Hagiografias - Flora Süssekind

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     Flora Süssekind   | BRASIL

    HAGIOGRAFIAS

    “Existe uma caprichosa correlação entre

    as biografas das geraçõese a marcha da história”.[Roman Jakobson]

     Tale! caiba uma obseração sobre o t"tulo desteensaio. #ois se o ob$eto %undamental de re&exão a'ui (

    a obra de #aulo )emins*i+ em particular as diersas%ormas hagiogr,fcas 'ue %oram trabalhadas por ele+tantos santos e re%er-ncias sacras podem condu!ir aomesmo tempo a uma indagação sobre o exerc"ciocontemporneo da cr"tica de cultura no /rasil. 0ão setrata+ por(m+ de obseração 'ue diga respeitoexclusiamente 1 cultura liter,ria. 2o contr,rio+

    procurando detectar essas hagiografas num campomais asto+ não ( di%"cil+ pensando+ sobretudo+ nopanorama cultural recente+ encontr,3las em diersasoutras ,reas.0a cr"tica contempornea de m4sica popular+ porexemplo. 0o modo como tem tratado+ em especial+5hico 6cience+ 5a!u!a+ 5,ssia Eller+ 7enato 7usso+conertidos+ em geral+ em 'uase m,rtires. 8maconersão 'ue pode chegar por e!es a resultados

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    recon%ortantes como a ressurreição+ 'uase trinta anosdepois+ de um grupo musical com %ormação 'uase id-n3tica 1 original. 9oi o 'ue aconteceu com :s ;utantes em

    + 'ue+ ressurectos+ apareceram+ como numaesp(cie de %antasmagoria sonora+ tocando o repertóriodos seus discos do tempo da Tropic,lia. #assando aoterreno das artes isuais+ alguns de seus ob$etos desantifcação são tamb(m de %,cil detecção. 5omo ?orge@uinle 9ilho+ ;,rcia A e )eonilson+ na geração deartistas 'ue se afrmou nos anos BCD=. 0a ida teatral

    brasileira+ h,+ igualmente+ um lamento persistente pelaatri! sabel 7ibeiro+ pelos atores 5hi'uinho /randão e9elipe #inheiro+ pelo ator+ per%ormer e pro%essor )ui!7oberto @ali!ia e pelos encenadores ;,rcio Fianna e )ui!2ntGnio ;artine! 5orr-a+ para fcar em alguns exemplosapenas. 0ada+ por(m+ 'ue alcance o grau de mitifcação'ue enole os mortos da ,rea de m4sica popular. Tamb(m no campo cinematogr,fco+ h, algo

    semelhante 'uando o luto pela morte prematura de@lauber 7ocha+ )eon Hirs!man ou ?oa'uim #edro de2ndrade+ lembrando tr-s nomes de importnciaincontest,el+ se trans%orma em barreira anal"tica. :mesmo acontecendo+ no dom"nio das artes pl,sticas+com muito do 'ue se tem escrito sobre H(lio :iticica ou)Igia 5lar*. :u em tentatias anacroni!antes de

    recriação tal 'ual+ %ora de contexto+ de obras+proposições ou %ormas de interação sugeridas pelotrabalho dos dois.#riilegiei de propósito exemplos de ida bree+ mortesprematuras+ por e!es tr,gicas+ pois este costuma ser%ator preponderante nesses processos de canoni!ação.: 'ue se torna particularmente eidente 'uando seobsera a %ortuna cr"tica de escritores como ;,rio9austino+ Tor'uato 0eto+ 2na 5ristina 5esar+ 2ntGnio

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    5arlos de /rito J5acasoK+ #aulo )emins*i ou 5aio9ernando 2breu. 0ão ( percept"el somente umadominncia biogr,fca na bibliografa re%erente a esses

    autores. H, a construção %re'Lente Jmesmo 'uando seprodu!em hagiografas malditasK de algo próximo 1shistórias de santos 'uando se toma 'ual'uer um delescomo ob$eto de estudo. 6ão idas impregnadas+ aposteriori+ de intencionalidade+ são destinos nos 'uaisse enxerga+ nos m" nimos detalhes+ a marca daexcepcionalidade Jlembre3se a ligação tele%Gnica

    errada+ sempre citada+ na 'ual uma idente teriapreisto a morte de 9austinoK. Eleitos cu$as obras sãoistas como de eleitos tamb(m. 0esse sentido aperspectia cr"tica parece se deixar contaminar 'uasesempre por esse dado hagiol,trico inicial. : 'ue ( nom"nimo descon%ort,el. E pode por e!es sugerir areação inersa M a desconfança de 'ue só pode haeralgo errado a". : 'ue ( 'ue permite a eles serem istos

    como tão exemplaresN 2inda mais 'uando se percebe'ue $, h, mais de uma geração de cr"ticos ocupados naconstrução dessas hagiografas Jprecocementenost,lgicasK do tempo presente ou do passado recente.#ois se o processo de canoni!ação %oi iniciado peloscontemporneos imediatos desses autores+ ele seriare%orçado signifcatiamente por uma parcela dos 'ue

    ieram depois. : altar parecendo tomar+ para os maisnoos+ o lugar de pro$etos próprios+ de “motios para'u-” mais defnidos. )emins*i tinha o seu “an$o daanguarda”+ 5acaso retrabalhaa+ com a atençãooltada para o cotidiano em tempos de ditadura+ olirismo de /andeira e o humor do poema3minutomodernista+ 2na 5ristina en%ormou essas tensões entreexpressiidade e rigor em micro3enredos+ fcçõesbiogr,fcas e numa poesia3em3o!es+ de ritmo e %oco

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    intencionalmente deambulatórios. Oiante da situaçãohodierna de retorno est(tico ao poema3bem3%eito+ a umuso acr"tico da m(trica Jlembre3se o dito oposto de

    )emins*iP “: ritmo+ não o metro”K+ a uma compreensãoda poesia como demonstração de habilidade artesanal+não ( de estranhar o recurso a esses mitos recentescomo %orma de resist-ncia a uma atrofa deperspectias. 8ma resist-ncia 'ue+ no entanto+ nãopode deixar de perder poder de %ogo ao assumir aspectoestritamente hagiol,trico.

    Q santifcação ou execração da geração de BCR= sesucederiam outras. E mesmo o presente mais imediatopassou a ter hagiógra%os 1 disposição. 0ão h, pr(3re'uisitos unnimes agora+ por(m. #odem serpriilegiados traços estil"sticos+ comportamentais+regionais+ pol"ticos. 9ormas diersas de itimi!açãocostumam interessar. Sual'uer 'ue se$a ela+ ali,s+ oimportante ( 'ue o cr"tico se torne o garçon d’honneur 

    de certo autor ou do grupo a 'ue este se achainculado. Oesde 'ue caiba a este cr"tico a %unção desumo sacerdote desse culto. Oe guardião de obras $,reconhecidas a descobridor de talentos+ de editor todo3poderoso a deci%rador conclusio das re%er-ncias e dossignifcados mais secretos do texto 'ue estier empauta. ;esmo 'ue para isso dea abandonar de e! a

    cr"tica+ tornando3se o diulgador de um autor indiidualJio ou mortoK+ de uma inteira região+ uma tend-ncia+um lugar social+ um grupo editorial ou uma %aixageracional ou migratória espec"fca.

    S8E6T: OE H:72 E )8@27

    2na 5ristina 5esar+ #aulo )emins*i e 5acaso+ com todasas suas di%erenças+ se tornariam exemplares em meio 1s

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    legendas ,ureas dos anos BCR=. 8ma erdadeira6ant"ssima Trindade. nternamente con&itante+ por(m./asta lembrar do lamento de )emins*i+ depois de

    abandonar+ de repente+ um debate sobre poesiapromoido pela reista Isto é+ no 'ual+ dentre outrosescritores+ estaa presente 5acaso. 2l(m de reclamar do“baixo n"el da discussão” e bater em retirada+ aindaacrescentaria depois+ com endereço certoP “0enhumlance de dados abolir, o 5acaso”B. 2 morte+ no entanto+parece t-3los aurati!ado e trans%ormado Jcom di%erentes

    graus de adoração+ por(mK em ob$eto de culto. Oessemodo+ tale! se pudesse trans%erir para o trio d"spar aindagação de 7oman ?a*obson+ depois do suic"dio dopoeta+ sobre ;aia*ós*iP “5omo escreer sobre suapoesia agora+ 'uando a tGnica $, não ( mais o ritmo+ masa morte do poeta+ 'uando J...K a “triste!a aguda” não'uer mais se trans%ormar em “dor clara e consciente”N<

    Qs e!es+ contudo+ nem se precisa de um

    desaparecimento tr,gico para chegar 1 canoni!ação. 2sexig-ncias para uma r,pida santifcação liter,ria t-mdeixado de lado+ nas 4ltimas d(cadas+ a experi-ncia doluto e a lista de autores de classe m(dia mortos antesdo tempo. 2 aur(ola em passando para autores cu$apobre!a+ exclusão social ou inculação a espaçoperi%(rico $ustif'ue a priori tal operação. E produ!a+ no

    mesmo processo+ uma certidão p4blica dereconhecimento do agente intelectual de suacanoni!ação. ;udam os santos+ mant(m3se+ por(m+lógica hagiogr,fca semelhante. E de e%eito duploP asantifcação e a “triste!a aguda” de um são garantia dealcance para a o! do outro+ do hagiólogo.

