Ética e Antropologia

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Discute as questões pertinentes a relação entre antropologia e ética.

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  • tica e AntropologiaSERGIO PAULO ROUANET*

    " um cum sint duo genera decertandi, unumper disceptationem, alterum per vim,cumque illud proprium sit hominis, hoc

    beluarum, confugiedum est ad posterius, si uti non licetsuperiore."

    Cicero, De Officiis

    "Wir haben beideUns unser Volk nicht auserlesen. SindWir unser Volk Was heisst denn Volk?Sind Christ und Jude eher Christ und JudeAls Mensch? Ah! wenn ich einen mehr in EuchGefunden haette, dem es g'nuegt, ein MenschZu heissen! "

    Lessing, Nathan der Weise"

    " Intellegendum etiam est duabus quasi nos a natura indutus essepersonis; quarum una communis est ex eo, quod omnes participessumus rationis praestantiaeque ejus, qua antecellimus bestiis, a quaomne honestum decorumque trahitur, et ex qua ratio inveniendi officiiexquiritur, altera autem, quae proprie singulis est tributa "

    Cicero, De Officiis

    I

    H algum tempo, escrevi uma carta a Roberto Cardoso de Oliveira,pedindo-lhe alguns dados sobre a questo do relativismo cultural etico na antropologia.

    * Srgio Paulo Rouanet filsofo e autor de As Razes do Iluminismo (So Paulo, Companhiadas Letras, 1988), entre outros livros.

  • Para minha agradvel surpresa, recebi uma resposta que excedia todasas minhas expectativas. Em vez de uma simples carta, Robertomandou-me todo um ensaio, intitulado tica e Saber, em que eledebate exaustivamente essa questo e muitas outras.

    Em seu manuscrito de 25 pginas, o autor trata de temas como ascondies normativas do conhecimento cientfico; a problemtica dorelativismo na pesquisa antropolgica; a antropologia como cinciasocial aplicada, particularmente nos processos de mudana socialinduzida; e o papel do Estado democrtico na criao de um climafavorvel pesquisa cientfica.

    Em todos esses temas, a tica o foco principal. Roberto Cardoso secoloca na perspectiva da tica discursiva, de Habermas e Apel, e graass suas categorias consegue esclarecer de modo original e pioneiroinmeros aspectos da relao entre a tica e a antropologia.

    Interpretei esse ensaio, cuja elaborao o autor atribui generosamente minha consulta original, como um convite ao debateinter-disciplinar. Como antroplogo, Roberto recorre a uma moldurafilosfica, e como filsofo, ou pelo menos como ensaista interessadoem questes filosficas, seria minha vez de refletir sobre aantropologia.

    O grande problema desse intercmbio que as condies no soiguais. Roberto h anos se interessa por questes filosficas,particularmente as de carter epistemolgico, e eu no me considerosequer um auto-didata em antropologia.

    Minha nica credencial para participar do debate justamente minhaignorncia. Ela to radical, que pode por isso mesmo adquirir algumvalor terico: um olhar ingnuo pode por mero acaso ver coisas quetalvez no fossem vistas por um olhar profissional. Imagino que emseus trabalhos de campo, Roberto tenha encontrado situaessemelhantes: um interlocutor indgena pode ocasionalmente fazerreflexes vlidas sobre a cultura branca, que no teriam ocorrido aquem vive nela.

    De certo modo, estou na mesma situao. Em matria de saberantropolgico, sou um aborgene, que se relaciona com esse sabercomo o indgena se relaciona com o dogma da Imaculada Conceio:com uma atitude de assombro e temor reverenciai, que no exclui apossibilidade de uma ou outra observao pertinente, capaz deinteressar o missionrio que o inicia no cristianismo.

  • Encorajado por essa idia consoladora, gostaria de responder aoconvite de Roberto dizendo como vejo, a partir da mesma gradeintelectual por ele adotada - a teoria da ao comunicativa - a questodo vnculo entre a tica e a antropologia.

    Para facilitar a compreenso do leitor, no-familiarizado com ostrabalhos de Habermas e Apel, comearei resumindo, muitoesquematicamente, os princpios gerais da tica discursiva. Discutireiem seguida nos seguintes blocos temticos a relao entre a tica e aantropologia: a tica e o saber antropolgico, a tica e os processos demudana social, e a tica como fora motriz para promover areversibilidade dos encontros interculturais.

    IIO ponto de partida da teoria da ao comunicativa o mundo vivido(Lebenswelt): o lugar das relaes sociais espontneas, das certezaspr-reflexivas, dos vnculos que nunca foram postos em dvida. Asrelaes sociais que se do no mundo vivido assumem,caracteristicamente, a forma da ao comunicativa: um processointerativo, linguisticamente mediatizado, pelo qual os indivduoscoordenam seus projetos de ao e organizam suas ligaes recprocas,

    Na comunicao normal invocamos sempre, implicitamente,pretenses de validade (Gueltigkeitsansprueche) com relao a todos osenunciados. Quando falamos, estamos sempre asseverando,tacitamente, que nossas afirmaes sobre fatos e acontecimentos soverdadeiras, que a norma subjacente ao enunciado lingstico justa, eque a expresso dos nossos sentimentos veraz. Na comunicao quese d no mundo vivido, as trs pretenses de validade se entrelaam. Oprocesso comunicativo se vincula sempre a trs " mundos": o mundoobjetivo das coisas, com relao ao qual cabem pretenses de verdade(Wahrheitsansprcht); o mundo social das normas e instituies, comrelao s quais so invocadas pretenses de justia(Ricbtigkeitsansprche); e o mundo subjetivo das vivncias esentimentos, com relao ao qual se alegam pretenses de veracidade(Wahrhaftigkeitsansprche).

    A coordenao comunicativa entre os interlocutores se d atravs daexpectativa de que se necessrio cada interlocutor poder justificaressas pretenses de validade. A validade da pretenso de veracidade spode ser demonstrada pela consistncia entre as palavras dointerlocutor e os seus atos. Mas no caso das outras duas, ele precisarapresentar provas e argumentos - dentro de um quadro tericogeralmente aceito, no caso das proposies descritivas, ou dentro de

    A validade dapretenso de

    veracidade spode ser

    demonstrada pelaconsistncia entre

    as palavras dointerlocutor e os

    seus atos.

  • uma ordem normativa existente, no caso das proposies prescritivas.Por exemplo, ele dir que as primeiras so verdadeiras porque seapoiam numa teoria aceita sobre o mundo fsico, e as segundas socorretas porque se apoiam numa norma vigente. A situao mudaquando o que se contesta a prpria validade da teoria ou da norma.Sua problematizao requer o adandono do mundo vivido e o ingressonum tipo de argumentao sui generis. o discurso.

    As pretenses de validade correspondentes questes cognitivas soproblematizadas nos discursos tericos, e as correspondentes questes normativas, nos discursos prticos. Nos dois casos, osparticipantes se distanciam do mundo vivido e assumem uma atitudecrtico-hipottica de investigao imparcial do que antes era vistocomo no-problemtico. Nos dois casos, a argumentao discursivatem como ponto de partida a suspenso radical da crena na validadedo que havia sido afirmado. Ela posta entre parnteses, at que seconclua, pelo consenso, o processo de discusso discursiva, que podelevar confirmao (mas tambm negao) dos fatos apresentadoscomo verdadeiros, e justificao (mas tambm refutao) dasnormas apresentadas como justas.

    Nos dois discursos, portanto o consenso que valida a proposio,mas a validao s ser conclusiva se o consenso for fundado. Oconsenso ser fundado se a argumentao tiver sido conduzidasegundo certos pressupostos pragmticos, que incluem o de que todosos interessados tenham direito de participar do discurso, de que todosos participantes tenham iguais oportunidades de apresentar e refutarargumentos, de que todos os argumentos sejam submetidos ao livreexame de todos, de que nenhum dos participantes sofra qualquercoao, e outros. Esses pressupostos so os que prevalecem numasituao lingstica ideal, para Habermas, ou numa comunidadeargumentativa ideal, para Apel. So condies ideais, porqueraramente se atualizam em discursos concretos. Ao mesmo tempo,precisam ser pressupostas como reais, porque sem a expectativa de queelas estariam presentes, nenhum interessado participaria daargumentao.

    Esses pressupostos esto na origem de qualquer argumentao, tericaou prtica. Eles remetem a valores morais, e nesse sentido podemosdizer que a tica pressuposta por qualquer discurso. Mas as questesnormativas so debatidas nos discursos prticos. Contra o positivismo,a teoria da ao comunicativa afirma que as proposies normativasso to wahrheitsfaehig, to susceptveis de serem falsas ouverdadeiras, como as proposies descritivas. Como estas, asproposies normativas so validadas por um consenso fundado. O

  • consenso em questes prticas ser fundado quando a argumentaofor conduzida segundo uma regra de procedimento derivada dospressupostos pragmticos de qualquer argumentao, prtica outerica. Essa regra o princpio da universalizao, o princpio U. oseguinte o enunciado do princpio U: "Todas as normas vlidasprecisam atender condio de que as conseqncias e efeitoscolaterais que presumivelmente resultaro da observncia geral dessanorma para a satisfao dos interesses de cada indivduo possam seraceitas no coercitivamente por todos os envolvidos."

    O princpio U pode ser fundamentado. Ele deriva dos pressupostospragmticos de toda e qualquer argumentao discursiva. Cada pessoaque ingressa num discurso prtico se obriga intuitivamente a aceitarprocedimentos que equivalem ao reconhecimento implcito doprincpio U. No posso, sem contradizer pressupostos gerais dacomunicao, aceitar, na argumentao moral, que alguns interessadossejam excludos, que alguns participantes sejam coagidos, que outrosno tenham a possibilidade de argumentar em defesa dos seusinteresses, que outros se arroguem o direito de no seguir a norma.

    A tica comunicativa formalista, porque ela pressupe que oscontedos sero trazidos moldura argumentativa pelos prpriosinteressados. Ao mesmo tempo, ela remete a uma tica material,encrustada nas estruturas formais da interao e do discurso. No nvelda comunicao quotidiana h uma srie de normas implcitas, como aque prescreve o respeito integridade fsica de cada participante - arelao de violncia a anttese da relao comunicativa - a queprescreve a busca da verdade e da justia, a que exprime a exigncia daveracidade. No nvel do discurso, a situao lingstica ideal e seuderivado, o princpio U, prescrevem o tratamento igual de todos osparticipantes, a considerao dos interesses de cada um, a ausncia decoao, a incluso de todos os interessados. Subjacente camadanormativa, existem vrios valores fundamentais, vinculados a cadapretenso de validade e prpria exigncia de inter-relacionamentoatravs do nexo comunicativo. Todos esses valores podem serexpressos dicotomicamente, para que fique claro que correspondem adeterminadas escolhas e preferncias: o consenso prefervel violncia, o saber prefervel ao no-saber, a veracidade prefervel mentira, a igualdade prefervel discriminao e a liberdade prefervel coao.

