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B. EIKHENBAUM "SoBRE A TEORIA DA PROSA"l I Já Otto Ludwig indicava, d~ acordo com a função da narràção, a diferença entre duas formas de relato: "o relato propriamente dito" (die eigentliche Erziihlung) e "o relato cênico" (die sze- nische Erzãhlung). No primeiro caso, o autor ou o narrador ima- ginario dirige.se aos ouvintes; a narrl,l.çãoé um dos elementos de- terminantes da forma da obra, às vezes o elemento principal; no segundo caso, o diálogo dos personagens e~tá em primeiro plano e a parte narrativa reduz-se a um comentário que envolve e expli- ca o diálogo, isto é, restringe-se de fato às indicações cênicas. Esse gênero de relato lembra a forma dramática, não somente pelo des- taque dado ao diálogo, mas também pela preferência outorgada à apresentação dos fatos e não à narração: percebemos as ações não 1 Os textos reunidos sob esse titulo pertencem originalmente a ar. tlgos diferentes.

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B. EIKHENBAUM

"SoBRE A TEORIA DA PROSA"l

I

Já Otto Ludwig indicava, d~ acordo com a função da narràção,a diferença entre duas formas de relato: "o relato propriamentedito" (die eigentliche Erziihlung) e "o relato cênico" (die sze-nische Erzãhlung). No primeiro caso, o autor ou o narrador ima-ginario dirige.se aos ouvintes; a narrl,l.çãoé um dos elementos de-terminantes da forma da obra, às vezes o elemento principal; nosegundo caso, o diálogo dos personagens e~tá em primeiro planoe a parte narrativa reduz-se a um comentário que envolve e expli-ca o diálogo, isto é, restringe-se de fato às indicações cênicas. Essegênero de relato lembra a forma dramática, não somente pelo des-taque dado ao diálogo, mas também pela preferência outorgada àapresentação dos fatos e não à narração: percebemos as ações não

1 Os textos reunidos sob esse titulo pertencem originalmente a ar.tlgos diferentes.

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como contadas (a poesia épica), mas como se das, cnccnadas, seproduzissem à nossa frente.

Enquanto a teoria da prosa se limita ao problema da com-posição da obra, essa diferença aparece como insignificante. Po-rém, alcança uma importância fundamental desde que atinja cer-tos problemas principais que estão ligados naturalmente à teoriada prosa literária. Esta encontra-se no momento em estado embrio-nário, porque não se estudaram os elementos determinantes da for-ma de um relato. A teoria das formas e dos gêneros poéticos, fun-dada sobre o ritmo, possui princípios teóricos estáveis necessáriosà teoria da prosa. O relato composto não está suficientemente li-gado à palavra para servir como ponto de partida para a análisede todos os tipos de prosa literária. Nesse sentido, só o problemada forma da narração, parece-me,o fornece. .

A relação entre a narração literária e o relato ora] ad-quire nesse caso uma importância fundamental. A prosa literáriasempre utilizou muito as possibilidades da tradição escrita e criouformas impensáveis fora do quadro dessa tradição. A poesia sem-pre se destina a ser falada j por isso, não vive no manuscrito,nolivro, enquanto .que a maior parte das formas e gêneros prosaicossão inteiramente isolados da palavra e têm um estilo próprio nalinguagem escrita. O relato do autor orienta-se seja para a formaepistolar, seja para memórias ou notas, seja para estudos descri-tivos, o folhetim, etc. Todas essas formas de discurso participamexpressamente da linguagem escrita, dirigem-se ao leitor e nãoao ouvinte, constroem-se a partir dos signos escritos e não a par-tir da voz. De outro lado, no caso em que os diálogos são CODS-truídos dentro dos princípios da conversação oral, eles assumemuma coloração sintática e lé::x:icacorrespondente, introduzem naprosa elementos falados e narrações orais: em geral o narradornão se limita ao relato, recorre também às palavras2.

Se em tal diálogo damos destaque a um dos locutores, apro-ximamo-nos mais do relato oral. As vezes, a novela desdobra-se jun-

2 Cf. na obra de K. Hirzel (Der DIaIog, Ein literathistorischer Versuch,1895) as indicações sobre a função importante do diálogo como gêneroprosaico: destrói as formas fixas da língua literária e introduz elementosda linguagem familiar, falada. Citam-se como exemplo os diálogos. deMaquiavel, o célebre diálogo de Castlglione que se insurge contra o di.leto toscano dominante na Uteratura itaiiana. diálogos dirigidos contrao latim, etc. (t. I, p. 87 e seguintes).

