicina (8/8h).

Fez 3 bólus de soro fisiológico, que não reverteram o quadro, seguidos de 1

bólus de lactato de Ringer. Não havendo melhoria dos parâmetros vitais, iniciou

dopamina (máx 15 mcg/kg/min). Ao exame objetivo observava-se distensão abdominal

de novo, com dor à palpação. Sem outras alterações de novo.

Por instabilidade hemodinâmica, foi transferido para a UCIPed do HSM, com o

diagnóstico provisório de choque séptico secundário a gastroenterite aguda com

provável ponto de partida abdominal.

Internamento na Unidade de Cuidados Intensivos

O V. foi admitido na UCIPed a 30-12-2015 (D1), ainda hemodinamicamente

instável, com hipotensão, com necessidade de administração de CE por hemoglobina de

8.2 g/dl, permanecendo depois hemodinamicamente estável de D2 a D7. Ao exame

objetivo apresentava o abdómen muito distendido, duro e pouco depressível à palpação.

A ecografia abdominal mostrava marcada distensão do cólon sigmóide com conteúdo

líquido ecogénico (4 cm), com reto e ansas de intestino delgado de calibre normal. Na

radiografia abdominal observavam-se fezes em abundante quantidade e distensão do

cólon descendente. A distensão abdominal manteve-se até D4, variando entre 52 cm e

58.8 cm de perímetro abdominal.

Ao longo do internamento foi observado regularmente pela cirurgia pediátrica,

procedendo-se à colocação de sondas de enteróclise, com saída de fezes em abundante

quantidade, cheio fétido, sem sangue e sem muco. Pela presença de um quadro de

choque refratário à terapêutica médica, com importante distensão das ansas intestinais, o

V. foi levado ao bloco operatório em D4, para uma laparotomia exploradora de

urgência, já se colocando as hipóteses de megacólon tóxico e DH. Foi feita drenagem

imediata de líquido ascítico, verificando-se uma marcada distensão dos cólons sigmóide

e descendente, com conteúdo fecalóide, tendo sido feita uma colostomia

descompressiva, colostomia em topos separados (cólon descendente) e wash-out do

cólon distal. Pelo aspeto macroscópio foram colhidas biópsias e enviadas para o

IPATIMUP para estudo, por hipótese de DH.

O V. permaneceu na UCIPed para estabilização clínica até D15. Após cirurgia, a

colostomia permaneceu funcionante, com saída de fezes esverdeadas, mantendo o

abdómen muito distendido.

Page 17: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 17

Esteve sempre sob terapêutica antibiótica, estando à data da transferência para a

enfermaria de Cirurgia Pediátrica em D13 de meropenem, D14 de metronidazol e D1 de

vancomicina. De D7 a D9 esteve sob suporte inotrópico com noradrenalina por novo

período de instabilidade hemodinâmica. Em termos respiratórios esteve sob ventilação

invasiva de D4 a D10. Manteve necessidade de O2 suplementar até D13 (máx

0.5L/min). Manteve valores de trombocitopenia de D2 a D10, e coagulopatia com

prolongamento dos TP e aPTT, tendo sido feita administração de plasma fresco

congelado em D4 e D5. Todos os exames microbiológicos (hemocultura, urocultura,

exame bacteriológico e micológico das fezes) colhidos em ambos os hospitais foram

negativos.

Internamento no Serviço de Cirurgia Pediátrica

Em D15 foi transferido para a enfermaria de Cirurgia Pediátrica, para

continuação de cuidados, onde ficou internado durante 9 dias, já com o diagnóstico de

CHOQUE SÉPTICO por MEGACÓLON TÓXICO e suspeita de DH.

Durante o internamento verificou-se uma evolução clínica favorável, mantendo

contudo sempre algum desconforto e distensão abdominal. Teve tolerância alimentar

progressiva (dieta líquida e mole) com colostomia funcionante de fezes semi-pastosas.

Esteve sob alimentação parentérica que reduziu progressivamente, com aumento da

alimentação entérica. Apirexia durante este período.

Em D24 teve alta, orientado para seguimento em consulta externa, aguardando

resultado do estudo de imunohistoquímica em curso, que posteriormente revelou um

aumento da expressão de acetilcolinesterease, e ausência de células ganglionares, em

dois fragmentos de biópsia retal.

Com a corroboração do diagnóstico de DOENÇA DE HIRSCHSPRUNG, foi realizado

um clister opaco para caracterização diagnóstica, que revelou um zona de menor calibre

na sigmóide distal (a cerca de 6-7 cm da margem do ânus), com uma extensão

longitudinal não superior a 15 mm, condicionando a dilatação do cólon a montante.

