IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
-
Upload
ricardo-s-silveira -
Category
Documents
-
view
23 -
download
0
Transcript of IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
1/204
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE EDUCAO
IVAN MARTINS FONTES LEICHSENRING
O SISTEMA QUALIS E A CRISE DE VALORES NA PRODUO
CIENTFICA BRASILEIRA
Verso Corrigida
So Paulo
2012
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
2/204
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE EDUCAO
IVAN MARTINS FONTES LEICHSENRING
O SISTEMA QUALIS E A CRISE DE VALORES NA PRODUO
CIENTFICA BRASILEIRA
Dissertao apresentada ao Programa dePs-Graduao em Educao, da Faculda-de de Educao da Universidade de SoPaulo, na Linha de Pesquisa Linguagem eEducao, para obteno do ttulo de Mes-tre em Educao.
Orientador: Prof. Dr. Nilson Jos Machado
So Paulo
2012
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
3/204
NOME: LEICHSENRING, Ivan Martins FontesTTULO: O Sistema Qualis e a crise de valores na produo cientfica brasileira
Aprovada em_____________
BANCA EXAMINADORA
Professor Doutor:__________________________Instituio:_____________________
Julgamento:______________________________Assinatura:_____________________
Professor Doutor:__________________________Instituio:_____________________
Julgamento:______________________________Assinatura:_____________________
Professor Doutor:__________________________Instituio:_____________________
Julgamento:______________________________Assinatura:_____________________
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
4/204
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meioconvencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogao na PublicaoServio de Biblioteca e Documentao
Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo
001.42(81) Leichsenring, Ivan Martins FontesL526s O Sistema Qualis e a crise de valores na produo cientfica brasileira
/ Ivan Martins Fontes Leichsenring ; orientao Nilson Jos Machado.So Paulo : s.n., 2012.
204 p. : il., tabs. grafs.
Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em Educao.rea de Concentrao : Linguagem e Educao ) - - Faculdade deEducao da Universidade de So Paulo.
1. Produo cientfica - Brasil 2. Peridicos cientficos 3. Artigocientfico 4. Histria da cincia 5. Doutrinas filosficas 6. Alienao
Educao 7. Capitalismo 8. Tecnologia 9. Banalizao Pesquisa I.Machado, Nilson Jos, orient.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
5/204
DEDICATRIA
A minha famlia, sobretudo aos meus pais pelo amor, carinho e respeito, valores que
aprendi a compartilhar. E Dona Menina, esperana de netos e piratas.
Hellen, pelo carinho e por me fazer pisar no cho. E ao Feinho.Ao professor Nilson Jos Machado, sem o qual este estudo no seria possvel. Pela
sua solidariedade e dedicao.
A meus amigos insanos, que de algum modo como eu, so loucos-soltos e encon-
tramos um mundo fora do centro. Em ordem aleatria: Al Pedera, Lou, Lvcanvs, Pr, L,
Fabi, Falcon, Dani, ngela, Equilibrista, Fabi, Greta, Maga Patolgica, Adri e Katinha. E
aos nossos agregados ao longo dos tempos: Natlia, Anjo, Armando, Sandroca, Jath, Rodri-
go, Rinaldo, Andrs, Moreno, Ana Sorriso, S, Ramon, Luizo, Horcio e Pandora.
A outros amigos, de sempre: Hijote, tio Ciro, Wl, Si, Gui, Igor, P, Flavinha, Thu-
la, Theo, Ceclia, Stellinha, Marlei, Gisele, Marquinhos, Henrique, R, Andria, Fabrcio,
Vrus, Nana, Man e outros.
Repblica do Chuchu, cuja plantao embora uma praga estril, nos proporcionou
diversos frutos, pessoas de todo mundo, valores humanos, sociais e muitas risadas: Yuri,
Aores, Mxico, Nego, Nanuque e Cavaco. E ao antigo O Jardim Eltrico.
Aos meus bons professores, quer os vivos ou os mortos, ou mesmo aqueles que s
me ensinaram pelos livros. E at aos meus maus professores, que por suas pssimas quali-
dades me proporcionaram um ensinamento: a tomar o caminho oposto.
queles que at o momento continuam com a razo: So Carlos, por quem rezo que
esteja certo. E a So Frederico, seu apstolo irmo, pois preciso acreditar em alguma coi-
sa.
Aos amigos (e colegas) do Objetivo de SJC de ontem e de hoje, especialmente: a
Gromov, o fsico brilhante porque pouco lido e humano contestador; e Osmar, o bilogo
quase budista porque irnico. Aos meus alunos, especialmente os dos ltimos dois anos, a
quem agradeo pelas aulas que eles chamavam de Aulas da Tarde, quando afinal romp-
amos com a mediocridade apostilada e ingressvamos na odisseia do conhecimento. Que
eles possam um dia vir a entender isto que escrevi. Em ordem de chamada: Ariane, Giovan-
na, Glauber, Henrique, Hugo, Joo Gabriel e Richard. E tambm para a Alessandra, Aman-
da, Bruno, Caroline, Cheng, Diego, Gil, Gabrielas, Guilherme, Gustavos, Iasmin, Joo Car-
los (Carioca), Jussara, Kelvin, Lauras, Lvia, Maria Clara, Mauro, Paolo, Pedro, Rafael e
Renans e a tantos outros que no esto aqui. E aoRapsdias.
E a mim mesmo, pela pacincia e entusiasmo.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
6/204
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, pelo apoio incondicional
ao longo desse rduo trabalho.
banca de qualificao, pelas sugestes;
ao professor merson de Pietri e Secre-
taria de Ps, sempre dispostos em ajudar.
Ao professor Nilson Jos Machado,
agradeo pela amizade e nossas conver-
sas.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
7/204
Elegia 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as aes no encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heris enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renncia, o sangue-frio, a concepo.
noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrvel despertar prova a existncia da Grande Mquina
e te repe, pequenino, em face de indecifrveis palmeiras.
Caminhas por entre os mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negcios do esprito.A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitssimo tempo de semear.
Corao orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro sculo a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuio
porque no podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
8/204
RESUMO
LEICHSENRING, Ivan M. F. O Sistema Qualis e a crise de valores na produo
cientfica brasileira
Dentre os problemas da universidade pblica hoje est o da ampliao desmedida de
publicaes cientficas com o intuito de colocar o Brasil no rol dos melhores pases em
cincia e tecnologia sem um correspondente aumento na qualidade do que se produz.
Em consequncia, o aumento de nossa produo tem transformado o carter de autar-
quia da instituio acadmica e parece ser prejudicial universidade, conduzindo-a de
um estado de instituio sociala outro de mera organizao social. Nesta esteira, pode-
ramos quem sabe afirmar que o Sistema Qualis, da Capes, surge como um controle
externo sobre o que se tem feito e produzido no ensino superior pblico e que apesar deseu acolhimento como regulador e hierarquizador da produo cientfica nacional por
meio da publicao de peridicos, aparentemente sua aplicao no tem sido isenta de
controvrsias. Parece-nos que h uma dissociao entre o que prega o discurso oficial
por meio do Qualis e a realidade cientfica das universidades pblicas, de vez que este
tem ditado como o meio cientfico deve ajustar sua produo para atender uma demanda
de progresso cientfico que dever crescer em competncia e excelncia acadmicas,
obtendo-se assim, supostamente, qualidade. Por isso, propomos analisar os critrios
utilizados pelo Sistema Qualis para a caracterizao da excelncia da produo acad-
mica brasileira.
Palavras-Chave: Histria da Cincia; doutrinas cientficas; Sistema Qualis; peridicos e
artigos cientficos; produo qualitativa versusquantitativa.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
9/204
RESUMEN
LEICHSENRING, Ivan M. F. El Sistema Qualis y la crisis de valores en la produc-
cin cientfica brasilera
De entre los problemas de la universidad pblica hoy est lo del engrandecimiento des-
medido de publicaciones cientficas con el intuito de situar el Brasil en el rol de los me-
jores pases en ciencia y tecnologa sin un aumento correspondiente en la calidad de lo
que se produce. Como resultado, el aumento de nuestra produccin ha transformado el
carcter de autarqua y parece ser prejudicial a la universidad, conducindola de un es-
tado de institucin sociala otro de mera organizacin social. En este rastro, podramos
quin sabe aseverar que el Sistema Qualis, de la Capes, surge como un control externo
sobre lo que se ha hecho y producido en la enseanza superior pblica y que a pesar desu acogimiento como regulador y hierarquizador de la produccin cientfica nacional
por medio de la publicacin de peridicos, aparentemente su aplicacin no ha sido exen-
ta de controversias. Nos parece que hay una disociacin entre lo que predica el discurso
oficial a travs del Qualis y la realidad cientfica de las universidades pblicas, de vez
que este tiene dictado como el medio cientfico debe ajustar su produccin para atender
una demanda de progreso cientfico que deber crecer en cualificacin y excelencia
acadmicas, obtenindose as, supuestamente, calidad. Por eso, proponemos examinar
los criterios utilizados por el sistema Qualis para la caracterizacin de excelencia de
produccin acadmica brasilera.
Palabras-Llave: Historia de la Ciencia; doctrinas cientficas; Sistema Qualis; peridicos
y artculos cientficos; produccin cualitativa versuscuantitativa.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
10/204
ABSTRACT
LEICHSENRING, Ivan M. F. The Qualis System and the crisis of values in the Bra-
zilian scientific production
Among the public university problems today there is the out of measure enlargement of
scientific publications with the purpose of inserting Brazil in the roll of the best coun-
tries in science and technology, without the corresponding increase in its publications
quality. As a result, the increase of our production has been transforming the autarchy
character and it seems to be harmful to university, conducting it from a state of social
institution to another of simple social organization. On this course, we could assert that
the Qualis System from Capes, arises as an external control over what has been done
and produced in the public superior education and besides its welcoming as regulatorand hierarchical organizer of the national scientific production by means of publication
of periodicals, apparently its application has not been free from controversies. It seems
that there is dissociation between what the official discourse preaches through Qualis
and the scientific reality in public universities, since this system has been dictating how
the scientific circle should adjust its production to supply a scientific progress demand,
which should grow in academic competency and excellence, thus supposedly obtaining
quality. For this reason, we propose to analyze what Qualis criteria understands by qual-
ity in the context of Brazilian academic production.