    A tica comunicativa universalista. Ela se funda na hiptese de umanatureza humana universal, fundada na universalidade da comunicaopela linguagem. A moldura argumentativa igualmente universal, nono sentido de que no existam discursos locais, em que os interessados

  • abrangeriam apenas um grupo social especfico, mas no sentido de queos argumentos usados devem ser susceptveis de convencer todos osseres racionais, mesmo os no diretamente envolvidos. o conceitokantiano da raesonierrende Oeffentlichkeit, uma comunidadeargumentativa aberta, abrangendo tendencialmente a humanidadeinteira. Universal, tambm, o princpio U, verso comunicativa doimperativo categrico, cujo contedo a exigncia da universalizao.Sem dvida, o pleno desdobramento da competncia discursiva, cujoprincpio operacional o princpio U, mais fcil nas sociedadesmodernas, em que j amadureceram as condiespoltico-institucionais para a abertura de discursos problematizadores.Ao mesmo tempo, no verdade que o processo discursivo sejaexclusivo das sociedades modernas. Esse processo est pressuposto emtoda e qualquer forma de comunicao lingstica, independentementede variaes espacio-temporais. Por menos modernas que sejam asformas de vida, no possvel imaginar uma interao comunicativanormal sem que as pretenses de validade inerentes a tal comunicaosuscitem, mesmo embrionariamente, a necessidade de algum tipo dediscurso. Ora, admitir a universalidade do discurso admitir auniversalidade do princpio U, pois sabemos que ele derivanecessariamente de pressupostos pragmtico-lingsticos sem os quaisa argumentao discursiva impossvel. Universais, enfim, so osvalores materiais implcitos nas estruturas da interao e do discurso.Mesmo no sendo universalmente vigentes, so universalmentevlidos, porque aderem s estruturas universais do entendimento pelalinguagem (1).

    III

    Como toda cincia, a antropologia est sujeita jurisdio do discursoterico. Ela recolhe o seu material na observao emprica, mas avalidade dos enunciados relativos a tais observaes precisa ser posta prova numa comunidade argumentativa de pares, e s depois deatingido o consenso esses enunciados podem ser considerados vlidos.Se isso verdade, j encontramos de sada um primeiro cruzamentoentre a antropologia e a tica, como deixa muito claro o texto deRoberto Cardoso. Pois como qualquer discurso, o terico se estrutura luz dos pressupostos pragmticos da argumentao, e estes so em

    (1) De Juergen Habermas, cf. principalmente Vorbereitende Bemerkungen zu einer Theorieder kommunikative Kompeunz, em Theorie des Gesellschaft oder Soziakechnologie

    (Suhrkamp, 1971); Theorie der Kotnmunikative Handelns (Suhrkamp, 1981);Vorstudien und Ergaenzungen zur Theorie des Kommunikative Handeln (Suhrkamp,1984); e Moralbeweusstesein und Kommunikative Handeln (Surhkamp, 1983). DeKarl-Otto Apel, cf. Transformation des Philosophie (Surhkamp, 1976) e Diskurs undVerantwortung (Suhrkamp, 1988). Vide tambm, do autor, tica iluminista e ticadiscursiva (Tempo Brasileiro, n. 98, julho-setembro de 1989).

  • sua essncia de natureza tica. uma tica argumentativa, com umaestrutura de normas e valores que privilegiam o entendimento mtuoe incluem valores como a liberdade de todos os participantes eigualdade de tratamento no decurso do processo argumentativo. Se aobjetividade dos anunciados s pode ser testada num discurso terico,a argumentao conduzida nesse discurso s ser vlida se observar atica argumentativa.

    Nisso, a antropologia no difere de qualquer outra cincia. Em ltimaanlise, num cho normativo que brotam os enunciados cognitivosda antropologia.

    Mas creio que podemos explorar mais a fundo a relao entre oquadro comunicativo e o saber antropolgico. Alm de depender dessedilogo entre pares, no dependeria a validade desse saber, tambm, deum dilogo com seu prprio objeto de estudo - a cultura que se querconhecer?

    Se o compreendi bem, Roberto Cardoso responde afirmativamente(2), mas sem se estender nesse aspecto do encontro intercultural. Eleexamina primeiramente outro aspecto, em que o encontro funcionapara promover a mudana social. Discutirei mais adiante esse tipoimportantssimo de argumentao entre culturas, mas meu interesseno momento epistmico: a relao entre o saber antropolgico e acomunicao intercultural.

    Penso que essa relao constitutiva da objetividade de tal saber. Oantroplogo no se limita a estudar seu objeto com um olhar reificanteanlogo ao usado pelo cientista natural quando se relaciona com omundo fisico, s ento submetendo suas observaes comunidadeargumentativa dos pares; o prprio saber que ele apresenta aos paresse cristaliza dialogicamente, no pela observao monolgica do povoprimitivo, mas por um processo interativo em que o horizonte docientista e o dos indivduos estudados tenderiam aproximao, semchegarem jamais fuso. Teramos assim uma antropologiacomunicativa, cuja objetividade sobredeterminada por duasintersubjetividades: na origem a que se estabelece no dilogo com acultura, e em seguida a que se estabelece no dilogo com acomunidade cientfica.

    Mas antes de irmos adiante, bom deixar claro que os dois processoscomunicativos no so idnticos.

    (2)" Cabe considerar que o exerccio da lgica do antroplogo deveria ser confrontado com algica do nativo... J que se dar espao para a lgica do segundo por meio doestabelecimento de relaes dialgicas livres e simtricas". Roberto Cardoso deOliveira, O saber e a tica (manuscrito) pp. 12-13. '

    Esses pressupostosesto na origem de

    qualquerargumentao,

    terica ou prtica.Eles remetem a

    valores morais, enesse sentido

    podemos dizer quea tica

    pressuposta porqualquer discurso.

  • A intersubjetividade do dilogo entre pares simtrica, como ocorreno caso de qualquer cincia. Mas a outra, que a precede, ambgua,pois ao mesmo tempo simtrica e assimtrica. Ela simtrica,porque regida por uma tica discursiva aplicvel a todos osparticipantes .

    Os pricpios bsicos da argumentao - liberdade e igualdadeargumentativas - valeriam para todos. E assimtrica, porque oestatuto dos dois plos diferente. Graas tica argumentativa,todos so sujeitos da argumentao; mas s alguns so objetos. A metada argumentao obter conhecimentos vlidos sobre a cultura de umdos dois plos, e no sobre as duas culturas.

    Mas nesse caso, s a relao comunicativa entre pares mereceplenamente a denominao de discurso, pois este supe a estritasimetria de estatuto entre todos os participantes. Reservaramos onome de quase-discurso para aquelas formas de comunicao em que asimetria apenas parcial.

    Reformulada, a tese seria ento que a validade do saber antropolgico determinada por um discurso terico entre pares, tendo como objetoum conhecimento obtido a partir de um quase-discurso, realizadoentre o antroplogo e a comunidade estudada.

    Esse quase-discurso seria naturalmente terico, j que seus fins socognitivos. Mas a matria, da argumentao incluiria questesnormativas, e no apenas questes de fato. O carter desse discursoseria por isso estranhamente hbrido. O antroplogo teria que ser to"dual" como o quase-discurso de que ele participa. Se quiser levar asrio o seu papei dialgico, ter que entrar no jogo argumentativo,apresentando argumentos tanto em questes de fato - a magia ouno instrumentalmente eficaz, a feitiaria pode ou no induzir doena e morte de uma pessoa? - como em questes normativas eaxiolgicas - o infanticidio ou no legtimo? Em questes factuais oantroplogo se comportar como se estivesse num verdadeiro discursoterico, e em questes de legitimao, sem em nenhum momentoperder de vista seu interesse cognitivo, dever entrar na argumentaosobre a validade das normas, exatamente como se estivesse numdiscurso prtico. A hiptese subjacente a essa metodologia que essefogo cruzado de alegaes e refutaes acabe permitindo umconhecimento mais seguro da realidade que se quer pesquisar que oprocedimento monolgico habitual, pelo qual um informante se limitaa responder perguntas, sem ser provocado a defender a validade desuas crenas culturais.

  • Mas seria lcito recorrer estratgia do quase-discurso? Afinal, toda atradio positivista e relativista da antropologia recomenda que oinvestigador ponha entre parnteses os seus prprios pontos de vistaenquanto realiza a pesquisa. Ele deve ser wertfrei, abordarimparcialemnte seu objeto, sem deixar que os resultados dainvestigao sejam afetados por sua prpria escala de valores. Umavariante dessa atitude o chamado relativismo metodolgico, oprocedimento pelo qual o pesquisador age como se todos os elementosda cultura fossem vlidos, por mais que fora do contexto especfico dapesquisa ele sustente uma opinio oposta. Presume-se assim que ospreconceitos culturais do observador no interfiram com aobjetividade da investigao. Ora, o mtodo do quase-discurso, longede exigir o auto-cancelamento da subjetividade do antroplogo,impe, pelo contrrio, que ele exponha sem hesitar os seus prpriospontos de vista, participando ativamente da argumentao. No estariacomprometida, com isso, a objetividade da pesquisa?Cumpre observar, preliminarmente, que a simples afirmao de que osvalores da "nossa" cultura devem ser desativados durante aobservao no garante de modo algum que esse resultado sejaalcanado. Todos sabemos que na prtica nenhum observadorconsegue, realmente, deixar de avaliar, mesmo quando julga estarapenas descrevendo, e que nessa avaliao os preconceitos culturais,mesmo inconscientemente, desempenham um papel decisivo. Orelativismo metodolgico se baseia numa fico, e se expe aosmesmos impasses do positivismo: agir como se todas as culturasfossem equivalentes e como se dentro da mesma cultura todos oselementos fossem vlidos no oferece nenhuma garantia de que naprtica essa fico possa manter-se.

    Creio que a estratgia do quase-discurso no somente no afeta aobjetividade da pesquisa como oferece perspectivas mais promissoraspara evitar as distores etnocntricas.

    Adotada a moldura comunicativa, o antroplogo atende preocupaoanti-etnocntrica que est na raiz do positivismo e do relativismo: omero fato de escolher a via da argumentao j mostra que ele estdisposto, de sada, a abrir-se aos pontos de vista do seu interlocutor,em vez de impor despoticamente suas certezas culturais. Ao mesmotempo, a teoria comunicativa no o confronta com a exignciaimpossvel de abster-se de todos os juzos de valor, ingressando naargumentao como um indivduo fora da histria e fora do espao.Ele s pode participar da argumentao, pelo contrrio, se tiveropinies, que podem ou no ser condicionadas por circunstncias detempo e lugar, e se estiver disposto a defend-las com argumentos

    uma ticaargumentativa,

    com umaestrutura de

    normas e valoresque privilegiam o

    entendimentomtuo e incluem

    valores como aliberdade de todosos participantes e

    igualdade detratamento no

    decurso doprocesso

    argumentativo.

