Fenomenologia do brasileiro. Vilém Vlusser

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Fenomenologia do brasileiro. Vilém Flusser Obra editada originalmente em alemão sob o título Brasilien oder die Suche nach dem neuen Menschen: Für eine Phänomenologie der Unterentwicklung (Brasil, ou a procura de um novo homem: por uma fenomenologia do subdesenvolvimento), Bollmann Verlag, 1994. Primeira edição em português organizada por Gustavo Bernardo, Rio de Janeiro: UERJ, 1998. Sumário 1. Em busca de um novo homem 2. Imigração 3. Natureza 4. Defasagem 5. Alienação 6. Miséria 7. Cultura 8. Língua 9. Diagnóstico e prognóstico 1. Em busca de um novo homem O homem é um ente essencialmente perdido e, quando se dá conta, procura encontrar-se. Esta sentença pode ser lida em vários níveis, por exemplo, no nível religioso ou no nível de um bandeirante no sertão, e seu sentido é sempre este: a decisão de tomar caminho (ou abrir caminho) depende sempre de um mapa da situação na qual o homem se encontra. Isto significa que toda decisão depende não apenas da posição das coisas, mas também da imagem que fazemos da posição das coisas (provavelmente isto tem muito a ver com o problema da liberdade). Pois essa imagem, seja ela mais ou menos fiel, depende sempre de um ponto de vista, a partir do qual foi projetada, e este ponto de vista não pode, ele próprio, fazer parte da situação que enfoca. O fato de o homem assumir pontos de vista não diz no fundo outra coisa a não ser que o homem procura encontrar-se. Poderíamos dizer que a capacidade para a visão distanciada é prova da perdição humana, porque não teria sentido afirmar de um ente incapaz de ver sua situação que está perdido. No entanto, devemos ser cautelosos ao tentar estabelecer um nexo causal entre a capacidade para a superação e a perdição humana. Estaremos perdidos por podermos nos distanciar de nos mesmos, ou podemos sair de nós mesmos por estarmos perdidos? Provavelmente trata-se de pergunta sem sentido. É melhor constatarmos simplesmente que a capacidade para a imaginação (inclusive para a imaginação de si mesmo) caracteriza o homem tanto quanto a sensação de: (a) estar perdido em não importa que situação; (b) e dever portanto orientar-se. Devemos constatar também que a consciência da desorientação e da necessidade de orientar-se não esta desperta sempre, nem em todos. Os assim chamados "bem integrados" (ou "quadrados") não se sentem perdidos, e neste sentido cada um de nós é "quadrado" na maioria das vezes. A sensação da desorientação, a angústia do beco sem saída, toma conta de nós apenas por momentos, e torna-se insuportável por períodos mais extensos. Pois são estes momentos fugazes que nos movem para darmos o passo para trás de nós mesmos. Retroceder, para podermos imaginar e depois compreender e, por fim, para agir decididamente. Pois estas são as fases do encontro consigo mesmo: distância, imaginação,

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  • Fenomenologia do brasileiro.Vilm Flusser

    Obra editada originalmente em alemo sob o ttulo Brasilien oder die Suche nach dem neuen Menschen: Fr eine Phnomenologie der Unterentwicklung (Brasil, ou a procura de um novo homem: por uma fenomenologia do subdesenvolvimento), Bollmann Verlag, 1994. Primeira edio em portugus organizada por Gustavo Bernardo, Rio de Janeiro: UERJ, 1998.

    Sumrio1. Em busca de um novo homem2. Imigrao3. Natureza4. Defasagem5. Alienao6. Misria7. Cultura8. Lngua9. Diagnstico e prognstico

    1. Em busca de um novo homem O homem um ente essencialmente perdido e, quando se d conta, procura encontrar-se.Esta sentena pode ser lida em vrios nveis, por exemplo, no nvel religioso ou no nvel de um bandeirante no serto, e seu sentido sempre este: a deciso de tomar caminho (ou abrir caminho) depende sempre de um mapa da situao na qual o homem se encontra. Isto significa que toda deciso depende no apenas da posio das coisas, mas tambm da imagem que fazemos da posio das coisas (provavelmente isto tem muito a ver com o problema da liberdade). Pois essa imagem, seja ela mais ou menos fiel, depende sempre de um ponto de vista, a partir do qual foi projetada, e este ponto de vista no pode, ele prprio, fazer parte da situao que enfoca.O fato de o homem assumir pontos de vista no diz no fundo outra coisa a no ser que o homem procura encontrar-se. Poderamos dizer que a capacidade para a viso distanciada prova da perdio humana, porque no teria sentido afirmar de um ente incapaz de ver sua situao que est perdido. No entanto, devemos ser cautelosos ao tentar estabelecer um nexo causal entre a capacidade para a superao e a perdio humana. Estaremos perdidos por podermos nos distanciar de nos mesmos, ou podemos sair de ns mesmos por estarmos perdidos? Provavelmente trata-se de pergunta sem sentido. melhor constatarmos simplesmente que a capacidade para a imaginao (inclusive para a imaginao de si mesmo) caracteriza o homem tanto quanto a sensao de: (a) estar perdido em no importa que situao; (b) e dever portanto orientar-se.Devemos constatar tambm que a conscincia da desorientao e da necessidade de orientar-se no esta desperta sempre, nem em todos. Os assim chamados "bem integrados" (ou "quadrados") no se sentem perdidos, e neste sentido cada um de ns "quadrado" na maioria das vezes. A sensao da desorientao, a angstia do beco sem sada, toma conta de ns apenas por momentos, e torna-se insuportvel por perodos mais extensos. Pois so estes momentos fugazes que nos movem para darmos o passo para trs de ns mesmos. Retroceder, para podermos imaginar e depois compreender e, por fim, para agir decididamente. Pois estas so as fases do encontro consigo mesmo: distncia, imaginao,

  • conceito, ato; ou superao da situao, projeto de um plano sobre a situao, adequao do plano situao, modificao da situao de acordo com o plano. bvio que a tentativa de encontrar-se pode falhar em no importa qual dessas fases, e esta a razo porque a ensaiamos to raramente. Na maioria das vezes, permitimos de bom grado que a situao nos atordoe, a fim de escaparmos desorientao e angstia do momento. A liberdade, por louvada que seja, incmoda, exige esforo, e no oferece garantia de sucesso. O atordoamento pela situao um bom mtodo para evit-la. Este atordoamento pode ser formulado assim: a situao me determina e me propele, ela incompreensvel e, mesmo se pudesse compreend-la, no bastariam minhas foras para opor-me a ela. Isto uma formulao razovel e uma tentativa honesta de evitar o uso da capacidade para conseguir a liberdade. Via de regra, no entanto, no somos to honestos, e procuramos fazer crer que fazemos o que fazemos por nos termos decidido livremente para tanto. So os momentos de angstia (por fugazes que sejam) que nos revelam que fazemos o que fazemos por estarmos determinados e empurrados por fora. Mas at a formulao honesta em certo sentido indigna, porque da dignidade humana ensaiar a liberdade, por irrazovel que seja. Portanto: tentar manter a sensao da desorientao desperta. Assumir a perdio a tentativa de encontrar-se, sob pena de fracassarmos. Este o clima das consideraes seguintes.Obviamente: distanciar-se e projetar planos no passam das duas primeiras fases do processo do encontrar-se. So as fases especulativa e desengajada, e sero vs, se no forem seguidas pela fase engajada. certo: no basta explicar o mundo. Mas igualmente certo que no podemos modific-lo, sem tentarmos explic-lo (fato nem sempre suficientemente salientado pelos engajados). Pois um tal "explicar o mundo" depende de pelo menos dois fatores, a saber: da distncia do afastamento, e do ponto de vista. Quanto maior a distncia, tanto mais ampla a viso, mas, tambm, tanto mais indistintos os detalhes e tanto menos fiel o plano da situao concreta. E todo ponto de vista projeta uma luz sobre a situao na qual as coisas lanam sombras especficas, e portanto aparecem diferentemente de no importa que ponto de vista. Isto significa que toda tentativa de viso individual, e que a viso que se oferece caracteriza o visionrio pelo menos tanto quanto caracteriza a situao vista. Mas isto no significa que toda tentativa assim necessariamente subjetiva, e portanto nada comunica. Pelo contrrio: da soma das vises disponveis pode fazer-se um mapa que se aproxima infinitamente da "verdade objetiva", sem jamais alcan-la. claro: soma de distncias e de pontos de vista nunca resultar na reproduo fiel do visto, portanto nunca levar verdade no sentido aristotlico do termo. Mapas verdadeiros no podem existir e, portanto, no existem. Mas seriam desnecessrios se existissem. Pelo contrrio: mapas no devem ser verdadeiros, se quiserem orientar-nos. Um mapa de uma cidade, que seria fiel se a reproduzisse por inteiro, seria to confuso quanto o a prpria cidade, e no teria utilidade alguma. Um elemento de simplificao e de exagero essencial para todo o mapa, e o ideal da objetividade portanto sumamente duvidoso. Em todo caso, no ser este o ideal das consideraes que se seguem.Distanciar-se da situao e projetar de um determinado ponto de vista um mapa sobre ela, esta a meta aqui perseguida. Portanto, este ensaio tem meta e limite. A meta , repitamos, oferecer ao leitor um ponto de vista, a partir do qual poder ver, de um ngulo determinado, a situao na qual estamos e acrescentar a viso resultante a outras vises para poder orientar-se. O limite o engajamento, do qual o presente trabalho procurar aproximar-se sem alcan-lo. Pretende este ensaio manter-se desengajado, embora admita que todo desengajamento ou serve de trampolim a um engajamento, ou irresponsvel. O engajamento permanecer (assim esperemos) fora dos limites deste ensaio, porque ele