    Suanto a 2ntGnio 5arlos de /rito+ sua morte precoce+em BCDR+ %oi de causa natural+ um in%arto do mioc,rdio.

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    : 'ue não barrou a nota 'uase hagiogr,fca nos textosde balanço de sua atuação. “Sue an$os e pedrariasUpara erguer um altarN”V+ se poderia perguntar ecoando

    o poeta no seu “;adrigal para 5ec"lia ;eireles”.)embre3se+ nessa linha+ no  Jornal do Brasil+ para fcarem coment,rios muito citados+ o obitu,rio assinado porWilson 5outinho+ texto signifcatiamente intitulado “:som de um an$o”P “2os XV anos+ 5acaso conseraa orosto $uenil+ redondo+ mantendo ainda os cabeloslongos+ a barba por %a!er e as sand,lias de couro” X.

    Oescrição cu$a -n%ase no despo$amento de cunhoangelical+ na fgura meio %ranciscana e num aspecto $uenil+ atemporal+ encontraria correspond-ncia cr"ticaem “#ensando em 5acaso”Y+ nota de 7oberto 6chZar!publicada na reista Noos !studos "ebra#  n.

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    no tempo”. Em “#oemas brancos”+ da mesma (poca+ oan$o+ dotado de poderes erdadeiramente demon"acos+se mostraria capa! de transportar+ de %ato+ o su$eito de

    olta ao passadoP “[ an$o anunciador+ leai3me aopassado U onde desmancharei a ida %utura+ onde sereisinistro como U o coito U dos girassóis”.Em “5inema mudo”+ do liro &ru#o es$olar + $, docomeço da d(cada de BCR=+ h,+ dentro do poema+ umpe'uen"ssimo auto3retrato do poeta como 'uerubimP“)ire na sua memória escolho a %orma U 'ue mais me

    con(mP 'uerubim U gaiotas blindadas U suae otempo suspende a engrenagem”. 2ngeli!açãorecorrente 'ue seria conertida+ numa de suas letrasmais conhecidas+ em eixo exemplar para a exposiçãoda lógica dual+ da oposição entre dentro e %ora+passado e presente+ 'ue parecem acompanhar essasautofgurações e a constituição da perspectia l"rica emseus poemas. 5ito+ então+ apenas para rememoração+

    um trecho da canção “Oentro de mim mora um an$o”+parceria de 5acaso com 6uelI 5ostaP “J...K Oentro demim mora um an$o U montado sobre um caalo U 'ueele sangra de espora U ele ( meu lado de dentro U eusou seu lado de %ora U Suem me - assim cantando Unão sabe nada de mim J...K”.2s aparições de an$os podem por e!es ganhar+ em

    sua obra+ aspecto %rancamente brincalhão. 5omomuitas das re%er-ncias prosai!adoras do poeta aaspectos da cultura religiosa. #ara mencionar apenasalgumas delas+ dentre as 'ue $, se encontramexpressas em t"tulos de poemas+ lembre3se de “6anta5eia”+ “?u"!o 9inal”+ “2 palara do 6enhor”+ “Oente pordente”+ “2rca de 0o(”+ “Facas magras”. ;as h, outrasmanipulações+ mais alegori!antes+ dessareligiosidade. \ o 'ue acontece em “?ogos &orais ”+

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    onde um milagre de 5risto ( acoplado aodesenolimentismo e ao “milagre econGmico” doper"odo militar. 2" a ,gua nem chega a irar inho+ $,

    passando direto ao inagre. : noo milagre+'ueimando etapas+ ainda mostra podertrans%ormador. 0ele+ por(m+ a mudança ( para piorP“9icou moderno o /rasil U fcou moderno o milagreP U a,gua $, não ira inho+ U ira direto inagre”. >

    #or e!es a politi!ação ( praticamente instantnea.Fide “:bra aberta”P “Suando eu era criancinha U : an$o

    bom me protegia U 5ontra os golpes de ar. U5omoconier agora com U :s golpesN ;ilitarN”. 0este caso+a re%er-ncia ao an$o se %a! presente apenas para 'uese restrin$a de imediato a sua capacidade de proteção.#ois+ se efca!es contra os golpes de ar+ agora 'ue setrata de outro tipo de golpe+ de um golpe militar+parecem fcar sem %unção. E+ em e! de escudos deproteção+ sugere3se+ ia homo%onia+ a hipótese de um

    con%ronto diretoP de alguma %orma de militncia.7esposta diersa+ intencionalmente nada heróica+daria #aulo )emins*i numa de suas “ideol,grimas”P“casa com cachorro brabo U meu an$o da guarda Uabana o rabo”. \ interessante registrar+ por(m+ 'ue+com maior ou menor auto3ironia+ ia cooptaçãoJ“abana o rabo”K ou potencial resist-ncia J“;ilitarN”K+

    essa angeli!ação aponta nos dois casos+ sem maioresdis%arces+ para os impasses da ida cultural nocontexto brasileiro do per"odo dos goernos militares.Suase como se não %osse mesmo poss"el existirintelectualmente na'uele momento sem+ de algummodo+ incorporar modelos hagiogr,fcos+ sem umasimpatia expl"cita pelos m,rtires e santos+ pelasexperi-ncias corporais dolorosas+ a ponto de semostrarem por e!es imperiosas as inasões de

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    monstros e an$os nas obras+ al(m de recorrentes asfgurações sacras ou martirológios do artista.0ão ( 1 toa+ então+ diante dessa situação de impot-ncia

    Jgolpes+ cachorros brabosK+ 'ue se passe de um an$obom+ agora in4til+ a um outro+ maligno+ ameaçador. “8mdiabo habita o branco do olho da p,gina”+ aisa3se em“6ortes e cortes”+ de #aulo )emins*i. “2inda ho$e confona chegada do capeta”+ anuncia3se no 4ltimo erso de“Oesencontro marcado”+ de 5acaso+ texto $, dos anosBCD=+ sobre uma isita satnica aguardada e temida por

    uma “consci-ncia in%antil” tão cheia de culpas 'ueparecia “tocar trombeta” na escuridão. ?, numa cançãocomo “6e por(m %osse portanto”+ parceria de 5acaso com9rancis Hime+ o tom sacro se ameni!a e um santo aipuxando outro+ numa cadeia de imposs"eis “se”P “sepudim %osse polenta U se 6ão /ento %osse santo U dona/enta %osse benta U e o capeta sacrossanto U se a de!ena%osse um cento U se cutia %osse anta U se 6ão /ento %osse

    bento U e dona /enta %osse santa”. E h,+ ainda+ o “6ão Tancredo” do lamento em homenagem a Tancredo 0ees+cu$a morte+ sem chegar a ser empossado o primeiropresidente ciil do pa"s desde o @olpe de BC>X+proocaria imensa comoção+ e uma sucessão de elegias%4nebres de todo tipo.“8m #residente Ooutor U 0osso Ooutor #residente U 6eu

    dia consagrador U \ dia de grande ausente”+ conta opoema “#residente” de 5acaso. 0ele o poeta se exercitacomo hagiógra%o e trans%orma o “Tancredo Tancredinho Tancredão”+ do começo do lamento %4nebre+ no “6ão TancredoU Oe 6ão ?oão”. Exerc"cio 'ue+ com contornosmenos grandiosos+ estaria presente no poema sobre amorte de 7enato )andim J“8ma desgraça peladaU umto'ue de serafmN”K+ inclu"do em 'ar de 'ineiro+ deBCD

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    ;aur"cio Tapa$ós.   0ela h, um canto %un(reo+ em %ormade lista+ 'ue ai do pianista 9rancisco Tenório ?r.+desaparecido na 2rgentina em BCR>+ a Elis 7egina+

    morta em BCD

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    antecipada desse tipo de hagiografa por parte de 2na5ristina 5esar+ sua morte olunt,ria seria inocada+ demodo recorrente+ como chae oposta e pre%erencial de

    leitura. “2s d,dias dos an$os são inaproeit,eisP U :san$os não compreendem os homens”+ l-3se na ersão daLira dos "in(üent’anos de “/elo /elo”+ de /andeira+poema particularmente caro 1 poeta Jide “

