“Ein Ding sei, wo das Wort gewährt“ O papel paradigmático da...

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“Ein Ding sei, wo das Wort gewährt“. O papel paradigmático da linguagem em Heidegger Bernhard J. Sylla (Universidade do Minho) Em Was heißt Denken?, Heidegger refere-nos a palavra de Nietzsche em Also sprach Zaratustra: “O deserto está a crescer. Ai daquele que abriga desertos.” 1 Heidegger caracteriza esta palavra como grito. Podemos entendê-lo como grito mudo e imperceptível, cujo pavor surdo não apenas fascinou a pintura moderna 2 como, para além disso, constitui também a base de uma inquietude que mina e trespassa o discurso filosófico da Modernidade e Pós-Modernidade, sendo inacessível e insuperável para uma reflexão finalizante e expressão de um crescente esquecimento do ser. É lícito questionar que isto seja assim, o que nos coloca bem no centro do discurso filosófico recente. Não pretendo de modo algum debruçar-me exaustivamente sobre este discurso, irei apenas remeter para dois trechos do discurso que me parecem relevantes para contextualizar as reflexões seguintes. Em 1989, Stephen White 3 tentou demonstrar que particularmente a filosofia tardia de Heidegger poderia abrir o caminho para um novo paradigma que superaria as carências do pensar moderno e pós-moderno. Neste sentido, o discurso moderno e aqui é referido Habermas como o seu representante - é acusado de se prender em demasia à racionalidade e à acumulação de saber, assim como de subjugar o Outro segundo critérios racionais, antes de este se poder exprimir. Muito mais, tratar-se-ia, em consenso com Heidegger, “em como nós podemos chamar ou nomear coisas sem ter imediatamente que seguir o caminho de agir com 1 WhD, p. 19 2 Sobre o significado do grito no âmbito da pintura cfr. Wellbury (1994), pp. 23-37 3 White (1990), pp. 296-320

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“Ein Ding sei, wo das Wort gewährt“. O papel paradigmático da linguagem em

Heidegger

Bernhard J. Sylla (Universidade do Minho)

Em Was heißt Denken?, Heidegger refere-nos a palavra de Nietzsche em Also sprach

Zaratustra: “O deserto está a crescer. Ai daquele que abriga desertos.”1

Heidegger

caracteriza esta palavra como grito. Podemos entendê-lo como grito mudo e imperceptível,

cujo pavor surdo não apenas fascinou a pintura moderna2 como, para além disso, constitui

também a base de uma inquietude que mina e trespassa o discurso filosófico da Modernidade

e Pós-Modernidade, sendo inacessível e insuperável para uma reflexão finalizante e

expressão de um crescente esquecimento do ser. É lícito questionar que isto seja assim, o que

nos coloca bem no centro do discurso filosófico recente. Não pretendo de modo algum

debruçar-me exaustivamente sobre este discurso, irei apenas remeter para dois trechos do

discurso que me parecem relevantes para contextualizar as reflexões seguintes.

Em 1989, Stephen White3 tentou demonstrar que particularmente a filosofia tardia de

Heidegger poderia abrir o caminho para um novo paradigma que superaria as carências do

pensar moderno e pós-moderno. Neste sentido, o discurso moderno – e aqui é referido

Habermas como o seu representante - é acusado de se prender em demasia à racionalidade e

à acumulação de saber, assim como de subjugar o Outro segundo critérios racionais, antes de

este se poder exprimir. Muito mais, tratar-se-ia, em consenso com Heidegger, “em como nós

podemos chamar ou nomear coisas sem ter imediatamente que seguir o caminho de agir com

1 WhD, p. 19

2 Sobre o significado do grito no âmbito da pintura cfr. Wellbury (1994), pp. 23-37

3 White (1990), pp. 296-320

responsabilidade.”4 A obrigação de encontrar legitimações subjuga planos de discurso

não-racionais de forma a que este paradigma, na sua crença na racionalidade e na sua

invocação da força da explicabilidade, é vergado por completo pelas leis daquilo a que

