HABERMAS. a Inclusão Do Outro - Estudos de Teoria Política

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Jürgen Habermas A INCLUSÃO DO estudos de teoria política Tradução: George Sperber Paulo Astor Soethe [UFPR]

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Jürgen Habermas

A INCLUSÃO DO ([J)lUT~([J) estudos de teoria política

Tradução: George Sperber

Paulo Astor Soethe [UFPR]

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TITULO ORIGINAL:

Die Einbeziehung des Anderen - Studien zur politischen Theorie © Suhrkamp Verlag Frankfurt aro Maio 1996

Zweite Auflage 1997 Alle Rechte vorbehalten ISBN: 3-518-58233-X

EDIÇÃO BRASILEIRA

Direção Fidel García Rodríguez, SJ

Edição de texto Marcos Marcionilo

Revisão Albertina Pereira Leite Piva

Diagramação Ronaldo Hideo lnoue

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ISBN: 85-15-02438-1

© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2002

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Sumário

Prefácio ................................................................................................ 7

1 Uma visão genealógica do teor cognitivo da moral ........................ 11

2 Reconciliação por meio do uso público da razão ............................ 61

O design da condição primitiva ...................................................................... 63 O fato do pluralismo e a idéia do consenso abrangente ................................ 73 Autonomia privada e pública ......................................................................... 82

3 "Racional" versus"verdadeiro" -ou a moral das imagens de mundo ............................................. 89

A moderna situação de partida ............................................................... 93 De Hobbes a Kant ........................................................................................... 95 A alternativa ao procedimentalismo kantiano ............................................... 98 Uma "terceira" perspectiva para o racional .................................................. 102 O último estágio da justificação ................................................................... 105 Filósofos e cidadãos ...................................................................................... 111 O âmago do liberalismo ............................................................................... 116

4 O Estado nacional europeu -sobre o passado e o futuro da soberania e da nacionalidade .... 121

"Estado" e "Nação" ....................................................................................... 123 A nova forma de integração social ............................................................... 128 A tensão entre nacionalismo e republicanismo ........................................... 131 A unidade da cultura política na multiplicidade das subculturas ............... 134 Limites do Estado nacional: restrições da soberania interna ....................... 138 "Superação" do Estado nacional: supressão ou suprassunção? ................... 142

5 Inserção- inclusão ou confinamento? ........................................ 14 7

Construções da soberania popular no direito constitucional ..................... 153 Sentido e falta de sentido da autodeterminação nacional ........................... 159

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Inclusão com sensibilidade para as diferenças ............................................. 164 Democracia e soberania do Estado: o caso das intervenções humanitárias . . . 16 7 Somente uma Europa das Pátrias? ............................................................... 172

6 A Europa necessita de uma Constituição? ..................................... 177

7 A idéia kantiana de paz perpétua - à distância histórica de 200 anos .................. ................. ............ 185

8 A luta por reconhecimento no Estado democrático de direito ...... 229

A "política do reconhecimento" tayloriana .................................................. 232 Lutas por reconhecimento - os fenômenos e os planos de sua análise ..... 238 A impregnação ética do Estado de direito ................................................... 243 Coexistência eqüitativa versus preservação da espécie ................................. 248 Imigração, cidadania e identidade nacional ................................................. 255 A política para a concessão de asilo na Alemanha unificada ....................... 262

9 Três modelos normativos de democracia ...................................... 269

1 O Sobre a coesão interna entre Estado de direito e democracia ...... 285

Qualidades formais do direito moderno ..................................................... 286 Sobre a relação complementar entre direito positivo e moral autônoma ..... 288 Sobre a mediação entre soberania popular e direitos humanos .................. 290 Sobre a relação entre autonomia privada e pública ..................................... 293 O exemplo das políticas feministas de equiparação .................................... 295

Apêndice a Facticidade e validação .............................................. 299

O bom e o justo ............................................................................................ 300 A neutralização de conflitos de valor e a "acedência de diferenças" ............ 308 Forma e conteúdo: o cerne "dogmático" do procedimentalismo ................ 326 Problemas da construção teórica ................................................................. 338 Sobre a lógica dos discursos jurídicos .......................................................... 353 Sobre o teor político do paradigma procedimental ..................................... 365 Comentários sociológicos: mal-entendidos e estímulos ............................. 373

Fontes dos capítulos ........................................................................ 385

Índice de nomes ............................................................................... 387

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Prefácio*

Os estudos que compõem o presente livro surgiram depois da publicação de Faktizitiit und Geltung, em 1992. Eles têm em comum o interesse pela questão das conseqüências que hoje resultam do conteú­do universalista dos princípios republicanos- a saber, para as socie­dades pluralistas, nas quais os contrastes multiculturais se agudizam, para os estados nacionais, que se reúnem em unidades supranacionais, e para os cidadãos de uma sociedade mundial que foram reunidos numa involuntária comunidade de risco, sem ter sido consultados.

Na primeira parte, defendo o conteúdo racional de uma moral baseada no mesmo respeito por todos e na responsabilidade solidária geral de cada um pelo outro. A desconfiança moderna diante de um universalismo que, sem nenhuma cerimônia, a todos assimila e iguala não entende o sentido dessa moral e, no ardor da batalha, faz desapa­recer a estrutura relacional da alteridade e da diferença, que vem sen­do validada por um universalismo bem entendido. Na Teoria da Ação Comunicativa, formulei esses princípios básicos de modo que eles cons­tituíssem uma perspectiva para condições de vida que rompesse a fal­sa alternativa entre "comunidade" e "sociedade". A essa orientação da teoria da sociedade corresponde, na teoria da moral e do direito, um universalismo dotado de uma marcada sensibilidade para as diferen­ças. O mesmo respeito para todos e cada um não se estende àqueles que são congêneres, mas à pessoa do outro ou dos outros em sua al­teridade. A responsabilização solidária pelo outro como um dos nossos se refere ao "nós" flexível numa comunidade que resiste a tudo o que é substancial e que amplia constantemente suas fronteiras porosas. Essa comunidade moral se constitui exclusivamente pela idéia negativa da abolição da discriminação e do sofrimento, assim como da inclusão dos marginalizados - e de cada marginalizado em particular-, em

• Tradução: George Sperber.

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uma relação de deferência mútua. Essa comunidade projetada de modo construtivo não é um coletivo que obriga seus membros uniformiza­dos à afirmação da índole própria de cada um. Inclusão não significa aqui confinamento dentro do próprio e fechamento diante do alheio. Antes, a "inclusão do outro" significa que as fronteiras da comunidade estão abertas a todos- também e justamente àqueles que são estra­nhos um ao outro - e querem continuar sendo estranhos.

A segunda parte contém uma discussão com John Rawls, para a qual fui convidado pela redação e pelo editor do ]o urna[ of Philosophy. Nela, procuro demonstrar que a teoria do discurso é mais apropriada para formular, em termos de conceitos, as intuições morais que nor­teiam Rawls e que me norteiam. É claro que minha réplica também serve ao intuito de esclarecer as diferenças entre o liberalismo político e um republicanismo kantiano tal como eu o entendo.

A terceira parte pretende contribuir para o esclarecimento de uma controvérsia que voltou a surgir na Alemanha depois da reunificação. Continuo a fiar a linha que iniciei outrora num ensaio sobre "Cidada­nia e Identidade Nacional"1• Do conceito, inspirado pelo romantis­mo, da nação como uma comunidade de cultura e de destino, etnica­mente enraizada, que pode reivindicar uma existência própria como Estado, alimentam-se até hoje muitas convicções e opiniões proble­máticas: o apelo a um pretenso direito à autodeterminação nacional, o rechaço simétrico do multiculturalismo e da política de direitos hu­manos, assim como a desconfiança diante da transferência de direitos de soberania a instituições supranacionais. Os apologistas da nação­povo deixam de perceber que são justamente as notáveis conquistas históricas do estado nacional democrático e seus princípios constitu­cionais republicanos os que podem dar-nos lições a respeito de como deveríamos lidar com os problemas da atualidade, decorrentes da pas­sagem inevitável a formas de socialização pós-nacionais.

A quarta parte ocupa-se da realização dos direitos humanos em nível global e nacional. O bicentenário do texto sobre a Paz perpétua dá-nos motivo para uma revisão do conceito kantiano dos direitos do cidadão do mundo, à luz de nossa experiência histórica. Os Estados­sujeitos, outrora soberanos, que perderam há muito a pressuposição de inocência de que partia o direito constitucional, não podem mais

1. Faktizitat und Geltung, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1992, pp. 632-660.

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invocar o princípio da não-intromissão nos assuntos internos. O de­safio do multiculturalismo comporta-se de forma a especular em face da questão das intervenções por motivos humanitários. Também aqui há minorias que procuram proteger-se de seu próprio governo. Essa discriminação assume, porém, no contexto de um Estado de direito legítimo em seu todo, a forma mais sutil do poder pela maioria, em que uma cultura de maioria se funde à cultura política geral. Contudo, em oposição à proposta com unitarista de Charles Taylor, sustento que uma "política do reconhecimento"- à qual cabe garantir, com igual­dade de direitos, a coexistência de diferentes subculturas e formas de vida dentro de uma só comunidade republicana - tem de cumprir seu papel sem direitos coletivos nem garantias de sobrevivência.

A quinta parte lembra pressupostos básicos da teoria do discurso a respeito da concepção de democracia e de Estado de direito. Esse modo de ver a política deliberativa permite sobretudo uma maior precisão da igualdade de origem da soberania popular e dos direitos humanos.

Já em setembro de 1992, a Cardozo School of Law de New York organiwu uma conferência científica, por ocasião da publicação, próxi­ma então, de Faktizitiit und Geltung. O posfácio contém, por extenso, a minha réplica aos reparos feitos naquela oportunidade, pelos quais sou grato.

J. H. Starnberg, janeiro de 1996

PREFÁCIO 9

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1 Uma visão genealógica do teor cognitivo da morar

o Frases ou manifestações morais têm, quando podem

ser fundamentadas, um teor cognitivo. Portanto, para termos clareza quanto ao possível teor cognitivo da moral, temos de verificar o que significa "fundamentar moralmente" alguma coisa. Ao mesmo tempo, devemos diferenciar entre, por um lado, o sentido dessa questão quanto à teoria da moral, ou seja, se manifestações morais expressam algum saber e como elas podem ser eventualmente fundamentadas, e, por outro lado, a questão fenomenológica a respeito de qual teor cogni­tivo os próprios participantes desses conflitos vêem em suas manifestações morais. De início, falo em "fundamentação moral" de maneira descritiva, tendo em vista a prática rudi­mentar de fundamentação que tem seu lugar nas interações cotidianas do mundo vivido.

Aqui nós pronunciamos frases que têm o sentido de exi­gir dos outros determinado comportamento (ou seja, de reclamar o cumprimento de uma obrigação), de fixar uma

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forma de agir para nós mesmos (ou seja, de assumirmos uma obri­gação), de admoestar outros ou nós mesmos, de reconhecer erros, de apresentar desculpas, de oferecer indenizações etc. Nesse primeiro ní­vel, as declarações morais servem para coordenar os atas de diversos atares de um modo obrigatório. É claro que essa "obrigação" pressupõe o reconhecimento intersubjetivo de normas morais ou de práticas habituais, que fixam para uma comunidade, de modo convincente, as obrigações dos atares, assim como aquilo que cada um deles pode es­perar do outro. "De modo convincente" quer dizer que, toda vez que a coordenação das ações fracassa no primeiro nível, os membros de uma comunidade moral invocam essas normas e apresentam-nas como "motivos" presumivelmente convincentes para justificar suas reivin­dicações e críticas. As manifestações morais trazem consigo um poten­cial de motivos que pode ser atualizado a cada disputa moral.