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    5ristina+ tamb(m não se mani%estam exclusiamentecomo ecos remotos de %antasias in%antis ou de um pa"sde %ormação predominantemente cristã. 0o seu caso+ (

    importante lembrar a inculação estreita de sua%am"lia+ em especial do seu pai+ 1 gre$a #resbiteriana eao ;oimento Ecum-nico+ e da própria poeta+ 'uandomenina+ a atiidades ligadas ao nstituto ;etodista/ennett e 1 5omunidade 5ristã de panema+ assimcomo a iagem de estudos+ reali!ada por ela+ emprograma da $uentude cristã+ para a 7ichmond 6chool

    %or @irls+ em )ondres+ em BC>C. 0ão %altam+ então+olta e meia+ nos seus escritos+ estocadas diretasdirecionadas a essa presença religiosa tão %orte em sua%ormação. \ exemplar+ nesse sentido+ o “pres(pioan%"bio na priada”+ do seu “5onto de 0atal”. 2ssimcomo o poema “B> de $unho”R+ no 'ual gestos esensações banais+ olhos pintados de lil,s+ peitosempedrados+ %rio nos p(s+ se imbricam a expressões

    ligadas ao culto cristão+ como “2m(m+ mamãe”+ “Finde+meninos+ inde a ?esus”+ “Eu sou o caminho+ a erdade+a ida”+ “2 /"blia e o Hin,rio no colinho”+ “2 bençãofnal am(m”. 0ão %altam+ igualmente+ ao longo de suaobra bree+ algumas fguras de an$os e santos e-n%ases+ a'ui e ali+ na dor %"sica+ na mortifcação. #ore!es se diisa at( mesmo um “Oeus na 2ntecmara”+

    como no poema com este t"tulo+ de BC>C.:s an$os 'ue irrompem nos seus poemas+ no entanto+só muito raramente estão l, apenas como aparições ou"cones sacros. “0o &anco do motor inha um an$oencouraçado”+ l-3se em “2tr,s dos :lhos das ;eninas6(rias”. 0ão ( 1 toa 'ue os nomeia+ em geral+ deacordo com alguma %unção determinadaP “an$o 'ueregistra”+ “an$o U 'ue extermina U a dor”+ “an$o damorte”. 9a!endo 'uestão de reelar+ ainda+ 'uando as

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    %ontes angelogr,fcas não são propriamente sagradas+como na re%er-ncia Jem poema de A teus #ésK ao “2n$oExterminador”+ de /u^uel+ ou Jainda em “2tr,s dos

    :lhos das ;eninas 6(rias”K 1s “5harlie_s 2ngels” doseriado de teleisão “2s #anteras”.#or e!es+ contudo+ an$os e santos se encontramexatamente onde seria de se esperarP em templos+catedrais. 5omo em “#rotuberncia”P “J...K 8ma lmpada'ueimada me contempla UEu dentro do templo chuto o tempo U 8ma palara me

    delineia U F:72` U E em bree a sombra se dilui+ U 6eperde o an$o”. :u em “Encontro de 2ssombrar na5atedral”P “9rente a %rente+ derramando enfm todas as Upalaras+ di!emos+ com os olhos+ do sil-ncio 'ue U não (mude!. U E não toma medo desta alta compadecida Upassional+ desta crueldade intensa de santa 'ue te Utoma as duas mãos”. 0o primeiro poema+ mais do 'ueno templo+ ( na indefnição 'ue parecem habitar os

    an$os. 5abendo 1 palara M ora! M a trans%ormação deuma !ona de sombra em su$eito. 0o segundo poema+ aocontr,rio+ ( de um sil-ncio intenso+ mas derramado+repleto de palaras+ 'ue surge a imagem da santa+ e'ue se reali!a a aproximação passional na catedral. :lugar e as fguras sacras parecendo+ paradoxalmente+ressaltar o car,ter %"sico desse encontro+ e de um su$eito

    cu$a presença J,ida+ cruelK se defne exatamente por%ormas diersas de intensidade.E não ( de estranhar 'ue o traço caracter"stico dessasanta dentro da catedral se$a especifcamente acrueldade. “:s santos+ claro+ são cru(is”D+ afrma)emins*i+ %alando de Trots*i. #ela “integridade do seusacri%"cio”C+ pela auto3entrega “para lirar outros da

    dor”

    B=

    + pelo “resgate da dor”+ como di! na biografa deB

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    /ashG. 0a poesia de 2na 5ristina se não h, tantasfgurações do su$eito como an$o ou santo 'uanto em5acaso ou )emins*i+ não %altam+ por(m+ as

    sobreposições entre dor e criação+ as imagensiolentas+ dolorosas 'ue+ em meio a ninharias+ relatospela metade+ em meio a notações lacunares+ brees+soltas+ irrompem+ 1s e!es de modo 'uaseimpercept"el+ nos poemas.

    “Eu penso U a dor is"el do poema”+ l-3se num texto dos

    anos BCR=+ inclu"do em Inéditos e *is#ersos. : “corpodói”+ “dói a culpa intrusa”+ “ai 'ue outra dor s4bita”+pois+ por e!es+ “( outra U outra a dor 'ue dói”+ e ( comas “tetas da dor” 'ue se amamenta nossa %ome+ ( o“pulso 'ue melhor souber sangrar” 'ue se impõe em“9lores do ;ais”. /o%etada de estalo+ ba'ue de %u!il+estilete pontiagudo+ punhal+ som de serras de afar%acas+ %4ria+ %arpas+ garras afadas+ lmina cortante+ a

    %aca nas costelas da aeromoça+ degolar+ atemori!ar+ambulncias+ sirenes+ p,ssaros 'ue gemem+ barril depólora plantado sobre a torre de marfm+ asas batendo%reneticamente+ caça+ caçaP h, 'uase sempre algumaiol-ncia potencial plantada ali+ tensionando de dentroos textos. 5omo “indicação seca do presente”+ ( claro.;as tamb(m como meio de a palara irar carne+

    mat(ria. 0em 'ue para isso se tiesse 'ue &ertarabertamente com o agGnico+ e %a!er de alguma %ormade dor uma contraparte irGnica da escrita. Oe uma“po(tica 'uebrada pelo meio”. #rocesso sinteti!adobelamente por 2na 5ristina 5esar em texto bastanteconhecido de "enas de abril JBCRCKP “olho muito tempoo corpo de um poema U at( perder de ista o 'ue nãose$a corpo U e sentir separado dentre os dentes U umflete de sangue U nas gengias”.

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    “2 crueldade ( seu diadema”+ di! uma das o!es em“6exta3%eira da #aixão”. \+ sobretudo+ no corpo do

    poema+ por(m+ 'ue essa crueldade+ mais uma e! santa+deixaria sua marca. 0o es%acelamento M em %alas+re%er-ncias+ inconclusões M do texto e de seu su$eitoP“cacos sem peso”+ “idros soltos”+ “diidir o corpo emheterGnimos”. 0a tensão entre+ de um lado+ registros dobanal+ di,rios+ conersas+ ch,s+ postais+ e+ de outro+sugestões 'uase sempre meio impercept"eis de imagens

    dolorosas e instrumentos ou ecos brutais. 2pesar dasaltas compadecidas passionais 'ue percorrem algunstextos+ a imolação se opera na escrita+ no l"ricoconertido em lição de anatomia+ na auto3exposiçãoes%acelada Jaspas+ 'uebras+ traessõesK da própriamat(ria+ de suas o!es e deambulações.

     ?, os an$os+ santos e demGnios de 5acaso não atuam

    sobre a estrutura do poema. ;ant-m3se coesos em suaconcisão humor"stica+ pol"tica ou nost,lgica+%uncionando as aparições como registro prosaico de umimagin,rio religioso popular+ e poss"el ind"cio de umainersão+ de uma resist-ncia fgural 1 demoni!ação+pelos goernos militares+ de todo e 'ual'uer es%orço deresist-ncia 1 (poca. 0a obra de )emins*i+ essas trilhas

    hagiogr,fcas exerceriam %unção mais abrangente+ eatuariam como princ"pio atio+ todo3poderoso+ no seuprocesso de composição e na constituição de suaidentidade intelectual. 5omo em 2na 5ristina 5esar e5acaso+ no entanto+ h, tamb(m+ eidentemente+ umareapropriação interessada+ pol"tica+ de um imagin,riodeoto inocado 1 saciedade pelo empresariado+ pelaala conseradora da gre$a católica e pela classe m(dia'ue seriram de base de apoio e ratifcação ao golpe