Durante o seguimento regular em ambulatório observou-se um adequado

desenvolvimento psicomotor e estatuto-ponderal, com colostomia funcionante e sem

outras intercorrências.

No dia 30-09 foi submetido, sob anestesia geral, a um abaixamento colo-anal

endoretal pela técnica de Soave. O procedimento cirúrgico não teve intercorrências. Foi

internado na UCIPed durante as primeiras 24 horas para recobro e cuidados imediatos

Page 18: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 18

de pós-operatório, tendo sido transferido para a enfermaria de Cirurgia Pediátrica para

continuação de cuidados no dia seguinte. Teve alta clinicamente bem a D9 de pós-

operatório, com indicação para reavaliação em Hospital de Dia, e seguimento em

consulta de Cirurgia Pediátrica – Dismotilidade Digestiva, para programação de

dilatações anais em ambulatório.

Page 19: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 19

DISCUSSÃO

Perante um caso clínico como o descrito, de um lactente de 8 meses, com febre

(39ºC), vómitos, diarreia, irritabilidade, gemido, palidez cutânea, que evoluiu em

poucas horas para um quadro com critérios de sépsis(3)

, com TRC aumentado,

taquicardia, hipotensão e leucopenia, uma hipótese de diagnóstico a considerar, é de

meningite. No entanto, neste quadro também estava presente diarreia, que não é típica

da hipótese considerada, além de que não apresenta abaulamento da fontanela anterior,

um sinal típico do lactente, sinais meníngeos ou de discrasia hemorrágica.

Perante a presença de vómitos e diarreia devem ser consideradas outras

patologias gastrointestinais, que possam culminar num quadro de choque séptico,

nomeadamente situações de abdómen agudo e oclusão intestinal, como a apendicite

aguda, (embora não seja uma patologia habitual nesta faixa etária), ou de volvo

intestinal. A invaginação intestinal também é uma hipótese a excluir, por ser a causa

mais frequente de obstrução intestinal na infância, com um pico de incidência entre os 5

e os 9 meses. Estamos perante um doente com 8 meses e com vómitos, que embora não

apresente o quadro clássico de cólica abdominal, com massa palpável e eliminação de

fezes tipo “geleia de framboesa”, sabe-se que em mais de 50% dos casos, tal quadro não

se verifica.

Sendo que estamos perante um doente com antecedentes pessoais de obstipação

desde os 4 meses de idade, com necessidade de estimulação diária para evacuar, com

primeira passagem de mecónio após estimulação, é importante atentar em diagnósticos

diferenciais de atraso da passagem de mecónio e de obstipação crónica no lactente.

Devem então ser consideradas hipóteses de diagnóstico como doença de Hirschsprung,

atrésia do intestino, malformação anorretal, má rotação e síndrome do cólon esquerdo

hipoplásico, entidades que podendo não se manifestar logo após o período neonatal,

podem manifestar-se mais tarde, com quadros de apresentação compatíveis com o

descrito.

(3) Os critérios de diagnóstico de sépsis na idade pediátrica incluem sinais e sintomas de inflamação e

infeção, com hiper ou hipotermia (temperatura retal> 38.5°C ou <35°C), taquicardia, e de pelo menos um

dos seguintes indicadores de alteração de função de órgão: alteração do estado mental, hipoxemia e

aumento dos níveis séricos de lactato.17

Page 20: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 20

CONCLUSÃO

A DH é uma doença congénita, em que por uma alteração durante o

desenvolvimento embrionário, resulta em aganglionose de uma porção de intestino que,

não sendo funcional, vai provocar a acumulação de conteúdo fecal a montante.

Manifesta-se geralmente nos primeiros meses de vida, com um quadro de distensão

abdominal e vómitos, em lactentes com história de atraso na eliminação de mecónio no

período neonatal. Se o diagnóstico for tardio, o modelo mais comum é uma criança com

antecedentes de obstipação crónica e atraso do crescimento estatuto-ponderal, que

apresente distensão abdominal e vómitos.

O caso clínico descrito caracteriza-se por um lactente de 8 meses, com história

de obstipação crónica, que se apresentou com quadro de choque séptico, consequência

dum processo de enterocolite, que acabou por evoluir num megacólon tóxico. Esta não

corresponde à forma de apresentação mais frequente da DH, mas constitui o quadro

inicial em cerca de 10% dos casos. Por outro lado, a variante da doença neste caso é a

mais frequente em termos epidemiológicos, ou seja, a doença de segmento curto ou

retosigmóide, o que se conclui pelos resultados da anatomia patológica.

