A critica freudiana

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MARIA MANUELA BRITO MARTINS A critica freudiana da espiritualidade religiosa PORTO 2004

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MARIA MANUELA BRITO MARTINS

A critica freudianada espiritualidade religiosa

PORTO

2004

Humanistica e Teologia, 2004, 25, 291-305

A critica freudianada espiritualidade religiosa

1. Introducão

0 terra que nos foi pedido para estas "Jornadas de Teologia daUniversidade CatOlica Portuguesa da Faculdade de Teologia", intitula-se:A critica freudiana da espiritualidade religiosa. Na verdade, no vastopanorama da leitura da obra freudiana, a questdo da relacdo entre psica-nalise e religido tern lido objecto de bastantes estudos, sobre os quais pen-samos que sera" desnecessdrio aqui enumerar. Mas falar sobre a criticafreudiana da espiritualidade religiosa e ja" outra coisa: implica reconhecer-mos que Freud lido s6 tenha abordado a religido como urn dado psicolO-gico e sociolOgico da cultura, mas que se tenha aproximado de uma leiturapsicolOgica, ainda que critica de uma espiritualidade religiosa. Para Freud,a realidade psiquica possui uma forma de existencia particular distinta daexisténcia material '. Neste sentido o que advem, fundamentalmente dopsiquico ja implica uma certa espiritualidade relativamente ao mundonatural.

Por isso, faremos uma abordagem, tomando como fio condutordois aspectos: o primeiro, o da relacdo entre psicanalise e reflexdo filo-sOfica, pois para Freud, a nocdo de inconsciente e de consciente partilhaas fronteiras de diferentes ciencias, nomeadarnente a psicologia, a medi-cina a filosofia e a teologia. Esta questão 6 nuclear, na medida ern que se

' S. Freud, ffuvres complêtes. Psychanalyse, vol. IV, 1899-1900. L'interpretution du 'I've,Paris, Presses Universitaires de France, 2003, p. 675. Citaremos esta edicao de forma mais abreviada,a excel)* da primeira vez que citaremos uma obra da respectiva edicao.

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não temos acesso ao ser do homem a partir do que é unicamente consci-ente, mas antes e preferencialmente do inconsciente, sendo este Ultimo ocompletamente desconhecido, como poderemos entao nos ter acesso arepresentacees que sejam autenticas e verdadeiras? Alem disco, a efectu-armos uma arqueologia regressiva do sujeito, que representacees podere-mos ter ties afinal das actividades mais sublimes, como sejam as artfsticase as religiosas? 0 segundo momento, o da determinacao do que Freudconsidera por 'cloutrinas religiosas', no ambit° da elaboracao de uma cul-tura e da sua importancia no seio desta. Uma vez mais, os filesofos sdoaqui invocados, pois des possuem uma representacao abstracta de urn serque eles chamam Deus e que eles prOprios criaram no interior de uma cul-tura 2 . Sendo assim, a fronteira entre o homem religioso e consequente-mente a espiritualidade, estao muito prOximos de uma representacaosignificativa que quer o filOsofo quer o homem religioso clao credit°.

Tomaremos aqui como referencia major, as obras de Freud queabordam particularmente, esta questao, como sejam, 0 futuro de uma

e o Mal estar na Cultura. Neste sentido, o que esta aqui em causa, seraessencialmente o Freud enquanto teorico da cultura, tendo ern conta osdados da reflexao psicanalitica na sua relacdo corn a cultura e a religiao.Assim, antes de passarmos de imediato, a uma reflexao centrada na crIticafreudiana, procederemos em primeiro lugar, a uma determinacdo de urndos conceitos fundamentais da psicanalise que marcou profundamente aepoca contemporanea, de modo a entendermos por que razao a reflexaopsicanalitica marcou tao profundamente a nossa cultura. 0 motivo que noslevou a tal °Ka° prende-se corn o facto de que varios filOsofos contem-poraneos dialogaram e confrontaram-se corn a doutrina freudiana da cul-tura e do aparelho psiquico, ao longo de todo o seculo XX. Como refereCarlos Dominguez Morano, "a obra de Freud, colocou, sem ddvida, den-tro do panorama da cultura contemporanea a necessidade de uma revira-volta de notaveis dimensiies no modo de pensar-se o homem" 3.

Bastaria darmos exemplos de alguns autores do pensamento con-temporaneo, quer da area da filosofia quer mesma da teologia para corn-provarmos into mesmo: no mundo franc6fono, sao bem conhecidos, PaulRicoeur, na sua importante obra, De Vinterpratation: essai sur Freud,

S. Freud, ffuvres completes, Psychanalyse, vol. XVIII, 1926-1930. L'avenir dune illusion.Paris, Presses Universitaires de France, 1994 p. 173.

' Carlos Domiguez Morano, El psicoanalisis freudiano de la religion. Andlisis textual ycomentario critic°. Madrid, Ediciones Paulinas, 1990, p. 17.