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    militar de BC>X. 8ma reapropriação 'ue encontrariarespaldo não só nas %acções mais libert,rias dopensamento religioso+ mas+ igualmente+ nos relatos

    sobre a pr,tica da tortura e os assassinatos enolendodesaparecidos e presos pol"ticos no pa"s. Históriascu$os detalhes cruentos as aproximamindis%arçaelmente das lições contidas nas coletneashagiogr,fcas+ colocando mart"rios e santifcações naordem do dia.: modo de a escrita liter,ria+ a produção art"stica e a

    hagiografas se associarem+ nesse momento+ não %oi+por(m+ como $, se obserou a'ui+ sempre id-ntico.Houe as compilações de testemunhos diretos detortura+ e os relatos de ações de resist-ncia+ houe asrecriações fccionais mais ou menos realistas deepisódios similares+ e os elogios gen(ricos 1marginalidade Jhagiografas her(ticasK+ houe desarmesirGnicos+ iconoclastas+ desse imagin,rio deoto+ e houe

    en%rentamentos de outra ordem+ nos 'uais o dadohagiológico conerteu3se+ por e!es+ para al(m decondutas exemplares e mart"rios de dom"nio p4blico+ emparte capital da experi-ncia art"stica. )embrem3se+nessa linha+ obras como o flme “:s nconfdentes”JBCR

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    pois+ em di,logo constante com hagiografas diersas'ue tale! se possa compreender não só o processo decomposição do seu traelling  monológico+ do romance3

    id(ia Jcomo ele mesmo o defniuK no 'ual trabalhoudurante 'uase noe anos+ mas tamb(m das biografas'ue escreeu+ durante os anos BCD=+ para a Editora/rasiliense+ assim como a %orma 'uase oracular dealguns de seu textos+ sua autofguração mon,stica%re'Lente+ ou mesmo seu gosto pelo apostolado+ poruma intensa exposição p4blica+ mesmo 'uando a

    cirrose $, se encontraa em est,gio aançado.

    “2+ 2+ 2+ 5:;: E8 E72 576T:”

    : primeiro esboço de liro escrito por #aulo )emins*i%oi+ segundo conta Toninho Fa! na sua biografa doescritor+ uma s(rie de idas de santos ligados 1 :rdemdos /eneditinos. 8m exerc"cio biogr,fco 'ue+ muitos

    anos mais tarde+ seria retomado nos olumes escritospor ele para a coleção “Encanto 7adical”+ sobre /ashG+ ?esus 5risto+ Trots*i e 5ru! e 6ousa. E 'ue parece teremprestado+ igualmente+ alguns modelos mon,sticos+no "atatau+ para o isolamento de 5art(sio no!oológico de 0assau e para sua luta+ ao longo danarratia+ contra as isões hiperbólicas da nature!a

    local e contra o monstro textual+ o g-nio maligno:ccam+ 'ue inade e estala sua l"ngua+ desdobra edramati!a internamente o seu monólogo.

    7ascunhado num caderno escolar+ 'uando cursaa aterceira s(rie ginasial no ;osteiro de 6ão /ento+ em6ão #aulo+ o primeiro exerc"cio hagiogr,fcolemins*iano começou com a ida de 6ão /ento de04rsia e %oi+ aos poucos+ segundo Toninho Fa!+

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    abrangendo toda a “tradição secular dos beneditinos+sua história e seus personagens”. ;esmo depois dedeixar o curso dos oblatos+ onde fcou por pouco mais

    de um ano+ $, de olta a 5uritiba+ e matriculado numcol(gio dirigido por %rades %ranciscanos+ eleprosseguiria com o interesse pelas biografas deotas.\ o 'ue afrma em carta+ de BCYC+ dirigida a Oom5lemente+ o diretor do 5ol(gio 6ão /entoP “#rocureimais santos e ultos beneditinos para minha lista numaenciclop(dia católica italiana”B=+ 1 leitura das cartas de 6ão ?erGnimo+ aoestudo da 6agrada Escritura e do )iro dos 6almos+ do'ual+ desde o per"odo 'ue passara como interno em6ão #aulo+ $, tinha o h,bito de saber trechos de cor.“Oemonstraa pre%er-ncia pelo de n4mero B=Y+ cu$oers"culo VX %a! um resumo do xodo+ re%erindo3se

    especialmente 1s nuens de mos'uitos ega%anhotos_”BV+ in%orma a biografa ) bandido (ue sabialatim.

    2li,s+ antes at( de se candidatar ao noiciado entre osbeneditinos Jpara o 'ual logo perceberia não estartalhadoK+ 'uando aluno semi3interno no 5ol(gio dos

    rmãos ;aristas no #aran,+ $, demonstrara umcomprometimento particular com os assuntos ligados 1cultura religiosa. 9oi l, 'ue conheceu a obra de #adre2ntGnio Fieira+ por exemplo. E 'ue eidenciou tamanhoempenho na leitura de escritos exemplares da tradiçãocatólica 'ue logo sugeriram a ele 'ue seguisse umaposs"el ocação eclesi,stica. 6e não chega a seadaptar+ por(m+ ao cotidiano restritio da ordem de 6ão/ento+ o 'ue o leara at( l, M o interesse pela ida

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    mon,stica M se manteria presente+ de certo modo+ aolongo de toda a sua ida. 5omo ele mesmo repetiria emdiersas ocasiõesP “2inda me sinto um beneditino M e

    ai ser assim para sempre”BX.

    Houe %orte in&u-ncia de ,rios monges em sua ida+como assinalam seus escritos e testemunhos decontemporneos. 2inda no 6ão /ento+ Oom ?oão;ehlmann o auxiliaria no aprendi!ado do grego e dolatim+ nas leituras de autores cl,ssicos+ nos estudos de

    mitologia e do canto gregoriano. Era com o beneditino+tamb(m+ segundo o ex3colega 6inal )eão+ 'ue )emins*i“discutia os primeiros s,bios da gre$a”BY+ conersas eleituras 'ue ecoam a'ui e ali em alguns textos e nasescolhas %ormais e imag(ticas do escritor. 0o correr dosanos+ elegeria+ agora 1 distncia+ outros monges eteólogos como interlocutores. Tee interesse+ por exemplo+ na ida e nos escritos de

     Thomas ;erton+ monge trapista e autor de liros degrande repercussão nos anos BCY= e BC>=+ pautadospor uma isão ecum-nica+ pela preocupação emcolocar o catolicismo em di,logo com as tradiçõeshass"dica+ budista+ hindu"sta e islmica+ e cu$a estreitaligação entre ida contemplatia e consci-ncia dopresente+ cu$a pregação contra o racismo+ a opressão

    pol"tica+ a guerra do Fietnã+ contra o uso de armasatGmicas e o militarismo de modo geral+ leariamcristãos conseradores e ultranacionalistas norte3americanos a condenarem suas obras e o seriço deintelig-ncia do seu pa"s a t-3lo sob constanteobseração. : priil(gio por ;erton do iido+ das%ormas autobiogr,fcas de escrita não poderia+ ali,s+deixar de interessar a um escritor como )emins*i+ 'uechegou a declarar certa e!+ numa entreista a 5esar

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    /ondP “0ão existe nenhuma experi-ncia M das mais"ntimas+ eróticas+ emocionais M 'ue eu não tenhatrans%ormado em poemas e tornado p4blica atra(s da

    literatura”B>.

    0o /rasil+ muitas das obras de ;erton se achamtradu!idas+ boa parte delas pela rmã ;aria Emmanuelde 6ou!a e 6ila+ e+ graças 1 in&u-ncia de pensadorescatólicos como 2lceu 2moroso )ima e Oom /as"lio#enido J'ue %oi abade do ;osteiro de :lindaK+ dentre

    outros+ tieram+ al(m de %orte repercussão laica+ amplotrnsito no interior da gre$a 5atólica mais liberal ecomprometida com mudanças sociais. #ara )emins*i+al(m das re&exões sobre a experi-ncia da idacontemplatia+ a solidão e o sil-ncio+ parecem ter sidode particular relencia os escritos de ;erton sobre osmestres !en e os m"sticos em geral+ desde osprimórdios do mona'uismo cristão+ passando pelos

    m"sticos ingleses+ pelos ortodoxos russos+ pelascomunidades sha*ers americanas. 5ertamentecontribuindo tamb(m para esse interesse alguns dadosconhecidos da tra$etória pessoal mertoniana+ seudescon%orto com as hierar'uias eclesi,sticas+ sua lutapelos direitos ciis+ a exposição p4blica constante deseus pontos de ista na grande imprensa+ al(m do seu

    con%esso enolimento amoroso com uma en%ermeira eda depend-ncia alcoólica durante certo per"odo de suaida.