Heidegger chama Ge-stell. O discurso pós-moderno, associado por White a Foucault e a

Derrida, correria o perigo de abandonar a sua verdadeira intenção, o respeito pelo Outro e

pela diferença, devido precisamente ao seu modo de filosofar. Em concordância com isto,

White escreve que a acentuação excessiva do incómodo e da desavergonha cria um momento

no pensamento pós-moderno que, enquanto ameaça enfraquecer o sentido de uma

responsabilidade face ao Outro, lentamente vai substituindo este sentido por um festejo do

sujeito desavergonhado que revela a sua virtuosidade na desconstrução daquilo que surge

sempre como unidade.”5

Precisamente estes trilhos da controversa frisada por White em 1989 são percorridos pela

discussão recente em torno da palestra de Peter Sloterdijk, proferida em Elmau e publicada

depois na edição Suhrkamp6, na qual Sloterdijk expõe três teses – cito aqui o resumo sucinto

de Ernst Tugendhat:

“Tese Nº 1: Heidegger tem toda a razão quando diz que o Humanismo está hoje no fim, mas

não tem razão quando julga que isto acaba por favorecer o pensamento recordante

[Andenken ans Sein] do ser.

Tese Nº 2: Antes pelo contrário dever-se-ia reconhecer que a função do Humanismo consiste

em „domar‟ o „selvagem‟ do homem.

Tese Nº 3: Este objectivo deveria ser realizado através de um programa eugénico.”7

4 Ibid., p. 317

5 Ibid., p. 320

6 Sloterdijk (1999a)

7 Tugendhat (1999)

Com o seu ataque simultâneo à Kritische Theorie8 e a proclamação do seu fim, Sloterdijk

chamou para o palco da discussão os actuais corifeus da filosofia alemã, Jürgen Habermas,

Ernst Tugendhat e Manfred Frank, e com eles todo o registo de estratégias de argumentação

ligado à controversa entre o moderno e o pós-moderno. Segundo Manfred Frank, Sloterdijk

ultrapassou com a sua desavergonha pós-modernista os limites, não sendo sequer uma

certeza se as suas afirmações apenas têm um carácter provocador e cínico e se ele assim,

embora de forma perversa, continua ligado à uma postura iluminista.9 Nesta linha de

argumentação, Tugendhat insiste no seguimento de um discurso crítico, racional e claro e

Manfred Frank chama a atençaõ para o perigo de divagações enxofrentes de Sloterdijk.

O papel de Heidegger nesta controversa é ambivalente. Por um lado rege a divisa: até aqui e

não mais. Frank, Tugendhat e Habermas, particularmente os dois primeiros, embora

debruçando-se nos seus escritos seriamente sobre Heidegger, não vêem na filosofia

heideggeriana, devido a carências fundamentais – interpretadas por cada um de uma maneira

diversa – um candidato sério que no mundo hodierno nos indique um caminho

paradigmático. Eles antes denunciam, partindo de pontos de vista diversos, a perigosa

tendência anti-racional do pensamento heideggeriano.

Por outro lado, para Sloterdijk, Heidegger tem apenas a função de um ponto de partida para a

provocação pós-moderna. Finalmente, para pensadores como White, Heidegger constitui

uma fonte promissora para um novo pensar considerado fundamental que vai para além do

Modernismo e do pós-Modernismo.

Sem dúvida, o pensamento heideggeriano mantém-se actual, e sem dúvida tem peso no

contexto da procura considerada urgente de um novo paradigma.

8 Sloterdijk (1999b)

9 Frank (1999)

Em inúmeros trechos da sua obra, Heidegger confronta o homem hodierno com a imagem

ameaçadora do esquecimento absoluto do ser, face à qual se torna questionável se haverá

mesmo uma salvação deste. Em várias ocasiões10

Heidegger atribui expressamente esta

função de salvação à linguagem.