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Michel Henry, em especial, na Genealogie de la pschynalyse 4, MichelFoucault', Jacques Derrida 6 , J.-F. Lyotard '. No mundo anglefono, encon-tramos: Richard Rorty 8 , Richard Bernstein 9 , Alasdair Maclntyre '°, entreoutros. Na teologia encontramos alguns teOlogos, como por exempla,Christian Ducoq ", Jacques Pohier ' 2, Maurice Bellet ", A. Vergotte ",Eugen Drewermann 15 e Hans Kung 16.

2. A abordagem filoselfica de Michel Henry sobre o consciente eo inconsciente freudiano

A leitura filosefica de Michel Henry sabre Freud 6 peculiar mas, aomesmo tempo, bastante incisiva e clara, foi por este motivo que foi esco-lhida. Corn efeito, na sua obra Genealogie de la psychanalyse, MichelHenry considera que a questdo do inconsciente a tao ou mais valiosa quea do consciente. 0 propOsito desta enunciacdo faz-se em redor da deter-minacdo filosOfica do conceito de inconsciente. As pr6prias palavras de

' M. Henry, La Genealogie de la psychanalyse: le commencement perdu (Epimethee. Essaisphilosophiques). Paris, PUF, 1985.

As obras de M. Foucault que abordam a relacdo entre filosofia e psicanalise sao varias: Lepouvoir psychiatrique: cours au College de France (1973-74). Ed. Etablie sous la direction de F.Ewald e. A. Par J. Lagrange. Paris, Gallimard, 2003. L'histoire de la folie a l'Age classique. Paris,Gallimard, 1996.

J. Derrida, La carte pustule: de Socrate a Freud et au-delO. Paris, Flammarion, 1980.Lyotard, Derive a partir de Marx et Freud. Paris, Union General d'Edition, 1943.

" R. Reny na sua obra, Philosophy and the Mirror of Nature, efectua uma leitura de Feud nalinha de uma utopia liberal. Cf. R. Bernstein, (ed.) The new constelation. The ethical-politicalHorizons of Modern ity/Postmodernity. Cambridge, The MIT Press, 1991. pp. 269.

9 R. Bernstein, Freud and the legacy of Moses. Cambridge, Cambridge University Press,1998.

1 " A. Maclntyre, The Unconscious: a Conceptual Analysis. London, Routledge and KeganPaul, 1958.

" C. Duquoc, Mysticism and the institutional crisis. London, SCM Press, 1994.12 1. Pohier, Au nom du Pere. Recherches thaologiques et psychanalytiques. Paris, Cerf, 1972;

Dieu et fractures. Paris, 1985.'' M. Bellet, Foi et psychanalyse. Paris, Desclee de Brouwer, 1973.14 A. Vergotte, L'interpritation du langage religieux. Paris, Seuil, 1974. ' 5 E. Drewermann, Psychanalyse et theologie morale. 1. La peur et la faute. Traduction de

l'allemand par J.-P. Bagot. Paris, Cerf, 1992.H. Kong, "Dieu — une illusion infantile? Sigmund Freud" in Dieu existe-t-il? Reponse h la

question de Dieu dens les temps modernes. Traduit de l'allemand par Schlegel et J. Walter. Paris,Seuil, 1978. Existiert Gott? Antwort and die Gottesfrage der Neuzeit. Munich, R. Piper & C. Verlag,I978. E ainda uma outra obra, resultante de umas conferencias proferidas nos Estados Unidos, reto-mando a maior parte do capitulo desta obra: Freud and the problem of God. Translation EdwardQuinn. New Haven, Yale University, 1979 (reedicao em 1990).

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Freud clao o mote para a prOpria investigacao henryana: Diz Freud: "aquestdo relativa a natureza deste inconsciente ndo 6 mais judiciosa nemmais rica de perspectivas do que aquela que a relativa a natureza do cons-ciente" ' 7 . E, num outro texto que data de 1911, afirma: "Chamamos agoraconsciente a representacao que se apresenta a nossa consciancia e sobre aqual reconhecemos e admitimos que esta 6 a dnica significacao do termoconsciente. Quanto as representacOes latentes, se was temos alguma razaopara supor que elas existem no nosso espfrito — como era o caso corn amem6ria — elas sera° designadas pelo termo «inconscienteo"

Na verdade, segundo o filOsofo frances, Michel Henry, a originali-dade da obra de Freud e da sua abordagem conceptual, reside no factodeste tomar como, ponto de partida, o material patolOgico como uma chavede leitura de toda uma construed° analitica sobre o inconsciente. A parti-cularidade da reflexao psicanalitica consistiu segundo, Michel Henry, ernter-se recusado a instaurar uma abordagem conceptual e especulativa,tendo como ponto de partida o consciente. Sendo assim, e tendo em contaeste factor essencial, poderfamos, retrospectivamente olhar para a histO-ria do pensamento ocidental e falar de uma era antes e p6s Freud.

A andlise profunda do inconsciente e das suas produciies, isto 6, daspercepeOes, das imagens, recordacOes, producfies onfricas e simbOlicas,esteticas ou religiosas, demonstram afinal a natureza mais 'anima dohomem e da sua existencia. Porern, 6 precisamente aqui que reside,segundo Michel Henry, a sua mais forte Husk).