  • racionais. Ele no pode aceitar a tese relativista de que todas asopinies se equivalem, pois est convencido de que as suas soverdadeiras. Por outro lado, ele admite, como regra bsica do "jogode linguagem" da argumentao, a possibilidade de que osargumentos do interlocutor venham a revelar-se mais convincentes,caso em que ele ajustar e rever suas prprias convices. Em suma, oinvestigador acredita na verdade, e por isso no ctico; mas aceita ahiptese de que seus interlocutores estejam mais prximos dela, e porisso no dogmtico. O debate livre e aberto das questes factuais enormativas, em que o antroplogo expe e rev suas opinies, facilitaa emergncia de um saber terico sobre todas essas questes. Longe deser bloqueada pela introduo no processo do ponto de vista doantroplogo, a objetividade desse saber assegurada, precisamentepela tomada de posio do antroplogo no que se refere validade dascrenas cognitivas e legitimidade das normas, porque ela estimularseus interlocutores a definirem mais claramente as razes pelas quais acomunidade as aceita.

    Essa posio me parece conceitualmente correta, mas hevidentemente problemas de operacionalizao e dificuldades emcertos casos especficos. Um bom exemplo dado pela investigao,feita por Vincent Crapanzano, de 21 racistas sul-africanos, mencionadano texto de Roberto Cardoso (3). Como aplicar o mtodo dialgico agrupos cujos valores nos inspiram tal averso que virtualmenteexcluem qualquer possibilidade de " fuso de horizontes" ? Comodialogar com esses grupos, e com a sub-cultura dos SS, na Alemanhanazista?Sem dvida, o quadro comunicativo pode em si mesmo resolver partedesse problema. Como ele no nos impe nenhuma " posturarelativizante", no precisamos sofrer nenhum dilaceramentoexistencial em nosso repdio ao racismo. No precisamos atender exigncia delirante dos relativistas de justificar, ou pelo menosabster-se de condenar, os campos de concentrao e o apartheid, sob aalegao de que tais prticas fazem sentido em suas respectivasculturas, do mesmo modo que a tolerncia inter-racial faz sentido nanossa. A perspectiva comunicativa no nos probe, antes nos impe, aexpresso dos nossos julgamentos de valor, nesses casos e em outrossemelhantes. O antroplogo comunicativo pode enlouquecer comoqualquer outra pessoa, mas se ficar esquizofrnico certamente no serpela ciso de personalidade que se d no antroplogo relativista, quepor um lado adere aos valores universalistas dos direitos humanos epor outro lado se sente obrigado por seu credo relativista a"respeitar" a validade cultural das prticas que violem esses direitos,

    (3) Roberto Cardoso de Oliveira, ibidem, pp. 13-14.

  • No temos que respeitar coisa nenhuma, porque a atitude do"respeito" deriva da esfera do sagrado, onde no existe nenhumaargumentao; temos, isso sim, que tratar nossos interlocutores comoseres racionais, capazes de argumentao, e a melhor maneira deprestar homenagem dignidade humana desses seres racionais inclu-los na esfera da argumentao, em vez de mant-los numsanturio extra-argumentativo, como os animais ameaados deextino.

    Toda a questo, entretanto, est em saber se de fato vivel entrarnuma relao argumentativa com certos grupos, como os afrikaanersde Crapanzano. H limites para nossa capacidade de empatia com oponto de vista do outro. Para isso h duas respostas.

    Primeiro, nem sempre o quadro dialgico possvel, ou porque algunsgrupos recusam, de todo, entrar numa relao argumentativa, ouporque o processo comunicativo, uma vez instaurado, no podeprosseguir devido a bloqueios internos que impedem a porosidade deuns aos argumentos dos outros. Se uma dessas condies se verificarno caso dos racistas, o assunto est encerrado, e o antroplogorecorrer a outras tcnicas para fazer sua investigao.

    Segundo, vale a pena tentar, apesar de tudo, e sempre que possvel, arelao argumentativa. Se os racistas aceitam argumentar, estodemonstrando alguma disposio de aceitar certas regras do jogo daargumentao, como considerar o ponto de vista do outro, e no seriarazovel que o antroplogo se mostrasse mais intransigente que osprprios afrikaaners, fechando-se argumentao dos seusinterlocutores. No prevejo, como resultado do quase-discursoinstaurado, nem que os antroplogos se convertam ao racismo nemque os racistas se convenam da ilegitimidade do aphartheid. Mas se odilogo no produziria qualquer aproximao no que diz respeito legitimidade do sistema normativo sul-africano, poderia produzir bonsresultados do ponto de vista do conhecimento desse sistema. Afinal,nesse caso como no anterior, o quase-discurso seria terico, vinculadoa fins cognitivos, e sem nenhuma dvida uma comunicao quepermitisse ao afrikaaner, estimulado pelos contra-argumentos dointerlocutor, expor as razes pelas quais considera legtima o apartheid,daria ao antroplogo valiosos elementos de informao sobre o lugarocupado pelo racismo no sistema de crenas da cultura estudada, arelao entre essas crenas e o sistema socio-econmico etc.

    No gostaria de terminar este tpico antes de mecionar a curiosaanalogia existente entre o mtodo do quase-discurso e as entrevistasclnicas realizadas com crianas, segundo a metodologia de Piaget. Na

  • entrevista clnica, o pesquisador conta uma historieta que culminanuma ao problemtica por parte do personagem principal, e pede scrianas que tomem posio quanto legitimidade moral dessecomportamento: estava certo ou errado, e por que? O interessantenessa tcnica que longe de limitar-se a registrar a resposta da criana,o pesquisador instaura com ela uma verdadeira relao argumentativa.Ele discute os argumentos da criana, tenta refut-los, procuraconvenc-la do ponto de vista oposto, chama ateno para certasimplicaes colaterais da resposta dada, etc. A criana tem todaoportunidade de responder a esses contra-argumentos, e no fim doprocesso argumentativo o pesquisador chega a certas concluses sobrea maneira como a criana se relaciona com o sistema normativo, luzdo seu estgio de desenvolvimento psicogentico. Em outras palavras,foi conduzido um quase-discurso, porque uma relao ao mesmotempo simtrica, baseada na igualdade de direitos de todos osparticipantes enquanto sujeitos da argumentao, e assimtrica, devido diferena de estatuto entre o adulto que tem um objetivo cognitivo eas crianas que so objetos do estudo; esse quase-discurso tem comosubstrato uma questo normativa; so debatidas questes delegitimao, como ocorre com os discursos prticos, e visam-se finscientficos, como ocorre com os discursos tericos (4).

    Voltando tica, guisa de concluso, ela duplamente determinanteda objetividade do saber antropolgico, porque ela que fornece asregras de argumentao tanto para o discurso terico entre pares comopara o quase-discurso que se estabelece com a cultura a ser estudada.Alm de aparecer como pressuposto pragmtico-transcendental desaber antropolgico, a tica aparece como objeto desse saber, pois osistema normativo e valorativo da cultura precisamente um dostemas a serem investigados pelo quase-discurso.

    IVAbordarei agora a tica em sua relao com a antropologia aplicada, emais especificamente com a ao antropolgica em processos demudana social induzida.

    A primeira questo tica que se coloca saber se a mudana em si desejvel. Para alguns, seria anti-tico promover a mudana; paraoutros, seria anti-tico tomar partido pelo status quo.

    Supondo afirmativa a resposta a essa questo, a segunda definireticamente o tipo de mudana que se deseja: qual seria a estratgia

    (4) Brbara Freitag, A moralidade infantil segundo Piaget - um estudo emprico entre crianaspaulistas, em " Anurio de Educao", Tempo Brasileiro, 1981.

  • mais tica, a baseada na importao de modelos internos ou a quetenha como foco a autonomia e auto-determinao dos interessados?

    O antroplogo comunicativo responde afirmativamente primeiraquesto e escolhe na outra o segundo termo da disjuntiva. Sim, amudana necessria, desde que se observe o principio da autonomiados interessados.

    A resposta afirmativa o coloca contra todas as concepesconservadoras, e em particular contra o tipo de conservadorismo quese manifesta em sua prpria disciplina: o relativismo cultural. A opopelo segundo termo da disjuntiva o coloca contra todas as formas deetnocentrismo. Contra os relativistas, ele diz sim mudana, e contraa perspectiva atnocntrica ele diz que a mudana tem que serco-determinada pelos grupos envolvidos. Sua rota clara, mas difcil:ele tem que se mover na passagem estreita que se estende entre os doisescolhos do relativismo e do etnocentrismo.

    Nem todos os conservadores so relativistas, mas apesar dediscrepncias individuais podemos dizer que todo relativismo tende aposies conservadoras. A afirmao de que no h princpios ticosuniversais, de que o que vlido numa cultura no vlido em outras,de que no h padres de medida que permitam a uma cultura julgaroutra, e outros itens da vulgata relativista, derivam em linha reta dohistorismo alemo inspirado em Herder (5). Para o historismo, todamoral finca suas razes no Volksgeist, e como cada povo tem o seuGeist, os valores so necessariamente mltiplos, nicos eincomensurveis. Ora, esse historismo foi uma reao ideolgicaconservadora contra o tufo universalista que soprava da Frana.Afirmando os valores da particularidade, os historistas estavam sedefendendo da razo subversiva do Iluminismo, que queria refazer emtoda parte a cidade dos homens, luz de princpios universais dejustia.

    Foi o mesmo esquema historista que levou Burke a repudiar aRevoluo Francesa, invocando "the rights of the Englishman",produzidos pela historia e portanto legtimos, em contraposio aos"droits de l'homme", universais e portanto abstratos (6). Foi oesquema que presidiu ao pensamento ultra-legitimista que se seguiu Revoluo, para o qual s existem homens particulares, e no o

    (5) Der Herder, cf. especialmente Auch eine Philosophic der Geschichte (Berlin und Weimar,1982) Harden Werke, III Band. Sobre o historismo em geral cf. Fr. Meinecke, DieEntstehung des Historismus (R. Oldenbour Verlag, 1965). O vnculo entre Herder e opensamento antropolgico foi reconhecido pelo prprio Boas, assim como porKroeber, Lowie e Sapir.

    (6) Edmund Burke, Reflections on the French Revolution (Penguin, 1988).

    Alm de aparecercomo pressuposto

    pragmtico-transcendental de

    saberantropolgico, a

    tica aparececomo objetodesse saber...

  • homem em geral, com a conseqncia de que a Declarao dosDireitos do Homem era vazia, porque no tinha destinatriosconcretos (7). Foi o esquema que impregnou a escola histrica alem,para a qual s contam os valores "orgnicos", inseridos naparticularidade da famlia e da nao. Foi o esquema do nazismo, queopunha a particularidade do "sangue e do solo" ao universalismoaptrida dos judeus cosmopolitas. E o esquema dos autoritarismoslatino-americanos, que repudiam as "doutrinas exticas", em nomeda realidade nacional.

    Ora, tambm esse historismo que est na base do relativismocultural. Tambm para ele todos os valores so situados e tambm ogenius loci que determina tudo o que a comunidade pensa e sente, coma diferena de que esse gnio no mais o Volksgeist, mas oKulturgeist. Agora a cultura, e no a raa ou a nao, que define ohorizonte do que pode ser visto e fornece todos os critrios deconhecimento e avaliao. O substrato romntico o mesmo, e a cargaconservadora no muito diferente.

    preciso evitar mal-entendidos. Quando chamo de conservador orelativismo, no estou negando a imensa contribuio dessa teoria paradesmoralizar a arrogncia etnocntrica dos pases avanados em seuscontactos com outras culturas. Com isso, os relativistas contriburampara solapar uma das bases ideolgicas do imperialismo.