    6e a aproximação da obra de ;erton correspondeu+principalmente+ ao interesse pelas flosofas e tradiçõesm"sticas orientais+ intensifcado durante o per"odo em'ue )emins*i começa a praticar o $udG+ ( curiosoassinalar 'ue os estudiosos 'ue seriram de ponto de

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    partida nessas leituras sobre o !en3budismo tenhamsido $ustamente dois religiosos de comportamento erepercussão bastante inulgares. #ois+ al(m de ;erton+

    o outro estudioso a cu$os liros )emins*i recorreu+ emfns dos anos BC>=+ %oi 2lan WattsBR+ ex3cl(rigo da gre$aEpiscopal+ teólogo especiali!ado em estudoscomparatios entre !en3budismo+ tao"smo+ cristianismoe hindu"smo+ al(m de conhecido por sua -n%ase narebelião da consci-ncia+ em ações contra3culturais+ narelação entre sessões psicod(licas e experi-ncia

    religiosa+ por seus experimentos com drogasalucinógenas como o )6O+ a mescalina+ o O;T+ e porsua aproximação com ?ohn 5age+ TimothI )earI+ e comos poetas @arI 6nIder e 2llen @insberg.

    5omo Thomas ;erton+ 'ue+ desde A 'ontanha dos Sete+atamares+ de BCXD+ se tornaria um best,seller instantneo+ os liros+ as palestras radio%Gnicas e a fgura

    p4blica de Watts tamb(m teriam repercussão de massa.E ele se tornaria+ de %ato+ um dos diulgadores maisconhecidos internacionalmente do !en3budismo e dotao"smo+ num momento em 'ue+ como obseraria)emins*i em “: sonho acabou”+ as “religiosidadesorientais” eram “digeridas 1s pressas”BD. 0ão poderia+ noentanto+ deixar de despertar interesse a leitura de

    algu(m como Watts+ misto de teólogo e guru+ admiradordo s,bio tao"sta 5huang T!u Jcomo eleK+ alcoólatra+aprendi! de artes marciais chinesas+ iendo ora numbarco+ ora numa cabana no alto da montanha.: entusiasmo de )emins*i por experi-ncias mon,sticasnão se limitaria+ por(m+ a monges reais. E at( mesmo oseriado de teleisão dos anos BCR=+ “ung 9u”+ criadopor Ed 6pielman+ com Oaid 5arradine e #hilip 2hn+sobre um monge meio chin-s+ meio americano+ Zai

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    5hang 5aine+ “misto de nin$a com iluminado”BC+ comorelataria em carta ao irmão+ comentada na biografa de Toninho Fa!. ;estre em artes marciais chinesas+

    adestrado para “dominar o medo+ a dor e a d4ida”

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    dois anos antes. 0ele não ( o suic"dio+ mas o própriosamurai 'ue se - como “obra de arte”. “Em /ashG+não se pode es'uecer a origem”+ di! )emins*i+ “8m

    samurai. 8ma obra de arte”. E estenderia a descriçãoP“ao mesmo tempo+ um guerreiro e um idealista”+ “umatleta+ um m"stico+ um artista”+ treinado+ na “seeradisciplina de corpo e alma”+ para o deer+ para osacri%"cio+ para dar a ida “por um código de honra declasse”

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    “\ 'ue h, santos. E sempre haer,. 6antos artistas+santos poetas+ santos atletas+ santos marxistas+inclusie”

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    deotamento e iluminação. 2o %alar de 5ru! e 6ou!a+por exemplo+ )emins*i Jele mesmo descendente denegros e polacosK sublinharia o dilaceramento entre o

    %ato de ser negro+ “oriundo da raça3mão3de3obra” e dedispor do repertório branco “mais sofsticado da(poca”+ entre um “destino de so%rimento e car-ncia” VV

    J'ue - inscrito no nome do poeta simbolista e no desua cidade de origemP “5ru!+ Oesterro”VXK e a produção+ia poesia+ ia pensamento por imagens+ de bele!a esentido. 2o fnal do liro+ por(m+ o biógra%o não

    es'ueceria de tirar a m,scara Ja dele e a do leitorK+ e+num ep"logo m"nimo+ no 'ual a prosa beira a poesia+aisariaP “#er%eição só existe na integração U dissoluçãodo su$eito no ob$eto. 0a tradução do eu no outro. \ porisso 'ue oc- gostou tanto deste liro. Foc-+ agora+sabe. Foc-+ eu sou 5ru! e 6ousa”VY.

    0o liro sobre Tróts*i+ a santidade receberia tratamento

    dierso+ e enoleria+ nesse caso+ a “auto3entregaidealista a uma causa maior”. 5anoni!ação partilhadacom outros “santos da 7eolução”+ outros “homensexcepcionais”V>+ “dedicados 1 mais di%"cil das tare%as” M“a trans%ormação radical do ordenamento sócio3pol"tico3econGmico de uma sociedade”VR. 5om relação aobiogra%ado+ seriam ressaltadas a paixão e entrega 1

    causa reolucion,ria e 1 crença na “reoluçãopermanente”+ uma grande habilidade oratória J“suapalara era %ogo e ordem+ lógica e %onte deentusiasmo”VDK+ aliada a “asta produção textual” J“tudoo 'ue %a!ia+ escreia”K+ e a um “percurso err,tico”+dispersio+ segundo )emins*i+ por se tratar de um“homem de mil interesses”+ e com grande capacidadede se auto3metamor%osear. #ercurso marcado+sobretudo+ pelo en%rentamento por Tróts*i da dor da

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    perda de todos os seus flhos+ da clandestinidade+ daexpulsão do partido comunista+ da derrota Jpara ostalinismoK+ do ex"lio Jna Tur'uia+ na 9rança+ na 0oruega+

    no ;(xicoK. Oa" o subt"tulo da biografa lemins*iana de Tróts*i ser  A #ai01o segundo a reoluç1o+ anunciando'ue o relato ( o de uma paixão+ como a de 5risto+ “umapaixão ligada não 1 intimidade e aos abismos da alma+mas ligada 1s exterioridades solares da história”.)embre3se 'ue )emins*i+ como Tróts*i+ perdeu tamb(mum flho. E 'ue+ como ele+ apresentaa+ dentre outros

    aspectos comuns+ uma multiplicidade de %ocossimultneos de interesse+ uma not,el %acilidade deexpressão em p4blico Jampliada pelo seu h,bito de %alaralt"ssimoK+ e uma produção prol"fca+ mesmo nascondições mais adersas. #rodução 'ue tinha+ por sinal+na metamor%ose um dos seus procedimentos maiscaracter"sticos+ literariamente %alando. “2baixo asmetamor%oses desses bichos”VC+ grita o Oescartes do

    "atatau. #ois são incessantes os &uxos metamórfcosde bichos e aparições+ assim como as trans%ormaçõeserbais do liro. : modo mesmo de pensar a %orma+ em)emins*i+ enolendo necessariamente a mudança+ atrans%ormação+ a transitoriedade. : 'ue encontrariatemati!ação direta num liro como 'eta2ormose+publicado apenas depois de sua morte+ em BCCX.

    \ ine'u"oca+ pois+ a pro$eção+ em rastro rare%eito+ deaspectos da sua ida na dos biogra%ados. E daperspectia hagiogr,fca adotada nessas “idas” sobrea sua própria tra$etória. 0ão 'ue não ha$a de %atodados em comum. 0ão 'ue esses dados não se$amreleantes na ida sob escrut"nio. ;as não ( 1 toa a-n%ase+ por e!es+ em aspectos capa!es de “tradu!irum no outro”+ o biógra%o no biogra%ado.

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    ;esmo em Jesus A3"3+ biografa publicada em BCDX+ %a!escolhas curiosas. : biogra%ado passa a ser “o signo3 ?esus”+“subersor da ordem igente+ negador do elenco

    de alores de sua (poca e proponente de umautopia”X=+ e en%ocado de acordo com um m(todo l"ricode leitura+ por meio do 'ual se procura reelar “o poeta'ue ?esus+ pro%eta+ era”XB. Ele ( apresentado como um“lun,tico”+ uma “esp(cie de louco de Oeus_+des%rutando das imunidades das crianças+ dos muitoelhos ou dos bobos da corte”X

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    lembrando 'ue na par,bola a “reelação de erdadesabstratas” se %a! por meio “da materialidade de umaanedota+ uma unidade fccional m"nima”X>. : 'ue

    aproximaria+ a seu er+ a par,bola das epi%anias+reelações inesperadas da diindade ou da nature!a ousignifcado de algo+ 'ue teriam na primeiramani%estação de 5risto aos gentios sua fguraçãomodelar.8ma aproximação 'ue learia imediatamente a outra. 2desse ?esus3poeta a ?ames ?oIce. 2specto central na

    est(tica $oIceana+ as epi%anias apresentam3se+ em suaobra+ como lampe$os s4bitos+ e%-meros+ de algum tipode reelação Jora “numa ulgaridade das palaras oudos gestos”+ ora de “nature!a espiritual”K+ comoiluminações pro%anas+ passagens sem aiso pr(io docotidiano mais estrito para um repentino e impactante“leantar3se do (u”XR  das coisas. )ampe$ar presenteigualmente nos seus $ogos paronom,sticos+ nos 'uais

    de alguma semelhança %Gnica se extrai “um polissignocr"ptico+ 'ue 'uer di!er Je di!K muitas coisas ao mesmotempo”XD. 5omo nos $ogos entre #edro e pedra+pescadores de peixes e pescadores de homens+ e emoutros “in4meros momentos” da ida de 5risto+registrados pelos eangelhos+ 'ue se distinguemexatamente+ como aponta )emins*i+ por

    desdobramentos semnticos expostos em trocadilhos. ?ogos analógicos como os do próprio )emins*i+ 'ue %e!da contaminação sonora+ das caco%onias+ dasassonncias ertiginosas+ recursos %undamentais doseu m(todo de escrita. “: eco do berro dum bicho ( oberro de outro bicho”XC+ comenta no "atatau. 0ão %oi 1toa 'ue incluiu contaminação de outra ordem noromance M “6alta uma cru! a capricho a'ui para ocristo neste capricórnio”Y=  M colando+ a certa altura+

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    5art(sio e ?esus 5risto+ em meio a uma sucessão deinenções ocabulares trocadilhescasP “: despait(riocrucidado num sacruflho+ crux interpretum”YB.