0 interesse fundamental de uma genealogia da psicanalise tera avantagem, de nos mostrar, por um lado, o seu longo processo de maturacdo,e por outro, de nos instruir sobre os sinais anunciadores do seu prOpriodestino. Na verdade, esta justificacao henryana parece manter-se fiel auma corolario freudiano quando este declara na sua obra, 0 futuro de uma

ilustio, de 1927, o seguinte: "Quando se viveu todo um period() no seio deuma cultura determinada e que frequentemente nos esforeamos por pro-curar quais eram as suas origens e as vias do seu desenvolvimento, expe-rimenta-se realmente um dia a tentacao de dirigir o nosso olhar numaoutra direcedo e de se perguntar que destino espera esta cultura mais oumenos a longo termo e por que transformacOes ela 8 chamada a passar" 19.

Citado por M. Henry, op. cit. p. 343. Cf. S. Freud, Ma vie et la psychanalyse. TraductionM. Bonaparte. Paris, NRF-Gallimard, 1950, p.57.

' S. Freud, (Euvres completes. Psychanatyse, vol. Xl. 1911-1913. Notes sur !'inconsciente enpsychanalyse. Paris, Presses Universitaires de France, 1998, pp. 173-174.

S. Freud, L'avenir d'une illusion, p. 145.

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A tentacao, diz Freud, de orientar o olhar numa outra direccao e de ver porque momentos ou fases essa direccdo se orienta e se determina, fixandoassim não somente o termo de origem mas o termo da espera e da inevi-tavel resolucdo, é afinal o trabalho que se imp& de forma analOgica entreFreud e a leitura de Michel Henry. 0 fundo fenomenolOgico desta leiturafilosOfica de Freud, centra-se essencialmente numa ontologia do ser comoafectividade.

A psicandlise nao a para Michel Henry, urn comeco, mas antes, otermo de uma longa hist6ria que 'tan é send() a do pensamento ocidental.Por isso, Freud, ao elaborar urn aparelho psiquico que tendo como base dereferenda essencial o material patolOgico, não fez mais do que utilizar olegado desta longa tradigdo do pensamento ocidental. Neste sentido, Freudé para Michel Henry o herdeiro tardio desta tradicao, que ele adjectivacomo `pesada e carregada'. Por isso, conclui M. Henry, rid() é de Freud quenos devemos desembaracar mas antes de toda esta heranca cultural quevem de muito longe e, que Freud encarna, enquanto a sua acabada real i-zacão. Na verdade, as pressuposicOes que guiaram e desviaram a filosofiaclassica e que Freud herdou, para a levar ate as tiltimas consequencias sdo,afinal, essas mesmas que devem ser postal em causa. Ora é precisamenteaqui que reside o tal 'fundo impensado' e que é preciso trazer a luz, poise ele que nos revela o que foi determinado por tudo aquilo que veio antesde Freud, como de tudo aquilo que ha-de vir depois de Freud.

0 interesse da psicandlise para a reflexao filosOfica consiste, preci-samente, no facto de que ela nos legou um corpus teOrico considerdvel,em particular sobre a subjectividade, que num dado momento histericoprovocou uma "revoluy& total na maneira de se compreender o ser maisUltimo do homem — a sua Psyche — e assim compreender-se a transforma-cdo da filosofia ela mesma, sob a forma tradicional" 20 . Mas em que con-siste entao essa transformacdo, ou melhor dizendo, esse `renversemene deque fala Michel Henry? Consiste precisamente nisto: e o inconsciente quesera* doravante o ponto de partida fundamental para se poder constituir oprOprio consciente. A pertinencia da analise henryana expressa sobre esteponto preciso, como a concepcdo freudiana do inconsciente, apresenta"uma estranha doutrina que comeca ruidosamente com a rejeicdo do pri-mado tradicional da consciencia em proveito de urn inconsciente que adetermina inteiramente, mas declarando de seguida que nem um nemoutro nem mesmo o facto de ser consciente considerado nele mesmo, nem

1" M. Henry, Genealogic de In psychanalyse, p. 5.

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mesmo aquele de lido o ser, importam verdadeiramente" 2 '. Por sua vez,Paul Ricoeur, na sua grandiosa interpretacäo de Freud dill, de forma maissimples, que assistimos a urn `despossessamento' da consciencia (dessai-sissement de la conscience) 22 , ou ainda que o Cogito e urn Cogito ferido(Cogito blasse) Dal que nos poderemos perguntar: donde vita uma talhumilhacão infligida a consciencia, ou donde surgird tal forca desmistifi-cadora que revela a consciencia que o "Ego lido a mestre na sua pr6priacasa 24" ? Vejamos como Freud nos esclarece sobre esta pobreza e sobreeste descentramento do Ego e da consciencia:

"Tu pensas que saber tudo sobre aquilo que se passa na tua alma,desde que seja suficientemente importante, porque a tua consciencialogo to ensinard. E quando to fleas sem novas de uma coisa que estana tua alma, admites, corn uma perfeita certeza que isso nao se encon-tra af. Tu chegas mesmo a admitir o psiquico como identico ao cons-ciente, isto e, conhecido de ti e isto, apesar das provas mais evidencesde que, se devem passar incessantemente muitas coisas, na tua vidapsiquica que nao se podem revelar a consciencia. Deixa-te pois ins-truir sobre este ponto aqui.(...) Tu comportas-te como um monarcaabsoluto, que se contenta das informacOes que the &do os altos digna-tarios da torte e que descem ate ao povo para ouvir a sua voz. Entraem ti mesmo, profundamente e aprende antes de tudo, a conhecer-te,e entdo conheceras porque deves ficar doente e talvez evitards de totornar doente" ".