Regras morais operam fazendo referência a si mesmas. Sua ca­pacidade de coordenar as ações comprova-se em dois níveis de inte­ração, acoplados de modo retroativo entre si. No primeiro nível, elas dirigem a ação social de forma imediata, na medida em que compro­metem a vontade dos atares e orientam-na de modo determinado. No segundo nível, elas regulam os posicionamentos críticos em caso de conflito. Uma moral não diz apenas como os membros da comu­nidade devem se comportar; ela simultaneamente coloca motivos para dirimir consensualmente os respectivos conflitos de ação. Fazem par­te do jogo da linguagem moral as discussões, as quais, do ponto de vista dos participantes, podem ser resolvidas convincentemente com ajuda de um potencial de fundamentações igualmente acessível a to­dos. Devido a essa relação íntima com a branda força de convenci­mento inerente aos motivos, os deveres morais recomendam-se, do ponto de vista sociológico, como alternativa a outras espécies de solu­ção de conflitos, não orientadas pelo acordo mútuo. Dito de outra forma, se a moral carecesse de um teor cognitivo crível, ela não seria superior às formas mais dispendiosas de coordenação da ação (como o uso direto da violência ou a influência sobre a ameaça de sanções ou a promessa de recompensas).

Quando dirigimos o olhar para as discussões morais, temos de incluir as reações provindas dos sentimentos na classe das manifesta­ções morais. O conceito central do dever já não se refere apenas ao teor dos mandamentos morais, mas também ao caráter peculiar da valida-

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ção do dever ser, que se reflete também no sentimento de assumir uma obrigação. Posicionamentos críticos e autocríticos diante de infrações manifestam-se em atitudes dos sentimentos: do ponto de vista de ter­ceiros, como repulsa, indignação e desprezo; do ponto de vista do atin­gido diante de seu próximo, como sentimento de humilhação ou de ressentimento; do ponto de vista da primeira pessoa, como vergonha e culpa1• A isso correspondem, enquanto reações afirmativas dos senti­mentos, a admiração, a lealdade, a gratidão etc. Como esses sentimen­tos que assumem posição exprimem implicitamente juízos, a eles cor­respondem valorações. Julgamos ações e intenções como "boas" ou "más': enquanto o vocabulário das virtudes se refere a características das pessoas que agem. Também nesses sentimentos e valorações mo­rais se revela a pretensão de que os juízos morais possam ser funda­mentados. Pois eles diferenciam-se de outros sentimentos e valora­ções pelo fato de estar entretecidos com deveres racionalmente exigí­veis. Nós justamente não entendemos essas manifestações como ex­pressão de sensações e preferências meramente subjetivas.

A partir do fato de haver normas morais "em vigor" para os inte­grantes de uma comunidade, não segue necessariamente que as mes­mas tenham, consideradas em si, um conteúdo cognitivo. Um obser­vador sociológico pode descrever um jogo de linguagem moral como um fato social e pode até mesmo explicar por que os integrantes estão "convictos" de suas regras morais, sem ele mesmo estar em condições de acompanhar o raciocínio que explica a plausibilidade desses moti­vos e interpretações2• Um filósofo não pode dar-se por satisfeito com isso. Ele aprofundará a fenomenologia das respectivas disputas mo­rais para descobrir o que os participantes fazem quando (acreditam) justificar algo moralmente3• É claro que "perscrutar" significa algo dife-

l. Cf. P. F. Strawson, Freedom and Resentment, London 1974. 2. Cf. H. L. A. Hart defendeu essa opinião e considerou que a unidade dos siste­

mas jurídicos provém de regras fundamentais ou cognitivas, que legitimam o corpus das regras in toto, sem ser elas mesmas capazes de uma justificação racional. Tal como a gramática de um jogo de linguagem, também a "regra cognitiva" enraíza-se numa práxis, que um observador só pode constatar como fato, enquanto ela representa, para os que dela participam, uma evidência cultural manifesta, "que é aceita e da qual se pressupõe a sua validade': H. L. A. Hart, Der Begriff des Rechts, Frankfurt am Main 1973, 155.

3. Cf. a brilhante fenomenologia da consciência moral em : L. Wingert, Gemein­sinn und Mora~ Frankfurt am Main 1993, Cap. 3.

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rente de meramente "entender" as manifestações. O acompanhamen­to reflexivo da práx:is da justificação no mundo vivido, do qual nós mesmos participamos como leigos, permite traduções reconstrutoras que incentivam uma compreensão crítica. Nesse posicionamento me­todológico, o filósofo amplia a perspectiva de participação fixada para além do círculo dos participantes imediatos.

Os resultados de tais esforços podem ser inspecionados nos prin­cípios da filosofia moral desenvolvidos na modernidade. É claro que essas teorias se diferenciam segundo seu grau de disponibilidade her­menêutica. Segundo a medida em que se interessam pelo saber moral utilizado intuitivamente pelos participantes, elas conseguem recolher reconstrutivamente mais ou menos elementos do conteúdo cognitivo das nossas intuições morais cotidianas.

O não-cognitivismo severo quer desmascarar o conteúdo cogniti­vo da linguagem moral como sendo, em tudo, ilusão. Ele tenta mostrar que, por trás das manifestações que para os participantes parecem juí­zos e posicionamentos morais passíveis de justificação, se escondem apenas sentimentos, posicionamentos ou decisões de origem subjeti­va. Descrições revisionistas semelhantes às do emotivismo (Stevenson) e do decisionismo (Popper e o primeiro Hare) foram encontradas pelo utilitarismo, que vê nas preferências a origem do sentido "obrigatório" das orientações de valor e dos deveres. Contudo, diferentemente do não-cognitivismo severo, ele substitui a autoconsciência moral irrefle­tida dos participantes por um cálculo de beneficias, feito a partir da perspectiva do observador, e, nessa medida, oferece uma fundamenta­ção que parte da teoria da moral para o jogo moral de linguagem.

Nesse sentido, o utilitarismo tange algumas formas do não-cog­nitivismo atenuado, que leva em conta a autoconsciência dos sujeitos que agem moralmente, seja tendo em vista sentimentos morais (como é o caso da tradição da filosofia moral escocesa), seja a orientação se­gundo normas vigentes (como no caso do contratualismo de cunho hobbesiano). Contudo, a autoconsciência do sujeito que julga moral­mente recai em revisão. Em seus posicionamentos e julgamentos, pre­sumidamente justificados de modo objetivo, deveriam exprimir-se de fato apenas motivos racionais, sejam sentimentos ou situações de inte­resses (fundamentáveis pela razão dos seus fins).

O cognitivismo atenuado também deixa intacta a autoconsciência da práxis cotidiana das fundamentações morais, na medida em que

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atribui às valorações "fortes" um status epistêmico. A consciência re­flexiva daquilo que, considerado como um todo, é "bom" para mim (ou para nós) ou queé"determinante"para o meu (ou o nosso) modo consciente de levar a vida torna possível (na tradição de Aristóteles ou de Kierkegaard) uma espécie de acesso cognitivo às orientações de valor. Aquilo que, em cada caso, é valioso ou autêntico impõe-se-nos, em certa medida, e diferencia-se das meras preferências por meio de uma qualidade obrigatória, que remete para além da subjetividade das ne­cessidades e das preferências. Contudo, a compreensão intuitiva de justiça é revista. A partir da perspectiva de uma concepção própria e individual do bem, a justiça adaptada às relações interpessoais apre­senta-se como apenas um valor (seja qual for sua forma de pronun­ciação), junto a outros valores, e não como escala de medida para jul­gamentos imparciais, independente dos contextos.

O cognitivismo severo quer, ainda, fazer justiça à reivindicação categórica de validade dos deveres morais. Ele tenta reconstruir o con­teúdo cognitivo do jogo moral de linguagem em toda a sua amplidão. Diferentemente do neo-aristotelismo, na tradição kantiana não se trata do esclarecimento de uma práxis de fundamentação moral, que se mo­vimenta dentro do horironte de normas reconhecidas e incontestes, mas da fundamentação de um ponto de vista moral, a partir do qual tais normas podem ser julgadas em si de forma imparcial. Aqui a teo­ria moral fundamenta a possibilidade da fundamentação, na medida em que reconstrói o ponto de vista que os próprios membros das so­ciedades pós-tradicionais assumem intuitivamente, quando, diante de normas morais básicas que se tornaram problemáticas, só podem re­correr a motivos sensatos. Porém, diferentemente das formas de jogo empíricas do contratualismo, esses motivos não são concebidos como motivos relativos aos atores, de modo que o núcleo epistêmico dava­lidade do dever ser permanece intato.

Em primeiro lugar, caracterizarei a situação inicial, na qual a fun­damentação religiosa para a validade da moral é desvalorizada (II). Esse é o pano de fundo para um questionamento genealógico, diante do qual eu gostaria de examinar as duas variantes do empirismo clás­sico (III), duas interessantes tentativas de renovação do programa de explicação empirista (IV-V) e as duas tradições que remontam a Aris­tóteles (VI) e a Kant (VII). Tudo isso serve para preparar as duas ques­tões sistemáticas, a respeito de quais intuições morais é possível re-

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construir sensatamente (VIII) e se é possível fundamentar em si o ponto de vista desdobrado a partir da teoria do discurso (IX).

As tentativas de explicação do "ponto de vista moral" lembram que os mandamentos morais, após o desmoronamento de uma visão de mundo "católica': obrigatória para todos, e com a passagem para as sociedades de cosmovisão pluralista, não mais podem ser justificados publicamente segundo um ponto de vista divino transcendente. Se­gundo esse ponto de vista, para além do mundo, era possível objetivar o mundo como um todo. O "ponto de vista moral" deve reconstruir essa perspectiva intramundialmente, quer dizer, deve recuperá-la den­tro dos limites de nosso mundo compartilhado intersubjetivamente, sem perder a possibilidade do distanciamento do mundo como um todo, nem a da universalidade de um olhar que abarca o mundo todo. Contudo, junto com essa mudança de perspectivas no sentido de uma "transcendência de dentro"\ surgem as seguintes questões: primeiro, se é possível, a partir da liberdade subjetiva e da razão prática do homem abandonado por Deus, fundamentar a força obrigatória específica das normas e dos valores em geral; e, segundo, como se modifica com isso, se possível for, a peculiar autoridade do dever ser. Nas sociedades ocidentais profanas, as intuições morais cotidianas ainda estão marca­das pela substância normativa das tradições religiosas por assim dizer decapitadas, declaradas juridicamente como questão privada- sobre­tudo pelos conteúdos da moral da justiça judaica, do Antigo Testa­mento, e da ética do amor cristão, do Novo Testamento. Esses elemen­tos são transmitidos por meio dos processos de socialização, embora freqüentemente de forma implícita ou sob outras denominações. Uma filosofia moral que se entenda como reconstrução da consciência moral cotidiana coloca-se com isso diante do desafio de examinar até que ponto essa substância pode ser justificada racionalmente.

Os ensinamentos proféticos transmitidos pela via bíblica tinham à sua disposição interpretações e motivos que conferiram às normas

4. J. Habermas, "Transzendenz von innen, Transzendenz ins Diesseits': ln: idem, Texteund Kontexte, Frankfurtam Main 1991, 127-156;a este respeito, Th. M. Schmidt, "Immanente Transzendenz", in L. Hauser, E. Nordhofen (ed.), lm Netz der Begriffe. Religionsphilosophische Analysen, Freiburg 1994, 78-96.