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tamente com a palavra: quando há a introdução dc um .certo nar-rador euja presença é motivada pelo autor ou não explieada.

Assim, obtemos uma imaA'cm global da variedade das formasna prosa literária. Esse ponto de yista ilumina de fonna total-mente nova os problemas do romance. .A novela italiana dos sécu-los xm e XIV desenvolveu-se diretamente a partir do conto e daanedota e não perdeu sua ligação com suas formas primitivas denarração. Sem imitar intencionalmente o discurso oral, adaptou-se à maneira do narrador desprctensioso que busca fazer-nos co-nhecer uma hist6ria, usando apenaR palavras simples. Essa novelanão contém exatlstivas descriGões da naturezn, nl'm característi-cas detalhadas dos personagens ou digressões, sejam líricas oufilosóficas. Não encontramos diálogo, pelo menos ~ob a forma aque a novela e o romance contemporâneo nos habituaram. No antigoromance de aventuras, a IigaGão dos episódios, justapostos pelafábula, era feita através de um herói sempre presente. ESRe 1'0-manee desenvolveu-se a partir de uma compilac:ão de novelas. dogênero do Decameron. onde se dá import.ância ao enqnadramento dorelato e aos procedimentos de motivacão (V. Chklovski.). Aqui oprincípio da narracão oral não foi ainda dCRtrnldo. a ligação como conto e a anedota não foi definitivamente romoida.

A partir dos meados do século xvm e sobretudo no F:oouloXIX, o romance toma uma outra característica. A cultura livrescadesenvolve as formas literárias de estudos, de artigos, de narraGãode viagem, de lembranças, etc. A forma epistolar permite as des-crições detalhadas da vida mental, da paisagem observada, dospersonagens, ete. (por e::x:emnlo.em Richardson). A forma literá-ria de notas e lembl'anc:as dá livre curso às descrições ainda maisdetalhadas dos usos, da natureza, dos costumes, etc. No comec:o doséculo XIX produz-se uma larga expansão dos estudos de usos edo folhetim, que tomarão mais tarde a forma dos estudos ditos (l fi-siolól!icos". estudos privados de todo caráter moralizador e centra-lizador sobre a descri~ão da vida .citadina com toda a. variedadede snas clasF:es. de seus grnnos. de !'IllaSgírias. etc. O romanCedo século XIX deriva em Dickens, Balzac, Tolstoi, Dostoiewski,desses est.ndos descritivos e psicol6gicos. Os estudos ingleses dot.ipo de l,ife in London (P. Egan), as descri~ões francesas. de Pa-ris (Le Diah1""à Pari~. Os franceses pintad().<;por eles 'I'If,p.S1nos.etc.) ,os e~tndo!\ "fiRioló!!icos" TU!:.cms:eis os princíoios. desse romanc('.Existe, entretanto; .üm romance que remonta ao vell.1o romance deaventuras e que. ou toma uma fon;nll hist6rica (W. Scott), ou uti-liza-sc daR forma!'; do discurso orat6rio. ou entiio torna-se um. tipo

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de narração lírica ou poética (V. Hugo). Guardamos aqui o vinculocom a palavra que, todavia, se aproxima. da declamação e não danarração; os romances de tipo descritivo e psicológico de caráterpuramente livresco perdem até mesmo essa ligação atenuada.