Esta passagem mereceria uma longa exegese. No entanto, nao pode-mos deter-nos aqui longamente sobre este texto. Contentemo-nos, poragora, em salientar os passos mais importantes. A questdo mais embara-cosa da psicanalise 6 a de que estranhamente a consciencia e o seu Egoperderam o lugar absoluto e sobranceiro de que o pr6prio narcisismo edi-piano 6 o seu Ultimo e derradeiro herdeiro. E este mesmo narcisismo quese pretende proclamar, como urn `falso cogito' ou mesmo ainda como o

Idem, p. 347." P. Ricoeur, De l'interpretation. Essai sur Freud. Paris, Seuil, 1965, p. 425: "le comprends

done la metapsychologie freudienne comme une aventure de la reflexion; le dessaisissement de laconscience est sa voie, parse que le devenir conscience est sa Cache".

" Ibidem: "Mais c'est un Cogito blesse qui procede de cette aventure. Un Cogito qui se posemais ne se possede point. Un Cogito qui ne comprend sa yenta' originaire que dans e par l'aveu de l'ina-dequation, de ('illusion, du mensonge de la conscience actuelle".

" ldem, p. 414." S. Freud, CEuvres Completes. Psychanalyse. Une dificulte de la psychanalyse. XV, 1916-

-1920. Paris, Presses Universitaires de France, 1996, p.50. Cf. Ricoeur, op. cit. p. 414.

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estado de ignoräncia da prOpria consciencia, e, por isso, de falsa consci-encia. Freud, ao nao identificar psiquico corn consciencia, rejeita atribuira actividade psIquica uma determinacao ao que é meramente consciente e,portanto perceptivo. Esta mesma perspectiva encontrarno-la em Husserlque distingue precisamente o psiquico (Das Seelische) da simples corpo-reidade (Korperlichkeit) enquanto dado perceptivo de uma consciencia ".Por outro lado, esta nab identificacao leva a consequencia de que o incons-ciente é o psiquico propriamente como entidade real e desconhecida. A suanatureza interna 8 tao desconhecida quanta o mundo exterior o 8 para osnossos Orgdos dos sentidos ". A humildade que deve estar presente nanossa alma, ou no nosso psiquico segundo Freud, é a de reconhecermosque sabemos pouco do que nos somos efectivamente, nao so enquantoindivIduos, mas enquanto comunidade colectiva. Todavia esta humildadedeverd ser restabelecida por uma especie de lei de compensacao, com aousadia do homem, pois este tern um papel no seio deste vasto mundo e,em particular, no mundo da cultura. Por isso Freud diz:

"Os criticos persistem em declarar «profundamente religioso» umhomem que reconhece ter o sentimento da pequenez e da impotênciahumana face ao conjunto do universo, todavia nao e este o sentimentoque constitui a esséncia da religiosidade, mas unicamente o seguintepasso: a reaccáo a esse sentimento, reaccdo que procura um recursocontra de. Aquele que nao vai mais longe, que se contenta corn ohumilde e Ultimo papel no vasto mundo, esse mesmo é bem mais urnirreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra" ".

A descricao que Freud da" do homem `irreligioso' no sentido verda-deiro do termo é uma definicdo pela negativa do que deve ser o homemreligioso, precisamente aquele, que nab se contenta corn a sua sorte, ou asua resignacdo de ser pequeno e infimo, mas que quer it mais longe, ouseja, que exige mais de si mesmo. Tornado individualmente, o homemreligioso e aquele que reage coin uma atitude de nao resignacdo.

Chegados a este momento, poderfamos agora interrogar-nos,quando é que o conceito de inconsciente fez a sua aparicao no pensamentomoderno? Declara Michel Henry que apareceu ao mesmo tempo que o deconsciente e coma a sua exacta consequencia" 29 . Ora, se o inconsciente é

"E. Husserl, Zur Phanomenologie der Intersubjektivitill. Erster Teil: 1905-1920. HusserlianaT. XIII. Ed. por [so Kern.Den Haag, Maryinus Nijhoff, 1973, p. 21.

" S. Freud, L'interprdlation des reves. p. 668S. Freud, L'avenir dune illusion, pp. 173-174.

29 M. Henry, op. cit. p. 6

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o exacto correlato do consciente, into significa que os antecessores deFreud na era moderna foram, Descartes, Schopenhauer e Nietzsche. 0 did-logo empreendido por Michel Henry passa entao necessariamente e antesde Freud, por estes mesmos autores. Neles reside a busca incessante deuma compreensao da existencia humana, que antes de tudo e vida, e corpo,6 afectividade e 6 alma.