Key Words: History of Science; scientific doctrines; Qualis System; scientific periodi-
cals and articles; qualitative versusquantitative production.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
11/204
LISTA DE FIGURAS
Figura do Clice de Rubin, do psiclogo gestaltiano Edgar Rubin p. 64
LISTA DE GRFICOS
Grfico 1 O Qualis, a Curva de Gauss e o Fator de Impacto p. 44
Grfico 2 Nmero de pesquisadores por estados. Fonte: Jornal O Estado de So Paulo. 1 de
Agosto de 2007 p. 76
Grfico 3 Aumento da participao brasileira no cenrio mundial. Fonte: Jornal O Estado de
So Paulo. 1 de Agosto de 2007 p. 77
Grfico 4 Aumento de artigos publicados e crescimento do nmero de doutores titulados
(1987-2006). Fonte: Jornal O Estado de So Paulo. 1 de Agosto de 2007 p. 78
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Critrios Qualis (ano-base 2005) rea de Conhecimento: Educao p. 34
Tabela 2 Critrios Qualis (ano-base 2009) rea de Conhecimento: Educao p. 36
Tabela 3 Web Qualis: Estrato / Peridicos (2010) p. 39
Tabela 4 Oposio de Lugares p. 53
SIGLAS USADAS
Capes Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior
IES instituies de ensino superior
ISI Institute for Scientific Information
JCR Journal Citation Reports
MEC Ministrio de Educao e Cultura
OMC Organizao Mundial de Comrcio
ONU Organizao das Naes Unidas
Unesco Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura
USP Universidade de So Paulo
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
12/204
SUMRIO
1. INTRODUO ..................................................................................................... 01
1.1. Justificativa....................................................................................................... 09
1.2. Objetivos............................................................................................................131.3. Materiais e Mtodos..........................................................................................15
2. A CINCIA ........................................................................................................... 17
2.1. As tpicas cientficas........................................................................................ 182.2. A ditadura da viso........................................................................................... 192.3. A supremacia da escrita.................................................................................... 212.4. Episteme, mtodo e tcnica.............................................................................. 23
2.4.1. A doutrina cientificista.................................................................... 252.4.2. A doutrina estruturalista.................................................................. 26
3. O QUALIS ............................................................................................................ 30
3.1. Conceitos do ndice Qualis................................................................................333.2. Qualis: soluo ou problema?...........................................................................39
4. QUALIDADE VERSUSQUANTIDADE............................................................... 45
4.1. Os Acordos........................................................................................................484.2. Os Objetos de Acordos......................................................................................49
4.2.1. O lugar-comumda quantidade.........................................................514.2.2. O lugar-comumda qualidade...........................................................52
4.3. A oposio quantidade e qualidade...................................................................534.3.1. O universo da quantidade.................................................................554.3.2. O universo da qualidade...................................................................56
4.4. A Teoria das Catstrofes...................................................................................574.4.1.A oposio catstrofee crise...........................................................584.4.2. O lugar do irreparvel.....................................................................594.4.3. O reducionismo positivista...............................................................624.4.4. O defeito da qualidade..................................................................63
4.5. As bifurcaes dialticas...................................................................................654.5.1. Filsofos dialticos...........................................................................664.5.2. A dialtica marxista..........................................................................68
4.5.2.1. A quantidade e a qualidade nas mercadorias.....................69
4.5.2.2. A mercadoria como valor-mercadoria..............................714.6. Desenvolvimentismo produtivista e banalizao..............................................724.6.1. Referncia mundial...........................................................................764.6.2. Critrios objetivos?...........................................................................784.6.3. Qualis ou Quantis?........................................................................834.6.4. A Cinciastandard...........................................................................86
4.6.4.1. Da tragdia para a farsa.....................................................904.6.4.2. Da farsa para a tragdia.....................................................92
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
13/204
5. CINCIAS, CULTURAS E TECNOLOGIAS...................................................... 96
5.1. Dois contextos...................................................................................................97
5.1.1. Um hiato cultural............................................................................. 985.1.1.1. O Buldogue de Darwin................................................1005.1.1.2. O Apstolo da Cultura.................................................103
5.2. Ricos e Pobres.................................................................................................1055.2.1. Fatores............................................................................................1065.2.2. Monoculturas..................................................................................1085.2.3. Benesses.........................................................................................109
5.3. O engenho da tcnica.......................................................................................1095.3.1. A cincia e a tcnica.......................................................................1105.3.2. A tradio e a tcnica.....................................................................1115.3.3. A morte da Filosofia.......................................................................1135.3.4. A alienao tcnica........................................................................116
5.3.5. A cincia deriva...........................................................................1175.3.5.1. As ilhas flutuantes...........................................................1175.3.5.2. Pega-bandeira..................................................................120
5.3.6. O fracasso estruturalista.................................................................1215.3.6.1 Marx.................................................................................1225.3.6.2. Nietzsche.........................................................................1235.3.6.3. Freud................................................................................124
5.3.7. O fim da tica.................................................................................1275.3.7.1 Os homens e a tcnica......................................................1305.3.7.2. Bens primrios.................................................................1315.3.7.3. Falso otimismo................................................................133
5.4. Crise de valores...............................................................................................134
5.4.1. Revs e dependncia......................................................................1365.4.2. O dogma ensino-pesquisa-extenso...............................................1405.4.3. Critrios diversos............................................................................142
6. CONSIDERAES FINAIS ............................................................................. 146
7. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................. 161
8. ANEXOS ............................................................................................................. 169
8.1. Qualis Peridicos Educao (2005)..............................................................1708.2. Qualis Peridicos Educao (2009)..............................................................1758.3. Normas comuns quanto forma de submisso de artigos...............................1808.4. Cmo escribir artculos cientficos fcilmente............................................187
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
14/204
1
1. INTRODUO
As descobertas e os inventos cientficos e tecnolgicos sempre proporcionaram,
desde seus primeiros momentos, impactos considerveis na histria da humanidade e na
relao dela com a Natureza. No h como ignorar que o desenvolvimento socioecon-mico e cultural de um pas depende em grande parte dos progressos das cincias e tec-
nologias produzidas por ele.
Neste contexto, o ensino e a pesquisa cientfica e tecnolgica devero ser de
qualidade, pois que se trata de uma ferramenta efetiva que no serve apenas ao desen-
volvimento de Estados, mas tambm socialmente, no sentido de que pode promover
uma Educao mais crtica, reflexiva e atuante, podendo conduzir um povo autonomia
perante outros em virtude de auxiliar na formao de uma identidade cultural.
Segundo Wallerstein (2012), at 1945 existiam pouqussimas universidades emtodo o mundo. O corpo estudantil era na maior parte das vezes formado pelos filhos das
elites e formar-se nelas no apenas era um grande privilgio, decorrente da distribuio
desigual do poder econmico e/ou poltico entre as classes sociais, mas atribua um
grande poder de distino social.
Aps a 2 Guerra Mundial, porm, as universidades passaram a ser vistas como
fundamentais ao crescimento industrial das naes e concorrncia nas sociedades de
mercado, visto que formariam mo-de-obra especializada que asseguraria o potencial
tecnolgico de um pas, proporcionando transformaes sociais e, assim, at poderiam
diminuir a dependncia econmica de pases pobres de grandes centros desenvolvidos.
Alm disso, o nmero de universidades comeou a se ampliar por causa de pres-
ses da classe mdia, que viam nelas um modo de melhorar sua condio de vida: O
velho mtodo de treino de uma pequena elitenunca foi quebrado, embora tenha sofrido
algumas leves alteraes. Dentro desses moldes, conservamos a paixo nacional pela
especializao [...] (SNOW, 1963. Grifo do autor).
Esta ampliao no se restringia a pases que j possuam universidades respei-
tveis, caso dos EUA, ex-URSS e naes do mundo europeu, mas foi expandida glo-
balmente a uma boa quantidade de pases que as tinham em nmero reduzido ou, mes-
mo, no possuam at ento nenhuma.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
15/204
2
A expanso das universidades, notvel em tamanho, foi possvel graas aocrescimento da economia-mundo depois de 1945, o maior da histria do sis-tema-mundo moderno. Havia muito dinheiro disponvel para as universida-des, que tinham todo o prazer em us-lo. [...] Claro que isto mudou de certaforma os sistemas universitrios. As universidades individuais tornaram-semaiores e comearam a perder a qualidade da intimidade que era caractersti-ca das estruturas menores. A composio de classe do corpo estudantil, etambm do docente, evoluiu. Em muitos pases, a expanso no s significouuma reduo do monoplio das pessoas dos estratos altos como estudantes,professores, administradores, mas tambm muitas vezes significou que osgrupos minoritrios e as mulheres comearam a ter um acesso mais amplo,que antes fora total ou parcialmente negado (WALLERSTEIN, 2012)1.
Entretanto, a partir da dcada de 1970, as universidades adentraram num longo
declnio econmico, porquanto dependiam dos Estados, e a economia mundial perma-
necia estagnada porque atravessava duas crises petrolferas (1973 e 1979) e ocorria uma
grande desvalorizao do dlar, que veio a travar o crescimento na maioria dos pases.
Ao mesmo tempo, os custos universitrios continuaram a crescer e a presso pela maiordemocratizao no acesso ao ensino superior se tornava cada vez mais aguda.
Em meio a esta crise, o molde de orientao poltica at ento adotado pelos
Estados viu-se alterado, obrigando a muitos deles a conviver com um crescimento cons-
tante por um lado e, por outro, com a elaborao de novas expresses polticas que pu-
dessem conter um provvel colapso da economia mundial. Este perodo econmico fi-
cou conhecido como estagflao e foi neste momento que comearam a aparecer os
primeiros tericos do neoliberalismo.