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morais uma força de convencimento pública. Eles explicavam por que os mandamentos de Deus não são ordens cegas, mas podem requerer validação própria, em um sentido cognitivo. Se mesmo sob as condi­ções de vida moderna não há um equivalente funcional para a moral como ela mesma, e se o jogo de linguagem moral não pode ser sim­plesmente substituído por um controle qualquer do comportamento -percebido como tal-, então o sentido cognitivo de validade com­provado fenomenologicamente leva-nos a perguntar se a força per­suasiva de normas e valores já aceitos é algo assim como uma aparên­cia transcendental ou se ela pode ser justificada também sob condi­ções pós-metafísicas. A filosofia moral não precisa apresentar ela pró­pria os fundamentos e as interpretações que, nas sociedades seculari­zadas, ocupam o lugar dos fundamentos e das interpretações religio­sas desvalorizadas- ao menos publicamente. Contudo, ela precisaria designar o gênero de fundamentos e interpretações que poderiam as­segurar ao jogo de linguagem moral uma força de convicção suficien­te, também sem uma retaguarda religiosa. Tendo em vista esse ques­tionamento genealógico, gostaria de ( 1) lembrar a base de validação monoteísta de nossos mandamentos morais e (2) determinar mais precisamente o desafio proveniente da moderna situação de partida.

(1) A Bíblia origina os mandamentos morais na revelação da pa­lavra de Deus. Esses mandamentos devem ser objeto de obediência imediata, pois estão munidos da autoridade de um Deus onipotente. Nessa medida, a validade de seu dever ser estaria munida apenas da qualidade de um "dever': na qual se reflete o poder ilimitado de um soberano. Deus pode obrigar à obediência. Essa interpretação volunta­rista, porém, ainda não confere à norma um sentido cognitivo. Esse, ela o ganha apenas pelo fato de que os mandamentos morais são inter­pretados como manifestações da vontade de um Deus onisciente e ab­solutamente justo e bondoso. Os mandamentos não surgem do arbítrio de um todo-poderoso, mas são manifestações da vontade de um sábio deus criador, que é também um deus salvador justo e bondoso. A par­tir das duas dimensões da ordem da criação e da história da salvação podem ser obtidos fundamentos ontoteológicos e soteriológicos para o fato de os mandamentos divinos serem dignos de aceitação.

A justificação ontoteológica recorre a uma instalação do mundo devido à sábia legislação do deus criador. Ela confere ao homem e à comunidade humana um status destacado em meio à criação e, com

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isso, seu "destino': Junto com a metafísica da criação entra em jogo a conceptualidade do direito natural das éticas cosmologicamente fun­damentadas, que conhecemos também nas cosmovisões impessoais das religiões asiáticas e na filosofia grega. Aquilo que as coisas são por sua essência tem um conteúdo teleológico. Também o homem é parte de tal ordem essencial; é nela que ele pode ler quem ele é e quem deve ser. O conteúdo racional das leis morais obtém assim uma legitima­ção ontológica a partir da instalação razoável de tudo o que é.

A justificação soteriológica dos mandamentos morais recorre, por outro lado, à justiça e à bondade de um deus salvador, que no fim dos tempos irá resgatar sua promessa de salvação, condicionada por uma vida moral e obediente às leis. Ele é juiz e salvador numa mesma pes­soa. À luz de seus mandamentos, Deus julga o modo como cada pessoa conduziu sua vida, de acordo com seus méritos. Ao mesmo tempo, seu espírito de justiça garante uma sentença apropriada para as histó­rias de vida de cada indivíduo, incomparáveis entre si, enquanto sua bondade leva em consideração simultaneamente a falibilidade do espí­rito humano e o caráter pecaminoso da natureza humana. Os manda­mentos morais adquirem um sentido sensato através dos dois: pelo fato de indicarem o caminho para a salvação pessoal, e também por serem aplicados de modo imparcial.

É claro que falar em "mandamentos" morais é algo de certo modo enganador, na medida em que o caminho da salvação não está traçado por um sistema de regras, mas por meio de uma forma de vida autori­zada por Deus e recomendada à imitação. Esse é, por exemplo, o sen­tido da imitação de Cristo. Também outras religiões universais, e até mesmo a filosofia, com seu ideal do sábio e da vida contemplativa, adensam a substância moral de suas doutrinas em formas de vida exem­piares. Isso significa que, em interpretações religioso-metafísicas do mundo, o justo está entretecido com certos conceitos do bem viver. O modo como devemos nos comportar nos relacionamentos interpes­soais resulta de um modelo de conduta exemplar.

Aliás, o ponto de referência de um deus que aparece in persona, que no dia do Juízo Final julgará cada um dos destinos individuais, significa uma diferenciação importante entre dois aspectos da moral. Cada pessoa tem uma relação comunicativa dupla com Deus, tanto como membro da comunidade dos fiéis, com a qual Deus fechou uma aliança, quanto como indivíduo isolado na história de sua vida, que não

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pode se fazer representar por outro diante de Deus. Essa estrutura co­municacional marca o relacionamento moral- mediado por Deus­com o próximo, sob os pontos de vista da solidariedade e da justiça ( en­tendida apenas num sentido mais estrito). Enquanto membro da corou­nidade universal dos fiéis, estou solidariamente unido ao outro, como companheiro, como "um dos nossos"; como indivíduo insubstituível eu devo ao outro o mesmo respeito, como "uma entre todas" as pessoas, que merecem um tratamento justo enquanto indivíduos inconfundí­veis. A "solidariedade" baseada na qualidade de membro lembra o liame social que une a todos: um por todos. O igualitarismo implacável da "justiça" exige, pelo contrário, sensibilidade para com as diferenças que distinguem um indivíduo do outro. Cada um exige do outro o respeito por sua alteridade5• A tradição judeu-cristã considera a solidariedade e a justiça como dois aspectos de uma mesma questão: elas permitem ver a mesma estrutura comunicacional de dois lados diferentes.

(2) Com a passagem para o pluralismo ideológico nas socieda­des modernas, a religião e o ethos nela enraizado se decompõem en­quanto fundamento público de validação de uma moral partilhada por todos. Em todo caso, a validação de regras morais obrigatórias para todos não pode mais ser explicada com fundamentos e interpre­tações que pressupõem a existência e o papel de um deus transcen­dental, criador e salvador. Com isso, suprime-se por um lado a au­tenticação ontoteológica de leis morais objetivamente racionais e, por outro lado, a ligação soteriológica de sua justa aplicação com bens salvacionistas objetivamente almejáveis. Aliás, a desvalorização de conceitos metafísicas básicos (e da correspondente categoria de ex­plicações) também está relacionada com um deslocamento da auto­ridade epistêmica, que passa das doutrinas religiosas às modernas ciências empíricas. Com os conceitos essenciais da metafísica dissol­ve-se a correlação interna das proposições assertivas com as correspon­dentes proposições expressivas, avaliatórias e normativas. Aquilo que é "objetivamente razoável" só pode ser fundamentado na medida em que o justo e o bom estão fundamentados no ente impregnado da norma. Aquilo que é "objetivamente almejável" só pode ser funda-

5. Quanto à "justiça" e à "solidariedade", cf. J. Habermas, Erlauterungen zur Dis­kursethik, Frankfurt am Main 1991, 15ss. e 69ss.; L. Wingert (1995) propõe outra versão.

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mentado na medida em que a teleologia da história da salvação ga­rante a realização do estado de perfeita justiça que carrega em si, ao mesmo tempo, um bem concreto.

Sob essas condições, a filosofia moral depende de um "nível de fundamentação pós-metafísico". Isso quer dizer, em primeira instân­cia, que lhe são negados, do lado do método, o ponto de vista divino, do lado do conteúdo, o recurso à ordem da criação e à história da salvação, e do lado da estratégia teórica, a remissão aos conceitos essen­ciais que perpassam a diferenciação lógica entre diversos tipos elocucio­nais de proposições6 • A filosofia moral deve justificar o sentido cogni­tivo da validação dos julgamentos e posicionamentos morais sem re­correr a apetrechos como esse.

Contudo, há quatro reações diante dessa situação inicial que me parecem tão implausíveis, que não entrarei em detalhes a respeito:

- O realismo moral quer restaurar a justificação ontológica de normas e valores por meios metafísicas. Ele defende um acesso cognitivo, no mundo, a algo que possui a peculiar energia de ori­entar nossos desejos e de obrigar a nossa vontade. Como essa fonte do normativo não mais pode ser explicada a partir da cons­tituição do mundo como um todo, o problema desloca-se para o campo da epistemologia: para os juízos de valor assimilados a asserções sobre os fatos deve ser postulado um fundamento da experiência análogo à percepção, uma captação intuitiva ou uma visão ideal de valores7•

6. J. Habermas, Nachmetaphysisches Denken, Frankfurt am Main 1988 [ed. br.: Pensamento pós-metafisico, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990 ].

7. Quanto à critica, cf. J. L. Mackie, Ethics, NewYork 1977, 38ss. Hoje em dia, a base argumentativa modificou-se em favor do realismo. A versão mais requintada de uma ética dos valores introduzida pela crítica do conhecimento, mas fundamenta­da numa filosofia natural, nas pegadas de Platão e Aristóteles, é desenvolvida por J. McDowell, Mind and World, Cambridge, Mass. 1994, 82: "The ethical is a domain of rational requirements, which are there in any case, wether or not we are responsive to them. We are alerted to these demands by acquiring appropriate conceptual capacities. When a decent upbringing initiates us into the relevant way of thinking, our eyes are opened to this tract of the sapace of reasons" ["O ético é um campo de requerimentos racionais, que estão lá em qualquer caso, seja que nós respondamos a eles ou não. Somos alertados para tais demandas adquirindo capacidades conceituais apropriadas. Quando uma educação decente nos inicia no modo relevante de pensar, nossos olhos são abertos para esse trato do espaço das razões"). Esse passo em direção ao idealismo objetivo, McDowell o dá com a assunção de um processo de educação organicamente

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-O utilitarismo, embora ofereça um princípio para fundamen­tar os julgamentos morais, não permite uma reconstrução apro­priada do sentido da normatividade por causa de sua orientação pelo benefício total esperado de determinado modo de agir. O utilitarismo falha sobretudo ao desconhecer o sentido individu­alista de uma moral do respeito igual devido a todos. - O ceticismo fundamentado de forma inetaética leva, como já foi dito, a descrições revisionistas do jogo de linguagem moral que perdem o contato com o sentido comum dos participantes. Elas não podem explicar o que querem explicar: as práticas mo­rais do cotidiano, que desmoronariam, se os participantes negas­sem todo conteúdo cognitivo às suas disputas morais8•

- O funcionalismo moral não é tradicionalista no sentido em que retorna a padrões de fundamentação pré-modernos. Ele in­voca a autoridade das tradições religiosas abaladas, mas o faz por

fundamentado, a cuja luz a razão prática aparece como uma disposição natural, que pode reivindicar objetivamente a sua validade: "Our Bildung actualizes some of the potentialities we are born with; we do not have to suppose it introduces a non-animal ingredient into our constitution. And although the structure of the space of reasons cannot be reconstructed out of facts about our involvement in the 'realm of law', it can be the framework within which meaning comes into view only because our eyes can be opened to it by Bildung, which is an element in the normal coming to maturity of the kind of animais we are. Meaning is nota mysterious gift from outside nature" ["Nossa Bildung [educação, formação I atualiza algumas das potencialidades com as quais nas­cemos; não temos que supor que ela introduza um ingrediente não animal em nossa constituição. E embora a estrutura do espaço das razões não possa ser reconstruída a partir dos fatos relativos a nosso envolvimento no 'campo da lei', pode ser a moldura dentro da qual o significado salta à vista somente porque os nosso olhos podem ser abertos a ela pela Bildung, a qual é um elemento no caminho normal para a idade madura no tipo de animal que nós somos. O significado não é um dom misterioso de fora da natureza." (88) McDowell não nega, de forma alguma, a pretensão metafísica dessa concepção, que não posso discutir aqui em detalhe: "The position is a naturalism of second nature, and I suggested that we can equally see it as a naturalized platonism. The idea is that the dictates of reason are there anyway, wether or not one's eyes are opened to them; that is what happens in a proper upbringing" ["A posição é um natu­ralismo de segunda natureza, e eu sugeri que também podemos vê-la como um plato­nismo naturalizado. A idéia é que os ditames da razão estão lá de qualquer modo, estejam nossos olhos abertos para eles ou não. Isso é o que acontece num processo apropriado de educação") (91).