O romance do século XIXcaracteriza-se por um largo empre-go de descrições, de retratos psicológicos e de diálogos. As ve-zes, apresentam-se esses diálogos como uma simples conversação,que nos retrata os personagens através de suas réplicas (Tolstoi),que é simplesmente uma forma disfarçado. de narração, não ten-do por esse fato um' caráter "cênico", mas às vezes, esses diálo-gos tomam uma forma puramente dramática que, antes de funcio-nar para caracterizar os personagens por suas réplicas, faz avançara ação. Assim tornam-se um elemento fundamental dê construção.O romance rompe dessa maneira com a forma narrativa e torna-seuma combinação de diálogos cênicos e de indicações detalhadas quecomentam o cenário, os gestos, a entonação, etc. As conversaçõesocupam páginas e capítulos inteiros: o narrador limita-se a obser-vações explicativas do gênero de "ele disse" - "ela respondeu".Sabemos que os leitores buscam neste tipo de romance a ilusão daação cênica e freqüentemente só lêem essas conversações, omitin-do . todas as descriçõesou considerando-asunicamente indicaçõestécnicas. Certos escritores, conscientes do fato, substituem as des-crições por uma forma dramática. Zagoskine escreve: "Quando to-do o mundo fala, o relato perde seu lugar. Estas palavras expli-cativas: 'Ahroém diz, outra interrompe, outro objeta, outra re-toma', não fazem mais do que embrulhar e desconcertar o leitor; damesma forma permitam-me recorrer à. forma dramática comum. Émaisclara e simples". (Moscoue osMosco1JUas.)Ou ainda:'''Repro-duzindo uma conversa particular, sobretudo quando uma sociedadeinteira dela participa, somos obril1.'ados,contra a nossa vontade, anomear freqUentemente os interlocutores e ainda a repetir semcessar: 'Tal disRe.tal outro respondeu.. . '; para evitar essas repe-tições inút.eis, é melhor; salvo em certos relatos, utilizar uma formadramática".

Assim. o romance europeu do século XIXé uma forma sincré-tica que não contém senão alguns elementos de narração e que, àsvezes,se separa inteiramente dêless..

3 2 curioso notar-se que a noção do romance como uma nova formasincrética era familiar à velha critica. Citarei como exemplo as palavrasde S. Cheivirev: «Em nosso parecer, o romance é fruto de uma mistura

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O desenvolvimento desse romance chegou a seu apogeu du.rante a década de 70 do século XIX; desde então, não nos liberta.mos dessa impressão de definitivo, cremos que não existe formaou gênero novo na prosa literária. Entretanto, o romance dessetipo desagrega-se à nossa frente e diferencia-se. De um lado, cul-tivam-se as pequenas formas próximas da simples narração, de ou-tro, encontramos memórias, relatos de viagem, correspondências,estudos de costumes; ao mesmo tempo, os elementos que dependiamda fabulação do romance passam cada vez mais para os roteiros cionematográficos: fato bastante significativo, porque prova a pos-si'bilidade de traduzir uma obra verbal desse gênero numa língua"muda". Podemos notar também o fato de que depois de A.na.Ka-renina, L. Tolstoi escreveu peças de teatro e "relatos populares".A prosa russa do século XIXmostra-nos um fenômeno ainda maissignificativo e notável: é a existência de escritores tais como DaI,Gogol, Leskov, escritores etnógrafos tais como A. Melnikov, Pet.cherski, P. J'akuchkine, S. Maximov, ete. Esses fenômenos, escon.didos pelo desenvolvimento do romance e a inércia que ele provo-cou, reaparecem agora como uma nova tradição: a prosa contem-porânea atualizou o problema da forma e também o problema danarração. Temos testemunhos disso nos contos e novelas de Remi-zov, de Zamiatine, nas últimas obras de Gorki, nos estudos de Prich-vine, nas novelas de Zochtchenko, Ivanov, Lecnov, Fedine, Nikiti-ne, .BabeI, etc.

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O romance e a novela não são formas homogêneas mas, pe.10 contrário, formas completamente estranhas uma a outra. Por is-so, não se desenvolvem simultaneamente, nem com a mesma intensi-dade numa mesma literatura. O romance é uma forma. sincrética

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nova e contemporânea de todos os gêneros poéticos. Admite igualmenteos elementos épicos, dramáticos e líricos. O elemento dominante dá Qcaráter do romance: assim podemos indicar os romances épicos, porexemplo Wilhelm Meister de Goethe ou Dom Quixote de Cervantes; háromances líricos: citarei Werther do mesmo Goethe; podemos chamar 08romances de W. Scott de <dramáticos> porque se baseiam no drama,sem que os outros elementos sejam excluídos». <Moskvlt1anlne, 1843, t. I.p. 574.)

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(pouco importa se ele é desenvolvido diretamente a partir da com-pilação de novelas, ou se é tornado complexo pela inclusão de des.crições de costumes); a novela é uma forma fundamental, elemen.tar (o que não quer dizer primitiva). O romance provém da histó-ria, do relato de viagens; a novela provém do conto, da anedota. Defato, trata-se de uma diferença de princípio, determinada pela ex-tensão da obra. Vários escritores e diferentes literaturas cultivamou o romance ou a novela.