    5ada um desses ensaios biogr,fcos 'ue ele %oiescreendo de BCDV a BCD>+ e 'ue dese$aa er Je de%ato seriamK reunidos Jpor 2lice 7ui!K num olume4nico+ parecia incluir+ como se obserou a'ui+ trilhasdistintas+ mas muitas e!es complementares+ nosentido de uma est(tica dispersa+ e+ com %re'L-ncia+disseminada sob %orma hagiogr,fca. #or e!es

    ai!inhando3se de uma (tica+ de um con$unto deprinc"pios comportamentais+ por e!es apontando parauma s(rie de procedimentos de escrita e leitura+ e para%ormas discursias intencionalmente em di,logo com oimagin,rio deoto e a experi-ncia religiosa. Oi,logoprefgurado desde os seus escritos de $uentude+ mascu$a primeira mani%estação fccional consistente seria“Oescartes com lentes”+ conto 'ue seriria de ponto de

    partida para o "atatau.

    527T\6: E 20T:

    “\ estranho 'ue tenha passado despercebido at( ho$e”+obsera+ nesse sentido+ 7Gmulo Falle 6alino+ no seuestudo+ publicado em

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    liro. Trata3se de  A 4entaç1o de Santo Ant-nio+ de 9laubert+listado em segundo lugar+ logo depois de &argantua+

    de 7abelais+ por )emins*i. 8ma indicação 'ue seriare%orçada+ ainda+ pelo %ato de o seu autor ser o 4nico aaparecer duas e!es nesse registro de d(bitos. #oisSalammb- aparece tamb(m na lista+ só 'ue em posiçãode menor desta'ue. Tale!+ no entanto+ não se limite aessas duas obras a presença &aubertiana no uniersodo "atatau. :utras de suas “tentações” parecendo

    ecoar igualmente no monólogo de 5art(sio. #ara fcarem tr-s dos textos de $uentude de 9laubert+ h, ahistória de 6marh+ “mist(rio”+ de BDVC+ no 'ual umeremita se - tentado+ seguidas e!es+ pelo demGnioh, o monge de “/ibliomania”+ 'ue+ deorado por uma4nica paixão M os liros M+ sacrifca Oeus+ o dinheiro e aprópria alma para obt-3los e h, a 5iagem ao In2erno+história bree na 'ual se descobre 'ue o lugar do

    in%erno seria na própria terra. ;as são+ sobretudo+ astr-s fcções hagiogr,fcas de 9laubert+ enolendo aida de 6anto 2ntGnio+ a de 6ão ?oão /atista e a de 6ão ?uliano 'ue )emins*i parece reisitar em sua obra. ?oão /atista olta e meia aparece nos textos de)emins*i. 0ão exatamente ia 9laubert. ;as ambospartilham o santo com uma asta legião de autores+

    como os das muitas 6alom(s do começo do s(culo AA.Em )emins*i+ o santo aparece+ em  Jesus A3".+ “comestimenta de pele de camelo+ com uma cinta decouro”+ alimentando3se de “ga%anhotos e mel silestre”+e comportando3se como “um da'ueles %uriosos de Oeus+a boca cheia de pragas e maldições contra todos os 'uepareceram trair a original pure!a de uma %(”YV.Oescrição semelhante 1 'ue %a! dele Herod"ade noconto de 9laubertP “Tinha uma pele de carneiro 1

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    cintura+ e a cabeça parecia a de um leão. 2ssim 'ue meaistou+ cuspiu contra mim todas as maldições dospro%etas. 2s pupilas &ame$aam a o! rugia leantaa

    os braços+ como para empunhar um troão”YX. 2mbosseguem os eangelhos+ mas ( interessante perceber'ue priilegiam $ustamente esses dados ao caracteri!aro santo.H,+ ( claro+ a cabeça cortada do santo. 6ustentadapelos cabelos+ no ar+ pelo carrasco ;anaei no conto de9laubert. 5om a sua morte anunciando a de 5risto na

    biografa de )emins*iP “a ter um fm como ?oão+ seuguru e batista+ 'ue tee a cabeça cortada porHerodes”YY. ;as o santo oltaria+ de modo não tãodireto+ por(m+ em alguns poemas.“;inha cabeçacortada U ?oguei na tua $anela U 0oite de lua U ?anelaaberta”+ l-3se num dos poemas de "a#ri$hos erela0osY>. “Ter sempre uma cabeça cortada a mais”+pede um poema de +olonaisesYR+ numa esp(cie de

    prece ao dia na 'ual se misturam o flme de @lauber7ocha e o destino de 6ão ?oão /atista.Ele não ( o 4nico santo inocado por )emins*i. 0umpoema de N1o 2osse isso e era menos+ n1o 2osse tantoe era (uaseYD+ a perspectia l"rica parecendo tomar6anto 2ntGnio como m,scara+ e recriar episódioregistrado por ?acopo de Fara!!e na )egenda urea.

    “Fendo os cristãos submetidos a toda sorte desupl"cios+ 6ão #aulo %ugiu para o deserto”+ contaFara!!e. 6anto 2ntGnio+ 'ue se acreditaa o primeiroeremita+ %oi aisado+ em sonhos+ da exist-ncia de#aulo. #assou+ então+ a procur,3lo pelas &orestas+ ondeencontrou primeiro um centauro+ 'ue lhe deu umaindicação+ em seguida+ um s,tiro+ e depois um lobo+'ue o learia 1 cela de 6ão #aulo. #ois o poema de)emins*i parece recriar o primeiro desses encontros+

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    com “um ser metade homem+ metade caalo+ 'ue lhedisse 'ue se dirigisse 1 direita”YC. \ a ele 'ue se dirigeo poemaP “oc- U com 'uem %alo U e não %alo UU centauro

    UU homem caalo UU oc- U não existe UU preciso cri,3lo”.Qs e!es o próprio su$eito do poema lemins*iano ( 'ueira monge+ santo+ pa$(. 5omo neste de La ie en$lose>=P “Esta ida de eremita U (+ 1s e!es+ bem a!ia. U1s e!es+ tem isita. U 1s e!es+ apenas es%ria”. 5omona “:ração de #a$(”P “'ue eu se$a era raio U nocoração de meus amigos U ,rore %orça U na beira do

    riacho U pedra na %onte U estrela U na borda U doabismo”. Qs e!es se %a! at( milagre+ como em “guaem gua”P pedirem um milagre U nem pisco Utrans%ormo ,gua em ,gua U e risco em risco”. Qs e!esapenas se dese$a poder passar por santoP“J...K tenhoandado só U lembrando 'ue sou pó UU tenho andadotanto U diabo 'uerendo ser santo J...K”. :u inenta3se+de repente+ o próprio santo de deoção+ como em “6ão

    0ão”P “não são U são nãoU rogai por nós U para 'ue não Use$amos senão”.0outras ocasiões (+ ao contr,rio+ da própria inexist-nciade santos+ da impossibilidade de se contar com %ormaspriilegiadas de “comunicação com algumatranscend-ncia”+ 'ue %alam os poemas. “: mar o a!ul os,bado U liguei pro c(u U mas daa sempre ocupado”+

    aisa um deles. “Eu ontem tie a impressão U 'ue deus'uis %alar comigo U não lhe dei ouidos UU 'uem sou eupara %alar com deusN U ele 'ue cuide dos seus assuntos Ueu cuido dos meus”+ l-3se noutro+ tamb(m de *istra6dosen$eremos>B. 5om ou sem santos+ por(m+ muitos dostextos lemins*ianos ostentam %ormato+ situação oudicção de prece>

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    menino+ como se %osse pecado+ como se a pintura %ossede deus. “Tem deus+ U eu re!o”P aisa3se em “#rofssãode %ebre”. 7e!a3se pela descrença+ em “2is ou ;enos”P