    Talvez Kipling no tivesse criado o conceito do "white man'sburden" se tivesse lido Boas. E possvel que os franceses no tivessemtido tanta boa conscincia em sua misso auto-imposta de civilizar aArglia se tivessem aprendido com os antroplogos relativistas, que seos rabes eram menos avanados materialmente que os franceses, eraporque o "cultural focus" da cultura francesa privilegiava o progressomaterial, e o da cultura rabe preferia outros valores, e o que nessesentido nenhuma das duas culturas era mais civilizada que a outra.Talvez os ingleses no tivessem massacrado os aborgenes australianosse tivessem refletido, com os relativistas, que a sofisticao do sistemado parentesco dessa cultura tal, que desse ponto de vista so osingleses que devem ser considerados povos primitivos. Se tivessemlido Malinowski e Radcliffe-Brown, possvel (ainda que poucoprovvel) que os missionrios vitorianos, deslumbrados com afuncionalidade da poligamia e da poliandria, tivessem se abstido deimpor aos povos que as praticavam os ritos matrimoniais da Igrejaanglicana. No posso assegurar que no apogeu da influncia

    (7) Joseph de Maistre, Considrations sur la Frunce (Gamier, 1980).

  • relativista, por volta dos anos vinte, os pases metropolitanos tenhamtido um comportamento mais virtuoso que no passado, mas pelomenos j no podiam ser imperialistas com boa conscincia, o que no pouco. Esvaziado pelos relativistas o argumento da superioridade dasculturas Ocidentais, o colonialismo tinha ficado mais nu que oproverbial imperador de Andersen.

    Se insisto, apesar de tudo, no vis conservador do relativismo, porque seu ponto de vista favorece, de modo geral, o status quo socialnas culturas no Ocidentais, e isso por duas vias, ambas radicadas nosolo historista de onde deriva o relativismo cultural: a noo de quetodos os critrios de julgamento moral se enraizam na cultura, e anoo correlata de que no h possibilidade de avaliao inter-cultural.

    Se no h princpios ticos que transcendam os preceitos sedimentadosna cultura, difcil imaginar a hiptese de um julgamento moral dosvalores dessa cultura, luz de princpios ticos que a ultrapassem.Com isso, todo o projeto iluminista de descentramento com relaoaos valores da coletividade que est sendo questionado. O privilgiomximo da modernidade, o de julgar criticamente a prpria cultura, privado de sua base terica. Nisso, como em tudo mais, o relativismorevela suas razes historistas e anti-iluministas, porque essa posiocorresponde, ponto por ponto, mais representativa das ticashistoristas contemporneas: a tica comunitria.

    Para essa tica, no h princpios morais que ultrapassem osembutidos na comunidade. Como tantas outras variantes dopensamento conservador, essa tica surgiu como reao aoperigosssimo universalismo tico da Ilustrao, com sua noo de queo individuo podia julgar sua prpria sociedade luz de critriosuniversais. A tica comunitria se defende dessa ameaa, regredindo aposies pr-iluministas semelhantes s da Antigidade, para as quais avalidade da moral no ia alm dos limites do cl ou da polis.

    O paradigma a crtica de Hegel filosofia prtica de Kant. Hegelope ao ponto de vista da Moralitaet, representado por Kant com suateoria do imperativo categrico, e que supe o distanciamento crticodo indivduo com relao s normas de sua sociedade, o ponto de vistada Sittlichkeit, que designa o lugar em que a razo tica j se realizou,no na interioridade de um sujeito tico mas em hbitos, costumes,instituies, que fornecem critrios concretos, objetivos e durveispara a fundamentao do comportamento moral (8).

    (8) Cf. Moralitaet und Sittlichkeit, ed. Wolfgang Kuhlmen (Suhrkamp, 1986).

  • Todas as verses subsequentes do pensamento moral conservador sovariaes desse paradigma, de Comte, Durkheim e Parsons aos"neo-aristotlicos" alemes, para os quais o ponto de vistauniversalista da Moralitaet anrquico e destrutivo de toda vida social(9).

    Comum a todas essas variantes o repdio aos princpios universaisda moralidade, e a idia de que s a comunidade pode proporcionarprincpios de julgamento moral. Substitua-se cultura por comunidade,e teremos, sem grandes alteraes, o esquema historista bsicosubjacente ao pensamento moral dos antroplogos relativistas.

    O mesmo esquema transparece na segunda tese relativista. Nosomente todos os valores e normas so exaustivamente determinadospela cultura, como eles s valem nela, e no podem ser estendidos aoutras culturas. A conseqncia que uma cultura no pode avaliaroutra, porque no h padres de medida comuns a ambas.

    Essa tese fundamental para o relativismo inspirado em Boas. Cadacultura uma configurao nica, resultante da confluncia de doisfatores - a difuso, pela qual certos traos culturais se disseminam deum ponto para outro, e a seletividade, pela qual a cultura integra essascontribuies luz de sua estrutura dominante de valores, rejeitandoalguns elementos, acolhendo e re-elaborando outros. Esses doisfatores operam de maneira em grande parte aleatria, imprevisvel, eportanto s por mero acaso uma cultura se parecer com outra. Cadauma um universo parte, impenetrvel aos outros (10).

    A tese menos rigorosa para os funcionalistas, porque h apesar detudo um padro de avaliao: a funcionalidade, medida por certoscritrios que variam de autor para autor. Para Radcliffe-Brown ocritrio a coeso e a estabilidade social: a religio funcional porquesacraliza aqueles elementos da estrutura social sobre os quais seorganiza a cultura, promovendo assim a coeso do grupo (11). ParaMalinowski a "reduo da ansiedade": a mgica funcional porque

    (9) Como representante dos neo-aristotlicos, vide Odo Marquard, Das Ueber-Wir em" Poetik und Hermeneutik", (W. Fink Verlag, 1984) n XI.

    (10) Note-se que Boas jamais negou a unidade psquica do gnero humano " emotions,intelect and will power of man are alike everywhere" - nem sequer a existencia de variassemelhanas culturais nos povos mais diversos, atribuindo-as, entretanto,principalmente difuso. Vide o captulo The Universality of Cultural Traits, em TheMind of Primitive Man, (Macmillan, 1911).

    (11) A.R. Radcliffe-Brown, Structure and Function in Primitive Society (Roudedge andKegan Paul, 1979), principalmente o captulo IX, On the Concept of Function in SocialScience.

  • protege contra a angstia (12). Para Harris, a adaptao ao meiofsico - a guerra funcional porque ajusta a populao spossibilidades oferecidas pelo meio (13). Mas como essafuncionalidade no aparente para os membros de outras culturas,pelo menos at que ela seja descoberta pelos especialistas, na prtica aimpenetrabilidade mtua das culturas a mesma que para osboasianos.

    Mas essa "suspenso de julgamento" se converte subrepticiamenteem aprovao apriorstica. Em boa lgica, os boasianos teriam quelimitar-se a dizer que no tm elementos para dizerem se uma cultura ou no vlida. Em vez disso, dizem que todas as culturas soigualmente vlidas. Os funcionalistas poderiam julgar culturas outraos culturais luz de sua funcionalidade, mas em vez disso usamesse critrio para justificar a posteriori o julgamento a priori de queessas culturas e esses traos so vlidos. Para eles, qualquer aspecto dacultura, por mais estranho que seja, tem sempre uma funo. Oinfanticdio, a vingana de sangue, a tortura, so sempre julgadosfuncionais, ou porque promovem a coeso social, ou porque reduzema ansiedade ou porque tm conseqncias adaptativas. O pressupostoinvarivel que h sempre boas razoes para tudo o que existe. No hmuitos exemplos de algum trao da cultura que tenha sido declaradodisfuncional.

    A metamorfose da suspenso de julgamento num julgamento positivoconfirma a filiao historista e traz tona o parti-pris conservador.Nos dois casos, cada elemento da cultura valido precisamente por serum elemento da cultura. E a reformulao, em linguagemantropolgica, da frase hegeliana de que todo real racional, que paraqualquer conservador um artigo de f: o que existe provou seudireito a existir pelo mero fato de existir.

    Esse a priori conservador leva a uma formulao conservadora doconceito de tolerncia intercultural.

    Para os funcionalistas, a tolerncia se impe porque se qualquercostume em ltima anlise, funcional, toda avaliao externa spoderia perturbar esse belo equilbrio.

    Para os boasianos, se todas as percepes, normas e instituies soculturalmente condicionados, no h padres comuns de valor queautorizem uma cultura a criticar outra.

    (12) Bronislaw Malinowsld, Magic, Science and Religion (Doubleday, 1948), especialmenteo captulo IV, em que o autor discute a influncia consoladora dos ritos pblicosassociados morte, e o captulo V, dedicado magia e ao " poder da f".

    (13) Marvin Harris, Cannibals and Kings: The Origins of cultures (Random House, 1977).

    Se insisto, apesarde tudo, no visconservador do

    relativismo, porque seu pontode vista favorece,de modo geral, ostatus quo socialnas culturas no

    Ocidentais...

  • Assim, o relativismo nos leva a aceitar " as new bases for tolerance thecoexisting and equally valid patterns of life which mankind has createdfor itself from the raw materials of existence (14) (meus itlicos).

    Para outro autor, " cultural relativism is a philosophy that recognizesthe values set up by every society to guide its own life and thatunderstands their worth to those who live by them, though they maydiffer from one's own. Instead of underscoring differences fromabsolute norms that... are the product of a given time or place, therelativistic point of view brings into relief the validity of every set ofnorms for the people who have them, and the value these represent"(15) (meus itlicos).

    As duas teses relativistas - a da determinao integral pela cultura e aincomensurabilidade das culturas - bloqueiam todas as vias para amudana. A via endgena bloqueada pela noo de que nenhumindivduo, "culturalizado" por todos os poros e at a medula dosossos, pode erguer-se contra os valores de sua cultura, por maisirracionais que sejam; a via externa obstruda por um conceito de"tolerncia" que impede qualquer dilogo transformador com essacultura, por um lado impossvel, porque a incompreensibilidade mtuaimpede qualquer acordo quanto ao que deva ser mudado, e por outrolado desnecessrio, porque todas as normas existentes so perfeitas abinitio.

    bvio que h um forte elemento de caricatura nessa descrio,porque a mudana social endgena um fato emprico que no podeser negado por ningum - todos ns, relativistas ou no, temos quereconhecer que at as sociedades ditas "sem histria" tm semodificado ao longo dos sculos - e porque os aportes externos sopressupostos pela prpria lgica da difuso, sustentada pelosboasianos. Mas espero que meus amigos relativistas me concedam quea caricatura suficientemente prxima da realidade para ter algumvalor descritivo.

    Depois da segunda guerra mundial, teve incio uma forte reaoanti-relativista dentro da antropologia. Autores como Ralph Linton,Clyde Kluckhohn, Robert Redfield e Alfred Kroeber tm assinalado afalta de base emprica para a idia de uma variedade infinita dasnormas e valores. Ao contrrio, a observao etnogrfica mostra a

    (14) Ruth Benedict, Patterns of Culture (Houghton Mifflin Co., 1959), p. 278.(15) Melville J. Herskovits, Cultural Relativism (Random House, Vintage Books, 1973) p.