Para Descartes, o conceito de consciencia 6 inicialmente, segundoMichel Henry um conceito ontolOgico radical. Ele designa o `aparecer'considerado por ele mesmo. Ele nao 6 qualquer coisa mas o princIpio detoda a coisa e, por isso, a sua manifestacao original. E devido tao somenteao facto de que Descartes sobrepOs a este seu projecto inicial uma pers-pectiva cientlfica que fez esquecer as suas pretensOes filoseficas funda-mentals. Teria existido, por parte de Descartes urn esforco de alicemaruma fenomenologia radical capaz de discernir no seio do puro apareceruma dimensao mais profunda, a do vislvel e a do invisivel. Todavia, essecomeco foi abandonado em detrimento duma importancia dada ao visiveltendo como correlato uma epochl do mundo. A filosofia da conscienciatomava entao uma direccao, a que conduz ao mundo e ao seu saber tee-nico. Corn Kant, esta filosofia da consciencia elevou-se a uma forma deuma ontologia da representacao. E entao que surge Schopenhauer que pOecobro a esta metafisica da representacao, na medida ern que ela nab podejamais atingir a condicao do ser real ou da existencia verdadeira. 0 Outroda representacao 6 nomeado por Schopenhauer a Vontade, ou ainda corpo,accao e afectividade. Este 6 o solo sob o qual se edifica o pensamento. Eo outro da representacao que nao se mostra jamais nele. Ele 6 o ser irre-presentavel parecido corn o noumeno kantiano. No entanto, segundoMichel Henry, "esta fenomenologia radical, Schopenhauer, nao teve osmeios filoseficos de a construir" 0 . E, agora, se nos voltarmos paraNietzsche, teremos nos, melhor sorte para encontrar o tal inconsciente dapsicanalise que Freud se preocupava tanto por distinguir daquele que 6pensado pelos filOsofos? Corn Nietzsche atinge-se o pensamento radiosoda vida, ern particular na descricao que este faz do sonho. Ora a actividadeor-Mica a importante, na medida ern que nao s6 o sonho 6 revelador do sen-tido da existencia do homem, como tambem nele se perpetua, como refereFreud, citando Nietzsche, "uma parte ancestral da humanidade a qual naopodemos chegar por via directa" ''. Freud declara abertamente que, apesar

p. 9.3 ' S. Freud, L'interpretation du reve, p. 602.

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desde a antiguidade se admitir o sonho como algo de incontrolavel, deindestrutivel e, ate mesmo, de demoniac°, a essa mesma libertacao dodesejo do prOprio sonho que d precisamente o que nos hoje chamamosinconsciente. Mas, adverte de imediato Freud, que este inconsciente naocoincide corn o dos filOsofos", pois para eles, o inconsciente esta aquisomente para designar o oposto do consciente 32 . Outrora, o consciente,que tinha lido o todo poderoso passou agora a ser descrito por Freud comoum simples "Orgao sensorial para a percepgao das qualidades psiquicas" ".Ao contrario, sao as caracteristicas do inconsciente, como diz PaulRicoeur, que "trazem sempre a rnarca do nao-significante" ".

Esta poderA ser a genealogia positiva que os filOsofos deram doinconsciente. Mas a genealogia negativa a precisamente a de Freud, e,por isso, poderiamos mesmo descreva-la como uma arqueologia regres-siva do sujeito. Resta-nos perguntar se esta mesma arqueologia poderAser mantida de forma coerente para uma teoria da cultura, e verificamos,que nao.

3. A critica freudiana das doutrinas religiosas

0 futuro de uma ilusaft (Die Zukunft einer Illusion)6 uma obra ondeFreud pretende analisar qual o significado das representacOes religiosas noambit° da cultura. Ele explica numa carta dirigida a Oskar Pfister os moti-vos essenciais deste ensaio, assim como de um outro intitulado A andliseprofana (Die Frage der Laienanalyse) escrito em 1926:

"Eu nao sei se adivinhou a relacdo entre a Andlise profana e a Rustic.Na primeira eu quero proteger a andlise contra os medicos, nasegunda, contra os padres. Eu gostaria de a [psicanalise] confiar auma corporacdo que actualmente nao existe, uma corporacdo laica deministros de almas que nao teriam necessidade de ser medicos e naoteriam o direito de ser padres".

Oskar Pfister é um pastor sumo, que foi o primeiro a aplicar a teo-ria psicanalitica a pedagogia. Freud costumava chama-lo como o `queridohomem de Deus'. No ensaio 0 futuro de uma ilusdo, em especial a partir

ldem, p. 669.

" Idem, p. 671.-4 P. Ricoeur, De r interpretation. Essai sur Freud, p. 150." S. Freud, L'avenir dune illusion, p. 143.

do capitulo IV, Freud faz mesmo de Pfister um seu interlocutor no dialogosobre a religiao. Por sua vez Pfister acabard por responder a Freud corn umartigo intitulado A ilustio de um futuro (Die Illusion einer Zukunft), ondedesenvolve a sua argumentacao, criticando a atitude de Freud face a autën-tica f6 crista.