No âmbito desta questão pretendo considerar alguns aspectos do pensamento heideggeriano

em torno da linguagem. Todos nós sabemos que na obra de Heidegger esta veio a ganhar um

papel cada vez mais relevante. Tendo Heidegger em Sein und Zeit apenas dado indicações

acerca do modo de ser e do sítio ontológico da linguagem11

dando a entender que a

linguagem não tem nem o modo das coisas nem o do aí-ser12

, mais tarde a linguagem, ou seja

a linguagem enquanto saga, é compreendida como “essenciação da verdade do ser”13

, como

“acontecimento apropriado do ser”14

. Acontecimento apropriado do ser e saga enquanto

linguagem essencial aproximam-se intimamente.15

Mas o que significa o falar da linguagem como acontecimento apropriado do ser? É minha

intenção reflectir aqui brevemente sobre a questão remetendo para a tese heideggeriana da

constituição das coisas através da linguagem. Já na palestra de Heidegger sobre o poema Das

Wort de George16

é perceptível que a palavra Ding para Heidegger é utilizada num sentido

muito vasto. Na interpretação do último verso Kein Ding sei, wo das Wort gebricht [Não seja

coisa onde falta a palavra] a própria coisa revela-se como a palavra carecida para a essência

da linguagem.17

Em plena concordância com Heidegger podemos formular a dupla negação

contida neste verso também de forma positiva – como o faz aliás o próprio Heidegger não só

10

Veja p.ex. EdP, p. 41; WdS, p. 82 11

SuZ, p. 166 12

Ibid. 13

WdS, p. 5 14

Ibid., p. 76 15

Wegmarken, p. 146, nota a) 16

UzS, pp. 219 - 238 17

Ibid., p. 236

no seu ensaio sobre George como também em vários outros escritos, nomeadamente em Der

Satz vom Grund18

- : Ein Ding sei, wo das Wort gewährt [uma coisa seja quando (nos) é

dada a palavra]. A linguagem, e precisamente aquela que está para além do domínio

humano, decide se há algo como a coisa. Ao homem compete ouvir o Zu-spruch, o dizer da

linguagem, pois só assim a palavra poderá ser dada [gewährt], só assim – segundo Heidegger

em Vorträge und Aufsätze19

- perdura [währt] o que é dado [das Gewährte], só assim se

essencia e está presente a coisa através da palavra.

O conceito heideggeriano de „coisa‟ distancia-se nitidamente do de „objecto‟. A coisa

somente é coisa, como Heidegger expõe em Das Ding20

, quando reúne os Quatro, os mortais,

os divinos, a terra e o mundo, para a sua unicidade, ou seja o Ge-viert. Apenas nele, na

reunião dos Quatro, há algo como a coisa, e apenas no Ge-viert acontece aquilo a que

Heidegger chama acontecimento apropriado [Ereignis] o que significa também o tornar-se

próprio de cada um dos Quatro.

Heidegger descreve o acontecimento apropriado do Ge-viert como jogo-espelho do mundo21

,

se bem que a noção de mundo tenha aqui uma outra dimensão da do mundo como um dos

elementos dos Quatro. Este jogo-espelho do mundo vigora através e na linguagem, porém,

basta faltar um único destes quatro elementos para que este vigorar esteja em perigo. No

entanto, segundo Heidegger encontramo-nos numa época da História do ser na qual já agora

faltam os deuses.22

Quer dizer que já apenas a falta de deuses demonstra que hoje já não há

coisas. Mas Heidegger delineia implicitamente um cenário horrendo de maiores dimensões.