  • pretende contribuir para a deciso do leitor, mas no lhe dar conselhos. Em outros termos: o ensaio recusa responsabilidade para assumir-se como no importa que "autoridade" (por admitir ser incompetente para tanto), mas assume responsabilidade para ser "fonte de informao" (porque cr possuir alguma competncia para tanto).Para resumir o que foi dito: movido por angstia e pela sensao de estar em beco sem sada, este ensaio se distancia da nossa situao, assume um ponto de vista especfico, procura projetar da uma imagem da situao, na esperana que tal imagem possa servir, em conjunto com outras, a uma orientao na situao e de trampolim para a sua modificao portanto, para um engajamento.O que significa "nossa situao" neste contexto? Primeiramente, a situao da humanidade neste final do sculo XX. Mas, obviamente, um tal significado vasto obrigaria a tomar tamanha distancia da situao, a fim de abarc-la, que a viso resultaria em mera generalidade e banalidade. Por isso, urge definir o termo "nossa situao" um pouco mais razoavelmente. Por exemplo, desta forma: situao de um intelectual burgus, proveniente da cultura ocidental, no final do sculo XX. Mas, mesmo assim definido, o problema to amplo que parece convidar a uma queda na conversa fiada grandiosa. Evitar tal perigo ser uma das tarefas mais rduas deste ensaio.A esperana para tanto reside na estreita especificidade do ponto de vista a ser assumido. Ser o ponto de vista de um intelectual brasileiro imigrado da Europa. Conforme disse: toda imagem depende de dois fatores: da distncia e do ponto de vista. A distncia assumida por este ensaio grande, por ter ele escolhido um campo muito vasto. Em compensao, o ponto de vista to estreito que permite esperar que lugares comuns sejam evitados. O ponto de vista a ser assumido no exige explicao, j que resulta da prpria condio de quem escreve este ensaio. Mas a deciso de publicar tal viso deve ser explicada. O seguinte item ser, pois, tentativa de autojustificatica do autor, e deve portanto ser tomado cum grano salis.A histria enquanto soma dos atos decisivos (res gestae), e no enquanto tambm soma de sofrimentos, se tem desenvolvido at agora (isto : nos ltimos 8.000 anos, aproximadamente) em larga faixa que cinge o globo entre os graus 25 e 60 do Hemisfrio Norte. No se trata de um perodo muito amplo, j que perfaz apenas 2% da existncia do homem na Terra. provvel que a humanidade no seja nativa desta faixa, e qui a histria toda no passe do mtodo da humanidade para adaptar-se a ambiente no inteiramente conveniente. Uma maneira de ler a histria seguir as curvas traadas pelos pontos de deciso dentro da faixa. Em tal leitura, por exemplo, a abertura do norte da Europa no sculo IV e do norte da Amrica no sculo XVI sero tomados por momentos decisivos, e efetivamente a histria geralmente lida desta forma. Mas, vistos a partir de uma distncia maior, tais traos e saltos do ponto decisivo na faixa no parecem constituir a verdadeira medida da histria, e uma outra medida se impe, a saber: a da relao entre a faixa histrica e o resto da humanidade (um resto que pode ser chamado de ahistrico ou pr-histrico, no importa). Esta segunda leitura da histria est se tornando mais comum: a humanidade extra-histrica deixa de ser extica, o mundo por ela habitado deixa de ser chamado hinc sunt leones e passa a ser chamado "terceiro mundo", e o problema da relao entre histria e no-histria torna-se mais consciente.Tal problema aparece na conscincia sob duas formas. Uma o v como desafio de enquadrar na humanidade histrica a humanidade no-histrica, e esta a forma que caracteriza as sociedades histricas (por exemplo o Ocidente que "ajuda no desenvolvimento", e a China que "ajuda as revolues libertadoras"). A outra o v como desafio de depor a faixa histrica, e esta forma caracteriza algumas sociedades no-

  • histricas (por exemplo a "negritude" e o black power).H, no entanto, outras formas de o problema aparecer na conscincia, e uma esta: possvel tomar a histria no sentido acima proposto como epiciclo de 8.000 anos sobre um ciclo maior da humanidade, que dura centenas de milhares de anos. possvel dizer-se que existem sintomas que apontam o prximo fim de tal epiciclo. Visto da histria, isto significa que esta emergia da pr-histria para mergulhar em ps-histria, em futuro prximo. E efetivamente h vozes neste sentido no Ocidente (e no so apenas as vozes da nova esquerda e dos hippies). Mas, visto da no-histria, isto significa que o epiciclo histrico surgiu precariamente da no-histria, para nela mergulhar novamente. Porque do ponto de vista da no-histria no tem sentido querer distinguir entre "pr" e "ps", j que significam o mesmo. E o problema da relao entre histria e no-histria aparece agora como problema de absorver novamente a histria em no-histria.Este ponto de vista raras vezes assumido, e ainda mais raramente publicado. Isto se explica com facilidade. Porque assumir tal ponto de vista intelectualmente, como ginstica mental, coisa fcil e pode ser feita por todo aquele que tem intelecto um pouco treinado. Mas insistir existencialmente sobre tal ponto de vista acessvel a poucos, apenas para quem sente o prximo fim da histria em todos os seus nervos, e simultaneamente vivencia os problemas da no-histria no prprio corpo. Para poder sentir o primeiro, preciso ter-se originado em sociedade histrica, e para vivenciar o segundo, preciso viver em sociedade no-histrica, por exemplo: ser intelectual brasileiro imigrado da Europa.Mas em verdade nem sequer isto basta para assumir tal ponto de vista. No basta pelas razes seguintes: o imigrante intelectual tem um papel na "sociedade subdesenvolvida", a saber: propagar os valores histricos em novo ambiente. Este papel to sedutor, que poucos a ele resistem, e destarte o imigrante se transforma, sem se dar conta disso, em catalisador da historicizao do novo ambiente. Sem se dar conta, porque, se no estivesse atordoado pelo choque da imigrao deveria lembrar-se que, afinal de contas, emigrou da histria porque a histria lhe problemtica a ponto de ser insuportvel. Acontece, claro, que o imigrante se torna consciente disto e assume o exlio de bom grado. Mas neste caso d as costas histria, qual Gauguin, e se desinteressa dela. Em ambos os casos impossvel assumir o ponto de vista aqui proposto, porque o primeiro fruto de um engajamento na histria, e o segundo de um desengajamento dela.Para se poder assumir o ponto de vista proposto, necessrio que o imigrante se tenha perdido tanto na histria quanto na no-histria, e que procure orientar-se em ambas. Que duvide de ambas, sem desesperar de nenhuma. Portanto, que no desespere da no-histria (como o faz a maioria dos pensadores do "Terceiro Mundo", os quais procuram desesperadamente penetrar a histria adentro), nem desespere da histria (como o fazem tantos pensadores ocidentais, os quais procuram desesperadamente uma sada dela em direo de uma no-histria romanticamente paradisaca e mentirosa). O autor cr estar na situao relativamente rara de poder assumir existencialmente o ponto de vista proposto. E esta relativa raridade representa, assim o cr, uma justificativa para a publicao do seu ponto de vista.Para resumir o que ficou dito: este ensaio assumir o ponto de vista de um intelectual burgus brasileiro, imigrado da Europa, para tentar imaginar, a partir dele, a situao do burgus intelectual ocidental em geral. Nutre a esperana de que a raridade do seu ponto de vista poder contribuir para que outros se orientem e mudem o mundo.Quanto ao mtodo a ser seguido neste ensaio: ser empreendida a tentativa de dar um passo para trs com relao situao de um intelectual brasileiro imigrado, para ver tal situao distncia e permitir que ela prpria se articule. Isto significa que ser feita a

  • tentativa de abandonar todo preconceito e todo valor antes de dar o passo. Tal mtodo constitui, geralmente, o mtodo da fenomenologia. Quem j procurou aplic-lo, sabe que um mtodo muito penoso, porque exige constantemente autocontrole para evitar que os preconceitos e valores (que so muito pegajosos) no continuem agarrados quele que se afasta. Mas pode ser um mtodo extremamente poderoso, porque, quando aplicado com xito, revela a prpria essncia das coisas.Portanto: este ensaio procurar ver, descrever e raciocinar despreconceituadamente. "Despreconceituadamente" significa no apenas livre de ideologias, mas principalmente tambm livre de conhecimentos, isto , de teorias. A atitude ser portanto no apenas despida de valores, mas tambm de instrumentos das cincias especializadas. No ser pretendida anlise sociolgica, econmica, etnolgica, etc., mas, pelo contrrio, todo possvel conhecimento que porventura existe no autor quanto aos mtodos e resultados destas disciplinas ser posto entre parnteses, a fim de no perturbar o fenmeno mesmo. Destarte se procurar conceder a palavra ao prprio mundo vital do autor para que isto resulte em imagem viva e vivificada. Obviamente o autor no conseguir evitar que valores e conhecimentos, tanto "falsos" quanto "verdadeiros", se infiltrem constantemente e perturbem a imagem. No conseguir evit-lo, porque sabe que a viso "pura" no apenas coisa da disciplina, mas tambm de um dom, e que pode ser forada apenas at certa medida. O resultado do ensaio ser (se este estiver pelo menos xito fragmentrio) uma imagem do brasileiro do ponto de vista de um imigrante da Europa. Isto explica o ttulo do ensaio. Quem quiser pode efetivamente ler o ensaio assim: como descrio de um pas e seus habitantes. Mas, conforme foi dito, esta no a meta do ensaio. A meta fornecer uma imagem, a qual, graas a analogia e contraste, possa servir de orientao ao ocidental em geral, e em particular ao burgus intelectual do Ocidente.Parece existir, todavia, e faz parte, uma certa contradio entre mtodo e meta: o mtodo permitir que as coisas da situao se articulem espontaneamente; a meta falar, sotto voce, tambm em coisas nem sequer vistas e, a saber, graas ao contraste e analogia. O mtodo continua no deliberado, no sentido de no manipular as coisas deliberadamente para que sustentem teses preconcebidas. E, enquanto mtodo, persegue, como todo mtodo, uma meta.Vrios setores da cena brasileira sero escolhidos sucessivamente, a fim de serem iluminados. A escolha ser puramente subjetiva, no sentido de obedecer ao interesse e vivncia de quem escreve este ensaio. Mas est na dialtica da coisa que a escolha subjetiva provoca a coisa para ser objetiva, isto : coisa. No final ser ensaiada uma sntese da imagem sob a gide do ponto de vista. E tal imagem sinttica no passar, ela prpria, de mero setor a ser por sua vez sintetizado em viso mais ampla de uma situao mais ampla. Apenas em tal sntese maior adquirir a imagem o seu verdadeiro sentido, e no fundo assim que este ensaio quer ser lido.Para formular o mesmo fato de outra maneira: o presente ensaio um depoimento da nossa situao do ponto de vista de um imigrante brasileiro. Como depoimento, procura no apenas dar-se conta a si mesmo e aos outros da situao na qual estamos, todos, mas tambm encontrar caminhos e sadas. Em tal depoimento aparece, expressamente, apenas o mundo vital do autor, a saber, o Brasil, mas tambm, implicitamente, a situao geral de ns todos. O depoimento procura ser honesto, mas sabe que a honestidade um ideal de muito difcil alcance. Portanto o depoimento se oferece assim: enquanto ensaio, no obra e assim quer ser lido.Para resumir, finalmente: neste ensaio ser tentada uma descrio fenomenolgica de um Brasil vivido, para servir de mapa, por analogia e contraste, a uma humanidade to

  • perdida quanto o o prprio ensaio. As analogias e os contrastes devero ser fornecidos pelo prprio leitor, do seu prprio ponto de vista. Por isso, as consideraes que se seguiro esto neste sentido "abertas": so ensaio que passar a ser obra apenas se encontra leitor que o complete.