8. Cf. H. Lenk, "Kann die sprachanalytische Moralphilosophie neutral sein?" [Pode a filosofia moral baseada na análise lingüística ser neutra?) in: M. Riedel (ed.), Rehabilitíerung der praktischen Philosophie, vol. II, Freiburg 1974, 405-422.

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causa de suas conseqüências favoráveis, estabilizadoras da cons­ciência moral. Tal justificação funcional, realizada com base em uma perspectiva de observação, não pode substituir a autoridade daqueles motivos que convenceram os fiéis; e, mais que isso, ela também destrói, contra a sua vontade, o conteúdo cognitivo da moral baseada na religião, na medida em que trata da autoridade epistêmica da fé apenas como um fato social9•

As doutrinas religiosas da criação e da história da salvação haviam fornecido razões epistêmicas para que os mandamentos divinos não fossem vistos como advindos de uma autoridade cega, mas sim como razoáveis ou "verdadeiros". Ora, quando a razão se retira da objeti­vidade da natureza ou da história da salvação e se transfere para o espí­rito de sujeitos atuantes e julgadores, tais razões "objetivamente razoá­veis" para os julgamentos e os atas morais têm de ser substituídas por outras, "subjetivamente razoáveis"10• Depois de o fundamento religioso da própria validação ter perdido o valor, o conteúdo cognitivo do jogo moral de linguagem só pode ser reconstruído referindo-se à vontade e à razão de seus participantes. "Vontade" e "razão" são, pois, os conceitos básicos dos enfoques da teoria da moral que assumem essa tarefa. O empirismo concebe a razão prática como a capacidade de determinar o arbítrio de acordo com as máximas da inteligência, enquanto o aris­totelismo e o kantismo não contam apenas com motivos racionais, mas com uma autovinculação da vontade motivada pelo discernimento.

O empirismo entende a razão prática como sendo a razão instru­mental. Para alguém que age, é razoável agir de certa forma e não de outra, se o resultado (esperado) de seu ato é de seu interesse, o satis­faz ou lhe é agradável. Numa determinada situação, tais razões valem para determinado atar, que tem determinadas preferências e quer atingir determinadas metas. Chamamos essas razões de "pragmáti­cas" ou preferenciais, porque elas motivam para a ação, e não porque

9. Cf. E. Tugendhat, Vorlesungen über Ethik, Frankfurt am Main 1993, 199ss. [ ed. br.: Lições sobre ética, Petrópolis, Vozes, 1997].

10. Para a comparação entre razão objetiva e razão subjetiva, c( M. Horkheimer, Zur Kritik der instrumentellen Vernunft, Frankfurt am Main 1967; H. Schnãdelbach, "Vernunft". ln: E. Martens, H. Schnãdelbach (ed.), Philosophie, Hamburg 1985,77-115.

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suportem julgamentos ou opiniões, tal como o fazem as razões epis­têmicas. Elas constituem motivos racionais para os atos, não para as convicções. Claro que elas "afetam" a vontade apenas na medida em que o sujeito atuante se apropria de determinada regra de ação. É fundamentalmente nisso que reside a diferença entre os atos premedi­tados e os atas motivados espontaneamente. Também um "propósito" é uma disposição; mas essa, à diferença da "tendência': só se constitui mediante a liberdade do arbítrio, a saber, na medida em que um ator adota uma regra de ação. O ator age racionalmente quando o faz a par­tir de razões, e quando sabe por que está seguindo uma máxima. O em­pirismo só leva em consideração razões pragmáticas, ou seja, o caso em que um atar deixa vincular seu arbítrio, pela razão instrumental, às "regras de destreza" ou aos "conselhos da prudência" (como diz Kant). Assim, ele obedece ao princípio da racionalidade dos fins: "Quem quer um fim, também quer (na medida em que a razão tem uma influência decisiva sobre seus atos) o meio imprescindível para tanto, que está em seu poder" (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, BA 45).

Sobre essa base, os dois enfoques clássicos do empirismo recons­troem o cerne racional da moral. A filosofia moral escocesa parte de sentimentos morais e entende por moral aquilo que funda a coerência solidária de uma comunidade (a). O contratualismo refere-se imedia­tamente aos interesses e entende por moral aquilo que garante a jus­tiça de um trânsito social normativamente regulado (b). As duas teo­rias defrontam-se, no fim, com a mesma dificuldade: elas não podem explicar apenas com motivos racionais a obrigatoriedade dos deveres morais, que remete para além da força obrigatória da inteligência.

(a) Posicionamentos morais exprimem sentimentos de aprova­ção ou reprovação. Hume os entende como os sentimentos típicos de um terceiro que julga as pessoas agentes a partir de uma distância be­nevolente. Uma congruência no julgamento moral de um caráter sig­nifica portanto uma convergência de sentimentos. Mesmo que a apro­vação e a reprovação exprimam simpatia e rejeição, sendo portanto de natureza emocional, é racional para um observador reagir desse modo. Porque nós consideramos que uma pessoa é virtuosa se demonstrar ser útil e agradável (useful and agreeable) para nós e para nossos ami­gos. Essa demonstração de simpatia, por sua vez, enche a pessoa vir­tuosa de orgulho e satisfação, enquanto a repreensão mortifica o recrimi­nado e, portanto, desperta nele desprazer. Por isso é que também há

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motivos pragmáticos para o comportamento altruísta. A benevolência concedida por outrem produz satisfação na pessoa que é útil e agradá­vel para os outros. Sobre a base dessas disposições dos sentimentos pode configurar-se a força de integração social da confiança mútua.

É claro que esses motivos pragmáticos para posicionamentos e atos morais só fazem sentido enquanto pensarmos em relacionamen­tos interpessoais em comunidades pequenas e solidárias, como as fa­mílias ou as vizinhanças. Sociedades complexas não podem manter sua coerência apenas sobre a base de sentimentos tais como a simpatia e a confiança, mais ajustados aos espaços reduzidos. O comportamen­to moral diante dos estranhos exige virtudes "artificiais", sobretudo a disposição para a justiça. Em vista das cadeias abstratas de ações, os participantes de grupos primários de referência perdem o controle sobre a reciprocidade entre prestações e recompensas- e, com isso, os moti­vos pragmáticos para a benevolência. Os sentimentos de obrigação que salvam as distâncias entre estranhos não são "racionais para mim" do mesmo jeito como o é a lealdade para com meus aparentados, em cuja condescendência eu posso, por minha vez, confiar. Na medida em que a solidariedade é o avesso da justiça, não há nada que deponha contra a tentativa de explicar o surgimento dos deveres morais a partir da trans­ferência de lealdades de um grupo primário para grupos cada vez maio­res (ou da transformação de confiança pessoal em "confiança sistemá­tica") 11 • Mas uma teoria normativa não prova sua validade com ques­tões de psicologia moral; antes, ela tem de explicar a prevalência nor­mativa dos deveres. Em casos de conflitos entre, por um lado, um com­promisso benevolente dos sentimentos e, por outro, um mandamento abstrato de justiça, a teoria normativa deve esclarecer por que, para os membros de um grupo, deve ser racional preterir sua lealdade para

11. A. C. Baier, Moral Prejudices, Cambridge, Mass. 1994, 184ss. Em vez da sim­patia, Baier recorre ao fenômeno da confiança infantil: "Trust. .. is letting other persons ... take care of something the truster cares about, where such 'caring for' involves some exercise of discretionary powers" !"Confiança ... é deixar outros ... tomar conta de algo que aquele que confia tem em alta conta, 'tomar conta' implicando algum exer­cido de poder discricionário"] ( 105) .Isso tem a vantagem de que a consideração moral, vista com fidelidade fenomenológica, pode ser descrita como uma compensação rica em facetas entre independência e vulnerabilidade; ao mesmo tempo, porém, tem ades­vantagem de que, ao transferir o modelo desenvolvido a partir das relações assimétricas entre pais e filhos para as relações simétricas entre adultos, surge o problema da con­fiabilidade e do abuso de confiança (cf. capítulos 6, 7 e 8).

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com as pessoas que conhece face a face em favor de urna solidariedade para com estranhos. Contudo, quando as dimensões de urna comuni­dade de seres morais que merecem igual respeito ultrapassam o limite do compreensível, os sentimentos constituem urna base evidentemen­te estreita demais para a solidariedade entre seus rnernbros12•

(b) O contratualisrno deixa de lado logo de início o aspecto da solidariedade, porque refere a questão da fundamentação normativa de um sistema de justiça imediatamente aos interesses do indivíduo - e com isso desloca a moral dos deveres para os direitos. A figura mental jurídica do direito subjetivo a campos de ação garantidos pela lei para a persecução dos interesses individuais vai ao encontro de urna estratégia de fundamentação que opera com motivos pragmáticos e que se orienta pela pergunta sobre ser ou não racional que o indiví­duo subordine sua vontade a um sistema de regras. Para além disso, a figura generalizada do contrato, que provém do direito privado e fun­damenta tais direitos simetricamente, é apropriada para a construção de urna ordem baseada no livre acordo. Tal ordem é justa, ou é boa no sentido moral, quando satisfaz uniformemente os interesses de seus participantes. O contrato social surge da idéia de que qualquer aspi­rante precisa ter um motivo racional para se tornar participante de livre e espontânea vontade e para submeter-se às normas e procedi­mentos correspondentes. O conteúdo cognitivo daquilo que faz com que urna ordem seja moral ou justa repousa, portanto, na aquiescência agregada de todos e de cada um dos participantes; ele se explica mais acuradarnente a partir da racionalidade da avaliação dos bens que cada um deles efetua a partir da sua própria perspectiva de interesses.

Esse enfoque se defronta com duas objeções. Por um lado, a as­similação das questões morais às questões da justiça política de urna associação de pessoas que integram o mesmo sistema jurídico13 tem a desvantagem de que com base nela não é possível fundamentar um

12. O problema da relação de sentimentos para com estranhos também não pode ser solucionado pela transformação de simpatia ou confiança em compaixão. Embora nossa capacidade de acompanhar no sentimento as criaturas capazes de sofrimento vá bem além do que os sentimentos positivos diante de pessoas úteis, agradáveis e dignas de confiança, a compaixão não é uma base suficiente para fundamentar um respeito igual perante outros, também e justamente em sua alteridade, que não podemos acom­panhar no sentimento.

13. Cf. Mackie (1977); idem, "Can there be a right-based Moral Theory?" in: Waldron (ed.), Theories of Right, Oxford 1984, 168-181.

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respeito equânime para com todos, ou seja, não é possível fundamentar uma moral universalista. Somente àqueles que têm interesse numa in­teração regrada apresenta-se como racional a assunção de obrigações mútuas. Assim, o conjunto dos detentores de direitos só pode abranger pessoas das quais, pelo fato de quererem ou deverem cooperar, é pos­sível esperar uma contrapartida. Por outro lado, o hobbesianismo di­gladia-se em vão com o conhecido problema dos oportunistas, que admitem a praxe comum, mas se reservam o direito de, na primeira oportunidade em que isso lhes trouxer maiores benefícios, divergir das normas gerais acordadas. A personagem do free rider demonstra que um acordo entre interesses não pode per se fundamentar obrigações.