A ameaça que paira sobre nós é o crescente esvaziamento do Ge-viert: se não for reconhecida

18

SvG, p. 6 19

VA, p. 35 20

Ibid., pp. 157 - 179 21

Ibid., pp 172 ss. 22

Holzwege, p. 248

a essência da técnica e a essência do carácter de Ge-stell na constituição do nosso mundo, a

esta falta dos deuses ameaça juntar-se também a falta da terra e a falta dos mortais. A falta da

terra e dos mortais significa mais do que a simples ideia da destruição da terra e da

aniquilação dos mortais, significa antes que a terra e os mortais já não poderão essenciar-se

como tal nem na sua essência, o que se poderia revelar quando o terrestre se encontrar apenas

instalado como reserva vivencial e quando os mortais já não morrerem devido à maquinaria

técnica da clonagem do homem.

Visto desta forma e considerando as teses de Sloterdijk acima referidas, Heidegger está no

centro da controversa dos discursos filosóficos moderno e pós-moderno. Perante isto,

coloca-se-nos a questão da viabilidade de uma salvação desta situação. Para Heidegger, a

salvação está claramente ligada à linguagem, nomeadamente através do saber que a essência

da técnica como Ge-stell, que determina o tempo hodierno no sentido da maquinaria e do

realizável, seja reconhecida como essência poiética e que a poiesis, na sua forma

fundamental e proeminente, nomeadamente como poeisis da linguagem, seja percepcionada

como tal. Para isso, porém, é necessário libertar a linguagem da sua inserção no Ge-stell,

deixar falar a linguagem como linguagem, aprender novamente a percepcioná-la, ouvi-la.

Simultaneamente, Heidegger exige em vários momentos da sua obra uma libertação da

linguagem da gramática vigente, uma linguagem „nova‟.23

Heidegger reivindica pelo menos

ter aberto o caminho para uma nova linguagem. Em seguida, debruçar-me-ei sobre dois

aspectos que mostram como Heidegger seguiu este caminho, nomeadamente (i) as

etimologias de Heidegger e (ii) a deslocação semântica de significados de palavras.

Ad (i): O método etimológico, utilizado frequentemente por Heidegger, para criar ou

reganhar significados de palavras foi já notado pelos primeiros investigadores da obra de

23

Veja p.ex. SuZ, pp. 39, 165s.; UzS, pp. 267; Bes, p. 425, nota 10

Heidegger (entre outros Ortega y Gasset e Allemann)24

. A crítica incidiu sobre a

arbitrariedade do método de Heidegger, focalizando dois aspectos: Em primeiro lugar,

Heidegger apenas em parte reconhece as conclusões apresentadas pela etimologia. Enquanto

que, por exemplo, a remissão heideggeriana para o significado etimológico da raíz

indogermânica wes- que significa wohnen [morar], verweilen [demorar], übernachten

[pernoitar] estaria em concordância com a etimologia, Heidegger apresentaria por outro lado

derivações etimológicas que proviriam de associações demasiado livres. Allemann refere

como exemplo, aliás sem razão alguma25

, a associação de Wagnis e Wage apresentadas em

Wozu Dichter?26

.

Em segundo lugar, Heidegger procederia de modo arbitrário, e cito aqui somente um de

vários críticos, Hermann Schweppenhäuser, na medida em que “na produção das palavras no

discurso heideggeriano um qualquer dos significados, seja este contemporâneo (quer dizer

hoje usual) ou seja este tirado ao acaso, através de uma fixação da palavra, é relacionado

definitoriamente com a palavra.”27

Seguidamente, Schweppenhäuser critica a utilização de

heißen [chamar-se, significar] com o sentido de befehlen [ordenar] e de denken [pensar]

com o sentido de danken [agradecer]. Este procedimento, carecendo em todo de legitimação,

levaria apenas à abdicação completa da razão.28

Também a criação de palavras que desrespeitam as regras gramaticais, como em gewesend

(que significaria algo como sindo – uma mistura de sendo e sido - em português), se tornou

alvo da crítica. Schöfer designou a construção gewesende Zukunft [futuro sindo] como um

24

Ortega y Gasset (1952), pp. 897 – 903; Allemann (1954), pp. 110ss. 25

Em defesa de Heidegger, tenho que dizer que não encontrei caso nenhum de derivação etimológica que

carecesse de uma fundamentação justa. No que se refere ao exemplo de Wagnis e Wage, cfr. Grimm (1984), vol.