Constr6i-se a novela sobre a base de uma contradição, de umafaIta de coincidência, de um erro, de um contraste, etc. Mas issonão é suficiente. Tudo na novela, assim como na anedota, tende pa.ra a conclusão. Ela deve arremessar-se com impetuosidade, tal co-mo um projétil jogado de um avião, para atin~ir com todas as suasforças o ob.ietivo visado. Naturalmente, trato aqui apenas da no-veJa de intriga, deixando de -lado a novela'-descrição que caracte-riza a literatura russa assim como a "narração direta". Short storyé um termo que subentende sempre uma estória e que deve respon-der a duas condições: dimensões reduzidas e destaque dado à con-clusão. Essa~ condições criam uma forma que, em seus limites eem seus procedimentos, é inteiramente diferente daquela do ro.mance.

Tais são os outros fatores que têm importância primordial noroman<,e. a saher: a técnica utiJi7.ada oara diminuir a acão, pa-ra comhinar e unir os elementos heterof!êneos; a habi1idade naradesenvolver e lig-ar os episódios, para criar centros de intereliSediferentes, para conduzir as intri~as paralelas,' etc. Essa constru-'ção exi~e que o final do romance seja um momento de enfraque-cimento e não de reforço; o ponto culminante da ação principaldeve encontrar-se em al~m lugar antes do final. O romance ca-racteriza-se pela presença de um epOogo: uma falsa conclusão. umbalanco Que abre uma perspectiva ou que conta ao leitor a Nach-geschicltte dos persona~ens principais (cf. Rudine de Tur~ueniev,Guerra e Paz). Por isso, .é natural que um. final ine.c;peradosejaum fenômeno ha.c;tanteraro no romance (e se nós o cncontrannos,não é testemunha de outra coisa senão da influência da novela) ; asg-randes dimensões, a diversidade dos episódios impedem tal modode con!'ltrucão, enananto Que a novela tende precisamente oara oimprevisto do final, onde culmina .tudo o que o precede. No ro-

.mance,um certo declivedeve sucederao pontoculminante,enquan.to Quena novela é mais natural que se pare no ãpice que se alcançouComparar-se-á. o r.omnnce a um longo. passeio através de lu~aresdifert'ntes que supõe um retorno tranqüilo; a noyela, à escalacla (le

uma colina, tendo por finalidade oferecer-nos a vista que se desco-bre dessa altura.

Tolstoi não pôde terminar Ana KareniM com a morte dela:viu-se obrigado a escrever uma parte suplementar, ainda que fos-se bastante difícil, pois o romance estava centralizado sobre o des-tino de Ana. A lógica da forma romanesca pedia um prolongamen-to; de outro modo, o romance teria parecido uma novela diluídacompreendendo personagens e episódios inteiramente inúteis. Es-sa construção teve um destino forçado: mata-se o personagem prin-cipal antes que o destino dos outros personagens seja decidido. Nãoé por um acaso que, habitualmente, os heróis alcançam' o finaldo romance salvos depois de se encontrarem a dois passos da morte(apenas seus companheiros perecem). O paralelismo da construçãoajudou Tolstoi: de~deo começo,Levine disputa o primeiro lugar comAna. De outro lado, nas Narrações de BieZkine,Pushkin busca pre-cisamente fazer coincidir a conclusão da novela com o ápice daintriga a fim de obter o efeito de um desfecho. inesperado (cf. ATempestade, O Mercador de Ataúdes).

A novela lembra o problema que consiste em colocar .uma.equa-ção a uma incó~ita; o romance é um problema de regras diversasque se resolve através de um sistema de equações com muitas inocó~itas, sendo as constru«;õe~intermediárias mais importantesque a resposta final. A novela é um enigma; o romance correspondeà charada ou ao jogo de palavras.

Na América. muito mais que em outra parte. cultiva-sEi.a no-vela. curta (s1wrt story). Até a metade do século XIX,a literaturaamericana confunde-se com a literatura inglesa na consciência dosescritores e dos leitores, e é absorvida' em grande parte por essaúltima. sendo considerada uma literatura provinciana. W ashin~-ton Irvin~ escreveu com amarJtUra no prefácio de seus estudos so-bre a vida in~lesa: ««Surpreende-nos o fato de que um homem saídodos desertos da América tivesse se exprimido em inglês de maneirasuportável. Fui olhado como um fenômeuo estranho em literatura,como uma e!loécip.de semi-selvag-p.mcom uma pluma na 'mão aoinvé!l de levá-Ia sohre a cabe«;a.e foi-lhes curioso saher Queum serdesse ~ênero pudesse ter o que dizer sobre a sociedade civilizada"'.