O neoliberalismo, como doutrina, nada mais seria do que uma nova faceta doantigo liberalismo: a no-interveno do Estado na economia. Mas, agora, com algumas
caractersticas extras, adaptadas ocasio: se antes os governos no deveriam intervir
de modo algum nas liberdades irrestritas do capital e da economia de mercado, agora se
aceitaria que acontecesse uma interferncia parcial e na maioria das vezes, insignifi-
cante em alguns setores que seriam imperativos ao desenvolvimento de um pas.
Nesta esteira, pode-se dizer que j se trata de um tema antigo as manifestaes
contrrias a qualquer tipo de reforma de instituies pblicas de ensino superior - IES. E
to ou mais velho se mostra o discurso favorvel poltica de entrega de determinadossetores essenciais do Estado brasileiro privatizao; dado que tais servios pblicos se
apresentariam, supostamente, como inoperveis, incompetentes e burocratizados de uma
parte, e de outra, em virtude da falta de investimentos pblicos para manter seus imen-
1Cf. http://www.esquerda.net/opiniao/ensino-superior-sob-ataque/22495. Acessado em 14.mai.2012.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
16/204
3
sos custos, seria imperativo que terceiros pudessem desenvolv-los ou mant-los opera-
cionais.
Assim que seria imprescindvel, alm da reforma do Estado, considerar determi-
nados setores sociais como setores de servios, que poderiam ser tocados sem interven-
o estatal, como os de Educao, Sade e Cultura. Em dias atuais poderamos ilustrarneste mesmo processo poltico a j iniciada privatizao dos nossos aeroportos.
Por uma tica neoliberal, se os governos viessem a interferir minimamente num
setor imperativo ao desenvolvimento, como so as IES pblicas, deixaria de ser dever
deles mant-las como um direito pblico e universal, desresponsabilizando-se por suas
administraes. Da que tal servio poderia ser mais eficaz se prestado por particulares,
atendendo uma demanda de consumidores e sujeita s leis do mercado.
Entre as dcadas de 1970 e a dcada perdida para ns brasileiros, de 1980, o
pensamento neoliberal se desenvolveu com maior intensidade nos EUA, Inglaterra eAlemanha; depois, gradualmente, os pases subdesenvolvidos como Brasil e Argentina
importaram com o final dos regimes militares o mesmo modelo doutrinador da econo-
mia. E ser neste momento que a privatizao passar a ser um discurso predominante,
sobretudo nos pases de terceiro mundo.
A maioria das universidades de antes de 1945, e mesmo de antes de 1970,eram instituies estatais. A nica exceo significativa foram os EstadosUnidos, que tinham um grande nmero de instituies no-estatais, a maioria
das quais evolura de instituies de base religiosa. Mas mesmo nestas insti-tuies privadas norte-americanas, as universidades eram geridas como estru-turas no-lucrativas. [...]Em todo o mundo, a privatizao comeou a signifi-car vrias coisas: uma, comearam a existir instituies de ensino superiorcriadas com o objetivo do lucro. Duas, as instituies pblicas comearam aprocurar e a obter dinheiro de doadores empresariais, que comearam a in-trometer-se no governo interno das universidades. E trs, as universidadescomearam a procurar registrar patentes provenientes de descobertas e in-venes que eram fruto do trabalho dos investigadores e da universidade, eassim entraram como operadores na economia, quer dizer, como negcios (WALLERSTEIN, 2012. Grifo nosso.)2.
Pelo olhar de Santos (2004) at a dcada de 1990 trs foram as crises que vieram
a atingir a IES. A primeira foi consequncia da contradio entre seu papel anterior co-mo centro crtico de cultura e saber, imprescindvel formao das elites europeias des-
de a era medieval e os atuais papis, que no decorrer do sculo XX, lhes tinham sido
conferidos, como a especializao crescente de mo-de-obra qualificada exigida pelo
2Cf. http://www.esquerda.net/opiniao/ensino-superior-sob-ataque/22495. Acessado em 14.mai.2012.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
17/204
4
Capitalismo, que lhes tomou o poder supremo no que toca ao ensino superior e produ-
o de pesquisa.
A segunda crise diria respeito legitimao de amplos conhecimentos em face
da crescente prioridade pelos conhecimentos especializados, que viriam a fragmentar a
cultura universitria e criar centros credenciados (as faculdades ou institutos tcnicos)que aprovariam ou no atravs de diplomas um conhecimento cientfico segundo cada
alada. Alm disso, as universidades estariam neste momento submetidas s exigncias
poltico-sociais de democratizao e igualdade no acesso ao ensino superior.
Enfim, a ltima crise derivaria do conflito entre a exigncia de independncia na
demarcao dos valores e finalidades das IES, posto uma tentativa crescente de domin-
las por meio de critrios de eficcia e de produo critrios estes bastante apropriados
s empresas.
A opo foi, pois, pela mercadorizao da universidade. Identifico neste pro-cesso duas fases. Na primeira, que vai do incio da dcada de 1980 at mea-dos da dcada de 1990, expande-se e consolida-se o mercado nacional uni-versitrio. Na segunda, ao lado do mercado nacional, emerge com grande pu-jana o mercado transnacional da educao superior e universitria, o qual, apartir do final da dcada, transformado em soluo global dos problemas daeducao por parte do Banco Mundial e da Organizao Mundial do Comr-cio. Ou seja, est em curso a globalizao neoliberal da universidade. Trata-se de um fenmeno novo (SANTOS, 2004, pp. 10-11).
Ora, numa circunstncia em que o dinheiro insuficiente na universidade pbli-
ca ou, aparentemente pouco, abre-se caminho s fundaes, nacionais ou internacio-
nais, que passam a atuar empresarialmente num espao que a princpio seria educacio-
nal e pblico, mantido pelos impostos de uma sociedade. Se as IES no possuem dinhei-
ro e as fundaes so detentoras dele, so elas que determinam agora quais devero ser
os critrios para a aplicao desse dinheiro numa busca que dever ser incessante por
novos resultados.
Entre estes critrios est o da ampliao da pesquisa e o tipo de pesquisa que
dever ser desenvolvida, que passaram a ser um problema, ao que parece, dos mais gra-
ves nas IES. Conforme nos aponta Freitag (2004), a ampliao da pesquisa pode acarre-
tar tambm na destruio da universidade, partindo do ponto de vista de que esta com-
preendida pela sua tradicional ocupao de ensino e desenvolvimento analtico do saber.
O autor sustenta que a inquietao externa pelo aumento quantitativo da pesqui-
sa universitria tende a modificar a prpria universidade pblica em seu carter de au-
tarquia e prejudicial qualitativamente, uma vez que a conduz de um estado de institui-
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
18/204
5
o socialde formao para outro de mera organizao socialcujo foco passa a ser o de
produo e controle. Afora isso, nesta nova condio, provvel que se venha a banali-
zar a ideia de pesquisa.
Uma vez como organizao social, a universidade pblica torna-se empresa, e
quem passa a administrar especificamente seu tempo e espao no mais o Estado, masas fundaes, acobertadas pela ideia de neutralidade de valores caracterstica comu-
mente atribuda s instituies de ensino superior , pelo privilgio de no pagarem
impostos, pelo uso quase ou mesmo gratuito da mquina universitria com a inteno de
vencer outras fundaes de mesmo tipo no mercado universitrio econmico.
Em nome do atendimento comunidade e em nome do servio pblico, auniversidade tende cada vez mais adaptao indiscriminada a quaisquerpesquisas a servios dos interesses econmicos hegemnicos. Nesse andar, auniversidade brasileira oferecer disciplina, como as existentes na MetrpoleEUA: cursos de escotismo, defesa contra incndios, economia domstica edatilografia em nvel de secretariado, pois j existe isso em Cornell, Wiscon-sin e outros estabelecimentos legitimados. O conflito entre o tecnicismo e ohumanismo acaba em compromisso: a universidade brasileira prepara-se paraser uma multiversidade, isto , ensina tudo aquilo que aluno possa pagar(TRAGTENBERG, 1979, p. 19).
Afirma-nos Tragtenberg (1979, p. 28) que [...] o cultivo da ideologia livre de
valores paralelo despreocupao sobre as implicaes ticas e polticas do conheci-
mento. E este o caso, por exemplo, da Fundao Instituto de Pesquisas Econmicas
FIPE, que nos ltimos anos criou em MBA prprio, independente da Faculdade de Eco-nomia e Administrao da Universidade de So Paulo, mesmo empregando da cincia,
tecnologia e cientistas desta mesma instituio.
Com efeito, com mercantilizao do ensino superior pblico por causa de sua
crise financeira, h uma tendncia ao equilbrio entre o que significaria pblico e priva-
do no que se refere universidade, descaracterizando a universidade pblica e abolindo
sua importncia perante a universidade privada. Da que no faria tanta diferena assim,
visto pelo senso comum, que um aluno qualquer viesse a optar por se graduar numa
instituio paga, afinal ambas seriam, de uma maneira ou outra, particulares.De acordo Machado (1997), em sintonia com o mtodo cartesiano de pesquisa
cientfica, que se traduzia pelo fracionamento de ideias complexas numa continuidade
de ideias simples e de faclima compreenso, os critrios tayloristas de organizao ci-
entfica vm sendo deslocados gradualmente da indstria para o setor de servios, bus-
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
19/204
6
cando-se assim incluso e participao de todos nas diferentes frentes de execuo de
projetos, o que inclui a instituio de metas e o acordo de diviso de trabalhos.
Conforme Sennett (2006), no capitalismo flexvel a percia tenderia a ir de en-
contro s organizaes que necessitam de atividades que sejam realizadas em curto pra-
zo. Da que a pesquisa cientfica desenvolvida deve ser constantemente transformada,seus resultados normatizados e publicados e o cientista, no mais como um pesquisador,
dever ser um consultor, que seguir as regras pr-estabelecidas, de cima para baixo,
pelo o que dita o governo ou o mercado.
O especialista em micro-tarefas est sendo substitudo pelo especialistaconsultor, que sabe trabalhar em grupo, e ningum pode ser chamado a daropinies, ainda que sobre sua especialidade, se desconhece a totalidade doprojeto que est em curso (MACHADO, 1997, p. 32).