    2. ImigraoH na literatura que trata do problema da imigrao uma curiosa lacuna. Parece que pouco ou nada tem sido escrito sobre um tema que se poderia chamar "Filosofia da Imigrao e Imigrao da Filosofia".Embora o fenmeno da imigrao tenha sido exaustivamente analisado de numerosos pontos de vista (especialmente nos pases imigratrios), quase nunca o foi do ponto de vista do intelectual imigrante. Isto surpreendente, j que deve ser suposto ser justamente o intelectual o mais indicado para articular a situao existencial do imigrante. A explicao disto talvez seja esta: a situao imigratria de difcil generalizao, e a generalizao a meta da viso filosfica. Em toda situao imigratria predominam os fatores especficos (por exemplo o background sociocultural e geogrfico do imigrante, o territrio em que imigra, e o momento histrico no qual o faz), e estes fatores encobrem a estrutura da situao quase inteiramente. A tarefa de desencobrir tal estrutura geral parece condenada ao fracasso (j que existe o perigo de, ao remover o especfico, perdemos o prprio fenmeno), e os pensadores esto aparentemente prontos a abandonar o estudo do fenmeno s disciplinas cientficas especializadas, como sejam a sociologia, a economia, a biologia e a psicologia.Mas o fenmeno da imigrao um aspecto importante da histria em geral e da atualidade em particular, e, a rigor, no compreenderemos nem a histria nem a atualidade sem consider-lo. Blondel diz que a verdadeira histria consiste de vidas humanas, e a vida humana metafsica em ato. Pois se "metafsica" tem a ver com "superao da situao", a vida imigratria ser exemplo extremo da afirmativa blondeliana, j que tal superao lhe comeo. Portanto uma descrio fenomenolgica da situao imigratria pelo prprio imigrante deveria a rigor poder desvendar a estrutura de toda vida humana, e isto no a despeito, mas por causa dos fatores especficos que a caracterizam. Tal descrio deveria desenterrar categorias aplicveis a situaes inteiramente diferentes. Uma tal tentativa ser agora empreendida. No no sentido de visar ao oferecimento dessas categorias j prontas para o uso, mas no sentido de provocar o leitor a escolher tais categorias que lhe paream aplicveis situao na qual ele prprio se encontra.O ambiente brasileiro se oferece ao imigrante de forma ambivalente. Para captar a ambivalncia, o imigrante deve libertar-se dos preconceitos que lhe encobrem a realidade, principalmente dos preconceitos "pas novo", "sociedade aberta" e "terreno americano", mas tambm dos preconceitos "tropical" e "sociedade latina". Tais preconceitos encobrem a realidade no por serem falsos, mas por serem meias verdades, e meias verdades so perniciosas.Retirados os preconceitos, o Brasil aparece ao imigrante na seguinte forma: o primeiro contato se d com uma massa urbana heterognea e quase amorfa. verdade que a massa fala uma nica lngua (o portugus), e isto parece dar-lhe estrutura. Mas o ouvido atento descobre que essa lngua no infra-estrutura (como no caso das sociedades europias, mas que forma um teto a reunir a massa, qual esperanto ou koin, debaixo do qual pulsam inmeras outras lnguas que se refletem no prprio portugus para poder penetrar a massa e integrar-se nela. Mas, fora disto, ela no oferece obstculo digno de nota. massa

  • num sentido mais radical que a populao urbana europia. A sua monotonia e a falta de articulao (que contrasta com a sua heterogeneidade) o que primeiro salta vista, em suma a falta de especificidade, quando So Paulo serve de modelo (o modelo aplicvel a muita cidade sulina, mas no a toda cidade brasileira, por exemplo no ao Rio de Janeiro, no s cidades da Bahia).Ao penetrar na massa, o imigrante descobre no mingau um arquiplago de ilhas em processo de decomposio lenta. Toda ilha corresponde a uma sociedade europia, ou a alguma sociedade do Oriente prximo e extremo, e habitada por imigrantes dessas sociedades, seus filhos, e no mximo netos. As ilhas se diluem na massa que as banha e, se no se diluram de todo, por estarem ainda irrigadas por corrente imigratria j em vias de secar atualmente. As ilhas oferecem a imagem das sociedades originais em vrias fases de decadncia, desde um agarrar-se central e rgido a formas trazidas, at uma vaga lembrana perifrica dos usos e abusos dos antepassados. O ritmo da decadncia no depende apenas da corrente imigratria renovadora, mas tambm da rigidez e complexidade da sociedade original: japoneses se diluem em ritmo diferente dos rabes, judeus da Polnia em ritmo diferentes dos franceses. O imigrante descobre no arquiplago tambm aquela ilha que corresponde sua prpria origem, e vivencia o choque da decadncia, da provincializao e da primitivizao, o que facilita para ele a ruptura dos elos que o ligam sua origem.As ilhas so banhadas pelo mar proletrio e subproletrio composto de descendentes da populao rural brasileira, de descendentes das populaes das prprias ilhas, e irrigado por constante e crescente imigrao do interior brasileiro. H, nesse mar, tambm descendentes de escravos africanos libertos no fim do sculo passado, que formam porcentagem elevada (o que impressiona o imigrante), mas porcentagem no decisiva. A imigrao do interior faz com que as cidades cresam rapidamente e extravasem seus limites. Trata-se de massa humana desenraizada, que perdeu suas estruturas arcaicas, inadaptveis vida urbana, sem criar novas, a no ser a estrutura da mquina e o ritmo do aparelho. Esta massa humana alienada de tal modo que o captulo reservado ao problema neste ensaio nunca poder esgot-lo.Desse mar comea a cristalizar-se uma camada relativamente estreita de pequena e mdia burguesia, que por sua vez d origem a uma finssima camada intelectual e acadmica, uma espcie de elite. Pois sero estas as pessoas que formaro o mundo vital do imigrante, o campo do seu engajamento, seus amigos e inimigos, seus prazeres e sofrimentos, e o desafio para os seus atos. Diferem da burguesia europia e, comparados com ela, causam impresso agradvel, talvez devido sua origem diferente, j que no descendem, como a burguesia europia, de artesos e proletrios, mas de imigrantes, tanto europeus quanto brasileiros, em geral campesinos. O desenraizamento da populao proletria se transforma neles em abertura, relativa falta de preconceitos e esprito aventureiro, o qual, aliado tpica moral burguesa de produo, cria um clima reminiscente dos anos da fundao de empresas na Europa. Esta camada a principal portadora da responsabilidade pelos destinos do pas (na medida em que esses destinos so decididos no prprio pas), configurando-se praticamente na nica fonte do seu progresso econmico, social e cultural. Passa a ser, tambm, portadora das tendncias polticas, tanto das revolucionrias, quanto das conservadoras. Mas, a despeito disto, o desenraizamento nitidamente constatvel tambm nessas pessoas. So, no fundo, homens perdidos, que no se encontraram nem enquanto indivduos, nem muito menos enquanto grupo, e que buscam identidade por vezes desesperadamente. Uma densa nvoa de ideologias europias dificulta ainda mais o encontro consigo mesmo.

  • Finalmente o imigrante descobre na massa urbana um nfimo grupo de noveaux-riches que vegeta em luxo oriental sem jamais sequer contemplar o papel de elite que poderia desempenhar estruturalmente. Inteiramente alienado de si mesmo e de sua sociedade, tal grupo aparece ao imigrante apenas em forma de palacetes kitsch, de apartamentos opulentos e de notcias "sociais" na imprensa de segunda categoria; serve apenas para salientar, por contraste, a misria das cidades.O segundo contato do imigrante com o ambiente brasileiro ocorre muito mais tarde, e com o homem rural, que forma a base das cidades e grande maioria da populao. Ao contrrio da massa urbana, o homem rural se ope ao imigrante. Todas as suas categorias europias para captar a realidade falham perante essa gente, inclusive categorias sociais aparentemente to fundamentais como "famlia" e "aldeia", ou categorias psicolgicas como "alegria" e "raiva". Porque aqui o imigrante se d conta de ter abandonado no apenas o terreno do Ocidente, seno da histria toda. verdade que essas pessoas descendem em parte (talvez em maior parte) de europeus, a saber, portugueses mas h tempo perderam qualquer contato com o Ocidente, no apenas por causa de sua mistura com indgenas e negros (isto seria o de menos), mas principalmente por causa da sua enorme solido, do clima difcil e da natureza cruel que os cerca. Perante tais homens o imigrante se da conta da falta de fundamento da populao urbana, que repousa sobre tal infra-estrutura. A populao rural no nem "nova" nem "jovem" (embora seja constituda em grande parte por crianas), mas to antiga e imemorial quanto o o neoltico no qual vive mentalmente. A saber: joguete na mo de forcas superiores benignas ou, na maioria dos casos, malignas, a serem constantemente propiciadas. Mas no se trata de autntica magia nem de autntico neoltico, porque no se trata de indgenas, seno de europeus decadentes. A inautenticidade dos ritos exprime num sincretismo catico (ritos ndios e negros e costumes europeus, superficialmente informados pelo catolicismo e pelo protestantismo americano, com leve dose de um curiosssimo positivismo), e mais ainda ao trgico fato de que a magia no abriga essas pessoas como abriga verdadeiramente "primitivos". Pois esses homens no tomaram posse nem da sua terra nem de si mesmos, mas flutuam, tomados de um atordoamento secular chamado "saudade", nas suas imensas plancies, quais destroos nas ondas. No que sejam nmades (como o eram os ndios, seus antepassados parciais), mas no seguinte sentido: no possuem o cho que cultivam de maneira arcaica, no brotaram razes nele, e quando ocorrem catstrofes naturais ou outras (infelizmente comuns), abandonam a terra em ondas. So alheios a si mesmos e sua terra, e olham espantados o mundo, inclusive o imigrante.Pode no entanto perfeitamente ser o caso de tudo o que ficou dito no passar de engano de um ocidental que procura interpretar fenmenos incompreensveis (e "ocidental" no significa apenas imigrante, mas tambm cientista brasileiro). Os fenmenos, o ficar parado na esquina olhando o nada, o ficar acocorado nos calcanhares, as filas ndias de descalos ao longo das estradas, a mulher descala e vestida de camisa de algodo montada em mula, as crianas sujas brincando com vira-latas em cho batido das casas de lama, tudo isto engana. Porque o caboclo que sofre de todas as doenas imaginveis capaz de resistncia e esforo surpreendentes. Embora seja analfabeto e ignorante, dispe de inteligncia e ironia que formam uma fonte ainda nem sequer aproveitada para uma autntica cultura do futuro. Porque o caboclo ainda no criou cultura comparvel com verdadeiras culturas "primitivas" (aquilo que passa por "cultura primitiva" no Brasil ou feito por primitivos deliberados ou kitsch), mas dispe de uma cultura do corao que se manifesta em cortesia quase cavalheiresca. A sua proverbial pacincia igualmente enganadora, j que pode explodir repentinamente em violncia individual e coletiva, para

  • sossegar igualmente de repente. A sua aparente submisso esconde um orgulho e sentimento de dignidade inacessveis a um "civilizado". Tudo isto prova que o imigrante incapaz de compreender essa gente, e deve se fiar em literatura que consegue, raras vezes e graas empatia, captar essa mentalidade (por exemplo, Euclides da Cunha e Guimares Rosa).Esse mundo a-histrico e arcaico penetrado ultimamente pela histria de forma violenta. Principalmente em forma de alto-falantes berrantes que comunicam algo inteiramente alheio ao mundo dessa gente. Mas tambm na forma de estradas, de colnias rurais (por exemplo, japonesas), na forma da decadncia do latifndio, e na forma de um Estado que procura, um tanto tardiamente, tomar a iniciativa no seu territrio. O caos mental e espiritual que disto conseqncia no comeou sequer a ser analisado. O imigrante no sente nem motivo nem incentivo para tentar assimilar-se a essa populao, nem poderia faz-lo, dada a estrutura fechada dessa sociedade, mas ela continuar formando o horizonte de todo futuro engajamento seu, um horizonte infelizmente nem sempre consciente. Porque perante essa gente que ele ser, em ltima anlise, responsvel por seus atos.O ltimo contato do imigrante com o ambiente brasileiro (um contato que nem sempre se d) com aquele grupo de pessoas que se toma por "verdadeiramente brasileiras". Trata-se de uma pequena minoria de pseudo-aristocratas, descendentes, em teoria, dos primeiros colonizados do pas no sculo XVI, com personalidade ntida (variante da cultura portuguesa), nvel intelectual e moral alto, e que forma uma sociedade endgama e fechada. Vive na maioria dos casos nas cidades (e indiferencivel da burguesia, para um observador superficial), mas ainda se fundamenta em parte na propriedade rural (na atualidade, decadente). Ainda que se trate de grupo pequeno com influncia decrescente, importantssimo para a compreenso do pas, j que: (a) representava at h bem pouco tempo a sociedade toda, (b) criou ou possibilitou praticamente toda a cultura passada, e (c) deteve o poder poltico, do qual se separa atualmente com dificuldade. um grupo trgico, porque imigrante no prprio pas; ao contrrio do imigrante europeu, no admite a sua prpria situao para si mesmo. Toma-se, a despeito de provas bvias, pelo contrrio, como elite decisiva, e luta por um Brasil que existe apenas na sua memria e nas obras culturais por ele criadas.A tragdia do grupo reforada pelo fato de que ele tem razo em chamar-se "o verdadeiramente brasileiro". Se algo brasileiro, esse algo a mentalidade dessa gente. Uma mentalidade aberta e sedutora (embora se trate de sociedade fechada), influenciada no apenas por Portugal, mas tambm pela Frana e pela Europa toda. Por isso, existe uma ideologia oficial que tenta identificar tal mentalidade com a mentalidade da sociedade toda. Porque, se for admitido oficialmente que tal mentalidade nada representa atualmente, admite-se o fato de que no existe mentalidade brasileira admisso penosa.No h quem pudesse assumir o lugar dessa elite deposta. Disto foroso concluir que toda futura tentativa de criar uma mentalidade brasileira deve partir desse grupo enquanto modelo, embora no deva necessariamente contar com sua colaborao ativa. O engajamento do intelectual imigrante na nova ptria ser, de uma forma ou de outra, sempre tingido pela decadncia dessa elite, que lhe ser sempre desafio. Logo, a ambivalncia que o ambiente brasileiro representa para o imigrante pode assim ser resumida: um ambiente de fcil penetrao (j que a massa urbana, campo do imigrante, no oferece obstculo digno de nota). Mas um ambiente de difcil integrao (j que a massa urbana no integra, mas decompe, a massa rural impenetrvel, e a elite decadente e fechada). Em outros termos: fcil viver-se no Brasil enquanto imigrante, e