Entretanto, ele se reconhece a si mesmo como educado no es-pírito da cultura e da literatura inglesa, e seus estudos unem-se

4 W. Irving, o Castelo de Braoebrldg~.

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estreitamente à tradição dos estudos de costumes ingleses: "Nas.cido num país novo, mas familiarizado desde minha infância coma literatura de um país velho, meu espírito foi oportunamente sa-ciado de idéias históricas e poéticas que se ligavam aos lugares, aoscostumes e aos usos da Europa, mas que podiam raramente aplicar-se aos de minha pátria. .. A Inglaterra é, para um americano, umaterra tão clássica quanto a Itália o é para um inglês, e a velha Lon-dres inspira-lhe tantas idéias históricas quanto a Roma antiga".É verdade que em seu primeiro livro de estudos (The 8ketch Book,1819), ele tenta utilizar material americano, por exemplo em RipVau Winkk e Philip 01 Pokanoket; essa última começa por umalamentação: "Os autores que descreveram a descoberta e a coloni-zação da América não nos deixaram descrições suficientemente de-talhadas e objetivas sobre os notáveis costumes que floresciam en-tre os selvagens". Entretanto, esse tipo de estudos permanece tra-dicional em sua maneira e seu estilo: náda encontramos nele de, ,americano" no sentido atual dessa pamvra.

A década. de 30 a 40 do século XIXmostrou claramente a ten-dência da prosa americana para desenvolver o gênero da novela(short story) enquanto que nessa época a literatura inglesa cul-tivava o romance. Diferentes periódicos (revistas) multiplicam-se e começam a representar importante papel na Inglaterra e naAmérica, mas devemos anotar que os periódicos ingleses têm espe-cial preferência pelos grandes romances de Bulwer, Dickens, Tha-ckeray, enquanto que os periódicos americanos dão lugar centralàs .çhort stories. É, entretanto, uma boa ilustração de que não po-demos considerar o desenvolvimento da novela na América comouma simples conseqüência da aparição dos jornais. Aqui, como emoutro lugar, não existe causalidade simples. A extensão dos jor-nais liga-se à afirmação do gênero short story, mas ela não o en-gendra.

11:natural que um interesse particular pela novela apareçanessa época entre a crítica americanaj liga-se mais a uma malevo-lência aparente contrária ao romance. Nesse sentido, os raciocíniosde Ede-ar A. Poe. cujas novelas testemunham a afirma~ão do ~ne-ro. são particularmente interessantes e indicativos. Seu arti~o so-bre as novelas de Nathaniel Hawthorne é um tipo de tratado so-bre as particularidades construtivas da novela. "Um juízo nefastoe mal fundado existiu há muito tempo na literatura", escreveu Poe,"e Rer4 tat'p.fa de nORROtempo rejeitá-Io, para sabermos se a sim-ples exte~ão de uma obra deve pesar na estimação de seus méritofl.Duvido que um crítico, por mais medíocre que seja, mantenha a

idéia de que existe algúma coisa que provoque necessariamente anossa admiração na extensão ou na massa de uma obra, considera-das de uma maneira abstrata. Assim, graças à simples sensação degrandeza física, uma montanha afeta nosso sentido do sublime;mas não podemos admitir que o mesmo suceda com a apreciação deA Col'lllmbíade". Em seguida, Poe desenvolve sua teoria originalsobre o poema que para ele é superior a todos os outros gêneros doponto de vista estético (trata-se de um poema cujas dimensões nãoultrapassam o que se pode ler em uma hora, "... a unidade deefeito ou de impressão é uma questão da maior importância". Opoema longo é para ele um paradoxo). "As epopéias eram o frutode um sentido artístico imperfeito e, por isso, não predominam."A novela aproxima-se o mais possível do tipo ideal que é o poema;tem o mesmo papel que o poema, mas em seu próprio domínio, oda prosa. Poe crê ser possível recuar o limite de extensão at.é duashoras de leitura em voz alta (em outros termos, até dois folhetosimprimidos) j ele considera o romance como um gênero "inconve-niente", devido à sua extensão: "Como não podemos lê-lo de umasó vez, priva-se, naturalmente, da imensa força que confere totali-dade (conjunto)".