    31.

  • existncia de um certo nmero de invariantes culturais: atrs damultiplicidade aparente, existe uma uniformidade fundamental(l6).

    Em geral, as crticas ao relativismo tm se concentrado em suasdificuldades tericas. Por exemplo, assinala-se que o relativismocultural no escapa ao dilema que est na raiz de todo relativismo:afirmar o relativismo negar o relativismo, porque significa dizer quepelo menos uma tese - a relativista - no relativa. E um argumentoclssico, muitas vezes usado contra os cticos da variedade de Gorgias,Parmnides, Pirro, Bayle (17). No caso especfico da antropologia, oparadoxo est em que o relativismo uma atitude epistemolgicatpica da cultura Ocidental, pelo menos desde os sofistas, e que demodo algum existem nas prprias culturas primitivas, que em geralrejeitam os valores das outras culturas: ou seja, o etnocentrismo naverdade um "universal", porque partilhado por todas as culturas, ea atitude anti-etnocntrica, advogada pelos relativistas, ela prpriaetnocntrica. Esses paradoxos so banais, e entediam com razo osfilsofos profissionais. Mais sria a crtica de que os relativistasoperam em seu trabalho de campo com uma prtica que contradiz suateoria. Por mais que acreditem na singularidade absoluta de cadacultura, todos os antroplogos, relativistas ou no, partem da premissatcita de que existe um hard core de traos invariantes, comuns a todosos homens, pois do contrrio no conseguiriam traduzir nas categoriasde sua cultura as caractersticas da outra. Sem o pressuposto dessencleo universal mnimo, os antroplogos no comeariam sequer asua pesquisa, resignados de antemo a no compreenderem umaalteridade indecifrvel. Ora, no h notcia na histria de umpesquisador que depois de ter recebido um "grant" da instituiofinanciadora competente, tenha voltado de mos vazias, alegando que

    (16) Depois de relacionar conceitos como a proibio do incesto e do homicdio, aproscrio da mentira, e obrigaes mtuas entre pais e filhos, Clyde Kluckhohn dizque " these and many other moral concepts are thoroughly universal", acrescentandoa seguir que " while specific manifestations of human nature vary between culturesand between individuas in the same culture, human nature is universal". EthicalRelativity: sic et non, The Journal of Philosophe, 52, 1955. No mesmo artigo,Kluckhohn diz que Ralph Linton est " squarely in the mainstream of contemporaryanthropological opinion" quando diz que " behind the seem endless diversity ofculture patterns there is a fundamental uniformity". Segundo Roberto Cardoso, esse" mainstream" universalista estaria por sua vez sendo contestado hoje em dia, como severifica na reao " anti-antirelativista" de Clifford Goertz. Para uma viso deconjunto do tema do relativismo cultural na antropologia, vide Elvin Hatch, Cultureand Morality (Columbia University Press, 1983).

    (17) No artigo Reiterations and Second Thoughts on Cultural Relativism (Relativism and theStudy of Man) ed. Helmut Schoeck e James W. Wiggins, Eliseo Vivas se refere a esseargumento como " a armadilha de Epimnides" (p. 53).

  • a cultura que ele fora observar era to nica que no puderacompreend-la (18).

    Mas no tm faltado, tambm, as crticas polticas. Logo depois daguerra, por exemplo, a guinada universalista foi alimentada pelaindignao moral provocada pelos crimes do nazismo: um padrono-relativo de julgamento foi considerado necessrio para condenaressas atrocidades, qualquer que fosse o seu condicionamento cultural.Mas foi preciso esperar os anos 70 para que essa crtica polticaassumisse a forma que nos interessa agora: a de que o relativismo eraintrinsecamente conservador.

    Foi esse o foco da " radical anthropology". Embora marcada por umaatmosfera que hoje consideramos pouco atual - a da "new Left" -vale a pena ainda ler a coletnea de ensaios contida no livro" Reinventing Anthropology", bem representativa dessa corrente. Paraesses antroplogos, os relativistas partem de uma ideologia romntica,nostlgica, que idealiza, rousseauisticamente, os valores idlicos dasculturas no-contaminadas pela civilizao Ocidental. Ora, muitasdessas culturas, longe de serem parasos buclicos, so sociedadesmiserveis e repressivas. Para preservar a pureza dessas culturas, orelativista se ope mudana social, muitas vezes contra o desejoexpresso dos seus membros, que desejam, precisamente, aquelasinovaes detestadas pelos relativistas. Em nome da tolerncia, estesacabam propondo, autoritariamente, um modelo que no desejadopelos prprios interessados, e em nome do respeito dignidade detodas as culturas, recomendam sua prpria verso do apartheid:guetos e reservas, longe da infeco civilizada. Como diz um dosautores: "there is now some recognition that cultural relativism islogically incompatible with advocacy of socio-cultural change... Sincerelativism is applied only to aboriginal customs... relativism definesthe good life for colored people differently than for white people, andthe good colored man is the man of the bush" (19).

    Posso ser mais sinttico no que diz respeito ao segundo risco a serevitado pela antropologia comunicativa - o etnocentrismo. Pois se essaatitude sobrevive entre alguns funcionrios governamentais einternacionais, ela virtualemtne desapareceu da antropologia. Em

    (18) Vide, sobre esse tema, Ernest Gellner, Relativism and Universals, em Rationality andRelativism (Ed. Martin Hollis e Steven Lukes), (The MIT Press, 1984), pg. 185. Cf.tambm a coletnea Rationality, ed. Bryan R. Wilson (Basil Blackwell, 1986), comvrias contribuies sobre a questo do relativismo em antropologia.

    (19) William S. Willis, Jr., Skeletons in the Anthropological Closet, em ReinventigAnthropology, ed. Dell Hymes (Random House: 1972), pp.143-144.

  • grande parte, foi o mrito dos autores relativistas, como assinalei.Poucos se atreveriam, hoje em dia, a sustentar as teses evolucionistasde um Spencer, de um Taylor ou de um Morgan, para os quais acivilizao Ocidental a fase mais avanada do processo evolutivo, eportanto um modelo s ser visado por todos os outros povos. Ahierarquizao entre superior e inferior portanto da essncia doevolucionismo. Para ele, tanto no mundo fsico como no biolgico atendncia geral a diferenciao do simples no complexo, dohomogneo no heterogneo, o que implica a gradao na escala dascoisas e dos seres. No reino animal, o homo sapiens superior aosoutros seres vivos, e na espcie humana o europeu superior sdemais culturas: ele mais inteligente, mais tico, mais apto asobreviver segundo as exigncias da seleo natural.

    A mudana social perfeitamente consistente com essas premissaseurocntricas. Mas a lgica da superioridade europia determina o tipode mundana considerado desejvel: intrinsecamente inferior, a culturaextica deve ser modificada segundo padres materiais e intelectuaisvlidos na Europa, a partir de uma ao induzida do exterior. Amudana introduzida de fora, a partir de critrios exgenos, atravsde agentes externos, e no interesse da cultura hegemnica.

    Diante da Cila do relativismo e da Caribdes do etnocentrismo, aantropologia comunicativa afirma duas coisas: (a) a mudana necessria no caso de grupos materialmente carentes ou regidos pornormas e instituies de carter repressivo, e (b) ela deve serconduzida de modo a levar plenamente em conta a autonomia daspopulaes interessadas.

    A primeira afirmao a leva a contestar as premissas que esto na baseda atitude relativista com relao mudana.

    A primeira dessas premissas, como vimos, a do determinismocultural, a tese de que o homem de tal maneira impregnado pelacultura que no pode descentrar-se, constestanto os seus valores debase. Ora, do ponto de vista comunicativo o descentramento umaconseqncia necessria da prpria interao, cuja problematizaorequer a entrada no discurso. A argumentao moral suspende avalidade dos contextos espontneos de ao e submete crtica osistema normativo e institucional. As evidncias comunitrias sopostas entre parnteses. O que era inquestionado se torna hipottico,as certezas culturais se tornam problemticas. Com que direito,entretanto, o homem se julga habilitado a examinar criticamente a sua

    Alm de nopermitir pensar a

    mudana por viasendgenas, o

    relativismo nopermite pens-la

    atravs dosencontros

    interculturais. Aantropologia

    comunicativa noenfrenta a mesma

    dificuldade.

  • Lebenswelt - a sua "cultura" ? Com o direito que lhe concedido pelaprpria forma de estrututrao da Lebenswelt. Ela atravessada porprocessos comunicativos que repousam em pretenses de validade,entre as quais a de carter normativo. Quando pratico um atolingstico de carter regulativo - ordem, proibio, recomendao -estou pronto a justificar meu direito de praticar esse ato, sequestionado por meu interlocutor. Na comunicao normal, se essasituao ocorrer farei essa justificao alegando que estou obedecendoa uma norma intersubjetivamente aceita. Mas se a prpria norma forcontestada, esse argumento deixar de ser suficiente. Terei queingressar num discurso prtico, no qual todos os interessados poro prova a validade da norma: uma argumentao de segundo grau, emque a norma no serve mais como justificao, pois ela prpria queprecisa ser justificada. Mas se assim, ao descentrar-se o homem noest contrariando a lgica da comunicao espontnea, mas levando-as ltimas conseqncias. Vale dizer que a prpria Lebenswelt queaponta alm dos seus limites; obedecendo forma de organizaocomunicativa que rege a cultura que o homem se arroga o direito deavali-la. Em termos hegelianos, a prpria Sittlichkeit que me obrigaa assumir o ponto de vista da Momlitaet - o do discurso.Argumentando sobre a cultura, no estou fazendo mais que atender,num grau mais alto de reflexividade, exigncia de justificaoracional que permeia a argumentao dentro da cultura. A teoriacomunicativa no est afirmando, evidentemente, que todas associedades j alcanaram um estgio em que esse descentramento jesteja rotinizado. No Ocidente, ele s se iniciou com a Ilustrao. Oque ela sustenta que em toda parte essa virtualidade existe, pois nose trata de uma caracterstica prpria apenas cultura Ocidental, e simde um trao invariante que adere s estruturas universais dacomunicao pela linguagem. No me parece, como leigo, que a lgicaargumentativa seja diversa em culturas "primitivas". As razesinvocadas para justificar um ato podem ser diferentes, mas so razes.Quando um indgena alega que matou sua irm porque ela violou umnorma que prescreve a exogamia, est usando um argumento quetalvez no fosse aceito no Ocidente, mas est usando um argumento,que por sua vez suscita contra-argumentos por parte do interlocutor,por exemplo argumentos de fato de que segundo certas testemunhas amoa teria sido violentada, em vez de unir-se voluntariamente aocnjuge proibido pela cultura. Se a exigncia da justificao racional seimpe dentro da comunicao espontnea, admitida por todos avigncia da norma no caso, a norma da exogamia - podemos dizer quea cultura j contm, virtualmente, a possibilidade do passo seguinte, ouso da razo comunicativa para argumentar sobre a validade da prprianorma - o discurso. Se em algumas culturas esse passo no dado, no