  • desesperadamente difcil integrar-se nele.No incio deste capitulo foi proposta a tese de ser a situao imigratria exemplo extremo da situao humana. Agora a tese ser submetida ao teste da situao do imigrante brasileiro.Que imigrante seja pessoa que abandonou uma situao para integrar-se em outra, portanto pessoa que se abre a uma nova situao a fim de alterar-se e a fim de alter-la. A imigrao processo dialtico, no qual o imigrante recebe o impacto do ambiente e o ambiente o impacto do imigrante. O resultado do processo, se coroado de xito, a alterao de ambos os fatores. Claro: quanto mais forte a personalidade do imigrante, tanto mais penoso e demorado o processo da sua alterao, e quanto mais bem estruturado o ambiente, tanto mais superficial a alterao efetuada nele pelo imigrante. Igualmente claro: quanto mais flexvel e aberta a personalidade do imigrante, e quanto mais malevel o ambiente, tanto maior o feedback entre ambos. Em outros termos: a complexidade do imigrante (tradio, grau de cultura, preconceitos) dificulta a integrao, e sua flexibilidade (abertura, liberdade, universalidade) a facilita. Esta a dialtica interna da integrao do ponto de vista do imigrante. Pois o ambiente brasileiro (desconsiderando a populao rural e a aristocracia decadente, pois ambos no representam campo de integrao) de tal forma malevel, que no evidencia dialtica interna, e a integrao depender muito mais da dialtica interna do imigrante que da dialtica externa entre imigrante e ambiente. Se a complexidade do imigrante for igualada com seu nvel cultural, e a sua flexibilidade com seu nvel de inteligncia, ento a dialtica entre cultura e inteligncia no imigrante ser decisiva para sua integrao no novo ambiente. Este fato no pode ser estendido em regra geral, j que especificamente brasileiro, e isto prova um rpido golpe de vista na direo dos Estados Unidos, esse pas imigratrio por excelncia, no qual a situao outra.O imigrante aos Estados Unidos no toma contato com a massa amorfa, mas com uma hierarquia, na qual os vrios nveis correspondem origem tnica do imigrante, e sua ordenao data original da entrada de cada etnia, de forma que o nvel superior formado por anglo-saxes, e o inferior por porto-riquenhos. O conjunto dos nveis perfaz a populao urbana americana, e a populao urbana perfaz a grande maioria da populao americana. Isto quer dizer que ser americano significa no fundo pertencer a um desses nveis. Pois todo nvel, aberto para o seu pas de origem, representa esse pas na Amrica e a Amrica no pas de origem. Portanto, esses nveis no se dissolvem (como o fazem as ilhas brasileiras), mas entram em toda a sua complexidade na sntese americana. Por isso os Estados Unidos no so "melting pot" como o o Brasil, e por isso exercem aquele poder assimilatrio extraordinrio que os caracteriza. Porque, quando o imigrante chega, recebido pelo nvel correspondente, imediatamente enquadrado nele, e torna-se americano automaticamente. O abandono da sua prvia identidade no exigido, mas, pelo contrrio, exigido dele que procure manter sua identidade e sintetiz-la com as outras existentes. Portanto a integrao no se d por ao do imigrante, mas pela suco enquadradora do ambiente. O nvel cultural do imigrante no se ope integrao; assiste a ela. Em outros termos: ser americano significa s-lo para o seu pas de origem (europeu), a Amrica um pas para a Europa (no sentido de modelo para sociedades europias, e no sentido de alternativa para o europeu individual), e o americano se assume desta forma. Quanto mais decididamente europeu for o imigrante, tanto mais fcil sua integrao nos Estados Unidos. preciso, no entanto, completar o que ficou dito pelo seguinte: por cima de todos os nveis mencionados que estruturam a sociedade americana existe um nvel cosmopolita, composto de cientistas, artistas e intelectuais, cuja americanidade este seu

  • cosmopolitismo. Trata-se de uma camada relativamente pequena, mas absolutamente numerosa e decidida para a humanidade toda, porque se verdade que o mundo se americaniza, esta a camada responsvel por isto. Pois se o imigrante for de nvel cultural alto, no ser enquadrado pelo seu nvel tnico, mas por este outro nvel. No apenas enquadrado, mas sugado do seu prprio pas de origem. A sua integrao no ser neste caso feita por qualquer alterao sua, seno pela simples troca de sua universidade por uma americana, sua orquestra sinfnica por uma americana, seu laboratrio e estdio por um novaiorquino. A rigor, se o cosmopolitismo americanismo, o imigrante j foi americano antes de ter emigrado a conseqncia dessa especificidade americana que l a dialtica do imigrante no se articula, e a regra l esta: quanto mais inteligente for o imigrante, tanto mais facilmente e rapidamente ser integrado.Voltando ao Brasil, deste excurso norte-americano pode-se formular assim a regra da integrao aqui vigente: imigrantes inteligentes de baixo nvel cultural se ambientam rapidamente na massa urbana, perdem sua identidade, e se diluem; imigrantes pouco inteligentes de baixo nvel cultural dificilmente se ambientam, re-emigram muitas vezes e, se no o fazem, sentem-se decepcionados pelo novo pas e derrotados pela vida; imigrantes pouco inteligentes de alto nvel cultural se fecham nas estruturas trazidas, fingem desprezo pelo novo pas (o qual no compreendem nem conhecem), e vegetam como uma espcie de funcionrios coloniais sem funo no exlio pelo qual so eles os nicos culpados; e imigrantes inteligentes de alto nvel cultural procuram, a despeito de toda dificuldade, integrar-se no ambiente e engajar-se nele.Ficou dito que viver como imigrante no Brasil fcil, mas difcil integrar-se. Isto agora deve ser melhor formulado. Para pessoas inteligentes fcil viver no Brasil, j que no encontram obstculo, desde que se decidam romper com sua origem. Mas isto no as transforma em brasileiros em no importa que sentido positivo do termo. Apenas as transforma em elementos da massa amorfa. Para dar um sentido positivo ao termo "brasileiro", o imigrante deve superar uma difcil tarefa, na qual no deve contar com a ajuda do ambiente, mas, pelo contrrio, com sua resistncia passiva. Esta a ambivalncia do ambiente brasileiro: no oferece obstculo nem incentivo, e esta ambivalncia desafio existencial incomparavelmente maior que todo desafio americano. Tal desafio ilustra a situao imigratria exemplarmente, e precisa ser elaborado.Tornar-se brasileiro significaria alterar a estrutura dos pensamentos, desejos, sentimentos e atos para dar-lhes nova dimenso, que supere e substitua uma dimenso sociocultural mais antiga. E significaria tambm vivenciar o ambiente brasileiro como mundo vital (Lebenswelt), por coincidncia da nova dimenso com a estrutura do ambiente. Pois o ambiente brasileiro se caracteriza por pobreza de estrutura, e pelo fato de serem as estruturas existentes subterrneas, soterradas por ideologias que dificultam o seu descobrimento (tais ideologias assumiram ultimamente nova virulncia, em forma de conversas fiadas sobre a "brasilidade" da burguesia, em forma de exibicionismo de bandeiras, e em forma de festas alienantes como o so acontecimentos esportivos, e envolvem tanto a burguesia dita revolucionaria quanto a genuinamente conservadora). Em outros termos: tornar-se brasileiro difcil, porque as estruturas brasileiras esto escondidas, e ningum brasileiro (exceo feita da elite decadente, que o em sentido superado). Portanto pode-se tornar brasileiro apenas quem primeiro d sentido a este termo. E, para poder dar esse sentido, precisa primeiro descobrir a realidade. E, para poder descobrir a realidade, precisa primeiro alterar o ambiente. Em outros termos: se dar sentido, descobrir realidade e modificar ambiente viver, ento tornar-se brasileiro tarefa para uma vida.

  • A pergunta "que significa ser brasileiro" poder ser formulada de duas maneiras. Uma perguntar pelo mnimo necessrio para chamar algum de brasileiro. Assim formulada passvel de fcil resposta (por exemplo, a formalmente legal), e efetivamente assim que a pergunta formulada por aqueles que aqui vivem sem engajar-se. A outra perguntar pelo melhor significado possvel do termo "brasileiro". nesta formulao que adquirir o sabor do engajamento. A primeira formulao desprezvel por razes elaboradas na introduo a este ensaio. A segunda formulao ser agora considerada.Ao longo do excurso aos Estados Unidos ficou dito que ser americano ser para a Europa, portanto no um ser para si, mas um ser para o outro (tambm no sentido que Sartre d a este termo). O americano vive no projeto existencial europeu, e deve no fundo justificar a sua existncia perante a Europa (no sentido de oferecer segurana para a Europa, coletivamente em caso de perigo, e individualmente como pas no qual possvel refugiar-se, e no sentido de oferecer modelos para a Europa, para que a Europa saiba o que europeus so capazes de fazer e como podem viver em sociedade). O americano sempre sabe que vive perante a observao crtica, admiradora e invejosa da Europa, que responsvel perante ela e por ela, e que tem na Europa a sua derradeira realidade. A Amrica o "segundo sexo" da Europa, no sentido no qual Simone de Beauvoir emprega o termo.Pois possvel afirmar que ser brasileiro de alguma maneira tambm ser americano? Jorge Lus Borges parece responder afirmativamente, em nome de todo o continente americano. Isto prova que na argentina o problema da busca de identidade mais claro que no Brasil (embora no parea que o argentino se tenha encontrado melhor que o brasileiro). Pois a maneira como o ambiente brasileiro se apresenta (e como este ensaio comeou a descrev-lo) parece exigir uma resposta negativa pergunta. Isto por uma srie de razes, algumas das quais sero consideradas. Mas primeiro preciso considerar as razes que parecem motivar Borges.O Brasil, tal qual os Estados Unidos, tem populao preponderantemente europia (embora essa populao se origine mais na rea mediterrnea, e menos no Norte e Leste europeus, e embora se assuma muito menos europia). O Brasil tal qual os Estados Unidos, tem me-ptria europia (embora Portugal no tenha desempenhado o mesmo papel que a Inglaterra desempenhou nos Estados Unidos). O Brasil determinado por pensamentos, coisas, atos e decises europias, com efeito mais determinado que nos Estados Unidos. O brasileiro culto participa quase exclusivamente da cultura europia, passivamente (e em grau pequeno, tambm ativamente) tal qual o americano culto. E outras razes para sustentar a tese de Borges poderiam ser mencionadas.E, no entanto, a tese no pode ser mantida. A primeira razo disto : a grande massa da populao brasileira no descende, como a americana, de pessoas que conquistaram um grande territrio em nome da Europa, e aniquilaram os indgenas ou empurraram seus restos insignificantes para um canto. Mas descende de pessoas que em luta centenria contra uma natureza terrvel perderam seus laos com a Europa, que se misturaram durante a luta com a populao indgena, e que decaram, durante o processo, para um estgio pouco superior situao do indgena, portanto para um secundrio primitivismo. Perderam, portanto, a sua historicidade. Uma populao assim no americana no sentido proposto, j que no vivencia na Europa a sua realidade, no se sente responsvel perante a Europa nem muito menos pela Europa, e no pretende lhe ser modelo. Toma conhecimento da Europa apenas na forma de um centro irradiador de influncias que a manipula e explora, e no consegue distinguir nisto entre a Europa e os Estados Unidos. Este ponto importante para a compreenso do brasileiro. No se sente mais sujeito da