Em tal situao que se encontra a universidade pblica mundial, se entendermos
e estendermos esta preocupao universidade brasileira poder-se-ia quem sabe afirmar
que o Sistema Qualis, da Capes, atende a uma preocupao governamental que se no
for legtima ao menos aparentemente se faz necessria como controle externo sobre o
que feito e produzido internamente em nossas universidades; e assim sendo, podera-
mos designar como um conhecimento distintodefronte de outro com uma imagem espe-
cular que deveria ser descartada tacitamente (Bourdieu, 2007).
Segundo Houaiss (2009) etimologicamente os vocbulos espelho e especu-
lar derivaram de uma mesma origem: do termo latino especulum, que tinha como sen-
tido observar algo de um lugar alto, estar de sentinela para alguma coisa, conside-
rar algo, seguir com os olhos algum objeto ou algum.
Assim que tal cuidado por parte da Capes leva-nos a especular sobre os motivos
dessa interferncia e sua legalidade; e ainda, sua fundamentao terica e como obser-
vada pelo olhar de quem atingido diretamente por essa distino: os cientistas e pes-
quisadores particularmente e a comunidade acadmica como um todo.
Para Tragtenberg (1979), uma das propriedades atuantes no capitalismo contem-
porneo e produzida por alguns dispositivos ideolgicos a instrumentalizao do sa-
ber, cuja validade est sujeita demonstrao experimentalista, que autoriza o desen-
volvimento do raciocnio cientfico por meio de metodologias e epistemologias espec-
ficas na busca de uma objetividade ideal de cincia.
Contudo, o que denominamos como objetividade em cincia supe em nossos
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
20/204
7
dias, sobretudo, o paradigma cientfico das Cincias Naturais, onde a ferramenta do
clculo e a comparao de dados se tornaram de tal modo intricados e difceis que vie-
ram a permitir a hiptese de que somente especialistas dessas reas poderiam avaliar o
que ou no conhecimento.
Se se parte da tese de que no h dilogo entre os diversos ramos e reas cient-ficas, o conhecimento poderia se tornar estril e a liberdade de pesquisa cientfica ficaria
reduzida a escolhas entre diversos peridicos cientficos com selo de garantia do Qualis,
pois que aparentemente na sociedade contempornea se confunde crescimento tecnol-
gico com controle tecnocrtico, e por isso mesmo, conveniente de um tipo de saber.
Se no questionarmos a suposio de que o conhecimento uma mercadoriaque, sob certas circunstncias, pode ser infringida ao consumidor, a socieda-de ser cada vez mais dominada por sinistras pseudoescolas e totalitrios ge-rentes da informao. Os terapeutas pedaggicos doparo sempre mais seusalunos com a finalidade de ensin-los melhor; os estudantes tomaro maisdrogas para se aliviarem das presses dos professores e da corrida para os di-plomas. Nmero crescente de burocratas vai arvorar-se em professores. Alinguagem do homem da escola j foi escolhida pelo publicitrio. Numa soci-edade escolarizada, a guerra e a represso civil encontram uma justificativaeducacional. A guerra pedaggica, o estilo Vietn, ser justificada sempremais como nica forma de ensinar ao povo o valor supremo do interminvelprogresso (ILLICH apud GAJARDO, 2010, p. 68).
Pensando desta maneira, no se poderia esquecer que a cincia como um todo
no livre perante a sociedade de consumo; sua mercadoria de troca no sistema capita-
lista tem sido o artigo cientfico, que atende como qualquer outro produto de trabalho auma demanda: o consumo.
O xito econmico de qualquer coisa calculado pelo crescimento de sua pro-
duo total: quanto mais, melhor; tal regra a que determina a eficincia tecnolgica de
uma produo. Do mesmo modo, quanto mais publicaes cientficas, melhor seria o
reconhecimento de instituies de ensino superior, ainda que numa sociedade escolari-
zada um certificado ou diploma venham a estabelecer um mtodo admissvel de in-
fluncia e controle mercadolgicos.
Por outro lado, se possvel aumentar a produo de algo porque tecnicamentevivel, pode ser que os valores humanos, morais e ticos sejam subjugados pelo desen-
volvimento tecnolgico; seramos despersonalizados ao mesmo tempo em que nossos
objetos se tornariam personalizados. Assim, no haveria necessariamente perda desses
valores, mas o detrimento deles pelo ganho de apenas um, que se resume a uma alienan-
te meta de vida para todos ns ao mesmo tempo em que nos desumaniza, reduzindo-nos
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
21/204
8
a um apndice da tcnica (Fromm, 1969).
Logo h que se desconfiar de que dados quantitativos levantados pelo Qualis
sejam to capazes assim de analisar qualitativamente o contedo e processo de escritura
usado na produo de um artigo. Tal ideia vem decerto por influncia de que os dados
tecnolgicos se tornaram mais confiveis que os humanos o computador, como se diz,no falha.
Poucas pessoas formulam a questo da qualidade, ou de que vale todo esseaumento em quantidade. Essa omisso evidente numa sociedade que nomais est centralizada no homem, na qual um aspecto, o da quantidade, sufo-cou todos os outros. fcil ver que a predominncia desse princpio dequanto mais, melhor conduz a um desequilbrio em todo o sistema. Se to-dos os esforos so orientados para fazer mais, a qualidade da vida perde todaa importncia e as atividades que outrora eram um meio passam a ser um fim(FROMM, 1969, pp. 52-53. Grifos do autor).
No meio universitrio h certo consenso sobre a importncia de se saber o que se
produz ou no cientificamente, qual a qualidade dessa produo, como se d sua circu-
lao e qual a recepo pblica das pesquisas desenvolvidas, ainda que saibamos que
o acolhimento do Qualis como regulador e hierarquizador da produo cientfica nacio-
nal por meio da publicao de peridicos e sua aplicao no esteja hoje isenta de con-
trovrsias.
Para alguns cientistas a criao de rgos governamentais e/ou privados que
venham a satisfazer de fato os procedimentos de diferenciao do produto intelectual
brasileiro algo imperativo para nosso desenvolvimento cientfico. Para outros, no en-
tanto, tm sido visvel que no isso que est acontecendo, de vez que o critrio mais
relevante hoje na classificao de nossos peridicos o do Fator de Impacto que, at
onde se supe, baseado na Curva Normal (ou Mdia), de Gauss.
Para Rocha-e-Silva (2009), independentemente disso, deveramos indagar como
foi que se chegou a este termo, de que a Curva de Gauss deveria ser ou no aplicada a
essa anlise; decerto que ela, ao invs de incluir, exclui e, deste modo, intolerante com
a diversidade, quer de programas de ps-graduao ou projetos editoriais especficosque orientam cada peridico.
Ora, o Qualis tal como est parte de um projeto governamental de incluso do
Brasil no rol dos pases cuja produo cientfica e tecnolgica dever ser um modelo a
ser seguido. Sua proposta, ao que tudo indica, faz-se bastante condizente com o neolibe-
ralismo. E se assim for, mais poltica do que cientfica.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
22/204
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
23/204
10
pases. Dentre esses critrios, trs so os pontos relativos qualidade: 1) melhor quali-
dade de ensino e pesquisa; 2) maior adaptabilidade das IES para as demandas do merca-
do de trabalho; e 3) maior equidade.
Para o Banco Mundial melhorar a qualidade de ensino e pesquisa nas IES en-
volvia uma melhor seleo de estudantes; um corpo docente conveniente; fornecimentode insumos adequados; fomento de intercmbio internacional (isto , as IES de grande
prestgio deveriam estar abertas s influncias internacionais); e fortalecimento dos me-
canismos de valorizao (poderamos dizer, vigiar e avaliar o desempenho acadmico
em todos os nveis, sobretudo naqueles que gerassem resultados capazes de medirem
ensino e pesquisa).
A maior adaptabilidade das IES para as demandas do mercado de trabalho de-
terminava um maior fortalecimento em ensino e em pesquisa em ps-graduao (desde
que estivessem mais adaptados ao mercado); e, atender a demandas de cooperao regi-onal (ou seja, fomentava a confiana e o lograva o consenso entre os pases); prezar o
aumento da relevncia dos programas de estudos universitrios e profissionais (criando
novos cursos ou modificando os antes existentes, tambm em tempo e durao); e bus-
car estabelecimento de vnculos externos (como com a indstria).
En pases como el Brasil y la India y las naciones ex comunistas de Europacentral y oriental, los cuales tienen desde hace dcadas una importante capa-cidad de investigacin cientfica y tecnolgica, la falta de vnculos adecuados
con las instituciones de enseanza e investigacin ha perjudicado los cambiosen la industria impulsados por los nuevos conocimientos (BANCO MUN-DIAL, 1995, p. 85)4.
Finalmente, a maior equidade supunha melhorar as estratgias para aumentar a
integrao nacional e a representao de grupos humanos tradicionalmente desfavoreci-
dos pelas lideranas polticas e econmicas de um Estado (por exemplo, as polticas de
cotas, as bolsas de estudo, o Enem, o Prouni etc.).
Talvez como reao a essa nova poltica de flexibilizao das IES, em Outubro
de 1998 realizou-se em Paris a Conferncia Mundial da Unesco5sobre o tema Educa-
o Superior no Sculo XXI: Viso e Ao e seu objetivo era o de buscar solues aos
4Em traduo livre: Em pases como o Brasil, a ndia e nas naes ex-comunistas da Europa central eoriental, que possuem h dcadas uma importante capacidade de pesquisa cientfica e tecnolgica, a faltade vnculos adequados com as instituies de ensino e pesquisa prejudicaram as mudanas na indstriapelo impulso por novos conhecimentos.5Unesco: Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
24/204
11
desafios de nosso tempo, tendo como foco a qualidade e a ampliao deste ensino6. Nes-
te encontro, a resoluo aprovada pelos mais de 180 governos dos pases participantes e
pela comunidade cientfica internacional foi a de preservar o ensino superior como di-
reito dos povos e um bem pblico.