  • e porque ele seja excludo pelo "cultural focus" da cultura emquesto, que ao contrario do Ocidente no privilegia o valor doentendimento argumentativo, mas simplesmente porque noamadureceram ainda nessa sociedade as condies sociais quepermitam o pleno desdobramento da competncia discursiva. NoOcidente, por exemplo, a atualizao dessa competncia e facilitadapor instituies democrticas e regras asseguradoras da liberdade deexpresso que no existem necessariamente em toda parte. Mas emtodas as culturas o discurso o horizonte virtual dentro do qual serealiza a comunicao quotidiana, em que a exigncia estrutural dajustificao das pretenses de validade j prev, virtualiter, apossibilidade de que essa justificao no possa fazer-se dentro dosistema normativo existente. Mas nesse caso a submisso integral dohomem sua cultura, se ela realmente existe em certos casos, umasituao de fato, no de jure. Se em certas culturas o descentramento impossvel, por razes contigentes, que devem e podem sermodificadas, e no por razes necessrias. A psicologia j demonstrouh muito tempo o que ainda no claro para muitos antroplogos:que em todos os indivduos existe uma progresso, condicionada pelafaixa etria, que o leva de um estgio em que a moral comunitria aceita como fundamento ltimo do julgamento tico, para um ltimoestgio, em que o homem julga segundo critrios gerais e abstratosque transcendem de todo a ordem social. As pesquisas inter-culturaisprovaram a validade dessa tese em todas as culturas, mas mostraramtambm que em algumas os valores culturais impem uma regresso aestgios psicogeneticamente j ultrapassados. A cultura bloqueiaaquelas estruturas de personalidade exigidas pela situao discursiva(20). Mas nesse caso prestar um pssimo servio s forasrenovadoras que existem potencialmente dentro de cada culturareforar, pela absteno ou pela aprovao tcita, como fazem osrelativistas, as foras que inibem a atualizao dessa competncia. Ohomem no pode viver fora da cultura, mas ela no o seu destino, esim um meio para sua liberdade. Levar a srio a cultura no significasacraliz-la e sim permitir que a exigncia de problematizao inerente comunicao que se d na cultura se desenvolva at o telos dodescentramento. No somos humanos fora da cultura, mas noseremos homens libres se no pudermos sempre que necessrioassumir uma posio de exterioridade com relao ao mundo social.

    Alm de no permitir pensar a mudana por vias endgenas, orelativismo no permite pens-la atravs dos encontros interculturais.A antropologia comunicativa no enfrenta a mesma dificuldade.

    (20) Lawrence Kohlberg, Essays in Maral Development, vol.II, The Psychology of MoralDevelopment, (Harper and Row, 1981).

  • Uma das justificativas para essa atitude relativista que no h padrescomuns que permitam um acordo quanto ao contedo da mudana. Aantropologia comunicativa afirma, pelo contrrio, que a comunicaovisando o entendimento mtuo sempre possvel entre os homens,porque ela inerente s prprias estruturas da linguagem. E evidenteque o consenso mais fcil entre interlocutores da mesma cultura, maso ncleo mnimo de valores e traos invariantes capazes de facilitaresse consenso comum a todos os homens, ainda que implicitamente:o prprio valor do entendimento mtuo, sem o qual no se abririamprocessos dialgicos, e os intrnsecos a cada pretenso de validade - oda verdade, o da justia e o da veracidade. Uma vez ingressando narelao comunicativa, graas a esses valores comuns, os interlocutorespodem por sua vez acercar-se cada vez mais, porque inerente comunicao o processo que George Herbert Mead (21) chamava orole taking, a capacidade de cada participante de colocar-se na situaode vida e constelao de interesses de todos os outros. Universalista, atica comunicativa filia-se conscientemente ao universalismo daIlustrao, e portanto acentua mais os fatores que unem os homensque os que os separam, e entre esses fatores est justamente adisposio universal para o entendimento lingisticamentemediatizado. Os homens podem compreender-se, por maiores quesejam suas diferenas culturais, porque o telos da compreenso mutua o princpio estruturador da comunicao lingstica, e porque oprprio processo comunicativo poder remover os obstculos culturaisa essa compreenso. Os homens se comunicam porque so iguais e setornam iguais porque se comunicam: nessa circularidade que sefunda a teoria comunicativa para refutar a noo historista de queexistem trincheiras e barricadas culturais segregando os homens emuniversos autrquicos.

    Outra justificativa para recusar a mudana pela via do confrontointer-cultural que todas as culturas, e portanto tambm a que sepretende mudar, j so vlidas a priori. A tentativa de mudana spoderia pertubar a soluo dada espontaneamente pela cultura pararesponder aos seus desafios de sobrevivncia. estranho que osantroplogos que dizem que todas as culturas so igualmente legtimasso em geral cidados liberais, que contraditoriamente com suaspremissas no hesitam em criticar sua cultura de origem (com quedireito, se todas as prticas dessa cultura, inclusive a que eles maisdetestam, a do etnocentrismo, deveriam ser consideradas legtimas luz dos postulados relativistas?) mas silenciam, pudicamente, diante de

    (21) George Herbert Mead, Mind, Self and society. (The University of Chicago Press,1974).

  • aberraes nas culturas alheias que deveriam chocar sua conscincia deeleitores do Partido Democrtico ou Labour Party.

    A antropologia comunicativa nao tem essas inibies. Como ela dispede uma reserva de valores que no so culturalmente condicionados,que no so especficos da cultural Ocidental, que no soimpenetrveis s diferentes culturas, ela no hesita em dizer que oconceito de tolerncia que implica em considerar " igualmentevlidas" as culturas que asseguram a sobrevivncia material dos seusmembros e aquelas em que grandes parcelas da populao vivem emestado de pauperismo crnico um conceito fraudulento de tolerncia.Do mesmo modo, considerar "igualmente vlidos" o parricdio e abenevolncia com os mais velhos, a mutilao clitoridiana e aemancipao da mulher, o sacrifcio ritual e o respeito aos direitoshumanos, no suspender o julgamento - aprovar a prtica injusta.No uma absteno, e sim um voto a favor do status quo.

    A outra deformao combatida pela antropologia comunicativa - oetnocentrismo - ainda mais intolervel. O relativismo, pelo menos,adere ao valor humanista da tolerncia, por mais que ela seja vista deum modo equivocado. O etnocentrismo nega, de todo, ao povo"primitivo" a condio de sujeito. Em vez de reforar o status quopela absteno, ele o refora pela interveno. Em vez de idealizar acultura alheia, ele a despreza. Em vez de ajudar a promover umamudana emancipatria, refora as heteronomias j existentes. Todoetnocentrismo um particularismo. E a agresso de uma cultura poroutra, violando padres universais de justia.

    Por isso, o antroplogo comunicativo critica, do mesmo modo que osrelativistas, a arrogncia dos evolucionistas do sculo 19 e oimperialismo que usou como libi a teoria evolucionista. Mas o focode sua crtica outro. Os ingleses no eram universalistas demais, esim de menos. Por no serem universalistas, exportaram para outrospovos suas particularidades culturais, transformando numpseudo-universal o que na verdade se enraizava em caractersiticas detempo e lugar. o esquema de todos os imperialismos: os valoresmetropolitanos so transformados, ideologicamente, em valoresuniversais. Ora, o que h de errado nessa operao no propor ouniversal como quadro de referncia, e sim apresentar como universalo que de fato particular, do mesmo modo que falso, na ideologia,no afirmar a validade universal de valores como a liberdade e aigualdade - eles so de fato universalmente vlidos - e sim afirmar queesses valores j se tornaram universalmente vigentes. Contra essaagresso particularista, a resposta a liberatao pelo universal. Oetnocentrismo fere o valor universal do respeito autonomia e

    Na origem daatitude

    etnocntrica est aintolerncia, Ela

    toma o dilogoimpossvel Na

    origem da atituderelativista est

    uma certaconcepo de

    tolerncia, Elatoma o dilogo

    suprfluo.

  • autodeterminao do homem, ou seja, viola o princpio bsico de quetodos os homens so sujeitos livres e iguais, condio universal, emqualquer tempo e em qualquer lugar, para que os indivduos possam secomunicar, dentro da cultura e entre as culturas. O relativista no temesse recurso. Se membro da cultura agredida, s pode defender-seinvocando um saber prprio, uma normatividade local. A batalha setorna indecidvel, porque so duas particularidades em conflito, semarbitragem possvel, pois no h escalas comuns s duas. A culturaagredida, se tambm relativista, s tem como recurso entricheirar-seem sua individualidade. Ela se torna etnocntrica, do mesmo modoque o agressor, opondo ao particularismo outro particularismo, ouseja move-se em crculos, sem sada possvel, no espao particularistainventado pela cultura agressora.

    Feita a partir desses pressupostos, a mudana eticamente inaceitvel.Ela no se faz com base num acordo, e sim com base na imposio demodelos que no foram objeto de qualquer argumentao igualitriaentre a cultura mudada e a que impe a mudana.

    Diante do mal-entendido relativista e da perverso etnocntrica, oantroplogo comunicativo sente-se qualificado para julgar todas asprticas que violem a tica material subjacente s estruturas formais dacomunicao pela linguagem: os valores universais do entendimentomtuo, da concrdia, da igualdade, da ausncia de coao, dentro daprpria cultura e fora dela. Pois ele nem idealiza o Ocidente nem ocritica a priori, nem transforma as culturas alheias em jardins do dennem as diaboliza.

    Em conseqncia, ele denuncia como etnocntricos tanto osmissionrios europeus que queriam evangelizar os chineses como osletrados confucianos que consideravam brbara a cultura de ondevinham esses missionrios. Ele d razo aos ingleses quando proibirama prtica indiana de queimar as vivas na fogueira e os condenaquando massacraram as populaes indgenas.

    Em cada um desses exemplos, a crtica se faz a partir dos valorestrans-culturais de tolerncia, de liberdade, de ausncia dediscriminao: a imparcialidade do julgamento garantida pelo carterno-particularista do padro de medida.

    E verdade que opinies desse tipo tm pouco valor se se limitam aoforo ntimo de quem formula esses juzos. Ora, o quadrocomunicativo nos impe a intersubjetividade da argumentao. Todasessas opinies so provisrias, enquanto no forem postas prova narelao argumentativa. Elas so, num sentido etimolgico, sem

  • inteno pejorativa, "preconceitos" - opinies preliminares.

    Esses pr-julgamentos no so arbitrrios, porque se baseiam emvalores no-arbitrrios, ao contrrio dos preconceitos relativistas eeurocntricos. Mas s deixaro de ser pr-julgamentos quando seconverterem em julgamentos validados pela argumentao. essaexigncia que distingue a perspectiva comunicativa tanto da relativistacomo da etnocntrica.

    Esse o nervo da questo: essas duas perspectivas excluem de todo amoldura comunicativa.

    O etnocentrismo desqualifica ab initio, enquanto interlocutores, osmembros da cultura considerada, porque eles so definidos de sadacomo inferiores e portanto incapazes de argumentao. O relativismoopera a mesma desqualificao, seja porque o dialogo impossvel(no podemos compreender as culturas alheias) seja porque ele redundante (j sabemos, antes de qualquer argumentao, que taisculturas so vlidas).