No final, Poe caracteriza o gênero da novela: "Um escritor há-bil construiu um conto. Se ele conhece seu trabalho, não modelouseus pensamentos sobre seus incidentes, mas depois de haver conce-bido com cuidado e reflexão um certo efeito único que se propõeproduzir, inventa incidentes - combina acontecimentos - que lhepermitem obter esse efeito preconcebido. Se sua primeira frase nãotende a produzir esse efeito. então ele malogrou desde o primeiropasso. Em toda. a obra, não deveria haver uma só palavra escritaque não tendesse direta ou indiretamente à realização deS!;ainten-ção preestabelecida. E graças a esse m~todo, a esse cuidaõo e aessa arte. resta um painel no espírito desse Que o contemnla comum sentido artístico análogo a um sentimento de completa satisfa-ção. A idéia do relato foi apresentada em toda sua pureza. nadaveio a ela m~sturar-se: e é este um objetivo que o romance não 'Dodealcançar". Poe dizia que tinha o hábito de escrever suas novelascomecando-as pelo fim, assim como os chineses escrevem seus livros.

Portanto, Poe atribui uma importA.nciaparticular a um efeitoprincipal para o qual contribuem todos os detalhes. assim como aparte final deve esclarecer o que a precp.de. O sel1ti"H~ntode im-portância particular que se deve dar ao acent.o final encontra-seem toda a novela americana, pois .que, 'Darao romance (p.sobretudodo tipo de romances de Dickens e Thackeray), a parte final repre-

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senta mais um epílogo do que um desfecho. Stevensol1escreveu em1891a um amigo a prop6sito de suas novelas: "Como fazerf... Inven-tar uma nova conclusãoYSim, certamente, mas eu não escrevo assim;essa conclusão é subentendida ao longo da novela; não me utilizonunca de um efeito se posso guardá-Io para o momento em que meservirá para introduzir os efeitos ulteriores; é nisso que consistea essência da novela (a story), criar um outro final significa tro-car o começo.O desfecho de uma longa novela não é nada; é apenasuma conclusão (coda) que não é um elemento essencial de seu rit-mo; mas, o conteúdo e o final de uma novela curta (short story)são a carne da carne e o sangue do sangue de seu início".

Tal é a imagem geral das particularidades da novela na lite-ratura americana. Todas as suas novelas, a começar pelas de EdgarPoe, são construídas mais ou menos sobre esses princípios. Isto nosleva a cuidar particularmente das surpresas finais e a construir anovela a partir de um enigma ou erro que manterá a função motorana intriga até o fim. No começo, essa novela fundava-se sobre o sé-rio; certos escritores enfraquecem o efeito de surpresa por tendênciasmoralizantes ou sentimentais, mas guardam sempre o princípio deconstrução. Assim em Bret Harte: a proposição do enigma é geralmen-te mais interessante que sua solução. Tomemosa novela A Herdeira.

. Baseia-se num enigma ou mesmo em dois: por que o velho legouseu dinheiro precisamente a essa mulher, feia e tola, e por que eladispõe dele tão parcimoniosamente? Mas a solução nos desaponta:o primeiro enigma permanece sem solução, enquanto que o segundotem uma solução deficiente, pálida (o velho ordenou que não dessedinheiro a quem ela viesse a amar). As soluções moralizantes esentimentais de narrações como O tolo, Miggles, O homem do fMdopesado deixam a mesma impressão. Dir-se-ia que Bret Harte teme aintensificação da parte final para não se distanciar desse primitivis-mo sentimental que caracteriza o tom do narrador.

Na evolução de cada gênero, produzem-se momentos em queo gênero utilizado até então com os objetivos inteiramente sériosou "elevados" degenera e toma uma forma cômica ou periódica. Omesmo fenômeno dá-se no poema épico, romance de aventuras,romance biográfico, etc. Naturalmente, as condições locais ou histó-ricas criam diferentes variações,. mas o próprio processo guardaesta ação enquanto lei evolutiva; a interpretação séria de uma efa-bula~ão feita cuidadosa e detalhadamente dá lugar à ironia, à brin-cadeira, ao pastiche; as ligações que servem para motivar a prcsençade uma cena tornam-se mais fracas e perceptíveis, pUFamente con-wncionais; o próprio autor vem ao primeiro plano e de!'!tl'óifre-

qüen.tcmentc a ilusão de autcnticidadc c scriedade; a conslru~ãodo tcma torna-sc um jogo com a. fábula transformada em adivinha-ção ou ancdota. Assim sc produz a regencração do gênero: ele en-contra novas possibilidades e novas formas. .