Esse problema levou a uma interessante combinação entras as duas teorias empíricas. Uma objeção interna diante de normas for­malmente reconhecidas torna-se impossível a partir do instante em que as infrações das normas não mais são objeto de sanções impostas de fora, mas apenas de sanções interiorizadas, quer dizer, sentimen­tos de vergonha ou de culpa 14• Essa tentativa de explicação fracassa, po­rém, prima facie, devido à dificuldade de explicar racionalmente os sentimentos de autopunição. Não pode haver um motivo racional para "querer ter" sanções internas15• Mesmo a partir de motivos concei­tuais, não pode ser "racional para mim" levar a sério, sem questioná­lo, um peso na consciência e torná-lo simultaneamente objeto de uma reflexão prática, ou seja, questioná-lo. Na medida em que agimos moralmente, o fazemos porque achamos que isso é certo ou bom, e não, por exemplo, porque queremos evitar sanções internas. "Interio­rizadas" são exatamente as sanções de que nós nos apropriamos. Só que a apropriação em si não pode ser explicada mediante uma raciona­lidade dos fins, pelo menos não a partir da perspectiva do envolvido. Para ele, o que pode ser funcional para regrar a comunidade como um todo não é, por si só, racional16•

Da mesma forma em que não há um caminho que leve direta­mente dos sentimentos morais de simpatia ou de rejeição para a fun­damentação das obrigações segundo uma racionalidade dos fins, tam-

14. Cf. E. Tugendhat, "Zum Begriff und zur Begründung der Moral". ln: idem, Philosophische Aufoatze, Frankfurt am Main 1992,315-333.

15. E. Tugendhat (1993}, 75. 16. Cf. J. Elster, The Cement ofSociety, Cambridge 1989, cap. 3.

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bém não há um caminho que leve diretamente de volta aos sentimen­tos de reprovação internalizada a partir da fundamentação contratua­lista de uma ordem normativa. Sentimentos morais exprimem posicio­namentos, os quais implicam juízos morais. E, no caso de um conflito, nós não discutimos a respeito da validade dos juízos morais apenas com motivos pragmáticos ou preferenciais. O empirismo clássico não dá conta desse fenômeno, porque exclui motivos epistêmicos. Em úl­tima instância, ele não pode explicar a força vinculatória das normas morais a partir das preferências.

Diante desse constrangimento, há duas tentativas mais recentes de reação; ambas insistem nos pressupostos empíricos, mas querem, assim mesmo, dar conta da fenomenologia das normas vinculatórias. Allan Gibbard segue mais a linha expressivista da explicação de uma convivência solidária; Ernst Tugendhat, mais a linha contratualista da reconstrução de uma convivência justa. Mas ambos partem da mesma intuição. Toda moral, do ponto de vista funcional, resolve problemas da coordenação dos a tos entre seres que dependem da interação social. A consciência moral é expressão das legítimas reivindicações que os membros cooperativos de um grupo social podem fazer reciprocamente. Sentimentos morais regulam a observância das normas subjacentes. Vergonha e culpa sinalizam a uma pessoa séria que ela, como diz Tugendhat, fracassou enquanto "membro cooperativo" ou como "bom parceiro social" 17• A respeito desses sentimentos, Gibbard diz: "[they are] tied to poor coopera tive will- to a special way a social being can fail to be a good candidate for inclusion in cooperative schemes" 18•

Ambos os autores querem comprovar a racionalidade do surgimento ou da escolha da moral em geral, mas também a racionalidade de uma moral racional universalista. Enquanto Tugendhat se prende à pers­pectiva subjetiva dos participantes, Gibbard segue o caminho objeti­vante de uma explicação funcional.

17. Tugendhat ( 1993), 29 e 91. 18. "[(Eles estão) amarrados a uma falta de vontade cooperativa- a um modo

especial em que um ser social pode fracassar em ser um bom candidato à inclusão nos esquemas cooperativos"]. A. Gibbard, Wise Choices, Apt Feelings, Harvard U. 0., 1992, 196.

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Diferentemente de Kant, que entende as normas apenas como máximas para a ação, Gibbard emprega a norma para todas as espé­cies de padrões que dizem por que é racional para nós ter uma opi­nião, externar um sentimento ou agir de determinada maneira. Ter determinadas opiniões pode ser tão racional para mim quanto exter­nar determinados sentimentos ou executar determinadas intenções de ação. O fato de algo ser "racional para mim" significa que eu me apropriei de normas, à luz das quais é "sensato" ou "apropriado': "plau­sível" ou simplesmente "melhor': acreditar em algo, sentir alguma coisa ou fazer algo. Logo, Gibbard denomina morais as normas que fixam, para uma comunidade, quais as classes de atos que merecem reprova­ção espontânea. Elas determinam em que casos é racional para os membros sentir vergonha ou culpa ou indignar-se com o comporta­mento de outrem. O uso inclusivo do conceito de norma exclui a possi­bilidade de Gibbard reconduzir, como Kant, a racionalidade do agir (segundo o já mencionado princípio da racionalidade segundo os fins) a motivos que fazem o ator vincular sua vontade a esta ou àquela má­xima. Mas se todos os motivos racionais remontam a padrões subja­centes preexistentes, não se pode perguntar, por sua vez, por que foi racional internalizar tais padrões, afinal. O fato de alguém considerar algo como racional apenas exprime que os padrões que autorizam tal juízo são seus padrões. Por isso Gibbard entende a manifestação de juízos de racionalidade, sejam eles de índole moral ou não moral. como atos de fala expressiva. Não podem ser verdadeiros ou falsos, mas ape­nas verídicos ou inverídicos. Também a obrigatoriedade relativa ao ator das normas morais é autenticada apenas por um estado moral externado com sinceridade19•

Após essa explicação "expressivista" da normatividade, Gibbard dá dois passos. Primeiro, ele fornece, a partir da perspectiva de um observador, uma explicação baseada na teoria da evolução a respeito das normas em geral e, depois, ele tenta recuperar o valor "biológico" da moral a partir da perspectiva dos participantes, ou seja, ele tenta traduzir da linguagem teórica de uma "biologia da coordenação da ação" para a linguagem das reflexões práticas.

A explicação neodarwinista assim proposta diz que os sentimen­tos morais, tais como a vergonha e a culpa, desenvolveram-se como

19. Gibbard ( 1992), 84.

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elementos reguladores com funções de coordenação ao longo da evo­lução do gênero humano. A normatividade das regras que fazem pa­recer racional aos membros dos grupos cooperativos ter tais senti­mentos, ou seja, reprovar comportamentos que se desviem da norma, assim como oferecer ou esperar desculpas condizentes como repara­ção por um fracasso na coordenação dos atos, não possui uma racio­nalidade que possa ser reconhecida pelos próprios participantes. Con­tudo, para um observador, a autoridade que se manifesta nos juízos de racionalidade dos participantes explica-se a partir do "valor re­produtivo" das normas internalizadas e das correspondentes atitudes dos sentimentos. O fato de elas serem vantajosas do ponto de vista da evolução deve ficar expresso por seu caráter subjetivamente con­vincente. A tarefa filosófica propriamente dita consiste, então, em estabelecer uma conexão plausível entre aquilo que é funcional para o observador e aquilo que é considerado racional pelos participantes. Esse problema torna-se palpável no mais tardar quando os autores não mais podem confiar apenas nas normas internalizadas, mas pas­sam a discutir explicitamente quais são as normas que devem admitir como válidas.

A língua funciona, aliás, como o mais importante meio de coor­denação das ações. Juízos e posicionamentos morais que se apóiam em normas internalizadas se exprimem numa linguagem carregada de emoções. Contudo, quando o consenso normativo de fundo des­morona e novas normas precisam ser elaboradas, faz-se mister outra forma de comunicação. Nessas circunstâncias, os participantes preci­sam confiar na força orientadora dos "discursos normativos": "I shall call this influence normative governance. lt is in this governance of action, belief and emotion that we might find a place for phenomena that constitute acceptance of norms, as opposed to merely internali­zing them. When we work out at a distance, in community, what to do or think or feel in a situation we are discussing, we come to accept norms for the situation"20•

20. ["Chamarei esta influência de governança normativa. É nesta governança da ação, da crença e da emoção que podemos encontrar um lugar para os fenômenos que constituem a aceitação de normas, em contraposição com a sua mera internalização. Quando elaboramos a distância, numa comunidade, o que fazer ou sentir numa si­tuação que estamos discutindo, chegamos a aceitar normas para essa situação."] Gibbard (1992), 72s.

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Certamente não fica de todo claro o que pode servir de apoio à "instrução normativa" que se espera de tais discursos. Não podem ser bons motivos, pois esses derivam sua força racionalmente motivado­ra de padrões interiorizados, a respeito dos quais se pressupõe que perderam sua autoridade- caso contrário não teria surgido a neces­sidade de um entendimento discursivo. Aquilo que os participantes têm de tomar como objeto de suas discussões não pode servir simul­taneamente como escala de medida para a mesma discussão. Gibbard não pode compreender o entendimento discursivo sobre normas morais segundo o padrão da busca cooperativa da verdade, mas como um processo de mútua influenciação retórica.

Um proponente que procura angariar consentimento para uma norma que, de seu ponto de vista, é digna de reconhecimento, nada pode fazer além de exprimir com sinceridade o estado subjetivo que o leva, ele mesmo, a sentir a norma como vinculatória. Se ele conse­gue fazer isso com autenticidade, pode "contagiar" seus interlocu­tores, ou seja, induzir neles estados de ânimo semelhantes. Dessa forma, nos discursos normativos o convencimento mútuo é substi­tuído por algo assim como uma harmonização recíproca. É interes­sante notar que, para essa espécie de influenciação retórica, as con­dições de comunicação públicas, igualitárias e informais de um diá­logo socrático deveriam ser as mais favoráveis. As "restrições con­versacionais" às quais tal diálogo está submetido são (com exceção da necessária coerência das contribuições) de natureza pragmáti­ca21 • Elas deveriam impedir a desqualificação, ou seja, a exclusão imo­tivada do envolvido, assim como não deveriam privilegiar determi­nados oradores ou temas, ou seja, o tratamento desigual. Deveriam também evitar a manipulação, o influenciamento por meios não­retóricos. Essas condições de comunicação são praticamente idênti­cas aos pressupostos pragmáticos de uma busca cooperativa da ver-

21. Gibbard (I 992 ), 193 "A speaker treats what he is saying as an objective matter of rationality ifhe can demand its acceptance by everybody. More precisely, the test is this: could he coherently make his demands, revealing their grounds, and still not browbeat his audience? What makes for browbeating in this test is a question of conver­sational inhibitions and embarassments." [Um falante trata aquilo que diz como uma questão de racionalidade objetiva se ele puder pedir a sua aceitação por parte de todos. Mais precisamente, o teste é este: poderia ele fazer coerentemente os seus pedidos, revelando os seus motivos, e ainda assim não intimidar o seu público? O que leva a intimidar neste teste é uma questão de embaraços e inibições conversacionais.)

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dade22. Portanto, não causa surpresa o fato de que as normas que ganham aceitação sob essas condições resultam, no fim, numa moral da responsabilidade igual para todos. Como o processo discursivo não foi moldado no sentido da mobilização dos motivos melhores, mas pela capacidade de contágio das expressões mais impressio­nantes, não se pode falar aqui em "fundamentação".

Por isso, Gibbard precisa explicar por que, sob condições de co­municação pragmaticamente excelentes, elas deveriam encontrar anuência justamente nas normas que demonstram ser as melhores do ponto de vista funcional de seu "valor de sobrevivência", objetiva­mente elevado e específico: "ln normative discussion we are influenced by each other, but not only by each other. Mutual influence nudges us towards consensus, if ali goes well, but not toward any consensus whatsoever. Evolutionary considerations suggest this: consensus may promote biological fitness, but only the consensus of the right kind. The consensus must be mutually fitness-enhancing, and so to move toward it we must be responsive to things that promote our biological fit­ness"23. Gibbard percebe o problema que reside no fato de os resulta­dos obtidos a partir da perspectiva de pesquisa objetiva terem de ser juntados aos resultados de que os participantes da discussão se con­vencem, por considerá-los sensatos a partir de sua própria perspec­tiva. Qualquer procura por uma explicação será, contudo, vã. Não se fica sabendo por que as condições improváveis de comunicação dos discursos normativos deveriam ser "seletivas" no mesmo sentido e por que deveriam levar ao mesmo resultado de um incremento da pro­babilidade de sobrevivência coletiva, esperável dos mecanismos da evolução natural24.