Numa outra obra 0 mal estar na cultura (Das Unbehagen in derKultur) de 1929, Freud explica a sua intencao fundamental d'O futuro deuma declara, que nao the interessa analisar as origens mais pro-fundas do sentimento religioso, mas sim o que o homem comum entendepor religiao No entanto, a interpelado pelo escritor Roman Rolland queo critica, por nao ter abordado a questao do sentimento religioso, que estedescreve como `sentimento oceanico'. Freud, posteriormente, introduz esteconceito retomando-o agora, a sua maneira, na obra Mal estar na cultura,para exprimir urn sentimento que certos homens possuem relativamentea uma fase precoce do Eu. Este sentimento manifesta uma fonte de neces-sidade do religioso. Este sentimento de necessidade e de falta e exprimidona religido. Ele pode designar tambe- m o sentimento que aspira "a ser-unocorn o todo", como sendo uma primeira forma de consolacao religiosa, aomesmo tempo que se afigura como uma outra via para negar o perigo queo Eu enfrenta perante a ameaca que vem do exterior" Estes sentirnentossao, segundo Freud, grandezas dificilmente compreensiveis. Na verdadeFreud apoia-se no testemunho de um amigo seu budista, para quern estassensaceles suscitam a universalidade e, sao concebidas, como regressOes atempos imemoriais, longamente encobertos pela alma. Estas emocees sac)vistas como o fundamento fisioldgico de diferentes sabedorias, ja na pro-xirnidade do mistico's , onde podera existir uma relacao estreita entre asdiferentes modificacOes da vida da alma e os estados de &rase e de transe.Freud, prefere falar da verdade dos poetas, citando Schiller que declara:"Que se alegre aquele que respira no alto na luz rosa" '9.

A interrogacao inicial freudiana 6 a de entender o significado fun-damental da cultura human, das suas realizacOes e do seu futuro. A cul-tura, isto 6, a civilizacao, O definida por Freud, como tudo aquilo que seeleva acima das condicOes animais ". Ela engloba todo o saber e todo o

" S. Freud, ffuvres completes. Psychanalyse, XVIII 1926.1930. Le malaise clans la culture.Paris, Presses Universitaires, 1994, p. 259.

" S. Freud. Le malaise clans la culture, p. 258.Ibidem.Ibidem. Cf. Schiller, Der Toucher, 1797, v. 91.

" S. Freud, L'avenir d'une illusion, p. 146.

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fazer que os homens adquiriram para dominar as forcas da natureza e parausufrufrem os bens e a satisfacdo de todas as suas necessidades Ela con-tain em suma, todo urn mecanismo que a posto em pratica para regular asrelacepes dos homens entre eles, em particular, a reparticao dos bens aces-slveis. Ora, visto que as relacOes mtituas entre os homens sao fortementeinfluenciadas pelo grau de satisfacao pulsional, torna-se necessario por-tanto regular essas relacOes humanas e, por isso, a cultura tem aqui umpapel importante a desempenhar. Todavia, Freud considera que o progressona cultura e imperfeito. A humanidade pode fazer grandes progressos paradominar a natureza e as suas fornas, mas na regulacao dos assuntos huma-nos, ja nao se verifica o mesmo. Este progresso ja nao a nem constantenem leva sempre ao contentamento dos individuos. A razdo fundamentaldisto consiste no facto de que a cultura esta edificada sob o constrangi-mento e a rentincia pulsional. Alias, o descontentamento dos individuos oude classes sociais em face da cultura e devida, em parte, a repressao pul-sional e ao constrangimento exigidos aos individuos para viverem emcomum. Para alern disso, a cultura esta sujeita a destruicao, ou seja, exis-tent tendancias destrutivas em certos individuos e, por isso, eles sao anti-sociais e anti-culturais. E essencialmente este factor psicolOgico que levaa destruicao da cultura. Dal que Freud tenha urn perspectiva bastante pes-simista quanto ao valor da cultura como factor de felicidade para ohomem. A cultura imp& grandes sacrificios nab somente quanto a sexua-lidade como tambOm em relacdo as pulsOes de agressividade Dal que sejadificil que o homem seja feliz 42 .

A cultura ao impor urn conjunto de privacaes, inflige ao homem urncerto grau de sofrimento, quer em virtude das interdiceies impostas pelaprOpria cultura, quer pela imperfeicao que ela pr6pria contem. As interdi-cOes universais de que fala Freud sao tits: a do incesto, a do canibalismoe a do prazer-desejo de morte.

Contudo, a cultura nao implica somente sacrificio, rentincia e pri-vacao. A primeira tarefa fundamental e mail preciosa da cultura sera a deproteger o homem face a potencia da natureza e de providenciar a todos osentimento de seguranca e de preservacao do sentimento de si, constante-mente ameacado. Neste contexto, Freud fala da necessidade de humanizara natureza na medida em que ela permanece para o homem corn um certograu de estranheza. A relacao que o homem estabelece corn a natureza

°' Ibidem"S. Freud, Le malaise dans la culture, p. 301.

aquela que the permite associd-la ao catheter de urn pai e, por isso, ohomem faz deuces, seguindo um modelo nao simplesmente infantil, masassumido na especie, ou seja, no que Freud tinha demonstrado de formafilogen6tica atraves do Totem e Tabou. Nesta obra Freud tentava especifi-car a fase da explicaeao gen6tica e ontogenetica atraves da filog6nese,onde se justificava a rein -do de parentesco entre o totem e o tabou e entreo tabou e a nevrose obsessiva. Nesta fase Freud explicava a passagem dapsicanMise a etnologia, numa tentativa de psicologizar os fenOmenos soci-ais, na medida em que a justificacao te6rica do complexo de Edipo, por siso, nao era suficiente para a descried° da passagem do Ego ao Superegoque, coma sabemos, e caracteristica da segunda tOpica.