27, pp. 346, 361. Por outro lado, são conhecidas as críticas que se referem às traduções heideggerianas do grego

para o alemão que se inserem na linha das críticas sobre a alegada falta da justificação do método de derivações

etimológicas de Heidegger. Neste caso, compete averiguar este juízo aos respectivos peritos da língua grega. 26

Allemann (1954), p. 119; a referência é feita ao traço em Holzwege, p. 258 27

Schweppenhäuser (1988), p. 90

escândalo29

, e ainda recentemente, em 1996, Saffer mantém este juízo ao considerar “sem

sentido” construções heideggerianas paradoxais como gewesende Zukunft [futuro sindo],

Geläut der Stille [O ressoar do silêncio] ou Wir fallen in die Höhe [Caimos para cima].30

O próprio Heidegger tem consciência do carácter escandalizante do seu método etimológico,

pois refere frequentemente a crítica acerca da “arbitrariedade“31

das suas derivações

etimológicas. A resposta desarmante a esta crítica é sempre a mesma. A arbitrariedade

aparente das derivações etimológicas é fundamentada na Sache, no próprio ‟assunto‟. Porém,

com a palavra Sache Heidegger designa o „substrato‟ do seu filosofar. Assim utiliza32

o título

Sache para as palavras fundamentais do seu filosofar, Sein e Zeit , e daí será legítimo

concluir que o acontecimento apropriado, das Ereignis, a palavra fundamental da sua

filosofia após a viragem [Kehre], seja também Sache, i.e. Sache des Denkens. Para todos

aqueles que não acompanham Heidegger no assunto [in der Sache folgen] resida nesta linha

de argumentação uma circularidade que é recusada e considerada ausente de legitimação.

Deste modo, segundo Stephan Saffer, a legitimação é ligada a uma “inspiração interior”33

apenas acessível a poucos iluminados. Esta inspiração é a habilidade de ouvir a fala

[Zu-spruch] da linguagem. Relativamente à posição destes críticos poder-se-ia argumentar

que a própria pressuposição de que existe algo como uma instância de legitimação absoluta e

para além de uma qualquer circularidade, nunca poderá ela mesma escapar, em última

instância, da circularidade. É como se fosse uma questão da decisão entre seguir ou não

Heidegger no assunto [in der Sache].

28

Ibid., p. 91 29

Schöfer (1962), p. 190 30

Saffer (1996), p. 105 31

Veja p.ex. VA, pp. 166s. 32

SdD, p. 4 33

Saffer (1996), p. 225

Continuemos a seguir a argumentação de Heidegger acerca do seu método etimológico. Para

ele, o processo histórico das mudanças da linguagem e dos significados das palavras é antes o

espelho do andamento da História do ser. Sendo que este processo é um processo em

declínio, Heidegger considera também o desenvolvimento da lingugem primordialmente

como história do encobrimento, onde os significados vigentes encobrem o verdadeiro

significado.34

Os verdadeiros significados vão se perdendo, a linguagem cala35

. Em Was heißt Denken?

Heidegger diz: “A linguagem conduz-nos à superficialidade, ela brinca connosco.”36

Porém,

não estamos à mercê da linguagem como “jogo do mundo”37

. Muito mais, há que decidir

sobre a escolha da palavra através de uma meditação histórica, ou seja através de uma

meditação sobre a História do ser e não através de um recorrer ao significado corrente. O

pensamento histórico do ser pode neste contexto, segundo Heidegger, receber impulsos úteis

da Ciência da Linguagem.38

Contudo, a própria Ciência da Linguagem nunca poderá

alcançar o estatuto de ser a instância que fornece justificações para a escolha das palavras. A