22. Gibbard ( 1992), 195, nota 2, também remete à teoria do discurso. 23. ["Na discussão normativa somos influenciados um pelo outro, mas não ape­

nas um pelo outro. A influência mútua persuade-nos ao consenso, mas não em direção a qualquer consenso. Considerações evolucionistas sugerem-nos o seguinte: o consen­so pode promover a aptidão fisica, mas apenas o consenso da espécie certa. O consenso tem que ser mutuamente promotor da aptidão e, portanto, para movermo-nos em sua direção temos que ter disposição para aquilo que promove a nossa aptidão física."] Gibbard ( 1992), 223.

24. Isso também não pode ser garantido pelo meio de os participantes do dis­curso se apropriarem da descrição biológica, pois tal autodescrição objetivante ou des­truiria a autoconsciência prática dos sujeitos capazes, ou, no caso da mudança do ob­servador, mudaria essencialmente o seu sentido da perspectiva dos participantes.

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Ernst Tugendhat evita o desvio problemático que leva por uma explicação funcionalista da moraL Num primeiro momento, ele des­creve como funcionam os sistemas de regras morais em geral, e quais motivos podemos ter para ser morais em geral (a), para depois per­guntar que espécie de moral deveríamos racionalmente escolher, sob condições pós-metafísicas (b).

(a) Diferentemente do contratualismo, Tugendhat começa com um conceito pleno de comunidade moraL Disso faz parte a autocons­ciência daqueles que se sentem vinculados a regras morais, os que "têm uma consciência", manifestam sentimentos morais, discutem funda­mentadamente juízos morais etc. Os participantes acreditam "saber" o que em cada caso, no sentido categórico, é "bom" e o que é "mau". Liquidado esse assunto, Tugendhat examina se é racional para um can­didato qualquer ingressar numa praxe moral assim descrita in toto, ou seja, tornar-se um membro cooperativo de alguma comunidade mo­ral. "Querer ou não querer pertencer a uma comunidade moral ... é, em última análise, um ato de nossa autonomia e, para isso, só pode haver bons motivos, não razões"25• Tugendhat entende por "autonomia" apenas a capacidade de se agir orientado por regras, a partir de moti­vos racionais. Os motivos práticos que ele depois enumera vão muito além das alegações da prudência, isentas de valor, pois Tugendhat não indica, de jeito nenhum, interesses dados antes da moral, mas orienta­ções de valor que só poderiam se configurar no contexto das expe­riências de uma comunidade constituída moralmente. Assim, por exemplo, é racional para mim ingressar numa comunidade moral por­que prefiro, diante do estado de objeto de uma instrumentalização mútua, ser sujeito e destinatário de direitos e deveres; ou porque rela­ções equilibradas de amizade são, para mim, melhores que a solidão estrutural de um ator que age estrategicamente; ou porque é apenas como membro de uma comunidade moral que experimento a satis­fação de me sentir respeitado por pessoas que são, elas próprias, moral­mente respeitáveis etc.

As preferências que Tugendhat enumera em favor do ingresso numa comunidade moral já estão impregnadas pelos valores de tal co-

25. Tugendhat ( 1993), 29.

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munidade; elas dependem de orientações de valor precedentes, inter­subjetivamente compartilhadas. Em todo caso, esses motivos não expli­cam por que poderia ser racional, para os atores que se encontram num estado pré-moral e que só conhecem esse estado, passar para um estado moral. Quem formula de antemão as razões de sua decisão em favor de uma vida moral, as quais só poderiam surgir da reflexão sobre as vanta­gens jâ experimentadas de um contexto interativo moralmente regra­do, deixou de lado a visão egocêntrica de uma escolha racional e, em seu lugar, orienta-se por concepções do bem viver. Ele submete sua reflexão prâtica à questão ética sobre qual o tipo de vida que ele deveria levar, sobre quem ele é e quem quer ser, o que é bom para ele, para o todo, e a longo prazo etc. Razões que recaem sob esse ponto de vista só ganham força motivadora no sentido em que tangem a identidade e a autoconsciência de um ator jâ formado por uma comunidade moral.

É assim que também Martin Seel entende (e aceita) esse argu­mento. Embora a felicidade de uma vida bem-sucedida não resida numa vida moral, hâ do ponto de vista de um sujeito que se preocupa com seu bem viver razões racionais para se envolver com circunstâncias morais (sejam quais forem). Jâ a partir da perspectiva ética é possível reconhecer que não pode haver um bem viver fora de uma comunida­de moral. É claro que isso quer dizer apenas que "hâ interfaces neces­sârias entre um bem viver e uma vida moral, mas não quer dizer, pelo contrârio, que o bem viver seja possível somente dentro dos limites de um bem viver moral"26• Tugendhat, porém, interessa-se menos pelo relacionamento entre o bem viver e a moral, e mais pela fundamenta­ção ética de ser moral. E essa só pode levar a um paradoxo, caso se insista na diferença entre o que é bom para cada um e a consideração moral pelos interesses dos outros - como faz Tugendhat, com razão. Na medida em que um ator se deixa convencer, por motivos éticos, de que deveria preferir as circunstâncias de vida morais às pré-morais, ele relativiza o sentido vinculatório da consideração moral pelos outros, cuja validade categórica ele deveria admitir sob essas circunstâncias.

Seel registra a circunstância de que "a consideração moral. . . (é transcendente) em face das razões preferenciais que temos para ao me­nos observar o respeito moral'm. Mas ele não tira disso conclusões cor-

26. M. Seel, Versuch über die Form des Glücks, Frankfurt am Main 1995, 206. 27. Seel (1995), 203s.

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retas28• Pois uma fundamentação ética do ser moral não significa que alguém se deixe motivar por razões preferenciais para se "confrontar com razões de uma espécie totalmente diferente". Antes, as únicas ra­zões que se devem contar dentro do jogo moral de linguagem, num relacionamento com o interesse auto-referido no jogo de linguagem como tal, perdem seu sentido ilocutório, que é o de serem razões para reivindicações morais, ou seja, reivindicações incondicionais. Se o atar que toma consciência das vantagens de um modo de vida moral for o mesmo que, devido a tal preferência por esse modo de vida, admitir tais circunstâncias, sua fundamentação ética, que condiciona o jogo de linguagem moral como um todo, modifica simultaneamente o caráter dos traços nele possíveis. Porque um agir moral "por respeito à lei" é incompatível com a objeção ética que exige o exame permanente da práxis, se ela se justifica ou não, como um todo, a partir da perspectiva do projeto de vida de cada um. Por motivos conceptuais, o sentido ca­tegórico das obrigações morais só pode permanecer intacto na mesma medida em que é vedado ao destinatário retroceder, mesmo virtual­mente, aquele passo para trás da comunidade moral que é necessário para, a partir da distância e da perspectiva da primeira pessoa, avaliar as vantagens e desvantagens de ser membro dessa comunidade. Do mesmo modo, também não há um caminho que leve inversamente da reflexão ética para a fundamentação da moral.

(b) Mesmo se o sonho do empirismo se tornasse realidade e se a reflexão sobre o próprio interesse pudesse desenvolver uma dinâmica reconstituível que- no sentido da deferência moral incondicional­levasse "para além" da persecução dos próprios interesses, ainda não estaria resolvido o problema propriamente dito. Na melhor das hipó­teses, as razões éticas mencionadas explicam por que temos de entrar em algum jogo de linguagem moral, mas não explicam em qual deles. Tugendhat confere a esse problema a forma de um questionamento genealógico. Após a perda da base tradicional da validação de sua mo­ral em comum, os participantes têm de refletir juntos a respeito de exa-

28. Seel (1995), 203: "Embora à pergunta 'ser moral para quê?' possa ser dada uma resposta bastante- ou apenas- preferencialmente fundamentada: porque ape­nas o ser moral torna o mundo mais amistoso e abre a convivência solidária com os outros; mas com este passo fundamentado preferencialmente nós aceitamos padrões de comportamento que de nenhuma forma são deduziveis de orientações preferen­cialmente fundamentadas.»(203)

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tamente quais normas morais eles deveriam se pôr de acordo. Nessa questão ninguém pode reivindicar mais autoridade do que qualquer outro; todos os pontos de vista para um acesso privilegiado à verdade moral estão invalidados. O contrato social não tinha conseguido dar uma resposta satisfatória ao desafio dessa situação, porque a partir de um acordo orientado pelos interesses entre parceiros contratuais só pode surgir, no melhor dos casos, um controle de comportamento social imposto de fora para dentro, mas não uma concepção vinculatória a respeito de um bem comum, nem muito menos a concepção de um bem concebido universalisticamente. Tugendhat descreve a situação de partida de modo semelhante à minha proposta. Os membros de uma comunidade moral não demandam um controle de comportamento social vantajoso para todos que possa ocupar o lugar da moral; eles não querem substituir o jogo moral de linguagem como tal, mas apenas a base religiosa de sua validação.

Esse questionamento leva à reflexão sobre as bases para o acordo que, depois da religião e da metafísica, restaram como ilnico recurso possível para a fundamentação de uma moral da consideração igual para todos: "Se o que é bom deixa de ser prescrito de forma transcen­dente, o respeito pelos membros da comunidade, que passa a ser ilimi­tado, ou seja, o respeito por todos os outros - por sua vontade e seus interesses - é que, segundo parece, passa a fornecer os princípios da bondade': Ou para dizê-lo de modo mais marcante: a intersubjetividade assim entendida passa a ocupar o lugar da prescrição transcendente ( ... ). Como são as obrigações mútuas ( ... ) o que perfaz a forma de qualquer moral, pode-se dizer também: na medida em que o conteúdo, ao qual se referem as reivindicações, nada mais é do que o respeito por aquilo que todos querem, agora o conteúdo corresponde à formd9•

Dessa forma Tugendhat chega ao princípio kantiano da generali­zação a partir das condições simétricas da situação de partida, na qual se confrontam as partes, destituídas de todos os seus privilégios e que, nessa medida, estão em igualdade de condições para entrar num acor­do sobre as normas fundamentais, que podem ser aceitas racional­mente por todos os participantes30• É claro que ele não dá satisfações a

29. Tugendhat ( 1993 ), 87s. 30. Com maior clareza ainda em: E. Tugendhat, Gibt es eine moderne Moral?

(Ms. 1995).

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respeito de a "aceitabilidade racional" ganhar com isso outro sentido do que aquele de que algo é "racional para mim". Se para as circuns­tâncias da aceitação moral não houver nenhuma autoridade mais ele­vada do que a boa vontade e a compreensão daqueles que estão se entendendo a respeito das regras de sua convivência, então a escala de medida para o julgamento dessas regras deve ser tirada da própria situação dentro da qual os participantes gostariam de se convencer mutuamente a respeito de suas opiniões e propostas. Na medida em que eles aceitam entrar numa práxis de entendimento cooperativo, também aceitam tacitamente a condição da consideração simétrica ou uniforme dos. interesses de todos. E como essa práxis só pode ser bem-sucedida se todos e cada um estiverem dispostos a convencer os outros e a se deixarem convencer por outros, todo participante sério precisa examinar o que é racional para ele naquelas condições de consi­deração simétrica e uniforme dos interesses. Mediante o recurso me­tódico à possível intersubjetividade do entendimento mútuo (o qual, segundo Rawls, por exemplo, a estrutura da situação primitiva é cons­trangida a dar) os fundamentos pragmáticos ganham um sentido epis­têmico. Com isso transcendem-se as cancelas da razão instrumental. Um princípio de generalização, que não pode ser fundamentado a partir da perspectiva dos interesses próprios (ou da própria concep­ção do bem) serve como base para a validade da moral racional. Nós só podemos nos assegurar desse princípio através de uma reflexão so­bre as condições inevitáveis para uma formação imparcial de opinião.