J se constatava poca que, apesar da grande expanso do ensino superior emtodo o mundo (aumentada em mais de seis vezes entre 1960 e 1995), neste mesmo in-
tervalo se sucedeu uma desigualdade ainda maior entre os pases desenvolvidos e sub-
desenvolvidos se se abordasse os pontos de acesso e investimentos para o ensino supe-
rior e a pesquisa. Alm disso, este momento correspondeu tambm ao de maior cristali-
zao socioeconmica e variedade de crescimento em relao s oportunidades educa-
cionais no interior desses mesmos Estados, e essa comprovao no se dava apenas nos
pases pobres.
Conclua-se, ento, que na falta de uma educao superior e de instituies depesquisa apropriadas que viessem a promover uma popularizao e, consequente au-
mento de indivduos qualificados e instrudos, nenhum pas teria condies de obter
para si um verdadeiro desenvolvimento social, solidrio e igualitrio, nem mesmo con-
seguiria reduzir a j antiga diferena que separava os pases pobres dos ricos. Assim que
se fazia imperativo repartir o conhecimento, a colaborao internacional e as inovaes
tecnolgicas que pudessem proporcionar novas ocasies na tentativa de reduzir esta
desigualdade.
Nesta conferncia, enfim, proclamou-se por meio da Declarao Mundial sobre
Educao Superior no Sculo XXI diversos critrios que deveriam ser seguidos pelos
governos dos pases participantes. Entre eles, e para o desenvolvimento deste estudo,
apontamos:
1) que as IES e a comunidade acadmica de cada pas deveriam [...] preservar e desen-
volver suas funes fundamentais, submetendo todas as suas atividades s exigncias da
tica e do rigor cientfico e intelectual, e [...] desfrutar de liberdade acadmica e auto-
nomia plenas, vistas como um conjunto de direitos e obrigaes (Artigo 2);
6Confira a Declarao Mundial sobre Educao Superior no Sculo XXI: Viso e Ao, de Paris, de 9de Outubro de 1998. Disponvel em:http://www.interlegis.leg.br/processo_legislativo/copy_of_20020319150524/20030620161930/20030623111830/.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
25/204
12
2) que o desenvolvimento do saber dar-se-ia com o auxlio da pesquisa, sendo esta [...]
uma funo essencial de todos os sistemas de educao superior que tm o dever de
promover os estudos de ps-graduao. A inovao, a interdisciplinaridade e a transdis-
ciplinaridade devem ser fomentadas e reforadas pelos programas dessas IES e que
elas deveriam [...] certificar-se de que todos os membros da comunidade acadmicaque realizem pesquisa recebam formao, apoio e recursos suficientes (Artigo 5);
3) que a importncia da educao de ensino superior precisaria ser medida por sua ade-
quao entre o que se desenvolve nas IES e o que a sociedade de um Estado espera dela
(por exemplo, ajudando a eliminar mazelas sociais), e que para isso seria necessrio
[...] padres ticos, imparcialidade poltica, capacidade crtica e, ao mesmo tempo, uma
articulao melhor com os problemas da sociedade e do mundo do trabalho (Artigo 6);
4) que a qualidade educativa nas IES deveria ser considerada como um conceito multi-
dimensional que englobasse [...] ensino e programas acadmicos, pesquisa e fomento
da cincia, [...] servios de extenso comunidade e o ambiente acadmico em geral,
alm da necessidade essencial de uma [...] auto-avaliao interna transparente e uma
reviso externa com especialistas independentes, se possvel com reconhecimento inter-
nacional (Artigo 11); e
5) que se fazia imprescindvel reforar a administrao e o investimento em educao
superior nos Estados tendo como base parcerias entre as IES e os organismos nacionais
e governamentais de planejamento e coordenao com intuito de promover competn-
cias e ajustar aes polticas visando melhorias futuras: Os administradores da educa-
o superior devem ser receptivos, competentes e capazes de avaliar permanentemente,
por meio de mecanismos internos e externos, a eficincia dos procedimentos e regula-
mentos administrativos, e, tambm que as IES deveriam ser independentes em seus
problemas internos (Artigo 13).
Entretanto, o ex-diretor da Diviso de Ensino Superior da Unesco, professor
Marco Antonio R. Dias, na Reunio de Reitores de Universidades Pblicas Ibero-
americanas7em 2002, afirmava que pouco antes da mesma Conferncia, a 23 de Setem-
7III Cumbre Iberoamericana de Rectores de Universidades Estatales, Porto Alegre, Brasil, 26 de abril de2002.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
26/204
13
bro de 1998, o secretariado da Organizao Mundial de Comrcio OMC, com o apoio
de representantes de alguns dos governos de pases que vieram contraditoriamente a
aprovar a Declarao de Paris, definiam novos princpios e regulamentos com a finali-
dade de tratar como mercadoria o ensino superior, um produto a ser vendido e expandi-
do, retirando dos Estados o direito legtimo de deciso sobre as aes voltadas para esseensino.
Dias argumentava que, nesta situao de poder sobre as IES de pases subdesen-
volvidos, os Estados ricos alm de receberem imensos lucros a partir desse comrcio,
controlariam de vez o que sobrava de independncia dos mais pobres, e que isso repre-
sentava para as relaes internacionais uma barbrie, numa nova expresso do imperia-
lismo.
Assim sendo e partindo dessa conjuntura, tendo em vista o atual desenvolvimen-
to cientfico das IES brasileiras, especialmente as pblicas, nosso estudo dedica-se, pois,a examinar a fundamentao terica em que se sustentam os critrios do Sistema Qualis,
da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior Capes. Os motivos
de tal escolha partem, a princpio, da prpria necessidade de se entender o discurso ofi-
cial voltado s universidades e como ele interpretado, absorvido ou rechaado pelos
cientistas.
1.2. Objetivos
Em tal situao, esta pesquisa se presta ao objetivo geral de analisar o discurso
oficial do Qualis discurso que, apesar de externo universidade tem sido adotado co-
mo de um rgo diferenciador e hierarquizador de nossa produo cientfica produzida e
publicada, sobretudo atravs de peridicos.
Tentaremos, pois, entender se seus critrios hoje em vigor tm ou no proporci-
onado um diagnstico favorvel ao nosso desenvolvimento cientfico e se tal sistema
ou no tolerante para com as IES, particularmente as pblicas, no que toca aos projetos
desenvolvidos em suas diversas reas de conhecimento.
Segundo La Velho (2008, p. 05), apesar do crescimento desmedido de nossas
publicaes nos ltimos anos, interpretar um banco de dados como os que nos so ofe-
recidos pelos ndices internacionais de indexao ou mesmo aquele oficializado por
meio do Sistema Qualis demandaria um grande entendimento sobre os conceitos nos
quais eles se ajustam e sobre suas restries de mtodo. No se poderiam comparar duas
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
27/204
14
IES, faculdades ou mesmo programas usando exclusivamente de critrios quantitativos,
como aparentemente se apresentaria hoje o Fator de Impacto. Assim que no seria pos-
svel determinar, por exemplo, se um impacto de um artigo em Biotecnologia mais
alto do que um de Fsica: H uma mxima repetida por todos os cienciometristas s-
rios: S se compara semelhante com semelhante. No somos iguais aos outros.Entretanto, pelo discurso da eficincia, sabemos que o discurso quantitativo est
de algum modo atado s Cincias Naturais e, ao que parece, estas tm sido determinan-
tes na formulao de critrios tcnicos que pudessem avaliar a nossa produo cientfica
global.
Neste raciocnio e partindo da hiptese da cobrana pelos rgos financiadores
de um grande volume de produo acadmica a ser publicada por nossos cientistas em
peridicos, cujos critrios destes vm obedecendo a padres quantitativos internacio-
nais, indagamos se tal exigncia impediria ou no o desenvolvimento criativo de ensaiospor parte desses mesmos cientistas. Do mesmo modo, poderamos tentar analisar como
tem caminhado nossa pesquisa cientfica hoje. E, assim, tentaramos examinar se os
critrios de avaliao do Qualis so de fato qualitativos ou tm deixado a desejar.
A expectativa a de que o material estudado possa servir de base para se esboar
sugestes de novos critrios de avaliao que possam trazer melhorias ao Sistema Qua-
lis.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
28/204
15
1.3. Materiais e Mtodos
Para entender no que se baseia o discurso e a poltica que sustenta o Qualis,
cremos ser necessrio entender como se constri as afinidades do discurso dominante
em nossa sociedade, ou seja, o do neoliberalismo, com o poder e o conhecimento da ena universidade ajustados a um programa restritivo poltico-governamental brasileiro
voltado para nossa produo cientfica.
Bourdieu (1998) levanta uma questo que nos parece primordial, de que se o
mundo econmico neoliberal seria de fato uma ordem pura e perfeita, cujos efeitos
no seriam logicamente inesperados e, sendo assim, se auto-autorizaria a qualquer tipo
de represso s crticas direcionadas ao modelo da eficcia estabelecido, ou, se na ver-
dade, o neoliberalismo no passaria de uma quimera econmica transformada em pro-
grama poltico, que se pensaria como a descrio cientfica do real.Ora, a universidade pblica no somente absorve como manifesta esta descrio
cientfica do real, posto que no esteja isolada da sociedade, e seu discurso est atrelado
a esta concepo econmica que determina como dever ser seu ensino e pesquisa. Seu
saber um poder e atende a instrumentalizao da cultura, que se autoriza por meio de
mandamentos cientficos de produo.
Portanto, considerando que a cultura do desperdcio seria uma qualidade essen-
cial da sociedade capitalista, particularmente daquelas de periferia como o caso da
nossa cujo desenvolvimento parece-nos insustentvel medida que no se alteram as
condies regressivas coloniais que sustentam nossa misria econmica, histrica e cul-
tural , no existiria mais lugar caracterstico parca memria cientfica.
A reproduo do sistema de consumo na fbrica contempornea d a impresso
hoje de ser mais cobrada do que a produo de novos conhecimentos cientficos que
poderiam alterar os rumos sociais e histricos brasileiros. Isto, decerto, porque a prpria
cincia provavelmente se tornou tambm mercadoria.