Ciência, diz Heidegger, não pensa.39

Ad (ii) A crítica considerou já muito cedo que a criação linguística de Heidegger se

concentrava em primeira linha na palavra mais que na sintaxe.40

Tal conclusão é certamente

legítima, contudo coloca-se aqui uma reticência. As transformações de sentido das palavras

não surgem isoladamente. Em primeiro lugar, elas são numerosas; já Schöfer, com base num

conjunto bastante limitado de textos, fez uma estimativa de cerca de 200 criações de palavras

34

Wegmarken, p. 38; VA, pp. 246s.; WhD, p. 58 35

VA, p. 142 36

WhD, p. 83 37

SvG, p. 169 38

WhD, p. 91 39

WhD, p. 4; VA, p. 127 40

Cf. p.ex. Allemann (1954), p. 111

por Heidegger.41

Em segundo lugar, o mais importante destas criações de palavras reside no

facto de estas constituirem um sistema semântico-referencial complexo e coerente em si

mesmo. Já segundo Heidegger são as respectivas palavras fundamentais da filosofia que

determinam essencialmente os saltos no andamento da História do ser42

, ou seja que

determinam a respectiva cunhagem do destino e da História do ser. Mas não são apenas as

palavras fundamentais, são antes todas as criações de palavras que desempenham uma

função importante. Não adornam apenas as palavras-chave Sein, Zeit e Ereignis, mas sim

realizam aquilo a que Heidegger chama a saga enquanto jogo que cria os próprios

entrelaçamentos e relações.43

Que quer Heidegger dizer com isto? Vejamos um exemplo: no

complexo de associações, constituido pelos verbos wesen, weilen, währen, gewähren

[essenciar-se, demorar, permanecer, oferecer], Heidegger insere, remetendo para o verbo

weilen, a subjunção causal weil [porque].44

Se continuarmos a ler weil com este sentido, a

nossa noção usual e linguísticamente cunhada da causalidade ou da justificação de um ente

através de outro ente acaba por ser usurpada. A nossa práctica linguística será direccionada

para canais completamente novos que se tornam viáveis quando nos envolvemos na

enigmática rede semântica da filosofia de Heidegger. Mas isto significa também

simultaneamente que não apenas substituimos significados comuns por novos e estranhos

significados, envolvemo-nos também com novas regras de interligação e com a usurpação de

factos lógicos habituais. Desta forma, as noções de tempo e de causalidade no exemplo

mencionado transformam-se inteiramente. Em vez de andar à procura de improvisações

sintácticas nos textos de Heidegger, dever-se-ia antes concluir que a nova gramática exigida

por Heidegger se encontra aqui. Por isso, parece-me, de todo, uma tentativa promissora

41

Schöfer (1962), p. 33 42

ID, pp. 58, 66; Bes, p. 100 43

Wegmarken, p. 251

investigar as deslocações na rede semântica da linguagem heideggeriana, e penso que a

Ciência da Linguagem também para isso pode contribuir.

Helmut Gipper, um representante importante da entretanto esquecida vertente

especificamente alemã da Ciência da Linguagem, a assim chamada Sprachinhaltsforschung

[Investigação de conteúdo da linguagem], designou a deslocação semântica de significados

de palavras com o conceito Stellenwert [estatuto de palavra]. Por exemplo, o Stellenwert da

palavra Dezembro (o décimo-segundo mês do ano) não corresponde ao seu Eigenwert [valor

próprio], pois este seria o décimo mês.45

Gipper exige da Ciência da Linguagem não apenas

uma análise de conteúdo de cada uma das línguas, exige também que uma Crítica da razão

histórica46

tenha a função de julgar os sistemas filosóficos sob o aspecto de como os estatutos

das palavras se deslocam nestes. O ponto de referência desta crítica é o sistema de cada uma

das línguas-mãe. Mas em concordância com Heidegger, este projecto teria que ser

modificado. Para Heidegger, o pano de fundo que serve como sistema referencial, não pode

de modo algum ser a linguagem corrente, como o é para Gipper. Heidegger cria uma nove

rede de estatutos de palavras na procura do verdadeiro ‟valor‟ próprio da linguagem. Em

certa medida, esta procura é um jogo, um jogo de linguagem, ou seja o jogo da linguagem.