Embora Gibbard analise tais condições como pressupostos prag­máticos para os discursos normativos, ele os observa sob o ponto de vista funcionalista da sua contribuição para uma coordenação social dos atos. Em contraposição, Tugendhat insiste em que a anuência às regras morais deve surgir da perspectiva dos próprios participantes; contudo ele também nega o sentido epistêmico que essa anuência ga­nha nas condições de discurso.

O não-cognitivismo atenuado parte do princípio de que os ata­res só podem deixar que a razão prática afete seu arbítrio de um único modo, a saber, por meio de reflexões que obedecem ao princípio da racionalidade dos fins. Mas se, pelo contrário, a razão prática não mais

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se dissolve na razão instrumental, muda a constelação de razão e von­tade- e com isso o conceito da liberdade subjetiva. Então, a liberdade não mais se esgota na capacidade de vincular o arbítrio às máximas da inteligência, mas se manifesta na autovinculação da vontade pelo dis­cernimento. "Discernimento" significa aqui que uma decisão pode ser justificada com a ajuda de razões epistêmicas. Em geral, razões epistê­micas sustentam a verdade de declarações assertivas; em situações prá­ticas, a expressão "epistêmico" carece de uma explicação. Razões prag­máticas referem-se às preferências e metas de uma pessoa. Em última análise, quem decide a respeito desses "dados" é a autoridade epis­têmica do próprio ato r, que tem de saber quais são suas preferências e metas. Uma reflexão prática só pode conduzir ao "discernimento" se se estender para além do mundo do ator, de acesso subjetivamente privilegiado, para um mundo intersubjetivamente compartilhado. Assim a reflexão sobre experiências, práticas e formas de vida comuns torna consciente um saber ético, do qual não dispomos graças apenas à autoridade epistêmica da primeira pessoa.

A conscientização de algo implicitamente sabido não significa o mesmo que a cognição de objetos ou fatos31 . "Cognições" são contra­intuitivas, enquanto os "discernimentos" obtidos pela reflexão explici­tam um saber pré-teórico, organizam-no em contextos, examinam a sua coerência e, através disso, também fazem a sua sondagem crítica32•

Os "discernimentos" éticos devem-se à explicação daquele saber que os indivíduos comunicativamente socializados adquiriram na medida em que cresceram para dentro de sua cultura. No vocabulário avalia­dor e nas regras de aplicação das sentenças normativas sedimentam­se as partes constitutivas mais gerais do saber prático de uma cultura. À luz de seus jogos de linguagem impregnados de elementos de ava­liação, os atores desenvolvem não apenas representações de si próprios e da vida que gostariam de levar em geral; eles também descobrem em cada situação traços de atração e de rejeição, os quais não podem en­tender sem "ver" como devem reagir a eles33. Como sabemos intuitiva-

31. B. Williams, Ethics and the Limits of Philosophy, London, 1985, cap. 8. 32. John Rawls fala neste contexto em 'reflective equilibrium' [equilíbrio re­

flexivo]. 33. McDowell insurge-se contra uma interpretação objetivista destas 'salient

features' [características salientes] de uma situação: "The relevant notion of salience cannot be understood except in terms of seeing something as a reason for acting which

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mente o que é atraente ou repulsivo, certo ou errado, o que é relevante, afinal, pode-se separar aqui o momento do "discernimento" do moti­vo racional para a ação. Trata-se de um saber utilitário intersubjetiva­mente compartilhado, que se tornou corriqueiro no mundo vivido e comprovou sua "praticidade". Enquanto propriedade comum de uma forma de vida cultural, ele goza de "objetividade': graças à sua difusão e aceitação social. Por isso, a reflexão prática que se apropria critica­mente desse saber intuitivo precisa de uma perspectiva social.

Nós julgamos as orientações de valor, bem como a autocompreen­são das pessoas ou grupos baseada em valores, a partir de pontos de vista éticos, e julgamos os deveres, as normas e os mandamentos a par­tir de pontos de vista morais. Vejamos primeiro as questões éticas, que se colocam a partir da perspectiva da primeira pessoa. Do ponto de vista da primeira pessoa do plural elas visam ao ethoscomum: trata-se de ver como nós, enquanto membros de uma comunidade moral, nos entendemos a nós mesmos, quais serão os critérios segundo os quais deveremos orientar nossas vidas, o que é o melhor para nós, a longo prazo e na visão do todo. A partir da perspectiva da primeira pessoa do singular, surgem questões semelhantes: quem sou eu e quem eu gostaria de ser, como deveria levar minha vida. Tais reflexões existen­ciais também se diferenciam das ponderações da prudência não ape­nas pela generalização temporal e objetiva do questionamento: o que é o melhor a longo prazo e visto como um todo. Aqui, a perspectiva da primeira pessoa não significa a limitação egocêntrica às minhas pre­ferências, mas garante a referência a uma história de vida que está sem­pre engastada em tradições e formas de vida intersubjetivamente com­partilhadas34. A atratividade dos valores, à cuja luz entendo a mim mes­mo e a minha vida, não se deixa esclarecer nos limites do mundo das experiências subjetivas ao qual tenho acesso privilegiado. Pois minhas

silences ali others': [A relevante noção da saliência não pode ser entendida a não ser em termos de ver algo como uma razão para agir, a qual silencia todas as outras. I McDowell, "Virtue and Reason", Monist, 62, 1979, 345. Ele explica "discernimentos" éticos a partir da interação entre, por um lado, a orientação da vida e a autoconsciência de uma pessoa, e pelo outro, a sua compreensão de cada situação, impregnada de valo­res. Essas análises ainda podem ser entendidas- para aquém do realismo- no sen­tido de uma ética neo-aristotélica instruída por Wittgenstein.

34. Cf. }. McDowell, "Are Moral Requirements Hypotheticallmperatives?", Pro­ceedings of the Aristotelian Society, supl. 52, 1978, 13-29.

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preferências e metas não são mais algo dado, mas são elas mesmas passíveis de discussão35• Dependendo de minha autoconsciência e por meio da reflexão sobre aquilo que para nós, dentro do horizonte de nos­so mundo compartilhado, tem um valor intrínseco, elas podem mu­dar de um modo fundamentado.

Sob o ponto de vista ético nós esclarecemos, portanto, questões clínicas de uma vida que está sendo bem-sucedida, ou melhor, que não está indo pelo caminho errado, as quais se colocam no contexto de determinada forma de vida ou de uma história de vida individual. A reflexão prática é executada na forma de um auto-entendimento hermenêutico. Ela articula valorações fortes, pelas quais orienta-se minha autoconsciência. A crítica das auto-ilusões e dos sintomas de uma forma de vida forçada ou alienada mede-se na idéia de uma vida vivida de modo consciente e coerente. Aqui, a autenticidade de um projeto de vida, analogamente à pretensão de veracidade de atos ex­pressivos de linguagem, pode ser compreendida como uma pretensão de validade de grau mais elevado36•

O modo como sentimos nossa vida está mais ou menos determi­nado pelo modo como nós mesmos nos entendemos. Por isso os dis­cernimentos éticos sobre a interpretação dessa autocompreensão in­tervêm na orientação de nossa vida. Como discernimentos que vincu­lam a vontade, eles provocam uma condução consciente da vida. Nisso se manifesta a vontade livre no sentido ético. Do ponto de vista ético, a liberdade de vincular meu arbítrio a máximas da prudência se trans­forma na liberdade de decidir-me por uma vida autêntica37•

É claro que os limites dessa forma de ver ética aparecem logo que entram em jogo questões a respeito da justiça, pois a partir dessa pers­pectiva a justiça é rebaixada a um valor junto a outros valores. Obriga­ções morais são mais importantes para uma pessoa do que para outra, têm maior significado num contexto do que noutro. É certo que, tam­bém do ponto de vista ético, pode-se levar em conta a diferença semân­tica entre vinculação ao valor e obrigação moral, dando certa prioridade

35. Cf. Charles Taylor, As fontes do self, São Paulo, Edições Loyola, 1997, parte I. 36. Também as teorias, por exemplo, colocam uma pretensão de validade "mais

elevada» ou mais complexa; elas não podem ser "verdadeiras» ou "falsas» no mesmo sentido que cada uma das proposições delas deduzidas.

3 7. A exacerbação existencialista desta decisão para uma escolha radical confim­de essa liberdade com um processo epistemicamente dirigido.

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a questões da justiça diante de questões do bem viver: "Ethicallife itself is important, but it can see that things other than itself are important ... There is one kind of ethical consideration that directly connects im­portance and deliberative priority, and this is obligation"38• Mas en­quanto as obrigações forem observadas exclusivamente do ponto de vis­ta ético, não é possível fundamentar uma primazia absoluta do justo diante do bom, que exprimiria o sentido categórico de validade dos de­veres morais: "These kinds of obligation very often command the highest deliberative priority ... However, we can also see how they need not always command the highest priority, even in ethically well disposed agents"39• Enquanto a justiça for considerada parte integrante de cada uma das concepções determinadas do bem, não haverá motivo para a reivindicação de que em casos de colisão os deveres só possam ser so­brepujados por deveres, os direitos só por direitos (como diz Dworkin).

Sem a primazia do que é justo em relação ao que é bom, também não pode haver nenhum conceito eticamente neutro de justiça. Em so­ciedades ideologicamente pluralistas, isso teria conseqüências desas­trosas para a regulação de uma coexistência pautada na igualdade de direitos. Em tal caso, a igualdade de direitos dos indivíduos e dos gru­pos com identidades próprias somente poderia ser garantida segundo escalas de medida que, por sua vez, são partes integrantes de uma con­cepção do bem aceita por todos uniformemente. O mesmo vale, mutatis mutandis, para uma regulação justa do trânsito internacional entre Es­tados, do trânsito cosmopolita entre cidadãos do mundo e das rela­ções globais entre as culturas. O que essa idéia tem de inverossímil mos­tra por que os enfoques neo-aristotélicos não podem cumprir com o conteúdo universalista de uma moral da atenção indistinta e da res­ponsabilidade solidária por cada indivíduo. Todo projeto global de um bem coletivo, vinculatório para todos, sobre cuja base poderia ser fun­dada a solidariedade de todos os homens (inclusive as gerações vin­douras), defronta-se com um dilema. Uma concepção acabada do ponto

38. ["A vida ética em si é importante, mas ela pode ver que outras coisas além dela mesma são importantes ... Há uma espécie de consideração ética que conecta direta­mente importância e prioridade deliberativa, e ela é a obrigação.") Williams ( 1985 ), 184s.

39. ["Estas espécies de obrigações muitas vezes comandam a mais elevada prio­ridade deliberativa ... Contudo, também podemos ver como elas nem sempre preci­sam comandar a mais elevada prioridade, mesmo em agentes eticamente bem dispos­tos.") Williams (1985), 187.

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de vista do conteúdo, suficientemente informativa, deve (sobretudo com vistas à felicidade das gerações futuras) levar a um paternalismo insuportável; uma concepção isenta de substância, distanciada de to­dos os contextos locais, deve destruir o conceito do bem40•

Se pretendemos levar em consideração a presumida imparcia­lidade dos julgamentos morais e a pretensão categórica de validade das normas vinculatórias, temos de desatrelar a perspectiva horizontal (dentro da qual são regradas as relações interpessoais) da perspectiva vertical (a dos projetas individuais de vida), e tornar independente a resposta a perguntas genuinamente morais. A pergunta abstrata so­bre o que é do interesse uniforme de todos ultrapassa a pergunta ética contextualizada a respeito do que é o melhor para nós. A intuição de que as questões da justiça surgem de uma ampliação idealizadora do questionamento ético continua, porém, fazendo sentido.