  • histria, mas objeto sofredor da histria (inclusive da europia), um objeto que comea a no querer s-lo.A segunda razo contra a tese de Borges esta: o Brasil tem sido o pas imigratrio tanto quanto os Estados Unidos, mas em sentido diferente e com conseqncias diferentes. Quem colonizou os Estados Unidos foram dissidentes e contestadores, portanto gente que se ops com plena conscincia contra a ordem estabelecida na Europa, e procurou erigir uma nova ordem na Amrica para servir de modelo Europa. Depois, verdade, veio a torrente de imigrantes oprimidos e fracassados econmica e socialmente, e de escravos africanos que vieram forados. Mas sempre houve, nessa torrente, indivduos que migraram para os Estados Unidos por perseguio poltica, religiosa e racial, porque acreditavam poder viver livremente na Amrica, e efetivamente assim foram recebidos pelo americano. A conseqncia disto que a Amrica tem um trao original radical, e conserva, a despeito de muitas peripcias, este trao at hoje. Em outros termos: os Estados Unidos sempre tem sido americanos no sentido proposto. Mas o Brasil foi colonizado por aventureiros portugueses que visavam a enriquecer (sem consegui-lo). Depois serviu de rea de escape para a superpopulao portuguesa. Mais tarde, surgiu uma torrente de fracassados e de escravos, semelhante torrente norte-americana, mas a a estrutura do pensamento brasileiro j estava projetada. No se pode negar que existia tambm uma pequena imigrao de perseguidos e contestadores, mas vieram no porque esperassem liberdade da mentalidade brasileira, mas sim da vastido da terra. E, com efeito, esta gente nunca foi recebida de braos abertos, seno tolerada. O Brasil nunca tem sido americano no sentido proposto, e continua no sendo.A terceira razo contra a tese de Borges tem a ver com o carter problematicamente latino da sociedade brasileira. Ser americano uma espcie de ser europeu moderno. E a Europa moderna , em certo sentido, a vitria da parte germnica (e eslava) sobre a parte latina. No apenas geograficamente, transferindo o centro do Mediterrneo para o Atlntico norte, mas, mais fundamentalmente, ameaando e depois minando a posio da Igreja latina. Neste sentido mais profundo o americano protestante, no apenas porque protesta contra a latinidade e contra Roma, mas contra toda a autoridade, contra a tradio e contra a Idade Mdia em todos os seus aspectos. No se pode querer romper a ligao entre americanismo e protestantismo, e o Brasil no , nem ser protestante. No apenas por ser superficialmente catlico, latino e descendente do Mediterrneo, mas por ser alheio a todo antidogmatismo. Pelo contrrio, no h campo aqui para o desenvolvimento de um autntico empirismo. Racionalismo e dogmatismo caracterizam tudo, desde o Estado e a Igreja at o planejamento de cidades como Braslia e Belo Horizonte. H ortodoxias positivistas e marxistas, e h uma tendncia geral de crer em teorias e agarrar-se a elas. Pois racionalismo e dogmatismo so muito prximos do misticismo (embora no paream s-lo). Por isto, movimentos msticos so to profundamente enraizados na mentalidade brasileira e to alheios mentalidade americana (quanto mais gritam l, mais ridculos se tornam). Em suma: se o americanismo e o protestantismo vo juntos, porque o protestantismo permite a manipulao e a rejeio, to tipicamente americana, de modelos.Outras razes contra a tese de Borges poderiam ser oferecidas com facilidade. Por isso a pergunta o que significa "brasileiro" dever ser formulada em contexto que nada tem a ver com a Amrica, embora posteriormente pontos de confluncia possam ser constatados.Muito se tem falado, na tentativa de descobrir a essncia brasileira, nas "trs raas tristes". Obviamente trata-se de uma ideologizao romntica da realidade, e os termos "raa" e "triste" o provam. Ideologizao, porque cala o fato de que a sntese das trs raas foi

  • conseguida pela escravizao do negro e pelo abuso do ndio. E romntica, porque parece valorar a tristeza positivamente. Mas h, na famosa sentena, uma centelha de verdade que pode servir de ponto de partida. A saber: a sntese tem algo a ver com a essncia brasileira. Porque sntese mistura superada, e o Brasil obviamente um pas de misturas em todos os nveis. Na economia e na poltica, na arquitetura e na filosofia, e principalmente no nvel humano, como tipo. A palavra "raa", por exemplo, que ocorre na sentena citada, no significa no Brasil, como na Europa e Estados Unidos, critrio para distinguir entre homens, mas critrio para distinguir entre vrios traos do mesmo homem. O resultado surpreendente de misturas raciais inacreditveis (por exemplo, nrdico-negro-japons, ou rabe-indgena-eslavo) a beleza. Muito se tem falado da graa, da beleza e da elegncia da mulher brasileira, mas nunca o suficiente. Em parte alguma (isto pode ser afirmado sem exagero), a feminilidade se apresenta em formas to perfeitas e sedutoras. Parece que a mistura de raas conseguiu alcanar uma sntese graas qual o especificamente racial cede ao genericamente humano em novo nvel (no caso: ao genericamente feminino). No pode haver argumento melhor para reforar que o Brasil seja contra o racismo.Mas sntese no mistura. A diferena bvia esta: na mistura os ingredientes perdem parte de sua estrutura, para unir-se no denominador mais baixo. Na sntese, os ingredientes so elevados a novo nvel no qual desvendam aspectos antes encobertos. Mistura resultado de processo entrpico, sntese resulta de entropia negativa. Obviamente o Brasil pas de mistura. Mas potencialmente, por salto qualitativo, o pas da sntese, como sugere o exemplo da raa. O importante a ser notado nesse processo o seu carter no deliberado. No o caso, como por exemplo nos Estados Unidos, de existir programa para sntese ou mistura, programa este a ser realizado. Pelo contrrio, o processo brasileiro despreza programas. Ao longo deste ensaio aparecer o problema da mistura e da sntese em muitos nveis. Aqui basta permanecer no exemplo da raa. No o caso de no existirem preconceitos raciais em vrias teorias. Pelo contrrio, estes preconceitos aparecem, como espectros, nas nvoas das vrias ideologias importadas, e s vezes se materializam durante bate-papos de forma surpreendente. Mas existencialmente so alheios ao pas, e nunca penetram das alturas tericas na vida concreta. Para manter o paralelo com os Estados unidos: l existe a teoria oficial da igualdade das raas, e a incapacidade existencial de traduzi-la para a realidade. Aqui existem as mais fantsticas misturas de teorias e pseudoteorias, mas a realidade as despreza e visa, inconscientemente, igualdade das raas. De maneira que o pas caracterizado por mistura autntica e, potencialmente, por sntese igualmente autntica, porque no deliberada.O segundo aspecto da sentena quanto s trs raas tristes a ser considerado o da "tristeza". Trata-se de trs elementos o portugus, o negro e o ndio que foram todos desprezados pela histria, e qui por isso so "tristes". Por diferentes que sejam os elementos entre si, eis o que tm em comum: ou foram eliminados da histria, ou nunca a penetraram. Com efeito: os processos que ocorrem no Brasil se do margem da histria, e se histria significa "tornar consciente", os processos em curso no Brasil se do margem da conscincia inclusive, ainda, do prprio brasileiro. H uma sentena que afirma que o Brasil se desenvolve durante a noite, quando dormem seus administradores. Pois s a inconscincia dos processos pode explicar tal sentena.O aroma do ahistrico e do inconsciente, aroma este que envolve o imigrante desde o primeiro dia, tem algo de doce e inebriante e lembra o clima visado pelo LSD e pelos hippies. No curso da ltima gerao, verdade, parece querer evaporar-se e parece que o

  • gigante adormecido em bero esplndido est despertando. Mas na realidade o processo da evaporao um fenmeno epidrmico, que apenas consegue tornar a superfcie do pas mais feia, mas no consegue lhe modificar o mago. Porque continua vlido para o Brasil que nele se concede um terreno muito amplo ao inconsciente, ao emotivo e ao intuitivo, e que persiste uma desconfiana generalizada do "mero" intelecto. O brasileiro homem do palpite genial, e no do planejamento.Mas esta afirmativa parece contradizer em muito um fenmeno observvel. Por exemplo, a mencionada tendncia para o racionalismo e o dogmatismo, e a violenta tendncia da administrao para o planejamento. Contudo a contradio apenas aparente. O pensamento racional e dogmtico, o agarrar-se a teorias e esquemas majestosos, a maneira cartesiana e positivista de racionar, no passam de tentativas de construir contrapesos contra a tendncia mais fundamental para o misticismo. Isto faz com que, por exemplo, o pensador brasileiro pendule constantemente entre a atrao mgico-mstica e um escolstico academicismo. E quanto ao planejamento, Braslia e a Estrada Transamaznica so exemplos gigantescos de como funciona. verdade, so projetos planejados e espelham o planejamento em todos os seus aspectos, mas, no fundo so fantsticos e podem ser defendidos racionalmente com dificuldade.Pode-se objetar que o palpite genial , em ltima anlise, um elemento emprico, e que, afinal de contas, o brasileiro no se distingue tanto assim do americano. Muitos assim argumentam, mas esto errados. A atitude emprica a aplicao consciente do mtodo da tentativa e do erro, e isto o ncleo do pragmatismo americano. E o palpite genial faz o homem seguir uma voz interior, proveniente do inconsciente, e que se cala e morre quando tornada consciente. Como ficou dito: racionalismo e dogmatismo so prximos da magia e do misticismo, e opostos ao empirismo e ao pragmatismo. Uma conseqncia disto que no raro aparece aqui um tipo humano que rene em si nacionalismo tecnolgico e abertura para o inconsciente, numa sntese que pode ser indicadora de futuro.A meta destas consideraes aproximar-se da essncia brasileira. Em outros termos, a tarefa revela-se contraditria: trazer essa essncia tona, tirando-a do inconsciente no qual se abriga espontaneamente. Pois essa tarefa contraditria a tarefa da filosofia. O passo filosfico para trs nada seno a tentativa do conscientizar o inconsciente. E tal tarefa filosfica pode ser cumprida com maior facilidade pelo pensador imigrado do que pelo nato. Porque o imigrante se encontra em transcendncia do problema pela sua prpria situao, desde j e automaticamente. Este um dos aspectos do extraordinrio desafio brasileiro, para o imigrante, de que se tem falado. Pois o que pode significar ser brasileiro no melhor dos casos? Pode significar um homem que consegue (inconscientemente, e mais tarde conscientemente) sintetizar dentro de si e no seu mundo vital tendncias histricas e no histricas aparentemente contraditrias, para alcanar uma sntese criativa, que por sua vez no vira tese de um processo histrico seguinte. Portanto pode significar uma maneira concreta e viva de ser homem e dar sentido sua vida, fora do contexto histrico, mas nutrido por este. Neste melhor dos casos, pode significar o "novo homem" do Marx, sem no entanto continuar a ser determinado dialeticamente. Pode significar viver no "terceiro imprio do Esprito Santo" de Schelling, sem que tal imprio signifique a plenitude dos tempos. Pode, em outros termos, significar que aqui est surgindo um homem que supera a histria e se transforma em lugar no qual a histria criativamente absorvida. isto que pode significar ser brasileiro no melhor dos casos. No necessrio dizer que isto no o que ser brasileiro significa na realidade, mas no necessrio faz-lo. Porque