A confrontação destas duas perspectivas levar-nos-á a entender quão abismal é a diferença

entre Heidegger e a ‟Ciência‟, neste caso a Ciência da Linguagem. A última, decerto, nunca

seguiria Heidegger no seu caminho, tomando como ponto de partida o sistema das

‟deslocações‟ heideggerianas para procurar um novo ‟valor próprio‟ da linguagem. Por outro

lado, uma análise pormenorizada das deslocações semânticas da linguagem heideggeriana, se

bem que feita do ponto de vista tradicional, i.é. científico, partindo da linguagem comum,

44

SvG, pp. 186s. 45

Gipper (1967), p. 419 46

Ibid., p. 413

promete, em primeiro lugar, ajudar a entender melhor a linguagem heideggeriana e o seu

intuito, e em segundo lugar, chama à atenção para o facto importante de Heidegger ter escrito

e falado em alemão. Se considerarmos apenas um único entre vários outros aspectos: o peso

que Heidegger confere ao sentido morfémico dos prefixos er-, ver-, Un- etc., então abre-se já

aqui um horizonte que vale a pena investigar.

Em que relação se encontram estas reflexões com a controversa acima discutida?

Uma grande parte das críticas feitas a Heidegger tem como alvo o solipsismo, i.e. o carácter

monológico do seu discurso filosófico47

, juntamente com a sua alegada recusa de estratégias

de legitimação que, ao desprender-se da razão, demonstrariam uma tendência perigosa para o

misticismo ou, ainda pior, para um fatalismo de matiz totalitário.48

Averiguando estas

críticas, parece-nos, passadas umas poucas décadas desde os escritos tardios de Heidegger,

que a divergência dilemática entre cinismo estético e racionalismo ético (uma vez que o

último parece cada vez menos capaz de contrariar a crescente perversão de procedimentos de

justificação de proveniência metafísica) está cada vez mais longe de uma possível superação.

Por isso seria útil, do nosso ponto de vista, tomar em consideração a filosofia heideggeriana

em torno da linguagem, uma vez que ela própria cria a visão de um caminho, cunhado

primordialmente pela linguagem, que se situa para além de uma mera arbitrariedade, por um

lado, e de uma rigorosa racionalidade, por outro49

.

Em relação ao aspecto do carácter monológico do discurso filosófico de Heidegger, basta

apenas lembrar o papel importante da Zwiesprache, do diálogo, em Heidegger. Mesmo

quando a língua-mãe é, segundo Heidegger, algo ôntico50

, ele próprio atribui não só ao

47

Entre outros Saffer (1996), pp. 219 s.; Habermas (1989), p. 17 48

Tugendhat (1967), pp. 333, 359, 361, 385, 404; Habermas (1989), pp. 26s. 49

Cfr. VA, p. 177 50

WdS, p. 37

diálogo entre as línguas asiáticas e indogermânicas um papel decisivo51

, mas também ao

diálogo entre poetas e pensadores e, naturalmente, ao diálogo com o ser. Para além disso, não

deveriamos esquecer a notável interpretação do dialecto como diálogo52

. Basta considerar

estes aspectos para concluir que a filosofia de Heidegger não poderá de modo algum ser

compreendida como monológica e tão pouco deverá ser interpretada de forma monológica.

Mais uma vez, caberia também à Ciência da Linguagem participar nesta interpretação, se

pensarmos, por exemplo, no projecto de alargar a visão da filosofia primariamente

intralingual de Heidegger sob uma perspectiva interlingual.

Pelo menos o próprio Heidegger não levantaria dúvidas quanto ao facto de que essa questão

não é de modo algum superficial, antes pelo contrário, ela é fundamental para o nosso estar-aí

no mundo e para que as coisas retornem.