Mas as prOprias interdict:5es da cultura implicam urn certo grau deinteriorizacão, significando, por isso, urn valor positivo para a cultura. Egracas a esta interiorizacdo do Superego que os individuos se tornamtransmissores de cultura. Nesta medida, os ideais e as criacOes artisticassao fundamentais, na medida em que elas sac) a expressao da realizacdosublimada dos individuos. Desta forma, devemos avaliar nos ideais de cul-tura, o Mite' moral dos seus participantes, assim comp os valores da suacriagao artistica. Freud declara:

"A arte, coma ja o sabemos ha muito tempo, oferece satisfacOes substi-tutivas as reraincias culturais mais antigas e, continuam a ser o mais pro-fundamente ressentidas; a por isso que nao existe nada igual, para fazeruma reconciliacao cam os sacrificios consentidos pela cultura. AleMdisso as criaciies artisticas exaltam os sentimentos de identificacao ondea esfera cultural tem tanta necessidade permitindo a ocasiao de expres-sarem sensacEies altamente apreciadas.(...) A parte mais significativa doinventario psicolOgico de uma cultura ainda nao foi mencionada. Sao nosentido mais lato as suas representacOes religiosas, por outras palavras,o que seria preciso justificar mais a frente, as suas ilusaes"

Como vimos pelo texto, a esfera artIstica compensa os individuosna medida em que permite por processo de identificacdo e de sublimacdo,a realizacao dos mais altos ideais. A arte oferece satisfacides substitutivasas remincias culturais. As criacties artisticas exaltam os sentimentos deidentificano, a reconciliacao corn os sacrificios exigidos pela cultura.

Mas no inventdrio psiquico de uma cultura faltava avaliar urn partesignificativa, coma sdo o conjunto das representacties religiosas (religiosen

S. Freud, L'avenir dune illusion, p. 154.

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Vorstellungen). A questao é entdo a seguinte: em que consiste o valor par-ticular das representacOes religiosas? Como classifica-las?

Em primeiro lugar, a tarefa mais importante do divino e das repre-sentacOes religiosas no seio de uma cultura, a de compensar os sofrimen-tos e as privacOes que Sao impostos ao homem pela sua vida em comumno mundo da cultura, assim como tambern de cuidar do bom funciona-mento dos interditos da prOpria cultura. Estes, interditos, ou mandamen-tos, adquirem neste mesmo contexto urn estatuto divino na medida em quesdo elevados acima da sociedade humana e distendem-se ao futuro dohomem. Dal que se criem assim um `tesouro de representaceies' causadaspela necessidade de tornar suportavel a fragilidade humana, e edificadas apartir de um material, como sdo as recordaciies desta fragilidade, pr6priada infancia e do genero humano. Sendo assim, tendo em conta esta situa-cao estrutural, o homem protege-se dos perigos da natureza e dos danosprovenientes da sociedade humana. Freud, conclui por isso, que a vidaneste mundo serve a um fim mais elevado, significando por isso, urn aper-feicoamento do ser humano. 0 elemento espiritual do homem é a alma eé esta que deve ser exaltada. Essa exaltacdo a feita em funcao de um pres-suposto, a existencia de uma inteligencia superior que dirige "todas as coi-sas para o Bem, ou seja para aquilo que nos alegra. Sobre nos, vela umaProvidencia cheia de bondade, severa unicamente na aparencia, mas quendo permite que nos tornemos um joguete de forcas naturais desmedidase implacdveis" 44 .

0 segundo motivo fundamental das representacOes religiosas, estaassociado a fungdo que a representacdo religiosa possui enquanto factor decorreccdo nas imperfeicaes da cultura dificilmente suportadas pelohomem. Estas representacees sdo o resultado de uma longa heranca, pro-veniente de diversas geracOes. Mas como defini-las? Freud diz que asrepresentacOes religiosas "são dogmas, enunciados sobre factos e situa-Vies da realidade externa ou interna que fazem pane de qualquer coisa quenab se encontrou em nos mesmos e que reivindicam que as aceitemoscomo crenca" ".

As representacees religiosas apresentam-se a consciencia comodogmas. Estes nab sac) factos da experiencia nem sac) resultantes do pro-cesso do pensamento mas sâo antes ilusOes, que Freud especifica,dizendo, que sao preenchimento dos desejos (Wunscherfullung) dos mais

ldem, p. 159." ldem, p. 165.

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antigos e dos mais decisivos para a humanidade. R Ricoeur afirma a estepropOsito, que a critica analitica da religido em Freud, tern como objectoprOprio a estrategia do desejo ".

Mas o que entende Freud verdadeiramente por ilusdo? A ilusdo ndoe a mesma coisa que o erro, ela e definida como a irrealizacdo ou, ainda,o que entra em contradicdo corn a realidade. A ilusdo e o motor e a forcada religido e, ao mesmo tempo, o desejo mais forte que impele o sujeitopara a sua realizacdo. A ilusdo 6 o outro do `sonho' manifestado pelo prin-cipio de prazer ern oposicdo ao principio de realidade Mas urn ndo existesem o outro.