  • faz parte da essncia do brasileiro no ser real (estado), mas virtual (processo). A essncia brasileira no uma maneira de ser, mas uma maneira de buscar. O Brasil no perfeito (no sentido de "realizado" e, portanto, "passado"), mas assumido (no sentido de, olhando para a frente, arriscado e apenas esboado). No tem sentido portanto perguntar o que significa ser brasileiro na realidade, por que este ser em vias de, projetvel no futuro e no totalmente resultante de passado. Apenas tem sentido perguntar o que pode significar ser brasileiro no melhor dos casos. assim que sua essncia se revela. A situao na qual o Brasil se encontra pode deste ponto de vista ser assim formulada: a virtualidade de ser brasileiro, que a burguesia procura abafar, se articula na populao rural desenraizada e no proletariado alienado. Esta burguesia o grupo decisivo para o futuro previsvel. E isto significa, para o imigrante que procura engajar-se, que a situao isola o seu ponto de vista e o afasta sempre mais dos pontos de vista dos seus prximos, que so os burgueses brasileiros, que se tornam coletivamente vtimas da iluso de dever abandonar a sua essncia para penetrar, como no Japo, o palco da histria e nele desafiar para com eles competir os poderes estabelecidos. Isto, a despeito das vozes alarmadas dos anos 50, as quais, como Guimares Rosa e Vicente Ferreira da Silva, apontavam a essncia brasileira no sentido exposto. E a despeito das tendncias que ocorrem no prprio palco histrico e que procuram sair de l a todo custo. Dividida em dois campos que se digladiam sangrentamente, a burguesia se precipita cegamente rumo ao progresso, como para provar a famosa sentena que afirma serem os progressistas atualmente possveis apenas no subdesenvolvimento. O campo revolucionrio, representado por parte da juventude acadmica, dir que o ponto de vista aqui defendido reacionrio e desprezvel. E o campo conservador, que detm o poder, dir que se trata de ponto de vista estrangeiro e, tomado de recm-adquirido chauvinismo, recusar o ponto de vista rejeitando-o como um imiscuir-se indevido.A corrida em direo ao progresso facilmente explicvel. Em primeiro lugar, pelo fato concreto da intolervel misria na qual vive grande parte da populao e que efetivamente pode ser sanada apenas pelo progresso da tecnologia (este argumento justo e ser considerado no devido contraste). Em segundo lugar, por ideologias europias do sculo XIX, ideologias estas em parte compreendidas, mas no vivenciadas, e que fazem crer aos burgueses que a nica sada para o pas so as sociedades neocapitalistas (que no seriam socialistas?). Em terceiro lugar, enganados pelo tamanho geogrfico do pas e o elevado nmero da populao, crem os burgueses que, alcanada a histria, o Brasil poder dela participar decisivamente. Mas a defasagem da burguesia em relao histria torna para os burgueses difcil a leitura e a compreenso correta da atualidade.O resultado de tudo isto : por parte da burguesia conservadora no poder, esforos enormes so feitos para o desenvolvimento econmico, esforo coroado parcialmente de xito, mas inteiramente desvinculado de meta de tornar o Brasil potncia decisiva. Simultaneamente, procura essa parte da burguesia congelar a situao social e cultural do pas, e suprimir o campo revolucionrio com mtodos h muito provados pela histria como sendo ineficientes. A parte revolucionria da burguesia busca, sob a forma de levantes romanticamente incompetentes e atos de violncia isolados, assumir o poder tarefa impossvel, mas que, se fosse conseguida, resultaria praticamente no mesmo mtodo seguido atualmente. Acrescente-se a isto que ambos os campos no sabem, ou no querem saber, que no passam de joguetes de foras histricas externas, e que o nico resultado palpvel da luta intestina seria a transferncia do campo da batalha, entre o neocapitalismo e o socialismo, dos pases histricos para a periferia brasileira.Isto situao trgica e ameaa o engajamento do imigrante por desespero. Tal desespero

  • e tal desorientao so, conforme ficou dito na introduo, os motivos deste ensaio. E iluminam a tarefa do imigrante dramaticamente. Pois o imigrante no pode contar com seu ambiente na tentativa de encontrar-se e encontrar caminho. Deve abrir a sua prpria picada, dentro do seu novo mundo vital, para permitir a sada aos seus prximos e a si mesmo. Mas, ao dizer isto, j foi dado o primeiro passo em direo a um encontro consigo mesmo.Se a essncia do brasileiro for vista mais ou menos corretamente, ento dever vir o momento da dissipao das ideologias tanto da direita quanto da esquerda, e o aparecimento da verdadeira maneira de ser brasileiro. A saber: da sua capacidade mpar de sintetizar opostos por mtodos espontneos, que se chamam "amor" em outros contextos. At l tarefa do imigrante manter essas tendncias vivas na sua prpria mente.Pois assim que o Brasil se apresenta ao imigrante intelectual no ltimo tero do sculo XX: um ambiente que no lhe ope obstculo digno de nota, nem incentivo para engajar-se nele. Se quiser viver neste ambiente como homem livre, deve abrir sua prpria picada. "homem livre" significa homem que v sua prpria situao de fora, projeta um mapa sobre ela e age de acordo, que d sentido ao seu ambiente, vive de acordo com este sentido, e assim o transforma num mundo da sua vida. E, para que este sentido dado no seja mera fantasia, procura desvendar a realidade da situao em que vive. Portanto: pronto a altera-se, a fim de alterar o mundo. Assim se apresenta a situao do imigrante no Brasil, como exemplo extremo da situao humana. E assim tem ela significado para todos.Em largos traos o esboo do pas foi desenhado. Agora sero tomados setores especficos, a fim de aprofundar o desenho e dar-lhe plasticidade. Assim surgir uma viso possivelmente aplicvel a outras situaes do homem desorientado neste final de sculo XX.

    3. NaturezaParece que se sabe o que se pretende quando se recorre a este termo, mas, diante do desafio de defini-lo, surgem dificuldades. A causa disto no apenas o fato de o termo "natureza" ter vrios significados que se cruzam, mas principalmente o fato de esses significados esconderem um dos problemas da atualidade.Se, por exemplo, definirmos "natureza" como conjunto de coisas que no evidenciam projeto humano (em oposio "cultura" como conjunto de coisas que o evidenciam), ento teremos dificuldade em apontar "coisas naturais" no ambiente que nos cerca. Se definirmos "natureza" como aquela parte do ambiente que nos determina (em oposio "cultura", que seria a parte do ambiente que nos atesta), descobriremos que a distino (que base de todo engajamento em cultura) inteiramente inoperante, j que tudo pode passar a nos determinar. Se definirmos "natureza" como o conjunto dos dados (em oposio "cultura", que seria o conjunto dos feitos), teremos que definir "histria" como processo que transforma dado em feito, e a descobriremos que a "cultura" de uma gerao (e de um indivduo) "natureza" para a seguinte (e para o outro), j que o feito por um dado para o outro. As tentativas de definir provam que "natureza" atualmente problema num sentido revolucionrio, que pode ser assim formulado: se engajamento em histria engajamento em liberdade (porque, ao transformar dado em feito, transforma condio em utilidade), e se utilidade de um passa a ser condio para outro, ento o engajamento na histria absurdo. Este problema esconde uma das razes da crise da histria e do historicismo.

  • Uma ilustrao dessa dificuldade terica (e no apenas terica), de distinguir entre natureza e cultura, fornecida pela paisagem brasileira. Em parte, ela coberta de montes feitos por trmitas, parcialmente habitados (os avermelhados), parcialmente abandonados (os cinzentos). Alm disso, coberta de casas de barro habitadas por caboclos. Os homens procuram destruir os montes, e os trmitas procuram destruir as casas (h um dito que reza, aproximadamente, que ou os trmitas acabam com o Brasil ou o Brasil acaba com os trmitas). O problema terico este: o que justifica chamar os montes "natureza" e as casas "cultura"? Obviamente o fato de as casas, e no os montes terem sido projetadas por homens. Mas tal justificativa bvia traz complicaes inesperadas. Por exemplo esta: os montes tm estrutura mais complexa que as casas, de forma que neste caso, excepcionalmente, a natureza mais negentrpica (= feita) que a cultura assim, tenderemos a dizer que a "cultura habitacional" dos trmitas superior humana. Podemos passar pela dificuldade dizendo que preciso ver as casas dinamicamente, que elas representam um estgio decadente de um processo trpico histrico, e ainda permitem descobrir elementos ndios e portugueses, enquanto a estrutura dos montes rgida e inaltervel. Mas poderemos responder que seria lcito falar em "natureza de segundo grau" no caso das casas. E seria lcito considerar a luta entre homem e trmita no como luta entre homem e natureza, mas como processo natural determinado ecologicamente. Como podemos falar neste caso em "cultura", j que os homens no "trabalham", mas "laboram" (no sentido de Hannah Arendt)? Isto : j que no produzem bens durveis de "cultura", mas apenas alteram a natureza para formar bens rapidamente decompostos em natureza, sejam ou no consumidos (por exemplo: alimentos) e, ao fazer isto, no fazem nada mais do que os animais e as plantas? E, afinal, no esta a razo por que estes homens aparecem nas estatsticas populacionais, mas no nas estatsticas econmicas e, assim, reprimem a renda per capita artificialmente? A pergunta mais que terica, e aponta para uma essncia da no-historicidade: no nvel no-histrico faz pouco sentido distinguir-se entre natureza e cultura, a no ser que se queira chamar a cultura primitiva de natural, e a histrica de "artificial" o que seria absurdo.Estas consideraes, que pretendem abrir caminho rumo ao problema da natureza no Brasil, visam a apontar desde j um fato importante. O brasileiro no est ligado natureza. Ou vive nela e difcil distingui-lo dela (como no exemplo dado), ou avana contra ela a ferro e fogo. Em ambos os casos no se pode falar em "ligao", que supe afastamento e retorno posterior. A ligao na natureza, to importante nos pases histricos (na forma, por exemplo, do amor gleba) e to em crise hoje (pode o turismo substituir o amor gleba?), no Brasil ela ausente. E isto caracterstico da essncia brasileira. O Brasil mostra, como ser demonstrado, que a ligao histrica natureza no passa de traio sorrateira do esprito humano.O acima afirmado provocar contestao indignada. O burgus brasileiro no afirma, acaso, que ama a sua paisagem? No considera, acaso, o Brasil um pas abenoado pelas belezas naturais, onde canta o sabi e onde os prados tm mais flores? No entanto, a anlise provar que tal amor pretenso, que se trata, nesse caso, de ideologia romntica importada defasadamente, e que o contrrio a verdade. A primeira parte deste captulo ser dedicada tentativa de remover tal ideologia, para desimpedir o campo.Que pretendemos ao falar em beleza da natureza? Qual a justificativa de aplicar medidas estticas natureza, como se fosse obra humana? E, se h justificativa, quais as medidas estticas "objetivas" (em no importa que sentido do termo)? Este no o lugar para aprofundar-se em tal problema, mas apenas constatar, primeiro, que quem v a natureza esteticamente j no pode v-la ontologicamente. Quem acha a natureza bela (ou feia) j