Deste modo, o desenvolvimento deste estudo se realizar a partir dos seguintes
procedimentos:
1) faremos um breve levantamento histrico da sistematizao da cincia e de como
vieram a se desenvolver duas de suas doutrinas cientficas, a do Cientificismo e do Es-
truturalismo;
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
29/204
16
2) levantaremos informaes a respeito do Sistema Qualis e como ele tem sido aplicado
para diferenciar e hierarquizar a produo cientfica brasileira;
3) analisaremos comparativamente os conceitos de quantidadee qualidadeao longo da
histria da Cincia, tentando observar at que ponto nosso atual quadro cientfico os
absorveu a partir da imposio do Qualis, como lei externa e exigida universidade; e4) confrontaremos a discusso entre os dois campos cientficos, das Cincias Naturais e
das Cincias Humanas, e o desenvolvimento tecnolgico, tentando entender a relao da
produo e da produtividade no que tem parecido ser uma banalizao da pesquisa cien-
tfica hodierna, bem como uma suposta crise de valores que parece atingir nosso desen-
volvimento cientfico.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
30/204
17
2. A CINCIA
Conhecimento seria, em sentido geral, a capacidade de apreendermos um objeto
qualquer atravs do pensamento. Assim que para tal prtica seria necessrio que hou-
vesse uma regularidade de significados nos acontecimentos a nossa volta, pois do con-trrio seria bastante dificultoso ordenar o mundo e transform-lo.
Em sentido especfico, poderamos dizer que o conhecimento seria uma constru-
o subjetiva de um objeto, que se remeteria existncia humana no campo terico e,
no campo prtico, aos desenvolvimentos tico, poltico e pedaggico.
Severino (2002) diz que existiriam diversos focos de conhecimento que atuariam
na realidade do mundo concomitantemente Filosofia, entre eles o senso comum, os
mitos, as religies, as artes e as cincias.
Qualquer hiptese sobre o mundo depende radicalmente de uma subjetivida-de apreendedora. Isso no significa que o mundo objetivo seja criado pelo atode apreenso do sujeito mas que, para este, o real s tem sentido na medidaem que se d conta dele subjetivamente (SEVERINO, 2002, p. 23).
Entretanto um problema de convvio poderia surgir se cada um desses focos de
conhecimento assumisse como verdade nica e, assim, absoluta, sua viso particular da
realidade de mundo para todo o mundo, em detrimento das demais. De algum modo,
ser isso que acontecer com a cincia.
Como hoje se costuma definir, a cincia (do latimscientia) refere-se ao conjunto
de opinies, conhecimentos racionais e de mtodos provenientes de um campo intelec-
tual genrico ou mesmo particular. Fazer cincia (ou produzir conhecimento cientfico)
consistiria em que um cientista / pesquisador investigasse atravs de uma prtica espec-
fica de reflexo, observao e experimentao a veracidade de determinados campos e
teorias de saber, como so os dos mitos.
Um mito muito difundido, por exemplo, aquele que dizia que a Floresta Ama-
znica era o pulmo do mundo, pois produziria a maior parte do oxignio de nosso
planeta. A cincia veio a provar que isto no era verificvel, que na verdade eram as
algas marinhas que produziam cerca de 80% do oxignio terrestre.
Deste modo, se uma teoria somente se limitasse a expressar evidncias sem de-
monstr-las, no poderia tal informao ser usada como conhecimento cientfico, por-
que careceria de poder explicativo.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
31/204
18
Com a valorizao dos centros cientficos j no sculo XVII, e a consequente
catalogao desses saberes com fins voltados ao desenvolvimento de novas ideias, me-
morizao e estudo, a cincia deu frutos.
Mas independente deste fato,
Espontaneamente, somos levados a crer [ns, o senso comum] que o cientista um indivduo cujo saber inteiramente racional e objetivo, isento no so-mente das perturbaes da subjetividade pessoal, mas tambm das influn-cias sociais. Contudo, se o examinarmos em sua atividade real, em suas con-dies concretas de trabalho, constataremos que a Razo cientfica no imutvel. Ela muda. histrica. Suas normas no tm garantia alguma de in-varincia. Tampouco foram ditadas por alguma divindade imune ao tempo es injunes da mudana. Trata-se de normas historicamente condicionadas(JAPIASSU, 1975, p. 10. Grifos nossos).
2.1. As tpicas cientficas
Na Grcia antiga, as tpicaseram qualidades universais da virem a ser conhe-
cidas como lugares-comuns em tempos posteriores que aparentemente serviam cria-
o oratria particular na sustentao de provas e argumentos julgados relevantes numa
sociedade, sendo usadas para defender ou refutar quaisquer assuntos que fossem debati-
dos.
Para Aristteles (1987), as tpicas eram uma espcie de mtodo de comprovao
de um raciocnio, fundamentado em opinies comumente aceitas e que serviam tambm
como referncias discursivas para que um orador evitasse pronunciar um assunto que
lhe pudesse criar dificuldades.
Em outras palavras, tratar-se-ia de um tipo de jogo cujas regras seriam impostas
igualmente a todos os adversrios, que mesmo no partindo de raciocnios necessaria-
mente verdadeiros, as premissas seriam acolhidas como verdade, sendo deste modo,
quase corretas porque provveis na resoluo de um enigma qualquer.
Pois nem toda opinio que parece ser geralmente aceita o na realidade. Comefeito, em nenhuma das opinies que chamamos geralmente aceitas, a iluso claramente visvel, como acontece com os princpios dos argumentos con-tenciosos, nos quais a natureza da falcia de uma evidncia imediata, e emgeral at mesmo para as pessoas de pouco entendimento (Aristteles, 1987, p.33).
Na cincia, portanto, as tpicas cientficas poderiam ser apontadas como cen-
tros de saber-poder e consideradas como pontos de convergncia de saberes que so,
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
32/204
19
uma vez apresentados como modelos acabados (normas), considerados como indiscut-
veis (isto , historicamente condicionados). Deste modo, a autoridade de tais centros
seria atribuda em funo de uma suposta verdade que se espera que as pessoas aceitem
sem questionar, ou que, no mximo, seus textos (re)produzam e reforcem esse modelo
pr-determinado, corroborando-o ou refutando-o.Poderamos afirmar que esses lugares seriam, nas palavras de Khun (2001), os
paradigmas. Diz o autor que
[...] uma comunidade cientfica, ao adquirir um paradigma, adquire igual-mente um critrio para a escolha de problemas que, enquanto o paradigmafor aceito, poderemos considerar como dotados de uma soluo possvel.Numa larga medida, esses so os nicos problemas que a comunidade ad-mitir como cientficos ou encorajar seus membros a resolver. Outros pro-blemas, mesmo muitos dos que eram anteriormente aceitos, passam a serrejeitados como metafsicos ou como sendo parte de outra disciplina. Po-
dem ainda ser rejeitados como demasiado problemticos para merecerem odispndio de tempo. [...] pode at mesmo afastar uma comunidade daquelesproblemas sociais relevantes [...] (KHUN, 2001, p. 60).
Conforme nos aponta Bakhtin (2002), somente aquilo que adquire um valor so-
cial pode entrar no domnio da ideologia, ganhar expresso e constituir-se de bens. As-
sim sendo, estamos desconfiados que seja prprio da natureza humana a necessidade de
centros de saber-poder, aparentemente porque as pessoas no estariam felizes consigo
mesmas e com o que possuem; ou porque necessitem, para viverem em sociedade, do
estabelecimento desses saberes. Logo, o poder estaria no todo, e este seria alguma
coisa do olhar, de se ler no outro eu.
Por exemplo, na religio estes centros se estabeleceriam atravs de salvadores ou
mrtires; literrios ou no. Na poltica, formar-se-iam ao adotarmos o discurso do outro
e nele depositarmos nosso voto. Na moda, ao negarmos nossa identidade em troca de
fazer parte de um todo do qual pudssemos ser reconhecidos.
2.2. A ditadura da viso
Entretanto, diversos foram os autores a partir de Plato (1965) que valorizaram o
olhar frente aos outros sentidos, pois graas a esse sentido o homem pode vir a desen-
volver a linguagem atravs da inteleco e com ela a escrita, perpetuando seus saberes
de um modo mais eficiente do que a memria.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
33/204
20
sabido que, a partir do Renascimento, a Igreja que antes detinha para si o po-
der atemporal e espacial, vir a ser substituda pela cincia, que estimulada pela socie-
dade de consumo, assumir o poder da verdade sobre os homens atravs da linguagem
lgica-racional. Ao contrrio da religio, o lao social provocado pelo progresso cient-
fico conduzir a Europa a uma ordem descentralizada e horizontal no espao da socie-dade, aumentando-se assim a circulao de conhecimentos antes privados ao poder reli-
gioso.
Alm disso, ainda nesta poca que se inventa a imprensa tipogrfica, que d
civilizao moderna um poder de registro nunca antes alcanado, visto que a tipografia
apresenta em sua definio no s a linguagem verbal, mas tambm a visual.
Alega Gaudncio Jr. (2004) que, apesar de que no tenha sido Gutenberg o in-
ventor da imprensa, foi a eficincia tcnica de seu modelo de impresso que o tornou
famoso, j que sua tecnologia s veio a ser superada no comeo do sculo XIX. Segun-do este autor, a proeza de Gutenberg estaria na criao de um molde adaptvel que fosse
simples de usar e, ao mesmo tempo, econmico. Foi o responsvel, portanto, pela ideia
inicial, trezentos anos antes de sua aplicao pela indstria, de uma teoria de partes in-
tercambiveis, que viria a ser desde ento amplamente adotada nos diversos ramos in-
dustriais.
Ao mesmo tempo, a tipografia possibilitou o nascimento do primeiro instrumen-
to educacional a ser difundido em grande quantidade: o livro. E de seus primeiros vest-
gios de autoria, de reconhecimento; e, quem sabe, de imortalidade. por meio do livro
que a cincia se transforma; e a partir dele, que se lanaro as sementes daquilo que
viramos a chamar de indstria.