Obras citadas

1. Obras de Martin Heidegger (com referência das respectivas siglas utilizadas nas notas de rodapé)

* A paginação indicada nas notas de rodapé refere-se a respectiva paginação entre parênteses na obra

de Heidegger

SuZ: * Heidegger, Martin [1927], Sein und Zeit, in Gesamtausgabe, Bd. 2, hrsg. v.

Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt/M., 1977

Holzwege: * Heidegger, Martin, Holzwege, in Gesamtausgabe, Bd. 5, hrsg. v. Friedrich-Wilhelm

von Herrmann, Frankfurt/M., 1977

VA: * Heidegger, Martin, Vorträge und Aufsätze, in Gesamtausgabe, Bd. 7, hrsg. v.

Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt/M., 2000

Wegmarken: * Heidegger, Martin, Wegmarken, in Gesamtausgabe, Bd. 9, hrsg. v.

Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt/M., 1976

SvG: Heidegger, Martin, Der Satz vom Grund, in Gesamtausgabe, Bd. 10, hrsg. v. Petra Jaeger,

Frankfurt/M., 1997

UzS: * Heidegger, Martin, Unterwegs zur Sprache, in Gesamtausgabe, Bd. 12, hrsg. v.

Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt/M., 1985

51

UzS, pp. 79-146, particularmente pp. 112s.; Wegmarken, p. 252 52

ED, pp. 156, 169

ED: Heidegger, Martin, Aus der Erfahrung des Denkens, in Gesamtausgabe, Bd. 13, hrsg. v.

Hermann Heidegger, Frankfurt/M., 1983

Bes: Heidegger, Martin, Besinnung, in Gesamtausgabe, Bd. 66, hrsg. v. Friedrich-Wilhelm von

Herrmann, Frankfurt/M., 1997

WdS: Heidegger, Martin, Vom Wesen der Sprache. Zu Herders Abhandlung “Über den Ursprung der

Sprache“, in Gesamtausgabe, Bd. 85, hrsg. v. Ingrid Schü ler, Frankfurt/M., 1999

-------------

EdP: Heidegger, Martin [1936], “Europa und die deutsche Philosophie“, in Europa und die

Philosophie, hrsg. v. Hans-Helmuth Gander, Frankfurt/M., 1993, pp. 31-41

WhD: Heidegger, Martin (1954), Was hei t Denken?, Tübingen

ID: Heidegger, Martin [1957], Identität und Differenz, 11. Aufl., Stuttgart, 1999

SdD: Heidegger, Martin (1969), Zur Sache des Denkens, Tübingen

2. Outras obras

Allemann, Beda (1954), Hölderlin und Heidegger, Zürich / Freiburg

Frank, Manfred (1999), “Geschweife und Geschwefel“, in Die Zeit, 39

Gipper, Helmut (1967), “Der Beitrag der inhaltlich orientierten Sprachwissenschaft zur Kritik der

historischen Vernunft“, in Das Problem der Sprache, hrsg. v. Hans-Georg Gadamer, Heidelberg, pp.

407-425

Grimm, Jacob e Wilhelm (1984), Deutsches Wörterbuch, bearb. v. Karl von Bahder unter

Mitwirkung v. Hermann Sickel. Nachdruck München. Bd. 27

Habermas, Jürgen (1989), “Heidegger – Werk und Weltanschauung“, in Farias, Victor (1989),

Heidegger und der Nationalsozialismus, Frankfurt/M., pp. 11-37

Ortega y Gasset, José (1952), “Martin Heidegger und die Sprache der Philosophen“, in Universitas, 7.

Jahrgang, Heft 9, pp. 897-903

Saffer, Stephan (1996), Sprachindividualität. Untersuchungen zum Weltansichtstheorem bei Wilhelm

von Humboldt und Martin Heidegger. Aachen

Schöfer, Erasmus (1962), Die Sprache Heideggers. Pfullingen

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