A primeira etapa da novela americana é efetuada com Irving,Edgar Poe, Hawthorne, Bret Harte, Henry James, etc.; a no-vela muda de estilo e de construção, mas conserva-se sempre umgênero "elevado", sério. Por isso, a aparição das novelas divertidasde Mark Twain na década de 80 é perfeitamente natural e legítima;elas aproximam a novela da anedota e reforçam a função do nar-rador humorista. As vezes, o próprio autor mostra esse parentescocom a anedota, por exemplo em About Magn(lnimol/.S I ncident Li-terature, onde M. Twain diz: "Durante toda minha vida conser-vei o hábito da minha terna infância de ler uma compilação deanedotas. " Queria que essas belas anedotas não parassem em s~ufinal feliz, mas que elas continuassem a bela história dos diferentesbenfeitores e de seus protegidos. Essa possibilidade tentava-me detal modo que no fim das contas decidi realizá-Ia criando eu mesmoos prolongamentos delas". Assim ele apresenta as eOlltinua~ões(scquel) para três anedota's.

O romance passa para o segundo plano e continua sua cxis-tência sobretudo sob a forma de policial. Dessa maneira, instaura-se a moda dos pastiches. Em Bret Harte, ao lado de seus própriosromances malogrados, encontra-se uma série de pastiches de roman-ces de outros: são esboços concisos (Oondenscd N ovcls) que ilus-tram a maneira de diferentes escritores: Cooper, Miss Braddon,Dumas, Bronte, Hugo, Bulwer, Dickens, etc. Não é por acaso queEdgar Poe ataca assim o romance; o princípio da unidade de cons-trução, sobre o qual ele se apóia, desacredita a forma de gr;,.;,1t;,,;dimensões onde se encontram inevitavelmente muitos centros deinteresse, linhas paralelas, descrições, ete. Neste sentido, o artigocrítico de Edgar Poe sobre o romance de Dickens, Barnaby Rudge,é muito significativo. Entre outros, Poe aproxima de Dickens ascontradições e os erros técnicos do romance e encontra sua causano "absurdo costume atual de escrever romances para os periódicos,pois o autor não sabe ainda todos os detalhes do plano quando co-meça a publicação de seu romance".

Ao mesmo tempo, aparecem romances que tendem visivelmentesob todos os seus aspectos para a novela; têm uma quantidade li-mitada de personagens, um mistério como efeito central, ete. ~ ocaso do romance do mesmo Hawthorne, A Letra Escarlate (Scar.let lcttcr) que os teóricos e os historiadores da literatura americana

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citam constantemente como exemplo de constrl1~ão notável. Esseromance tem apenas três personagens ligados entre si por um segre-do que é deficobertono último capítulo (Revelation); nenhuma in-triga paralela, nenhuma digressão, nem episódio marginal; defron-tamo-nos com uma unidade total de tempo, de lugar e de ação. Tra-ta-se aqui de um fenômeno radicalmente diferente dos roman-ces de Balzac ou de Dickens que buscam sua origem menos na no-vela que nos estudos de costumes ou em estudos ditos fisiológicos.

, Assim, a literatura americana caracteriza-se pelo desenvolvi-mento da novela. Essa novela funda-se sobre os seguintes princí-pios: unidade de construção, efeito principal no meio da narraçãoe forte acento final. Até a década de 80, essa novela varia, aproxi-mando-se ou distanciando-se da reportagem; mas guarda sempreseu caráter sério: moralizante ou sentimental, psicológico ou fisio-lógico. A partir dessa época (Mark Twain), a novela americanadá um grande passo no sentido da anedota, sublinhando a funçãodo narrador humorista ou introduzindo elementos do pastiche eda ironia literária. Mesmo a surpresa final é submetida ao jogoda intriga e às expectativas do leitor. Os procedimentos de cons-trução são revelados intencionalmente e têm apenas uma significa-ção formal; a motivação é "implificada, a análise psicológica desa-parece. Nessa época, aparecem as novelas de O. Henry onde se milnifesta em seu mais alto grau a tendência anedótica.

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