Uma caracterstica importante da Revoluo Industrial, que a distingue signi-ficativamente das concepes gregas, a aproximao decisiva entre o mun-do do conhecimento e o do trabalho, da techne do logos. O conhecimento,ento, passa a ser aplicado ao trabalho, emergindo da a palavra tecnologiacom um significado prximo do atual. nesse perodo que a elaborao deenciclopdias passa a constituir um empreendimento intelectual importante[...] onde a matria-prima a informao, onde o conhecimento tratado co-mo mercadoria, sobre o qual se exerce o direito de propriedade (MACHA-DO, 1997, p. 14. Grifos do autor.).
Segundo Gaudncio Jr. (2004), em a Galxia de Gutenberg, Marshall McLuhan
assinala que a tecnologia de impresso ser a responsvel, ainda, pelo torpor que veio a
abater o mundo ocidental, operando a passagem da percepo oral para a visual. Falar,
neste sentido, tratar-se-ia um ato natural e comunitrio, ao passo que escrever, no.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
34/204
21
Aqui a fala j no era importante, j que viso deteria para si privilgios e o pensamento
seria independente da ao: Abstraindo o significado do som em um cdigo arbitrrio
e padro, o homem d forma lgica ao pensamento e com isso uniformiza e homogene-
za suas relaes(GAUDNCIO Jr., 2004, p.32. Grifo nosso).
Depois que a tipografia foi inventada, de todos os sentidos que o homem possui manifesto que entre eles , o que assume hegemonia a viso, em total ascendncia,
a ponto de Debord (1997, p. 27) vir a considerar que a ideologia dominante se sustenta-
ria atravs do excesso de imagens no mundo contemporneo: O espetculo o capital
a um tal grau de acumulao que se torna imagem (Grifo do autor). Isto , o que o au-
tor chamaria de espetculo, neste caso, tratar-se-ia de uma afinidade social por meio de
imagens, molde comum e onipresente de uma prvia eleio na fabricao e seu inter-
cambiamento ajustvel para a absoro pela sociedade de consumo.
Como nos lembra Ansio Teixeira (1971, p. 34), haveria outros efeitos prejudici-ais na supervalorizao do olhar, entre eles, a maquinizao do homem por causa de
uma deformao do aparelho biolgico-perceptivo que relevaria o pensamento ao sen-
timento, e conduziria a uma estratgia abstrata e racional (de carter objetivo) em preju-
zo da intuio.
E a algo ainda pior: reduzir a cultura aos olhos, individualizaria o homem frente
a seu grupo social, e pela regularidade prpria do texto impresso, torna [ria] o processo
educativo algo sistemtico e inflexvel que exclui quaisquer outras culturas mundanas8
e, portanto, no privadas, que no pudessem ser definidas pela fertilidade cerebral.
2.3 A supremacia da escrita
Para a maior parte dos filsofos ilustrados do sculo XVIII, por exemplo, que
buscavam definir os primrdios da linguagem por meio de uma linha evolutivo-
histrico-comparativa, isto , diacrnica, a linguagem na concepo que temos hoje
pela Lingustica nada mais seria do que a lngua escrita.
8Por exemplo, a escola enquanto instituio exclusiva do Estado para o ensino d legitimidade para ape-nas uma lngua oral (e sua respectiva cultura), a prestigiada socioeconomicamente. Assim que no Brasilnossa diversssima lngua oral anomalamente identificada com a Norma Gramatical Brasileira - NGB,em que essa funciona como uma lngua estrangeira, j que as diferenas entre o que falado, o que escrito e o que determinado pela gramtica adentra o mundo ficcional. Deste modo, estar fora da escola estar fora da cultura eleita representante de qualquer nao: a cultura de uma elite. Cf. LEICHSEN-RING (2009).
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
35/204
22
Isto assim aconteceria porque os filsofos partiram do pressuposto de que, tal
qual dizia a Sagrada Escritura, antes da linguagem o mundo era um Caos, e foi por cau-
sa da viso que aquela passou a existir. E se assim no aconteceu, no haveria a diferen-
ciao fundamental entre o ser racional e os animais no-racionais, conforme nos afirma
Moritz:
O homem, entretanto, no podia ficar muito tempo sem linguagem, porque oCriador, j desde o princpio a havia incorporado ao todo da criao, comouma necessidade fundamental do pensamento humano; e colocado nas coisasque o rodeavam uma diferena to notvel, que desse modo a palavra com aqual deveria design-la foi-lhe como que arrancada da boca. [...] Aps teraprendido desse modo9a diferenciar a natureza inteira que est fora dele, ohomem tambm alcanou ao mesmo tempo a plena e doce conscincia de si,por meio da qual se diferenciou de tudo o que o cercava. [...] Assim, por meioda linguagem, o homem aprendeu a diferenciar aos poucos o singular no todo(MORITZ apudSABINO, 2009, p. 100. Grifo do autor).
Herder (1987), no entanto, um pouco mais profundo, ao analisar a linguagem
enquanto lngua por um ponto de vista antropolgico, conduz ao descrdito o raciocnio
desenvolvido pelos seus contemporneos, como Condillac e Rosseau.
Para ele, a linguagem no teria uma origem divina, mas uma origem inerente ao
homem, e afirmaria em seu ensaio que cada povo criar e adaptar sua linguagem ma-
neira que v o mundo. Deste modo seria fundamental para a linguagem o contexto his-
trico, j que a razo humana e, portanto, o pensamento, dependeria de cada momento
desse relativismo cultural em sua construo.O filsofo ainda diz que o ser humano no possuiria instintos, porque em seu
lugar dominaria a habilidade da razo e se, em algum momento pudesse pensar como
um animal irracional, ento deixaria de ser homem:
Se, por um momento, estivesse privado de razo, no vejo como alguma vezpoderia pensar racionalmente, porque toda sua alma, toda sua disposio dasua natureza, tinha sido modificada [...] segue-se que, se o homem no pode-ria ser um animal instintivo, ento, devido fora positiva da sua alma e li-berdade de ao dessa fora, tinha que ser uma criatura dotada de reflexo(HERDER, 1987, pp. 51-52. Grifo do autor).
Entretanto, o estudo de Herder dbio e ele termina por se contradizer, j que
supe a existncia de um ser aqum do homem em seu termo Omnisciente , que ao
criar tal ser racional j o dotaria de exprimir a razo desde o primeiro momento de vida.
9Grifo nosso.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
36/204
23
2.4. Episteme, mtodo e tcnica
Em Houaiss (2009), a palavra mtodo tem sua origem na palavra grega m-
thodos, que significava busca ou pesquisa. Por extenso tambm passou a designar
estudo metdico de um tema, j que metindicaria uma atividade de movimento ehdos seria caminho, e deste modo, um caminho percorrido para se atingir algum
fim.
Segundo Japiassu (1975, p. 21-22) a ideia que se construiu ao longo do tempo
sobre a objetividade cientfica no seria um problema exclusivamente metodolgico,
mas tambm epistemolgico, porque [...] aquilo que comumente chamamos de meto-
dologia, no passa de um domnio da interrogao epistemolgica.
Para o autor deveramos tentar saber qual o verdadeiro sentido do termo cin-
cia, que a seu ver, hoje significaria apenas um estudo instrumental, posto que a meto-dologia tal como vem sendo aplicada no seria um fimpara si mesma, mas um meio
para alcanar a fabricao um fim especfico, isto porque sendo desenvolvida numa
tica capitalista, o que denominaramos como objetividade cientfica ou cincia fa-
ria meno a uma quantificao racionalizada de produo. E olhando desta maneira,
estaria claro, de que j no estaramos mais pensando sobre objetividade ou cincia,
pois que esta estaria desapropriada de si, vertida em tecnologia.
No a vitria da cincia que caracteriza nosso sculo, mas a vitria do m-todo cientfico sobre a cincia (NIETZSCHE apudLEBRUN, 2004, p. 51).
Sobre essa mesma situao, diz-nos Lebrun (2004) que o mtodo cientfico do
sculo XIX ao tempo presente construir-se-ia a partir de uma ao dupla, eliminando o
dizer para reter somente o dito capaz de ser comunicado.
Logo, uma cincia que fosse somente dito no passaria de uma tcnica: elimina-
ria o pensamento abstrato porque se concentraria no campo da habilidade, numa ativi-
dade repetitiva porque automtica, e estpida porque no crtica (Japiassu, 1975). E a
pesquisa cientfica que seria necessria formao educacional ao invs de educar, de-
seducaria, porque anularia a possibilidade de que os novos cientistas, isto , os educan-
dos, determinassem sua aparncia futura.
Uma reflexo mesmo sumria, sobre os pontos de saberes cientficos consti-tudos, e culminando em tcnicas bastante eficazes, leva-nos facilmente aperceber que as cincias, em sua vertigem crescente de objetividade e de ra-
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
37/204
24
cionalidade, conduzem aqueles que as praticam a um esquecimento progres-sivo e rpido dos pontos de partida e das decises constitutivas de seu saber(JAPIASSU, 1975, p. 13. Grifo do autor).
Desse modo, a narrativa cientfica tornar-se-ia precria bem como a existncia
humana no Capitalismo. Se recordar no mais viver, se no h tradio que resgate os
pontos de partida e as decises constitutivas do saber cientfico, no somos obrigados a
pensar. A falta de identificao de uma prxis que possa conduzir a um fim social leva o
cientista ausncia de compreenso do que deva ser seu papel como ser consciente. O
reino da tcnica o fetiche do mtodo, que dispensa o ser humano da responsabilidade
sobre seu legado cientfico.
Ora, o reino da tcnica, em sua mxima especializao a tecnocracia, que no
se construiu sozinha, por uma mera casualidade. Enquanto tcnica ela se sustenta a par-
tir dum fundamentalismo cientfico que passou despoticamente a reinar no interior dacincia, sendo que seu argumento est completamente atado uma ordem moral-poltica
no interior da sociedade capitalista. A este fundamentalismo chamamos Cientificismo.