    “J...K sim+ 'uero ier sem %(+ U lear a ida 'ue %alta Usem nunca saber 'uem (”. ;istura3se a oração a umaiagem ao in%ernoP “6enhor 'ue prometestes U a idaeterna aos flhos de 6ão /ento U obrigado pelos inernosao ento U e pelo inento do in%ernoU ainda a'ui nestaterra”. #or e!es dese$ando3se “'ue nenhum deus nemdragão” possa serir de al"io+ e 'ue se possa apenas+

    como num dos poemas de La  5ie en $lose+“trans%ormar” a prece “em pedra %ria”.: %eitio de oração não (+ no entanto+ a 4nicamani%estação %ormal do lastro religioso presente na obrade )emins*i. ;as ( tamanha a sua incid-ncia+ como sepGde obserar+ 'ue tale! se possa imaginar 'ueconstitui 'uase um “subg-nero” re%ormatado em suapoesia. 6e+ no entanto+ a 'uestão ( delimitar atitudes ou

    perspectias 'ue resultem de uma seculari!ação deprocessos ou expressões extra"das de experi-ncias deoutra ordem+ ( a epi%ania 'ue+ de %ato+ se apresentacomo mani%estação mais recorrente desse trnsito emsua obra. Oe 'ue ( exemplar a incorporação 1 suapoesia da pr,tica do haicai+ ele mesmo moido aepi%anias+ a desli!amentos s4bitos de sentido ou

    percepção+ 'ue pro$etam as coisas do mundo “para %oradas estes da sua apar-ncia+ na nossa direção”.H, tamb(m uma surpresa da percepção e dos sentidosna “tentação”+ %orma 'ue M ia 9laubert e idas desantos M )emins*i tomaria de empr(stimo para o"atatau. “nalo maus esp"ritos”+ “Ouido de 5risto emnheengatu”+ reclama 5art(sio. : mundo+ a carne e odemGnio costumam %uncionar+ na teologia católica+como as %ontes mais habituais de sedução e o%erta das

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    “del"cias do mundo”. 2 elas correspondendo tr-s grausdistintos de tentação. : primeiro deles ( a impressãoproocada por essa surpresa+ a 'ue podem se seguir o

    deleite mórbido com ela+ e o consentimento da ontadena pr,tica de atos $ulgados conden,eis. #ossibilidades'ue costumam apontar+ de um lado+ para a açãodemon"aca de outro+ para a “tentatio probationis”+indu!ida por Oeus para testar+ %ortalecer e purifcar ocar,ter. \ o 'ue acontece em “2 )egenda de 6ão ?uliãoHospitaleiro”+ caçador iolento+ col(rico+ respons,el

    pela morte dos próprios pais+ 'ue+ no entanto+ subiria“aos espaços a!uis+ %ace a %ace com 0osso 6enhor ?esus5risto+ 'ue o leaa ao c(u”>V. #roação e purifcação%uncionando como dualidade necess,ria nas idasexemplares. #or isso mesmo uma parte signifcatia dashagiografas se compõe do relato das tentações a 'ue osanto se - submetido.6e essas proações costumam+ no entanto+ o%erecer

    boa parte da estrutura episódica nas hagiografas+coube a 9laubert trans%ormar a tentação+ de episódio+em eixo fccional. E+ estendendo3a por toda a narratia+cria3se assim uma esp(cie de impossibilidade para aprópria %orma romanesca. 2lgo semelhante ocorre com)emins*i+ 'ue+ de sa"da+ %or$a um nome h"brido M“romance3id(ia” M para sua experi-ncia narratia. 0o

    caso de 9laubert+ ( um texto estranho at( ho$e. )-3sea'uela longa %antasmagoria ertiginosa+ a'uelasucessão de tentações+ de isões 'ue se desdobram deoutras+ criaturas monstruosas em &uxo+ cenas 'ue malacabam+ fguras 'ue se substituem umas 1s outras+ at(o nascer do dia e a aparição fnal do 6ol. Oe um 5risto36ol+ 'ue+ no entanto+ (+ ele tamb(m+ uma noaaparição+ outra epi%ania. E como o 2rtIshes*I do"atatau  J'ue es'uece 5art(sio na Torre de Fri$burgK

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    parecendo dar nome a uma esp(cie de in4til ponto de%uga para uma longu"ssima espera.5omo estender+ no entanto+ algo 'ue se defne

    exatamente pela eanesc-ncia+ pela irrupçãoimpreista+ como as epi%anias+ a uma dimensão a rigorinteiramente incompat"el com elasN 5omo+ por outrolado+ compor um romance a rigor desproido deenredo+ no 'ual se substitui a ação pela metamor%ose+no 'ual se est, o tempo todo diante de um homemabsolutamente só+ acompanhado unicamente de um

    liro Je uma luneta+ no caso de 5art(sioK e do seudel"rioN ;ais do 'ue a promessas+ isões demon"acasdiersas+ e ao turbilhão her(tico impostos a uma idasanta+ no caso de 9laubert+ mais do 'ue 1 pressão dostrópicos sobre a ra!ão europ(ia+ no caso de )emins*i+ (1 pressão amórfca de uma esp(cie de descontroleimag(tico contraposto a um %orte rigor construtio+ (ao esgarçamento intencional da %orma romanesca+ 'ue

    se assiste em A tentaç1o de Santo Ant-nio  e "atatau.“Oepois de 6anto 2ntGnio+ 6ão ?uliano em seguida+ 6ão ?oão /atista eu não saio dos santos”+ diria 9laubert+ironi!ando as próprias fcções hagiogr,fcas. EaticinariaP “2 continuar assim terei meu lugar entre aslu!es da gre$a”>X. 2o lado dessa sucessão de santos+caberia assinalar o seu tempo de dedicação 1 4entaç1o

    de Santo Ant-nio+ obra 'ue o acompanhou por 'uasetrinta anos+ de BDXC a BDR

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    primeiro” 'ue emergiria+ na sua opinião+ toda a fcção&aubertiana+ a “cin!a preciosa”+ o “negro+ durocarão”>Y 'ue resta das ,rias tentações.

    9laubert+ ao descreer o trabalho com o Santo Ant-nio+costumaa sublinhar as di%erenças com relação a todosos seus outros textos. “Trabalhei como um carpinteiro”+“suei+ tirei a camisa”+ “cheguei a ter momentos degrande exaltação+ del"rio”+ relatou+ parecendo ecoar6anto 2ntGnio e a “o! sibilante” do Falentim de seuliroP “2 obra de um deus em del"rio”. 9ala da escrita de

     A tentaç1o de Santo Ant-nio como de uma experi-nciaextremamente %"sica+ ligada a grande es%orço corporal.Suase uma auto&agelação+ como a de um santo. 0ocaso do )emins*i+ os testemunhos sobre o processo deescrita do "atatau+ ressaltam 'ue ele andaa coma'uele calhamaço embaixo do braço+ os pap(ismisturados ao seu suor. 2notaa coisas na rua+liapedaços em o! alta em 'ual'uer lugar+ ia incorporando

    coisas 'ue ouia em conersa. : texto o acompanhaaa toda parte+ a mesas de bar+ a casas de amigos. Eleconieria cotidianamente com ele de BC>> a BCRY.2 primeira id(ia surgiu numa aula de História numcursinho pr(3estibular+ 'uando+ ao %alar dos holandesesno /rasil seiscentista+ lembrou3se dos "nculos deOescartes com a %am"lia 0assau+ e imaginou3o na

    comitia holandesa+ iendo no 0ordeste durante aocupação holandesa. Esse primeiro esboço resultaria noconto “Oescartes com )entes”+ no 'ual a situaçãoganharia contornos mais defnidos M o flóso%o+ no!oológico de ;aur"cio de 0assau+ sob o e%eito do calordos trópicos e “dessa era3'ue3dói”+ 'ue %uma o tempotodo+ espera longamente pelo militar r!Isto% 2rcis!eZs*i+ 'ue deeria encontr,3lo l,+ en'uanto bichose isões+ calor e mos'uitos o acossam e seu