A DH é uma entidade que deve ser considerada em todas as crianças que tenham

apresentado dificuldade ou um atraso na eliminação de mecónio no período neonatal,

assim como em crianças com obstipação crónica. Os meios atualmente disponíveis já

permitem fazer um diagnóstico e um tratamento relativamente precoces, evitando que a

doença progrida e que surjam complicações graves, que possam colocar em risco a vida

da criança. Um diagnóstico precoce, além de diminuir as complicações, melhora o

prognóstico, tendo uma grande influência positiva na qualidade de vida. É fundamental

um elevado grau de suspeição, de modo a ser realizado um diagnóstico precoce.

Para terminar, a DH é uma doença complexa sobre a qual se debruçam muitos

estudos e investigação, com o intuito quer de descobrir mais sobre a sua origem,

fisiopatologia, aspetos genéticos da doença, quer de melhorar e mesmo inovar as

técnicas de diagnóstico e tratamento.

AGRADECIMENTOS

À Dra. Joana Rios pela disponibilidade, orientação e aconselhamento;

Às minhas pessoas pelo incentivo, pelo apoio e pela ajuda.

Page 21: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 21

BIBLIOGRAFIA

1. Alexandrescu, S., Rosenberg, H. & Tatevian, N. Role of calretinin

immunohistochemical stain in evaluation of Hirschsprung disease: an

institutional experience. Int. J. Clin. Exp. Pathol. 6, 2955–61 (2013).

2. Kenny, S. E., Tam, P. K. H. & Garcia-Barcelo, M. Hirschsprung’s disease.

Semin. Pediatr. Surg. 19, 194–200 (2010).

3. Gasc, J.-M., Clemessy, M., Corvol, P. & Kempf, H. A chicken model of

pharmacologically-induced Hirschsprung disease reveals an unexpected role of

glucocorticoids in enteric aganglionosis. Biol. Open 4, 666–71 (2015).

4. Alehossein, M., Roohi, A., Pourgholami, M., Mollaeian, M. & Salamati, P.

Diagnostic accuracy of radiologic scoring system for evaluation of suspicious

hirschsprung disease in children. Iran. J. Radiol. 12, e12451 (2015).

5. Holschneider, A. M. & Puri, P. Hirschsprung’s Disease and Allied Disorders.

(Springer, 2008).

6. Austin, K. M. The pathogenesis of Hirschsprung’s disease-associated

enterocolitis. Semin. Pediatr. Surg. 21, 319–327 (2012).

7. Sasselli, V., Pachnis, V. & Burns, A. J. The enteric nervous system. Dev. Biol.

366, 64–73 (2012).

8. Butler Tjaden, N. E. & Trainor, P. A. The developmental etiology and

pathogenesis of Hirschsprung disease. Transl. Res. 162, 1–15 (2013).

9. Goldstein, A. M., Hofstra, R. M. W. & Burns, A. J. Building a brain in the gut:

development of the enteric nervous system. Clin. Genet. 83, 307–16 (2013).

10. Haricharan, R. N. & Georgeson, K. E. Hirschsprung disease. Semin. Pediatr.

Surg. 17, 266–75 (2008).

11. McKeown, S. J., Stamp, L., Hao, M. M. & Young, H. M. Hirschsprung disease: a

developmental disorder of the enteric nervous system. Wiley Interdiscip. Rev.

Dev. Biol. 2, 113–29 (2013).

12. Frykman, P. K. & Short, S. S. Hirschsprung-associated enterocolitis: prevention

Page 22: Doença de Hirschsprung - ULisboa · 2018-12-13 · Estenose do ânus Síndrome de Waardenburg Estenose do reto Surdez neurosensorial isolada Hérnia inguinal Síndrome Goldberg Sphrintzen

FML Doença de Hirschsprung – Caso Clínico

Inês Gonçalves Nunes 22

and therapy. Semin. Pediatr. Surg. 21, 328–35 (2012).

13. De La Torre, L. & Langer, J. C. Transanal endorectal pull-through for

Hirschsprung disease: technique, controversies, pearls, pitfalls, and an organized

approach to the management of postoperative obstructive symptoms. Semin.

Pediatr. Surg. 19, 96–106 (2010).

14. Anbardar, M. H., Geramizadeh, B. & Foroutan, H. R. Evaluation of Calretinin as

a New Marker in the Diagnosis of Hirschsprung Disease. Iran. J. Pediatr. 25,

e367 (2015).

15. Wilkinson, D. J., Edgar, D. H. & Kenny, S. E. Future therapies for

Hirschsprung’s disease. Semin. Pediatr. Surg. 21, 364–70 (2012).

16. Langer, J. C. Laparoscopic and transanal pull-through for Hirschsprung disease.

Semin. Pediatr. Surg. 21, 283–90 (2012).

17. Dellinger, R., Levy, M. & Rhodes, A. Surviving Sepsis Campaign: international

guidelines for management of severe sepsis and septic shock, 2012. Intensive

care … 41, 580–637 (2013).