O que legitima a tecnocracia, para alm da burocracia esta que possuiria o tra-
balho de organizar tudo numa dada sociedade, assentada numa hierarquia de poder e
controle, e em muitos casos, com privilgios que aquela teria a tendncia a extrapo-
lar o poder poltico-governamental, assumindo para si mesma o poder decisrio, de vez
que o tecnocrata se apoia to-somente em critrios de eficincia (e economia) para dar
legitimidade aos seus fins e valores. A tcnica aqui no mais seria intermediria e ins-trumento de trabalho de um especialista, mas de um burocrata com uma expresso do-
minante de trabalho que ataria conhecimento com verdade nica, poltica com cincia e
ditaria como irracional o que no fosse quantificvel.
Da que a tecnocracia sobreviveria bem at demais em regimes capitalistas, so-
bretudo em perifricos, como o brasileiro, cujas desigualdades humanas, sociais e cultu-
rais so imensas. Na cincia em geral, espcie de religio moderna, os tecnocratas fun-
cionariam tal qual sanguessugas, pois que transformariam a tecnologia em propsitos,
desencorajando a prpria produo e criao cientficas.
Hoje, ela [a universidade] forma a mo de obra destinada a manter nas fbri-cas o despotismo do capital. Nos institutos de pesquisa, cria aqueles que de-formam dados econmicos em detrimento dos assalariados; nas escolas de di-reito, forma os aplicadores de legislao de exceo [...] Em suma, trata-se deum compl de belas almas recheadas de ttulos acadmicos, de doutorismosubstituindo o bacharelismo, de uma nova pedantocracia, da produo de umsaber a servio do poder, seja ele de que espcie for. Na instncia das facul-
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
38/204
25
dades de educao, forma-se o planejador tecnocrata a quem importa discutiros meios sem discutir os fins da educao que, na verdade, so verdadeirasrestauraes. [...] A pretensa criao de conhecimento substituda pelocontrole sobre o parco conhecimento produzido pelas nossas universidades[...] e o campus universitrio cada vez mais parece um universo concentra-cionrio (TRAGTENBERG, 1979, pp. 15-16. Grifo do autor.).
2.4.1. A doutrina cientificista
Conforme Japiassu (1975), quem sabe j fosse da ordem do dia afirmar que o
conhecimento do poder estaria substituindo o poder do conhecimento, posto que a
direo da cincia nos dias de hoje sofreu uma anstrofe, poderamos dizer, certa inver-
so de mtodo que iria no do real razo, mas do racional ao real, fazendo com que a
razo seja mais real que a prpria realidade.
Do mesmo ponto de vista, para Baudrillard (1978, pp. 20-21), precisaramos de
um objeto, mesmo simulado, que nos garantisse o sentido de se continuar fazendo cin-
cia frente acumulao tecnolgica, porque seria primordial um passado que fosse pal-
pvel, uma referncia slida de nossas origens que pudessem nos aliviar a respeito de
nossos prprios fins: Ramss no significa nada para nosotros, slo la mumia tiene un
valor incalculable, puesto que es la que garantiza que la acumulacin tiene sentido10.
O Cientificismo ser a doutrina cientfica surgida no sculo XVIII, que se afir-
mar imperiosamente a partir do XIX, por causa das grandes colaboraes da Fsica e
da Matemtica ao domnio do conhecimento cientfico. Desde ento, tal qual uma pode-
rosa doutrina religiosa, passar a sujeitar a cincia, em todas as suas ramificaes, aos
seus dogmas: qualquer subgrupo cientfico que queira ser verdadeiro dever adot-los.
O nascimento do Cientificismo remeter-se-ia epistemologia positiva de cin-
cia, cujo maior terico seria Kant. Entretanto, talvez devssemos mesmo voltar at o
sculo XVII, e atribuir este crdito a Descartes.
Descartes buscava estabelecer um ponto confivel que servisse de plataforma
para a construo do conhecimento cientfico: [...] e a esse ttulo que maximiza a
dvida de Montaigne: dvida que comea a aplicar nas ideias que vm da tradio e dos
sentidos, opondo-lhes as nicas que tm o mrito de ser claras, as ideias matemticas
(LEBRUN, 2004, p. 57).
Descartes (1999), que veio a ser conhecido como o fundador da filosofia mo-
derna, diz em seu Discurso do Mtodode que uma opinio que no fosse transparente
10Em traduo livre: Ramss no significa nada para ns, somente a mmia tem um valor incalculvel,posto que seja ela a garantia de que a acumulao tem sentido.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
39/204
26
e, por isso mesmo, dotada de uma distino, deveria ser questionada quanto sua vera-
cidade. E seria a Lgica que deveria fornecer os princpios que guiariam o pensamento
cientfico.
Para chegar a tal raciocnio Descartes afirmaria que partiu da ideia de que como
era iludido algumas das vezes pelos seus prprios sentidos, calculou que no poderia serpossvel atingir a realidade deste modo, e pensando que muitos indivduos so engana-
dos pelo prprio pensamento e raciocinam por meio de sofismas, declarou como falsos
esses juzos.
Assim, o filsofo, na tentativa de demonstrar se ele mesmo existiria ou no co-
mo ser humano, diria que seu ato de pensar sobre sua prpria existncia, sendo anteci-
padamente interrogado pela dvida, seria aquele que provavelmente a sustentaria como
humano, e logo, dotado de razo. Da sua mxima: Cogito, ergo sum.
Diz Japiassu (1975, p. 76) que Kant, influenciado pelo argumento descartiano,
Simplesmente[...] reservou o ttulo de conhecimento nica e exclusivamen-te a essa espcie de determinao da vida mental que so, de um lado, a expe-rincia sensvel, do outro, sua elaborao empreendida mais ou menos previ-amente pelo entendimento; e o produto acabado do entendimento no podeser outra coisa seno o conhecimento cientfico, isto , a cincia propriamen-te dita (Grifo nosso).
Assim sendo, desde Kant, o que a cincia pelo vis cientificista diria a qualquer
um que desejasse pratic-la, partindo da hiptese de que para esse filsofo a pedra basi-
lar da cincia seria todo dado fenomenolgico, em todas suas manifestaes possveis,
que to somente seria dela o poder de conhecer a totalidade de coisas do universo fsico,
simblico e imaginrio.
2.4.2. A doutrina estruturalista
No interior das Cincias Humanas, a doutrina cientificista foi absorvida de uma
maneira toda particular e ganhou o ttulo de Estruturalismo. Diz Japiassu (1982) que o
mtodo estrutural ou o Estruturalismo o que permitiu a Cincias Humanas se desen-
volver. No entanto, tal mtodo hoje no meio universitrio estaria saturado.
Para este autor, a cincia, enquanto humana, teria se construdo segundo uma
apreenso de comportamentos passveis de serem medidos, isto , quantificados, e no
sobre uma representao adequada de indivduo. Tal situao epistemolgica tomaria a
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
40/204
27
coletividade humana como coisa em si, ainda que a verdade assim construda tendesse
a uma generalizao. Como metacincia, teria eliminado os exemplos especficos de
uma inferncia que deixaria de representar a atualidade do real:
[...] pois contenta-se emfal-la, em fal-la de certo ponto de vista, num certonvel de relao prpria coisa, em vista de certa utilidade11em solidarieda-de com a qual as prticas de observao se veem [j] definidas (JAPIASSU,1982, p. 72. Grifo do autor).
O empirismo humano no dependeria, sobretudo, da prtica tcnica, caso das
Cincias Naturais, mas a um tipo novo de positivismo kantiano que tomaria como fun-
damento o conceito ou prtica terica. Este seria o Estruturalismo, cuja forma de pen-
samento continua a influenciar a Universidade at os dias de hoje e cujo maior represen-
tante, para Bakhtin (2002), seria Saussure.Bakhtin a partir de uma crtica feroz ideia de sincronia12proposta por Saussu-
re, questionaria a valorizao da lngua frente linguagem, e diz que isto seria um re-
corte falso da produo enunciativa humana, cuja condio natural seria sucessiva.
Para o filsofo russo, se essa ideia do Estruturalismo que , em suma, a de se
construir uma anlise global a partir de uma anlise particular, viesse a se tornar uma
norma, poderia vir a neutralizar os diferentes discursos de sua natureza scio-
ideolgica, por desprezar o contexto histrico13.
Saussure (1969), ao focar to somente a lngua como objeto de conhecimento,relevando-a a uma categoria social em detrimento de seu ato individual, retirou do ho-
mem a sua posio como sujeito que fala e o colocou como um ser passvel de descri-
o.
Outras cincias trabalham com objetos dados previamente e que se podemconsiderar, em seguida, de vrios pontos de vista; em nosso campo, nadasemelhante ocorre. [...] Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto devista, diramos que o ponto de vista que cria o objeto; alis, nada nos dizde antemo que uma dessas maneiras de considerar o fato em questo seja
anterior ou superior s outras. (SAUSSURE, 1969, p.15).
11Grifo nosso.12Saussure considerado o pai da Lingustica ocidental, e enfatizava que o estudo sincrnico da lngua,ou seja, em dado momento do tempo e independente de seu contexto histrico, tornava o estudo lingusti-co mais descritivo, e, portanto, melhor que o estudo diacrnico (atravs do tempo).13Por exemplo, quando neutralizarmos uma lngua oral, cristalizando-a numa lngua escrita, levamos aodetrimento inmeras lnguas orais faladas por um mesmo povo num mesmo pas.
-
7/17/2019 IVAN_MARTINS_FONTES_LEICHSENRING_rev (1).pdf
41/204
28
Para Coutinho (2010), que de maneira semelhante de Bakhtin questiona o Es-
truturalismo e o coloca como a misria da razo, tal mtodo seria imprescindvel ao
pensamento ideolgico da burguesia presente, impossibilitada de aceitar a razo dialti-
ca, a objetividade histrica e a prxis humana.
Ao destronar a nobreza e o clero, esta nova classe atuante estava preocupadacom a manuteno e a defesa terica desse novostatus, e por isso