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    pensamento apodrece entre mamões. : conto seriainscrito no 5oncurso 0acional de 5ontos do #aran, emBC>C+ mas+ por um e'u"oco com o pseudGnimo do

    escritor+ acabaria perdendo o pr-mio. E o texto seririade base para o romance+ no 'ual )emins*i trabalhariaainda por mais seis anos. E+ como nas ,rias ersões da4entaç1o &aubertiana+ tamb(m parece ser dos ecos do"atatau 'ue se nutriu toda a obra lemins*iana posterior.:bsere3se outro eco. : de um roteiro+ de BD>V+anotado no “5aderno BC”+ de 9laubertP “2nimais

    microscópicosP um s,bio os estuda. 2s bestasaumentam de tamanho aos poucos+ pooando a cena+tornam3se monstruosas e acabam por deorar o s,bio”. Tra! ine'uiocamente 1 lembrança o conto “Oescartescom )entes” e o "atatau de )emins*i. 0ão por 'ual'uertipo de in&u-ncia direta+ ( claro. \ impro,el 'ue)emins*i o conhecesse. )embra+ igualmente+ 24entaç1o de Santo Ant-nio+ então em processo de

    reescritura. 5om a di%erença de entre o s,bio e o santo+salar3se o segundo. E+ no entanto+ a situaçãosemelhante M um s,bio solit,rio diante de monstrosher(ticos ou monstruosidades naturais M parecesublinhar+ na tentação conertida em romance+ umatensão semelhante entre fcção e ci-ncia. 6e as bestasescapam ao microscópio+ os monstros escapam 1

    classifcaçãoP 9laubert diertindo3se em utili!ardescrições cient"fcas para trat,3las com aparatoreligioso+ e apresentar isões demon"acas com cuidadode naturalista.#rodu!3se assim+ como obsera ?udith Wul% sobre  A4entaç1o de Santo Ant-nio+ um tipo de relação “entresu$eito e ob$eto na 'ual domina uma perspectiah"brida+ 'ue mistura fcção e an,lise+ modelo est(ticoe modelo epistemológico”>>. #arecendo tensionar3se+ e

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    ironi!ar3se mutuamente+ desse modo+ o positiismo e“o cncer do lirismo”+ como o próprio 9laubert ochamaa. Oa" a ruptura dos fos de enredo+ da intriga+

    por um moto cont"nuo+ uma sucessão de imagens 'uese sobrepõem+ desfguram e dissipam. Oa"+ por outrolado+ a anatomia dos discursos her(ticos+ a descriçãominuciosa+ 'uase cient"fca+ das %antasmagorias maisdiersas. E não ( de estranhar+ em meio aotensionamento entre percepção e denominação+classifcação e fguração+ 'ue o texto &aubertiano se

    teatrali!e+ o su$eito parecendo mesclar3se+como no"atatau+ aos seus ob$etos de obseração+ 'uase seapagando+ por e!es+ entre eles. E se não h,+ na4entaç1o de Santo Ant-nio+ a fguração de umprinc"pio claro de “não3%orma”+ lembre3se dasinterenções perersamente sat"ricas de u* em“6marh”+ esp(cie de antecessor fccional do :ccam+do "atatau+ 'ue ai roubando de 5art(sio a

    articulação discursia+ e transfgurando+ a cada passo+a sua %ala.6e 9laubert expõe+ na sua hagiografa fccional+ apo(tica narratia oitocentista+ não ( 1 toa 'ue)emins*i sempre chamasse atenção para a inculaçãodo "atatau  1 sua hora histórica. #ois o seu liro%unciona como um erdadeiro monstro textual se

    contrastado ao ide,rio naturalista da d(cada de BCR=.;ais do 'ue contraste+ por(m+ a cada mirada de5art(sio pelo telescópio+ a cada inasão de :ccam+ acada intromissão gr,fca das letras em caixa alta+ seoperaria erdadeira desmontagem não só do alicerceótico dos romances3retrato da nacionalidade+ mas dascerte!as+ da perspectia coesa+ ob$etia+ 1 distncia+'ue os caracteri!a. 2o contr,rio+ acossado por bestas etraa3l"nguas+ 5art(sio se - cada e! mais próximo+

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    do “m-nstruo desses monstros”+ das “%e!es dessasreses”+ das “bostas dessas bestas”+ das“metamor%oses desses bichos”.

    E se a opção lemins*iana por um modelo hagiogr,fcopode parecer+ 1 primeira ista+ recursoatemporali!ador+ tale!+ diante do contexto brasileirodos anos BC>= e BCR=+ esse aparente anacronismotenha se mostrado particularmente apto a captar osimpasses est(tico3ideológicos do per"odo. /astalembrar os santos+ an$os e mart"rios em meio 1 obra de

    5acaso+ 2na 5ristina 5esar+ 5ildo ;eirelles+ /arrio+dentre outros+ para dimensionar historicamente+ emsuas di%erenças+ essa recorr-ncia.“6enhores demGnios+ U Oeixem3me em pa!”P essa era aep"gra%e+ como lembra Ool% :ehler+ da primeira ersãoda 4entaç1o de Santo Ant-nio.>R  Exorcismo entendidopor ele como uma de%esa+ por parte de 9laubert+ “das%orças liberadas pela história” e reprimidas

    iolentamente em BDXD+ ano em 'ue trabalharia noliro. 5omo se essa de%esa %osse a “condição deexist-ncia de sua arte”. E+ no entanto+ “na caco%onia domal 'ue estridula em torno do santo de 9laubert+podem3se ouir certas in&exões dos debatesideológicos de BDXD+ assim como ecos da 5omunaressoam na terceira ersão da Tentation”>D. E + no

    entanto+ seria poss"el acrescentar+ não ( bem deexorcismo 'ue se trata 'uando 9laubert di!+ com todasas letras+ 'ue o 'ue interessa a ele ( “explicar como oburgu-s mais pac"fco torna3se um antropó%ago” >C.“2anço+ com uma m,scara no rosto” ( uma dasep"gra%es do "atatau. )ema de Oescartes+ trans%ormadoem protagonista e narrador do liro+ se sublinha+ por umlado+ um ocultamento+ indica+ simultaneamente+ umaexposição+ um colocar3se em moimento. Tensão 'ue

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    parece acompanhar as fgurações hagiogr,fcas+ assimcomo o contraste entre a extrema irul-ncia e aininteligibilidade intencional+ “a in%ormação %echada+

    intrat,el”R=  do "atatau. “: coração em apuros+ cheirode heróis+ odor de santidade”RB+ reclama+ auto3des'ualifcando3se+ 5art(sio. E+ no entanto+ nessa astaprosa+ onde cabia tudo+ cabiam c,rceres J“0o c,rcere Meu M soldado com horrores+ erros no peito”K+ supl"ciosJ“o ambiente dos melhores+ cantando na guerra+ esupliciado na %esta”K+ torpe!as+ depend-ncias J“ao

    ento 'ue em de /ras"lia+ 'ue o mundo o manda”K+milagres J“milagre numa %esta+ o arcan$o ganha o $ogodo arle'uim+ xe'ue3mai-utico+ salamaxe'ue”K. Ealgumas e!es traaa3se a l"ngua ao di!er /ras"lia+lugar fccional da ação+ e se di!ia /rasil+ “5er%u7mt Brasilien”+ lugar histórico da escrita. E+ nessaproli%eração de bichos e medos+ no descon%orto de umnarrador em del"rio+ onde se anunciaa uma

    hagiografa+ tudo passa a se trans%ormar+satiricamente+ em %antasmagoria. #ois se o hagiógra%o“%a! de conta 'ue ( deus 'uem %ala”R

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    B Fa!+ Toninho. ) bandido (ue sabia latim. 7io de ?aneiroP 7ecord++p. .

    BC 2pud Toninho Fa!+ p. BYX.

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    da Edição 5r"tica”. nP )emins*i+ #aulo. "atatau. 5uritiba+Traessados Editores+ n1o 2osse tanto e era (uase +

    5uritiba+ `ap+ BCD=.>= Fara!!e+ ?acoppo de. Legenda ?urea. 5idas de Santos. 6ão

    #auloP 5ompanhia das )etras+ B La 5ie en $lose. 6ão #auloP /rasiliense+ BCCB.>< *istra6dos en$eremos. 6ão #auloP /rasiliense+ BCDR.>V )embre3se 'ue )emins*i se dedicaria a uma re&exão sobre as

    modalidades b,sicas de oração Jprece+ salat+ despacho+ !a3!enK em

    “5omunicando o ncomunic,el”+ artigo inclu"do no primeiro olume

    de Anseios "r6#ti$os.>X 9laubert+ @ustae. 4r=s $ontos+ p. DD.>Y 2pud 5ontador /orges. “2 santidade em crise”. nP 9laubert+

    @ustae. As tentaç m@si$a e $inema . 7io de ?aneiroP 9orense+ .>R Wul%+ ?udith.“)es 6ciences naturelles dans la tentation de saint

    2ntoineP entre esth(ti'ue et (pist(mologie”. Reue Flaubert n3 +7ennes+ D :ehler+ Ool%. ) 5elho 'undo des$e aos In2ernos . 6ão #auloP

    5ompanhia das )etras+ BCCC+ p .VBX.>C d.+ ibid.+ p. VBX.R= 2pud :ehler+ p. VBY.RB 5%. 5arta de B=U=RUBCRC a 7(gis /onicino. /onicino+ 7(gis Jorg.K

    !nie meu di$ion/rio3 6ão #auloP Editora VX+ BCCC+ p.BXV.R< )emins*i+ #aulo. "atatau+ p. CX.