    Na origem da atitude etnocntrica est a intolerncia. Ela torna odilogo impossvel. Na origem da atitude relativista est uma certaconcepo de tolerncia. Ela torna o dilogo suprfluo. Nos doiscasos, nega-se o valor de base tica comunicativa, fixado por Kant paraseu tempo e o nosso: o atingimento da maioridade (Muendigkeit), ouso da prpria razo sem tutelas alheias (22). Em outras palavras, oideal da maioridade substitudo pela estratgia da infantilizao.

    O etnocentrismo infantiliza os homens quando os declaraintrinsecamente incapazes de argumentao.

    O relativismo os infantiliza por uma concepo de tolerncia que ooposto da que foi recomendada pela Ilustrao e que nessa forma umdos valores bsicos da conscincia civilizada. A frase atribuda(incorretamente) a Voltaire, de que ele no concordava com umanica palavra do interlocutor mas defenderia at a morte o seu direitode diz-la, ilustra bem uma concepo de tolerncia fundada empremissas comunicativas. O autor da frase no dizia que todas asopinies eram igualmente vlidas; ele discordava das opinies dointerlocutor, acreditava pronfundamente que as suas eram maisverdadeiras, e estava disposto a defend-las pela argumentao, o que

    (22) Immanuel Kant, Was ist die Aufklaerung? em Gesammelte Schriteen (Georg ReimerVerlag: 1912).

  • supunha, como corolrio, a liberdade de expresso integral para osdois participantes do processo comunicativo. A tolernciacomunicativa supe tratar todos os homens como adultos, comopinies que eles tm o direito de defender pela argumentao; atolerncia relativista implica em excluir do mbito argumentativo osmembros de certas culturas, infantilizando-os. Dizer a priori quetodos os aspectos de uma cultura so legtimos dispensa seusintegrantes de argumentarem a favor dessa legitimidade. Os

    " nativos "so elogiados - sua cultura vlida a priori - e em seguidaconvidados a brincar em sua reserva ecolgica.

    Entre uma infantilizao baseada no a priori de que certas culturas soinferiores e a baseada no a priori de que elas so portadoras de umasabedoria espotnea (o mito da criana no-pervertida pelo mundoadulto o correlato rigoroso do mito rousseauista do primitivono-contaminado pela civilizao) o antroplogo comunicativo recusa,de todo, a estratgia da infantilizao. Todos os homens so ou devemtornar-se iguais, sim - alle Menschen werden Bureder - mas so iguaispor serem dotados do atributo comunicativo por excelncia, aMuendigkeit, que supe o direito a capacidade de apresentarargumentos e de refut-los.

    Essas consideraes permitem compreender a atitude da antropologiacomunicativa com relao mudana social induzida. Opondo-se aorelativismo puro, ela acredita que a mudana atravs do contactointer-cultural possvel e desejvel. A partir de suas premissasanti-etnocntricas, ela s aceita esse contacto sob uma forma dialgica.

    E exatamente a posio de Roberto Cardoso. Para ele, a mudana deveser definida no interior de uma comunidade inter-cultural deargumentao. Sua inspirao o conceito de etnodesenvolvimento,concebido como uma alternativa aos modelos ortodoxos dedesenvolvimento elaborados por tcnicos e funcionriosgovernamentais e internacionais. Segundo a Declarao de San Jos,de 1981, o etnodesenvolvimento envolve o "fortalecimento dacapacidade autnoma de deciso de uma sociedade culturalmentediferenciada para orientar seu prprio desenvolvimento e o exerccioda autodeterminao". J , implicitamente, a noo de comunidadeargumentativa, pois s pelo dilogo podero os

    "etnodesenvolvimentistas" compatibilizar seus objetivosprofissionais com os princpios da autonomia e autodeterminao dosgrupos interessados. E perfeita, portanto, a concluso de RobertoCardoso de que " o conceito de etnodesenvolvimento contm, aindaque subjacente, a idia da existncia de uma comunidade deargumentao, no mais inter-pares, porm entre grupos e indivduos

  • portadores de culturas distintas... inseridos em situaointer-cultural". (23)

    Qual o objetivo da mudana a ser promovida atravs dessacomunidade de argumentao? De novo, o conceito deetnodesenvolvimento d uma resposta clara: o atendimento dasnecessidades sociais bsicas. A comunidade inter-cultural definiriaprogramas concretos para a melhoria das condies materiais de vidada populao.

    Mas esse objetivo, por crucial que seja, no pode ser nico. A mudanadeve visar o atendimento das necessidades materiais bsicas, semdvida. Mas tambm visa aumentar os espaos de liberdade dentro dacultura, o que pode exigir, ainda que no necessariamente, atransformao da esfera normativa. Ora, a aparece a primeiradificuldade com o conceito de etnodesenvolvimento. Pelo menos naformulao de Stavenhagen, o etnodesenvolvimento implica umatomada de posio prvia a favor da normatividade existente. Amelhoria das condies de vida deve ser promovida sempre quepossvel no interior da tradio. Como princpio geral, ele recomendao uso e aproveitamento "das tradies culturais existentes". Ahiptese de que essa tradio contenha momentos fundamentalmenterepressivos, e que portanto eles estejam entre aqueles aspectos dosistema social que precisam ser mudados, no parece ter ocorrido aStavenhagen. Como hispano-americano, a posio de Stavenhagen compreeensvel. Sua angstia com a descaracterizao da culturapr-colombiana pelos colonizadores espanhis legtima, mas esseexemplo precisamente o paradigma tpico-ideal daquela mudanaheternoma que a teoria comunicativa rejeita. Qual a objeo possvela uma mudana autnoma, determinada pelos prprios interessados,em dilogo, e no em competio, com representantes de outrasculturas?

    Racionalmente, nenhuma. A objeo feita por muitos autores, masela no racional, porque deriva de uma ideologia e no de umargumento: a ideologia historista.

    O historismo inverteu o vnculo do Iluminismo com a tradio. Para oIluminismo, a tradio era a esfera por excelncia da heteronomia, quesubmetia o homem tutela do sagrado, impedindo-o de pensar por simesmo. A bandeira mais alta do Iluminismo, o supere aude kantiano,era um grito de guerra contra todos os elementos de poder ilegtimo

    O grande mritodessa regra, no

    caso dosconfrontos

    inter-culturais, que ela d apalavra aos

    indivduosconcretos

    (23) Roberto Cardoso de Oliveira, op. cit, p.21.

  • encrustados na tradio. Essa era a essncia da Idelogiekritikiluminista: desmascarar os dogmas e mitos pelos quais a tradioperpetuava a minoridade dos homens, sujeitando sua razo tutela daautoridade. Pensar por si mesmo libertar-se do prjug - opinio semjulgamento, na definio de Voltaire - e a tarefa da tradio justamente a de fornecer opinies j prontas, que dispensem o homemda difcil tarefa de reflexo autnoma. O hostorismo reabilita atradio, e ao faz-lo re-sacraliza o mundo que o Iluminismo tinhasecularizado. A tradio no mai aquilo do que devemos nos libertar,mas a matriz uterina que nos envolve do nascimento morte e queno podemos descartar sem riscos individuais e coletivos. Somentedentro da tradio o homem plenamente humano.

    a anttese da atitude comunicativa. Sem dvida, nos contedossemnticos da tradio que nos abastecemos das interpretaesnecessrias para a comunicao quotidiana, mas sua validade estpermanentemente sub judice, e a todo momento est sujeita investigao discursiva. Para a teoria comunicativa, a proposio deque como princpio geral devemos respeitar a tradio vazia designificado. Virtualmente, a ao comunicativa j crtica da tradio,e essa virtualidade se atualiza sempre que ingressamos no discurso. Poroutro lado, ela no se atualiza quando a fora da tradio todesptica que no permite a abertura de discursos problematizadores.

    Ela pode ser to hegemnica em determinadas sociedades que bloqueiaa prpria percepo de que existe algo a problematizar. Foi a situaoque prevaleceu antes da Ilustrao e continua prevalecendo hoje emmuitas sociedades. E nisso, tecnicamente, que consiste a ideologia: umsistema monoltico de representaes, cuja funo inibir, pela falsaconscincia que elas induzem, a instaurao de processos discursivos.O discurso, cuja funo criticar a tradio, obstrudo pela prpriatradio. Longe de combater a Entzauberung iluminista, portanto,como fazem todos os historistas, a teoria comunicativa reivindica aEntzauberung como objeto do discurso e como condio bsica para aatualizao da competncia discursiva. Ela no levou a nenhuma"perda de sentido", Sinnverlust, como afirma Weber. Ao contrrio,tendo emancipado o homem de um "sentido"impostoheteronomamente, a de-sacralizao habilitou-o a fundar, emconfronto dialgico com seus semelhantes, um novo horizonte designificaes.

    Por isso no h por que no incluir, como segunda funo dacomunidade argumentativa, a crtica da tradio normativa. Crticano significa rejeio a priori: significa exame, e possivelmente

  • validao da norma. Inserida numa comunidade inter-cultural, essainstncia crtica ter carter tambm inter-cultural. Mas podecontribuir para acelerar processos argumentativos internos cultura aser mudada, que dispensem com o tempo a cooperao da outracultura, ela pode facilitar a emergncia e institucionalizao dosprocessos discursivos que at ento tinham permanecido embrionriospor falta de estmulos externos. Um dos efeitos da mudana normativainter-cultural seria ento o de ajudar a cultura a atingir maisrapidamente o estgio em que a crtica interna da tradio se rotinize,passando da argumentao dentro do sistema normativo existente argumentao tendo esse sistema por objeto.

    Nada disso assusta o antroplogo comunicativo. Tendo se libertado daautoridade do sagrado, ele no considera sacrlego o exame das normase valores - ele escreve monografias sobre o tabu, mas no o pratica - etendo concludo seu dipo com relativo sucesso, no investe a esferada tradio com atributos maternos que a tornem invulnervel crtica.

    Isso posto, a comunidade argumentativa inter-cultural teria duasfunes: a satisfao das necessidades bsicas da populao e a crticaseletiva das normas e valores. Conceitualmente separveis, as duasfunes se imbricam na mesma prtica dialgica. Dialogando sobre osprogramas destinados melhoria das condies materiais de vida, osantroplogos (ou autores com uma viso antropolgica) dialogariamtambm sobre o contedo e a validade das normas. Esse quadrodialgico nico com duas funes entrelaadas estaria sujeito aosprincpios gerais da tica argumentativa: participao livre e igualitriade todos os interessados e livre exame por todos de todos osargumentos. Quando se discutissem especificamente questes delegitimao, as regras do princpio U serviriam como critriospragmticos para avaliar a validade de normas.

    Recordo o enunciado do princpio U: "Todas as normas vlidasprecisam atender condio de que as conseqncias e efeitoscolaterais que presumivelmente resultaro da observncia geral dessasnormas para a satisfao dos interesses de cada indivduo possam seraceitos no-coercitivamente por todos os interessados".

    O grande mrito dessa regra, no caso dos confrontos inter-culturais, que ela d a palavra aos indivduos concretos que compem a cultura,em vez de consider-la como um bloco, que como tal sempre"vlido" ou "funcional" . Estariam as vtimas de certas normasrepressivas de acordo com esse julgamento?