  • no acha natureza (no sentido de dado), mas acha obra. Possivelmente obra de algum inteiramente diferente, mas obra. A atitude esttica pressupe um outro por detrs da natureza; a ligao esttica com a natureza de segunda ordem. A segunda constatao : as medidas estticas so determinadas pela cultura, isto , historicamente, j que se transforma natureza em obra de arte, e apenas culturas histricas produzem obras de arte no sentido rigoroso do termo. A prova disto que, para o Iluminismo, os vales eram belos e os picos alpinos feios, sendo para o romantismo, todo o contrrio.Esta problemtica no se articula na Europa, por que l toda natureza impregnada de cultura (at os picos montanhosos e os mares, no por manipulao, mas por associao histrica), de modo que l a beleza da natureza no passa de beleza da cultura (e do mesmo modo a feira, que indicia dissonncia entre natureza e cultura). Mas em paisagens no-histricas o problema se articula nitidamente. No Brasil, por exemplo, a atitude esttica perante a natureza deve realmente procurar transformar a natureza em obra de arte. Qual o resultado de tal atitude?Ao transformarmos natureza em obra, devemos distinguir entre dois fatores. O primeiro afirma que uma obra tida por "bela" se contiver alto grau de informao (articulao, variedade); do contrrio, avaliada como "feia". O segundo afirma que o hbito encobre os fenmenos, deixando perceber apenas, e at de maneira ntida, as modificaes no fenmeno habitual, sem permitir enxergar-se o que no seja modificao de superfcie. De maneira que, combinando os dois fatores, deve ser dito que uma obra habitual tida por "bela" ou "feia" no pela informao contida na sua estrutura, mas pelos fenmenos acidentais que nela por ventura ocorrem. Isto explica porque uma determinada paisagem vivenciada esteticamente de uma maneira pelos que a habitam e a ela se habituaram, e de outra pelo turista. O turista v a estrutura da paisagem e a julga "bela" ou "feia" de acordo. O habitante v apenas os acidentes (que so sempre informativos), e acha a sua paisagem portanto invariavelmente bela.O turista, no Brasil, v a estrutura da paisagem e a acha, em sua monotonia, mais ou menos "feia". O habitante no v a estrutura, mas apenas acidentes; s que, a estes, ele v com nitidez inalcanvel alhures, e portanto acha a sua paisagem extremamente bela. Prova disto o trecho mencionado dos prados com suas flores. O imigrante toma tal trecho por pose, enganadamente. Porque de fato h muito poucos prados no Brasil, e estes tm poucas flores. Mas esta raridade justamente a razo por que o habitante neles repara.Primeiro, descrevo a impresso esttica causada pelo Brasil no imigrante (inautenticamente transformado em turista): o pas promete muito, sem quase nada cumprir do prometido. A maior culpa disto est nos preconceitos tursticos que podem ser resumidos sob o ttulo "tropicalidade". Pois as praias brasileiras parecem querer confirmar tal preconceito, que tem a ver com paraso no sentido de inocncia, de ausncia daquele suor do rosto causado pelo trabalho, e no sentido de pecado original gostoso, isto , sexualidade. As praias brasileiras parecem confirmar tudo isso, tanto as nordestinas beiradas de palmeiras, quanto as sulinas beiradas de serras. Com sua areia mole e morna, com o sussurrar das suas ondas, e com os seus pescadores aparentemente ingnuos e a-histricos, formam efetivamente parasos. Mas cedo vem a decepo do turista, alis bem merecida. Vem na forma da inacreditvel monotonia da natureza brasileira. A presso atmosfrica uniformemente alta e amortece os movimentos; o contedo da gua no ar, constantemente alto, provoca suor; no Nordeste s h vero e dias e noites so de durao constante; no Sul problemtica a distino entre vero e primavera (mas primavera que no representa um despertar do inverno); as praias se estendem em linhas retas por

  • quilmetros, e a costa brasileira prima por falta de articulao (se comparada, obviamente, com a europia). O alheamento brasileiro da natureza favorece a que, nas praias, em determinados lugares, surjam amontoados de prdios altos (espcies de favelas da pequena burguesia), e so estes lugares horrveis os nicos realmente acessveis ao turista. Outra conseqncia de tal alheamento o fato de o turista poder degustar nos restaurantes das praias cerejas argentinas, uvas californianas e bacalhau portugus, mas ter dificuldade em obter os peixes da prpria praia. O fundamental alheamento que o brasileiro sente pela natureza faz com que a procure derrubar (em vez de salient-la artificialmente, como promove o europeu para o deleite de turista), e prova disto so por exemplo o Cristo do Corcovado ou o Elevador da Bahia (dois dos poucos lugares nos quais a natureza bela, isto , bem articulada). E isto sem falar em coisas como a torre de televiso no Po de Acar.Mas quando o turista abandona as praias para penetrar o interior (a contragosto, como o prova a transferncia compulsria dos diplomatas do Rio para Braslia), a coisa se torna muito mais terrvel. Paisagem inarticulada, com no mximo cinco tipos de vegetao para um pas do tamanho de continente, e a maioria de vegetao rasteira, abre-se perante o turista que percorre a pista a cem quilmetros por hora (no apenas para escapar ao tdio insuportvel das plancies montonas, mas tambm para vencer distncias desumanamente extensas. No h lagos, nem riachos, nem vales escondidos, nem picos majestosos, nem geleiras, nem vulces, apenas acidentes gigantescos isolados (como a Cachoeira das Sete Quedas), que continuam tediosos devido ao gigantismo e isolamento. No h mamferos visveis (exceo feita de lugares nos quais no so contemplados, mas caados), poucos pssaros alm de urubus, e a fauna representada principalmente por formigas, trmitas, moscas e mosquitos. Desolao completa. H obviamente, em terreno to amplo, ilhas que contradizem o exposto, por exemplo as serras prximas ao Rio, So Paulo e Porto Alegre, e l que se refugia o imigrante sedento de "natureza", se no consegue viajar para a Europa. Mas tais ilhas podem ser desprezadas, j que so o que h de menos brasileiro na paisagem brasileira.Quem quiser, a estas alturas, defender a "beleza" da paisagem brasileira, poder faz-lo apontando o fato de que grande redundncia pode resultar em informao da segunda ordem. Este salto dialtico transforma a monotonia do mar e do cu em "beleza", e o mesmo pode se dar com o planalto brasileiro, j que as suas dimenses so ocenicas, e igualmente o a sua monotonia. Mas tal defesa da beleza seria inteiramente inapropriada, porque a tese aqui defendida que o brasileiro no se importa com tal aspecto da natureza e que, pelo contrrio, o despreza.O brasileiro nato no v nada naquilo que ficou descrito, porque a monotonia acrescentada de hbito faz desaparecer a paisagem por inteiro. difcil para um europeu capt-lo, mas o brasileiro no vivencia, literalmente, a sua natureza enquanto paisagem. Ignora, mesmo culto, os nomes das plantas e dos animais, no se interessa pelo seu ritmo biolgico (a no ser que seja bilogo ou fazendeiro), no coleciona flores, nem borboletas, nem cogumelos, no faz excurses escolares na "natureza", no passeia. Pelo contrrio, andar a p quando se tem automvel lhe parece ridculo, como lhe parecem ridculas todas essas atividades mencionadas. Com toda razo, alias, porque quem se dedica a elas degrada a dignidade ontolgica da natureza, e com isto do esprito humano.Se o brasileiro se digna dirigir seu olhar para a paisagem, v apenas os acidentes. As arvores periodicamente em flor, as borboletas gigantescas, as lagartixas, as tempestades majestosas, a cachoeira mencionada. E, quando se digna a olhar, acha o que v extremamente belo, e no v o resto. Portanto nem sequer acredita que a descrio fiel, j

  • que no se pode crer no invisvel, a no ser que se mobilize para tanto foras internas inteiramente desproporcionais ao caso. Uma conseqncia curiosa disto que o brasileiro, transformado em turista na Europa, fica confuso. L ele v a estrutura da paisagem, mas no a compara com a estrutura, seno com os acidentes brasileiros. No compara abelha com trmita, mas com borboleta, lago alpino no com represa mas com cachoeira, e afirma ser a paisagem brasileira mais bela. Mas no fundo ele sabe que algo est errado, a saber: o seu pretenso amor pela paisagem brasileira.Porque o amor pelas palmeiras e pelos sabis, pelos prados e pelas flores, e em geral pelo bero esplndido, no passa de subliteratura (descendente tardio e defasado de um romantismo francs que, ele prprio, j pose), de uma subliteratura que faz parte da ideologia burguesa e ameaa transformar-se em chauvinismo (a parte paisagstica do chauvinismo se chama, ultimamente, "tropicalismo"). Que se trata de subliteratura, prova-o a verdadeira literatura: na maioria das vezes nem sequer contempla a natureza enquanto paisagem (Machado de Assis, por exemplo, cujos romances se passam no Rio, nem sequer contempla o mar, a no ser para transform-lo em palco de uma morte). A aparente grande exceo, Guimares Rosa, prova a tese aqui defendida. No canta ele a natureza enquanto paisagem, mas descreve pelo contrrio como homem e natureza se fundem em todo mstico, de maneira que plantas e animais passam a ser antropomorfos, e homens passam a ser animais e plantas.No fundo, o brasileiro no pode assumir atitude esttica perante a natureza, porque se trata de atitude decadente, quase final da histria, atitude que pronuncia o fim de um ciclo. Dada a defasagem do burgus brasileiro, ele brinca de turismo, j que semelhante comportamento corresponde ao esprito do nosso tempo, mas no fundo despreza tudo isto. Porque para o brasileiro natureza obstculo, futuro, aventura, perigo, tarefa, sacralidade, mistrio tremendo, e pode ser captada apenas com categorias ticas, epistemolgicas e religiosas, nunca com categorias estticas minimizantes. preciso lutar contra a natureza com armas fsicas e com as armas do esprito, e quem se alia natureza trai a dignidade humana. O colecionador de cogumelos europeu, que coleciona no para comer, mas por amor arte, boa demonstrao do ridculo que tal traio representa. E quando se d plenamente conta de tudo isto (raras vezes, dada a sua tendncia para perder-se na inconscincia), ento despreza a sua prpria pretensa admirao da paisagem.O presente ensaio considera a atitude esttica perante a natureza como sendo inteiramente inapropriada para a situao brasileira. Com efeito, em lugar nenhum o turista to inapropriado como nesta terra. Se for estrangeiro, o turista desprezvel no Brasil, porque acompanhado de clima paternalstico que completa a atitude imperialista (imperialistas so sempre uma espcie de turistas, e turistas uma espcie de imperialistas). E mais desprezvel ainda, se for brasileiro, porque articula um sentimentalismo falsamente romntico, copia ideologias externas, e torna-se porta-voz de um patriotismo inautntico e perigoso.O brasileiro vive com sua natureza de duas formas: dentro dela e sem distncia, ou contra ela, enquanto lutador pela dignidade humana. Obviamente, o exemplo do caboclo exagerado (o leitor ficou advertido que o exagero um mtodo deste ensaio). Todo homem essencialmente antinatural, no pode haver homem natural, e menos o caboclo, esse decadente. De maneira que a sua unio mstica com a natureza no pode ser to perfeita quanto o exemplo sugere. J foi mencionada a dificuldade de captar a mentalidade do caboclo com categorias ocidentais, e no presente contexto se desistir da tentativa. Apenas preciso dizer que no caboclo vem projetada uma vivncia da natureza