E evidente que as doutrinas religiosas sdo para Freud ilusoes inde-monstraveis, na medida em que ndo se podem demonstrar. Por issomesmo, ndo podemos julgar o valor de realidade que elas prOprias contem.Ate os preprios ndo crentes consideram que as afirmacOes da religido ndoSao refutaveis. Existiram segundo Freud dual tentativas de justificar osdogmas religiosos, uma que 6 a mais antiga, retirada de urn Padre daIgreja, Tertuliano, que afirma o Credo quia absurdum ". Nesta confissdode fe, a verdade que ela enuncia esta acima da raid° e, por isso, nao hanecessidade de ser compreendida. A segunda tentativa, a mais modema,a da 'filosofia do como se'. Esta 'filosofia do como se' expressa a abun-dante actividade de hipdteses do nosso pensamento, as quais possuem umaausencia de fundamento e que leva mesmo ate ao absurdo. Declara aindaFreud que estas hipOteses Sao chamadas ficcOes, mas que por questOes deordem pratica, comportamo-nos como se acreditassemos nelas. Todavia,apesar delta dupla tentativa frustada de justificacdo das doutrinas religio-sas, Freud reconhece que elas exercem sobre a humanidade uma influen-cia incontestavel e por isso a necessario interrogar-se sobre a forgo internadestas doutrinas. Dal que Freud, mantenha uma atitude ambivalente rela-tivamente aos valores das doutrinas religiosas. Por urn lado, elas Sao lou-vaveis no seio de uma cultura porque muito contribuiram para dominar aspulsOes associais durante milenios. Desta forma a religido podera recon-ciliar os homens corn a cultura, na medida em que e nela que se baseiamos interditos da prOpria cultura 48 • Mas por outro, sdo os dogmas religiososque funcionam como que vestigios nevrOticos sobre os quais 6 precisoefectuar urn trabalho racional para levantar o estado de recalcamento que

" P. Ricoeur, De linterpretation. Essai sur Freud, p. 230.

" Tertuliano, A came do Cristo, V, 4: "Credibi le est quia ineptum est"." 5. Freud, L'avenir dune illusion, p. 178.

os individuos atingiram. Ora, e precisamente aqui que a teoria psicanall-tica apresenta mais desiquilIbrio na medida em que a pelo poder do cons-ciente e do racional que podemos aceder a uma melhor mestria da nossacultura sobre a pura infantilidade ou animalidade. A incoeracia da teoriafreudiana, verifica-se no valor desmedido inicial dado a urn inconscienteque se transmuta em Superego, quando no estado final da teoria psicana-Mica da cultura, e o racional e o consciente que devem imperar e a quemo superego deve agora servir e respeitar. A for-0 do que outrora era incons-ciente e desconhecido transforma-se, necessariamente agora, no que deveser conhecido, isto e, pela cultura, pelos valores e ideais nela presentes.Lembremos o que dissemos no inicio desta breve apresentacdo e segundoa perspectiva de Michel Henry: estranha doutrina que toma o inconscientecomo ponto de partida fundamental, quando 6 agora no estado destinal dodesejo, e do preenchimento do desejo que surge o primado do intelecto eda raz5o, como se acabâssemos de ter atingido a nossa maioridade, relati-vamente as nossas nevroses colectivas e obsessivas da nossa cultura.

Freud efectua, uma especie de razoado em favor de uma permanenciade urn sistema doutrinal religioso como base de educacão e da vida doshomens em comum, nao por razOes do valor da realidade em si religiosa, maspor rathes de ordem pratica. Al6m disso, o sistema religioso 6" aquele queparece subtrair-se a pressuposicOes criticas, quando temos que educar indivi-duos que estdo em fase de crescimento. Ora a capacidade de realizacdo dosdesejos e de reconfortar sat) as caracterfsticas essenciais do sistema religioso,ainda que este seja reconhecido como de `ilusdo'. As doutrinas religiosas per-mitem uma clarificacdo e uma sublimacäo conceptuais tais, que podemmesmo afastar tudo aquilo que tem tracos de pensamento primitivo e infantil.

Por ultimo, fica-nos a impressdo que a espiritualidade religiosa, emque Freud mais parece insistir 6 de que ndo 6" do foro da ciencia e não sedeixa aprisionar por ela. Contudo, ha questOes que sào sagradas e sobreessas quase ou pouco podemos dizer. 0 homem experimenta necessidadesque ndo podem ser satisfeitas pela ciencia. Akin do mais, Freud, esta cons-ciente da tensão existente no psicOlogo, que sempre proclamou, quanto navida dos homens a inteligencia cedeu a dimensdo pulsional, quando agora6 a dimensäo intelectual que deve subordinar o desejo e, por isso, a prOpriailusão. Quisemos com esta apresentacdo mostrar onde reside a maior inco-eréncia da teoria freudiana relativamente a urn aparelho psiquico e tirar asconsequéncias para uma concepcdo de espiritualidade.

MARIA MANUELA BRITO MARTINS

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