  • As normas que maltratam a mulher, por exemplo, tm como todas asoutras uma razo de ser para os relativistas. Quando os rabes doJordo matam uma mulher que ficou grvida fora do casamento,mesmo quando a gravidez se deve ao estupro, quando a mulheradltera assassinada pelo marido em certas regies (a Calbria,digamos, para no ofender nossas susceptibilidades nacionais) ouquando a mulher indgena, na Vezenuela, violada periodicamentepor parte da tribo, o relativista diria que todas essas prticas sovlidas, porque correspondem aos valores da cultura, e abster-se delasseria expor os indivduos desonra. A concluso implcita, e s vezesexplcita, que a prpria mulher se sentiria infeliz se um bomsamaritano tivesse tido a idia etnocntrica de acudi-la, como aquelapersonagem de Molire, que espancada pelo marido insulta seusalvador, indignada: " Et moi je veux qu'il me batte, moi!" Perfeito.O uso do princpio U poderia elucidar a questo. Pois essas normas ssero consideradas vlidas se todos os interessados (e interessadas)participarem da argumentao; se nenhum deles (sem excetuar asmulheres) fr coagido; e se nenhum participante (inclusive do sexofeminino ) rejeitar os efeitos da observncia dessa norma para osinteresses de cada um (e cada uma). Pessoalmente, acho improvvelque o relativista encontre entre essas mulheres aliadas para a tese deque todas as solues normativas encontradas pela cultura soigualmente vlidas. Confesso que ficaria um pouco atnito se visseuma das participantes da argumentao reinvindicar seu direitocultural a ser espancada, brandindo convulsivamente um exemplar deMan and his Works, de Herskovits. Pode acontecer. Nesse caso, euteria que imitar o benfeitor desastrado da comdia de Molire, depoisque a mulher diz que faz questo de ser surrada pelo marido: "Ah! j'yconsens de tout mon coeur!" (24).

    Ingressando na argumentao normativa, o antroplogo no estproibido de ter um pr-julgamento, baseado em seus pressupostosuniversalistas, sobre o contedo e a natureza da transformao a serestimulada. Ele no est proibido de achar indesejvel um estado decoisas em que uma parte da populao aterroriza a outra, por mais queseu treinamento funcionalista anterior o predisponha a admirar asabedoria da cultura que resolveu de modo to eficiente os seusproblemas adaptativos.

    Mas estaria sendo infiel aos seus pressupostos no-etnocntricos separticipasse de processos de transformao com base exclusiva nessespr-julgamentos. Eles s sero julgamentos vlidos se no forem

    (24) Molire, Le mdecin malgr lui, Oeuwes Compltes (Nelson), vol.III, p.407.

  • refutados por contra-argumentos convincentes por parte dos membrosda cultura. O pr-julgamento se situa no incio, no no fim doprocesso argumentativo.

    Assim, o antroplogo apresentar argumentos contra uma norma queele considere injusta - o infanticdio, por exemplo - e ouvircontra-argumentos. Talvez alguns deles sejam apresentados por

    "funcionalista" indgenas: sem essa norma, a sobrevivncia materialdo grupo ficaria comprometida pelo excesso de populao. Outros,mais bem informados sobre o que se passa na cultura "civilizada",comparariam o infanticdio prtica do aborto, tolerada no Ocidenteou reivindicada como direito legal. Como o encontro inter-culturaltem duas mos, esses argumentos podem impressionar o antroplogo,levando-o a matizar seu pr-julgamento. Sem abdicar de sua convicouniversalista do valor supremo da vida, em todas as latitudes, ele podeachar razovel, exatamente em nome do respeito vida, o argumentode que a suspenso da norma criaria situaes de escassez quevitimariam milhares de pessoas. E claro que apesar disso ele alegariaque o primeiro vetor da comunidade argumentativa voltada para amudana - o destinado a melhorar as condies materiais de vida -atenderia mais eficazmente a esse problema aumentando aprodutividade da agricultura. Mas no deixaria de considerar racionalo argumento do interlocutor. De resto, o prprio enunciado doprincpio U o levaria a pesar as repercusses a longo prazo daeliminao da norma; a clusula de que os participantes precisamaceitar "as conseqncias e efeitos colaterais" da observncia danorma, introduzida por Habermas para deixar claro que a ticadiscursiva uma tica da responsabilidade, no sentido de Weber, e nouma tica da convico, o foraria a considerar a hiptese de que anorma em questo pode ser efetivamente funcional, medida por certosparmetros.

    S resta lembrar, em concluso, que por sua prpria natureza a relaoargumentativa exclui solues impostas. Se a cultura no se convencer,de todo, dos argumentos apresentados, s cabe registrar a ausncia deconsenso e encerrar o exerccio inter-cultural. Em qualquer hiptese,ele no ter sido intil: a argumentao inter-cultural pode contribuirpara desencadear processos argumentativos internos cultura,levando-a a promover por seus prprios meios as mudanas materiaise normativas que ela considere apropriadas.

    alm deestabelecer uma

    relaocomunicativa em

    que a culturaalheia figurassecomo objeto, o

    antroplogoestabeleceria uma

    relao cujoobjeto seria suaprpria cultura.

    v

    Subjacente a tudo o que foi dito at agora existe um leitmotivincmodo, que certamente ter provocado no leitor um certo

  • desconforto: o carter parcialmente assimtrico da relaoargumentativa. Por mais que se diga que todos os participantes sosujeitos da argumentao, a mesma igualdade de estatuto no severifica quanto matria da argumentao, que unilateral. Tanto naargumentao terica como na que visa a mudana, o objetivo conhecer ou transformar uma das culturas, e no as duas. Nos doiscasos, se todos so sujeitos - por isso a relao simtrica - s algunsso objetos - por isso ela assimtrica.

    Sem dvida, essa assimetria atenuada pelo prprio carter dialgicoda relao. Deixando-se permear pelos argumentos do interlocutor noquase-discurso terico, o antroplogo aprende a conhecer melhor suaprpria cultura, e ouvindo argumentos convincentes a favor dalegitimidade das normas alheias, ele se d conta do que precisa serrevisto em suas prprias normas.

    Mas dito isto, continua sendo verdade que no tipo de confrontointer-cultural que examinamos at aqui, a inteno o conhecimento ea transformao do outro e no dos dois plos da relao.

    E uma situao indesejvel. O encontro inter-cultural deveria ser capazde funcionar nas duas direes. Presumivelmente o que ocorrequando as duas culturas so equivalentes em poder e influncia.Pode-se conceber que num encontro entre a cultura flamenga e afrancfona, na Blgica, o objetivo da reversibilidade no sejainacessvel. O mesmo no acontece no gnero de confronto queestamos investigando. Pois aqui as duas culturas no so,simplesmente, iguais em poder.

    A tica comunicativa no pode se esquecer dessa verdade elementar.Limitando-se a proclamar o princpio abstrato da igualdade de todosos sujeitos da argumentao, ela estaria cometendo a mesmaingenuidade dos liberais, que depois de dizerem que todos os homenstm os direito de fundar um banco, se esquecem de que esse direitotem um sentido prtico muito diferente para um bia-fria e para ummembro de famlia Rotschild. Um antroplogo pode estudar a culturaNavajo porque recebeu um financiamento da Fundao Ford, mas acultura Navajo no tem como financiar um pesquisador nativo quedeseje estudar a sub-cultura dos antroplogos da Universidade deHarvard. Nisso, importa pouco que a antropologia seja ou nocomunicativa. Nosso indgena poderia ter lido Habermas e estardisposto a ser paciente com seus objetos de estudo, evitando todoetnocentrismo, compreeendendo com grande delicadeza de

  • sentimentos os dramas e ansiedades dos universitrios americanoss;ouvindo com muita abertura os argumentos dos seus interlocutoressobre a Validade de normas exticas como as que reagem a ascensoacadmica e a competio entre os pares, nada disso adiantariamuito: no basta querer ser dialgico para ter a oportunidade efetivade exercer uma tica dialgica.

    Mas na falta de soluo mais satisfatria; essa dificuldade poderia sermitigada se o antroplogo dedicasse maior ateno a estudar suaprpria cultura. De alguma maneira, ele estaria assim contribuindopara compensar a unilateralidade de sua maneira habitual de concebero encontro entre as culturas, na qual s a indgena objeto deinvestigao. Sabemos que no h grande novidade nisso, porqu ofoco "indigenista" h muito deixou de ser exclusivo na antropologia.Mas no estou me referindo aqui aplicao de tcnicasantropolgicas para o estudo das favelas, por exemplo/porque emboraestas estejam inseridas num meio urbano, a relao entre essascomunidades " atrasadas" o investigador no seria muito diferenteda que este mantm com uma cultura primitiva. Penso no exame dasprprias instituies "civilizadas", que agora seriam tratadas como sefossem as de uma Sociedade indgena, com seus mitos, seus rituais,suas prticas econmicas e polticas, e seus sistemas de valores, muitosdos quais parecem pouco defensveis luz de princpios universais dejustia.

    Mais uma vez o quadro comunicativo seria apropriado. De novo oantroplogo seria o plo ativo da relao, com a diferena de queagora o " indgena" seria O prprio membro da cultura quepertence o pesquisador. De novo, seria instaurado um quase-discursoterico, ao cabo do qual seria obtido um saber vlido. De novo,haveria uma argumentao prtica visando validao das normas. Denovo, a relao seria simtrica e assimtrica ao mesmo tempo, porquese por um lado todos seriam regidos pelos princpios da ticadiscursiva, por outro lado o objetivo seria conhecer e transformar umdos plos e no ambos.

    Qual seria o grupo a ser objeto dessa argumentao?

    No excluo que seja a prpria sociedade global, considerada como ummacro-agrupamento. H um estudo antropolgico clssico sobre oJapo que mostra a viablidade desse projeto (25). claro que nessecaso o dilogo no poderia se dar no mesmo nvel que p que se realizacom uma comunidade pequena e pouco diferenciada,mas

    (25) Ruth Benedict, The Chrisanthemum and the Sword (Routldge Paperbacks).

  • exatamente o que se passa no discurso terico entre pares. O discursoterico no uma assemblia de sbios que se rene para discutir umateoria em torno de uma garrafa de skerry, como nas universidadesinglesas. uma comunidade sem contornos pessoais definidos, araesonnierende Oeffentlichkeit de Kant, cujos membros noconhecemos obrigatoriamente e com que trocamos argumentos atravsde artigos, livros e conferncias, e no necessariamente atravs de umarelao dialgica face a face. Seria essa a "outra cultura" com a qualestabeleceramos a relao argumentativa, objeto de saber e avaliao, eno mais co-participante de um exerccio simtrico de validao.

    Mas reconheo que a relao com interlocutores to difusos teria algode fantasmagrico. Seria menos inslito, luz dos mtodos detrabalhos habituais dos antroplogos, se a relao argumentativa seestabelecesse com grupos definidos dentro da sociedade moderna,pertencentes a subculturas especficas, como a dos tcnicos, dospolticos, dos burocratas (como o autor deste artigo) e os cientistas,entre os quais os prp