  • que espera ser revelada e cultivada pelo brasileiro no melhor dos casos uma entre as muitas tarefas de uma futura cultura verdadeiramente brasileira. O que nos leva segunda maneira brasileira de vivenciar a natureza, isto : enquanto lutador pelo esprito humano.Ao esprito humano lutador, e aos seus tentculos materializados, os instrumentos, a natureza brasileira oferece um inimigo terrvel. Quando Marx falava em perfdia da matria, no imaginava a perfdia sorrateira da natureza brasileira. Uma perfdia que se apresenta como aparente submisso e plasticidade, e como real subterfgio, na forma de uma massa que sempre escapa. No se ope ao homem como bloco de granito que faz recuar o esprito e rompe os instrumentos, mas como parede de algodo, na qual o esprito se perde sem eco e os instrumentos se perdem sem nada terem agarrado. Este carter prfido pode ser demonstrado no caso mais bvio, na agricultura.A sentena famosa "plantando d" pode ser tomada literalmente. Basta abrir campo, trabalh-lo superficialmente e esperar por duas colheitas por ano. Pois a perfdia da natureza faz com que essas duas colheitas sejam as ltimas a serem esperadas. Esta afirmativa horrvel (o quo horrvel ela pode ser captado se consideramos que se trata de terra que se recusa a alimentar o homem), se estende sem grande exagero maior parte da superfcie brasileira. Se tomarmos a bacia amaznica (a parte mais horrvel, mas muito caracterstica) por modelo, dar no seguinte: l a terra no colo das plantas (e portanto da vida), um colo no qual se abrigam e que as alimenta, mas no passa de base mecnica na qual se apiam. O ciclo vital despreza a terra e circula entre planta e cu. A atmosfera de estufa e a quantidade disponvel de gua possibilitam o crescimento e o desenvolvimento de rvores gigantescas das madeiras mais nobres que formam a Floresta Amaznica, mas no possibilitam praticamente outra flora, e a capa formada pelas copas dos gigantes esconde o roteiro da sombra da morte.Quem quiser abrir esse reino vida (por estrada, ou lago) ter a seguinte alternativa: conservar a floresta e procurar aproveit-la, ou derrub-la e procurar fazer agricultura. No primeiro caso constatar que, a despeito das madeiras, a floresta inaproveitvel, dada a mistura catica das espcies botnicas, impossibilitando o aproveitamento econmico, de forma que mais racional, em caso de construo, importar madeira da Finlndia que tir-la da floresta na proximidade imediata. No segundo caso constatar que este aparente ltimo paraso da flora na terra, uma vez despido de sua cobertura vegetal, se transformar rapidamente em deserto de pedra. Quem lhe tirar a mscara vegetal descobre a realidade: pedra morta. Eis um exemplo impressionante da perfdia da natureza.Obviamente, a Amaznia exemplo extremo, mas no o nico disponvel. Outro seriam vastas regies do Nordeste que sustentam, em anos de chuva, dezenas de milhes de pessoas (embora precariamente), mas que esto sujeitas a secas peridicas que as transformam em desertos, seus grandes rios e vales, e sua populao em mendigos sedentos e desesperados. Ou as estepes do Planalto que florescem paradisiacamente durante poucas semanas para depois se transformarem em arbustos mortos a sustentar penosamente muitos milhes de vacas magras e vaqueiros igualmente magros. Ou os rios gigantescos, os quais, como o So Francisco, transportam massas inacreditavelmente grandes por regies sedentas, ou os rios sulinos que tm a falta de vergonha de correrem todos na direo contrria (do oceano para o continente), e no formam portanto artrias de transportes (como no resto do mundo), mas obstculos ao transporte. Os exemplos da perfdia da natureza brasileira poderiam ser multiplicados facilmente.H vastas regies nas quais a natureza se comporta um pouco menos malignamente, mas

  • em geral, para trabalhar a terra, preciso trabalh-la com a mobilizao de todos os esforos e utilizando todos os truques de uma tcnica avanada. E isto tambm malcia: um territrio extenso que s permite agricultura intensiva no como as pradarias americanas, mas como os vales de um Japo superpovoado. De maneira que no o trator americano que caracteriza a agricultura brasileira, mas a enxada japonesa, e possvel afirmar-se deste pas vazio que est superpovoado.O que falta aqui o aspecto materno e maternal da terra que projeta as suas ddivas exuberantes sobre uma humanidade grande, o aspecto etnico, Gaia, Magna Mater, e este o aspecto que une profundamente gente to diferente quanto o o campons provenal, o felakha niltico, o kolkhosnik sovitico, o coletivo chins e o hindu de casta baixa. O que falta aqui a possibilidade de mergulhar a mo na terra viva, fazer com que se derrame entre os dedos, e sentir o parentesco ntimo entre homem e terra. O imigrante sente sempre essa saudade neoltica da terra, este sentimento s terra e voltars a ser terra que se articula desde a Gnesis at Rilke, e que aqui falta. Qui a saudade brasileira no no fundo seno de no mais ser terra e de no poder voltar a ser terra.Pois a perfdia fundamentalmente o fato de a natureza se comportar aparentemente como me (em todos os aspectos, no apenas no da agricultura), e ser realmente inimiga. A natureza aqui madrasta (para continuar com a terminologia arquetpica), e o brasileiro o enteado par excllence da natureza. A essncia brasileira incompreensvel sem este aspecto. Para salientar o carter "madrasta" da natureza, que sejam dados mais alguns exemplos.O Brasil terra quente e no exige proteo do frio, e por isso tanta criana morre de frio em noites que nunca caem debaixo do ponto frio. No Brasil h montanhas inteiras compostas de minrio de ferro que basta arranhar superficialmente, mas no h carvo mineral, e o carvo pobre que existe acha-se distncia de milhares de quilmetros do ferro. O Brasil possui trs dos maiores sistemas fluviais do mundo e portanto um sistema ideal de canais naturais, mas um dos sistemas, o amaznico, cobre o inferno mencionado, e os outros dois (o do So Francisco e o do Paran) so interrompidos por cachoeiras gigantescas (Paulo Afonso e Iguau), tornando o pas uma das poucas regies sem navegao fluvial digna de nota. As oscilaes anuais de temperatura so nfimas, de forma que parece existir condio para construes grandes (estradas, aquedutos, estradas de ferro), que desprezam a temperatura, mas as oscilaes dirias so to acentuadas (s vezes na ordem de 20 graus) que, pelo contrrio, dificultam enormemente este tipo de obras.Exemplos mais brutais do carter madrasta da natureza poderiam ser fornecidos com facilidade. Este carter "madrasta", combinando bondade e riqueza aparente com maldade e pobreza real, tem conseqncias profundas na mentalidade brasileira. A maioria dos brasileiros tem dificuldade em reconhecer o verdadeiro carter da natureza, e dificuldade ainda maior em vivenci-la. E, mesmo se no curso de sua luta antinatural, o brasileiro descobrir a situao real, ter dificuldade de admiti-la. A natureza assim mascarada convida a ideologias que a encobrem. Aqui no o caso (como na Europa, em que a prxis rompe automaticamente ideologias, e em que o trabalho automaticamente se aliena, porque a alienao estaria na prpria atitude da natureza ( se for permitido antropomorfiz-la um pouco), e para romp-la preciso que a prxis seja completada com esforo adicional do intelecto, um esforo que torne consciente o trabalho realizado. Logo, o marxismo no pode ser transferido para c, nem sequer no caso do trabalho, sem adaptao prvia.Mas se a ruptura da alienao for conseguida, isto : se e quando o brasileiro se der conta

  • do carter real da natureza e de sua posio real perante ela, surge uma personalidade provavelmente sem igual no resto do mundo, a saber, uma personalidade que se empenha conscientemente no esprito enquanto dignidade sobrenatural (por antinatural), dignidade esta que se manifesta em opor ao mero ser-assim da natureza o seu dever-ser de maneira imperiosa, corajosa e aventurosa. Isto no nem realismo nem idealismo, mas superao espontnea (por concreta e existencial) dessa antinomia nefasta que aflige a humanidade e a histria h centenas de anos. No Brasil pode surgir um tipo humano que cria uma sntese viva entre idealismo e realismo, a qual, por se configurar maneira concreta de viver, no passa a constituir nova tese a ser contradita. Um novo homem est surgindo; em sua virtualidade ele pode representar, se alcanado, um modelo para uma humanidade em crise.Pois at agora no se falou no aspecto mais importante do problema da natureza brasileira. J que a natureza inimigo maligno que exige mobilizao de todas as foras (tanto das foras intelectuais, quanto das do sentimento e da intuio), para se viver aqui digna e significativamente, no restam foras para serem mobilizadas contra o outro homem. O que acaba de ser dito, de maneira seca e como formulao de um fato concreto, pode ser formulado de maneira um pouco mais lrica dizendo que o brasileiro verdadeiro um homem incapaz de odiar e invejar o outro, porque toda a sua capacidade para o dio, toda a sua energia para a vitria, e toda direo da sua ao mobilizada contra a natureza. E este trao fundamental da essncia brasileira merece ser melhor iluminado.O europeu (e outros "desenvolvidos") vive em sociedade que domina definitivamente a natureza (pelo menos a natureza que cerca a sociedade). Por isso pode assumir perante ela a atitude esttica do turista. Por isso, dispe ele tambm de enorme quantidade de energia no gasta, de dio no consumido, de impulso no realizado para a luta e para a vitria, de vontade de agir insatisfeita, e dirige tudo isso contra o outro homem. Isto significa, ontologicamente, que o outro homem passa a ser objeto, resistncia, problema, e substitui ontologicamente uma natureza vencida e transformada esteticamente em obra. Deste caldo surgem as cincias humanas, que se tornam sempre mais exatas e rivalizam com as cincias da natureza. Por isso cresce a dificuldade de o homem reconhecer-se no outro transformado em objeto conhecido e manipulvel, j que reconhecimento exige descoberta do sujeito ativo, e sofredor, no outro. Conseqncia disto a crescente solido humana (porque a verdadeira comunicao o dilogo do reconhecimento, e no o discurso cientfico e antropolgico sobre o "homem"). Outra conseqncia a tendncia do homem de tornar-se a si mesmo como objeto e destarte autocoisificar-se. Este fato terrvel no pode s