Se interpretarmos a justiça como aquilo que é igualmente bom para todos, o "bem" contido na moral constitui uma ponte entre a justiça e a solidariedade. Pois também a justiça entendida universalis­ticamente exige que uma pessoa responda pela outra - e que, aliás, cada um também responda pelo estranho, que formou a sua identida­de em circunstâncias de vida totalmente diferentes e entende-se a si mesmo à luz de tradições que não são as próprias. O bem na justiça lembra que a consciência moral depende de determinada autocom-

40. Martin Seel ( 1995) esforça-se em encontrar tal conceito formal do bem. Mas a idéia de uma determinação formal do bem, diferente da moral no sentido kantiano, é um espeto de pau. A tentativa de Seel de explicar a constituição e as condições de uma vida bem-sucedida não pode abrir mão da designação de bens fundamentais (se­gurança, saúde, liberdade de ir e vir), de conteúdos (trabalho, interação, jogo e con­templação) e de metas da condução da vida (autodeterminação com abertura para o mundo). Essas são pressuposições e valorações antropológicas faliveis, que não apenas são controvertidas de uma cultura para outra, mas que aqui, no diálogo intercultural, permanecem controvertidas por bons motivos. Também uma compreensão não-criterial de tal projeto das possibilidades humanas tem conseqüências paternalistas, mesmo quando apenas pretende encaminhar conselhos bem-intencionados: "Mas se alguém não quiser este bem? Teremos de dizer-lhe que está renunciando ao melhor".( 189) O conteúdo manifesto de uma antropologia do bem, que for além do esclarecimento da argumentação lógica das condições dos discursos hermenêuticos de auto-interpreta­ção, fica preso de modo peculiar ao contexto de seu surgimento -como o demonstra o exemplo de Heidegger, cuja ontologia existencial delata para qualquer leitor atento, a partir da perspectiva de uma ou duas gerações, não apenas o jargão mas também as vantagens politicas de seu tempo (cf. R. Wolin, The Politics ofBeing, NewYork, 1990).

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preensão das pessoas morais, que se sabem pertencentes à comunida­de moral. A essa comunidade pertencem todos os que foram sociali­zados numa forma de vida comunicativa qualquer. Indivíduos socia­lizados, pelo fato de somente poderem estabilizar sua identidade em condições de reconhecimento mútuo, são especialmente vulneráveis em sua identidade e, por isso, dependentes de uma proteção especí­fica. Eles têm de poder apelar para uma instância além da própria co­munidade- G. H. Mead fala numa "ever wider community" [ comu­nidade sempre maior]. Expresso de modo aristotélico, em toda comuni­dade concreta está esboçada a comunidade moral, por assim dizer como seu "melhor eu". Enquanto integrantes dessa comunidade, os indiví­duos esperam uns dos outros uma igualdade de tratamento, que parte do princípio de que cada pessoa considere cada uma das outras como "um dos nossos". A partir dessa perspectiva, justiça significa simulta­neamente solidariedade.

Neste ponto, é necessário evitar um mal-entendido, a saber, o de que a relação entre justo e bom é igual à que existe entre forma e con­teúdo: "O conceito formal do bem nomeia o cerne material de uma moral universalista- aquilo de que trata a consideração moral"41 • Essa concepção revela o olhar seletivo de um liberalismo que deixa que o papel da moral se reduza à proteção do bem individual- como se se tratasse da essência dos direitos negativos de liberdade- e erige por­tanto a moral sobre a infra-estrutura da ética42• Então, esta procura por aquilo de que se trata na moral- ou seja o conhecimento dos "ma­les e bens" que "estão em jogo" nos conflitos morais, de modo igual para todos - deveria preceder à moral como magnitude fixa. Antes de qualquer reflexão moral, os participantes deveriam saber o que é uniformemente bom para todos- ou, pelo menos, eles deveriam pe­dir emprestado aos filósofos um conceito do bem formal. Contudo, não existe quem possa determinar simplesmente, a partir da perspec­tiva do observador, o que uma pessoa qualquer deve considerar como bom. Na referência a uma pessoa "qualquer" está embutida uma abs­tração que também vai além das possibilidades do filósofo43• É certo

4l.Seel (1995),223. 42. Quem apresenta uma arquitetura teórica semelhante é R. Dworkin, Founda­

tions of Liberal Equality, The Tanner Lectures on Human Values. XI, Salt Lake City, 1990. 43. Cf. nota 40.

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que a moral pode ser entendida como um dispositivo de proteção con­tra a vulnerabilidade específica das pessoas. Mas o saber a respeito da suscetibilidade constitutiva de um ser que só pode formar sua identi­dade na externação em meio a relações interpessoais e estabilizá-la em relações de reconhecimento intersubjetivo emana da familiaridade intuitiva com as estruturas gerais de nossa própria forma de vida co­municativa. É um saber geral profundamente enraizado, que se apre­senta enquanto tal apenas em casos de desvios clínicos - a partir de experiências de como e quando a identidade de um indivíduo socia­lizado corre perigo. O recurso a um saber dessa espécie, determinado por tais experiências negativas, não traz o peso da pretensão de indi­car positivamente o que significa uma vida boa. Só os próprios envol­vidos, a partir da perspectiva dos que participam de consultas prá­ticas, podem ter clareza a respeito do que em cada caso é uniforme­mente bom para todos. O bem relevante do ponto de vista moral apre­senta-se caso a caso a partir da perspectiva ampliada do nós de uma comunidade que não exclui ninguém. Aquilo que de bom é subsumi­do no justo é a forma de um ethos intersubjetivo compartilhado en­quanto tal e é, com isso, a estrutura da pertença a uma comunidade, que, aliás, livrou-se das amarras de uma comunidade exclusiva.

Essa correlação entre solidariedade e justiça inspirou Kant a ex­plicar o ponto de vista segundo o qual as questões a respeito da justiça podem ser julgadas de modo imparcial, a partir do modelo da autole­gislação de Rousseau: "De acordo com ela todo ser racional deve agir como se, através de suas máximas, fosse um membro legislador no reino geral dos fins"44• Kant fala de um "reino dos fins" porque cada um de seus membros não se contempla a si mesmo e a todos os outros como um mero meio, mas sempre também como um "fim em si mes­mo': Enquanto legislador, ninguém é súdito da vontade de um estra­nho; mas ao mesmo tempo cada membro está submetido às leis que a si próprio outorga, assim como todos os outros. Na medida em que Kant substitui a figura de direito privado do contrato pela figura de direito público da legislação republicana, ele pode juntar num só os dois papéis da moral, separados do ponto de vista do direito: o papel do cidadão que participa da legislação e o do indivíduo privado, sub-

44. Kant, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Werke, (Weischedel), Vol. IV, 72 [ ed. br.: Fundamentação da metafísica dos costumes, Lisboa, Edições 70, 1995].

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metido às leis. A pessoa moralmente livre tem de poder compreen­der-se, simultaneamente, como autora dos mandamentos éticos aos quais está submetida enquanto destinatário. Por outro lado, isso é possível apenas se essa mesma pessoa exerce a competência legislativa da qual meramente "participa" não de forma arbitrária (no sentido de uma visão positivista do direito), mas em consonância com a consti­tuição de uma comunidade, cujos cidadãos se governam a si mesmos. E lá só podem reger tais leis que poderiam ter sido decididas por "cada um para todos e por todos para cada um':

Uma lei é válida no sentido moral quando pode ser aceita por todos, a partir da perspectiva de cada um. Como apenas as leis "gerais" cumprem com a condição de regrar uma matéria no interesse unifor­me de todos, é nesse momento de capacidade de generalização dos interesses respeitados pela lei que a razão prática se faz valer. Logo, agindo como um legislador democrático, passa a assumir o ponto de vista moral a pessoa que consulta a si mesma para saber se a praxe que resultaria do respeito generalizado de uma norma cogitada hipoteti­camente poderia ser aceita por todos os potencialmente envolvidos enquanto legisladores potenciais. No papel de co-legislador, cada pes­soa participa de uma empreitada cooperativa e aceita, com isso, uma perspectiva intersubjetivamente ampliada, a partir da qual se pode examinar se uma norma que é objeto de discussão pode ser conside­rada generalizável segundo o ponto de vista de todos os participantes. Quando se dá essa cogitação, são considerados também motivos prag­máticos e éticos, que não perdem sua relação interna com a situação de interesses e com a autoconsciência de cada pessoa individual. Con­tudo, esses motivos relativos aos atores não contam mais como moti­vos e orientações de valor de pessoas individuais, mas como contri­buições epistêmicas para um discurso de exame das normas, realiza­do com o intuito do mútuo entendimento. Como uma praxe legislati­va só pode ser exercida em comum, não é mais suficiente a regra de ouro do uso monológico e egocêntrico desses testes de generalização.

As razões morais têm um modo de vincular o arbítrio diferente das razões pragmáticas ou éticas. No momento em que a autovincula­ção da vontade assume a forma da autolegislação, vontade e razão se

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interpenetram integralmente. Por isso, Kant só reconhece como "livre" a vontade autónoma, determinada pela razão. Só age livremente aquele que permite que sua vontade seja determinada por sua compreensão daquilo que todos poderiam desejar. "Só um ser racional tem a capa­cidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princí­pios, ou uma vontade. Como para a dedução das ações a partir das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa do que razão prática"45•

Certamente todo ato de autovinculação da vontade exige da razão prá­tica razões para que ocorra; mas, enquanto ainda entrarem em jogo determinações subjetivamente casuais e a vontade não tiver apagado todos os momentos da coação, a vontade não será realmente livre.

A normatividade que nasce per seda capacidade de autovincu­lação da vontade ainda não tem um sentido moral. Quando um agen­te se apropria de regras técnicas da habilidade ou de conselhos prag­máticos da prudência, leva sua arbitrariedade a submeter-se à razão prática; as razões para isso, no entanto, têm força determinante ape­nas com vista a preferências e fins. Ainda que de forma diversa, isso vale também para razões éticas. Embora a autenticidade das vincula­ções a valores ultrapasse o horizonte da racionalidade finalista mera­mente subjetiva, as valorações severas só ganham força objetiva e ca­paz de determinar a vontade com vista a experiências práticas e for­mas de vida casuais, ainda que partilhadas intersubjetivamente. Nos dois casos, os imperativos e recomendações correspondentes só po­dem reclamar para si uma validade condicionada: só valem sob o pres­suposto de situações de interesse subjetivamente dadas, ou sob o pressuposto de tradições intersubjetivamente partilhadas.

Para alcançar uma validação incondicionada ou categórica, obri­gações morais precisam derivar-se de leis que emancipem a vontade das determinações casuais (caso a vontade esteja comprometida com essas determinações) e que, por si mesmas, se mesclem à razão prática. Pois à luz de normas como essas, fundamentadas sob o ponto de vis­ta moral, também os fins, preferências e orientações de valor casuais que exercem coações externas sobre a vontade podem ser subme­tidas a um julgamento crítico. Razões podem levar até mesmo a von­tade heteronômica a submeter-se a máximas; mas a autovinculação continua presa a situações de interesse dadas por razões pragmáticas

45. Kant, Werke, vol. IV, 41.

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e éticas, e a orientações de valor atreladas a contextos determinados. Só mesmo quando essas tiverem sido testadas sob o ponto de vista mo­ral em sua compatibilidade com os interesses e orientações de valor de todos os demais, é que a vontade se terá libertado das determinações heteronômicas 46•

A confrontação abstrata de autonomia e heteronomia certamen­te restringe o olhar que se lança sobre o sujeito individual. Kant, em razão de suas suposições transcendentais subjacentes, atribui a livre vontade a um Eu inteligível localizado no reino dos fins. Por isso, ao tomar a autolegislação, que em sentido político original é um empre­endimento cooperativo do qual o indivíduo apenas participa47, Kant volta a situá-la na competência exclusiva do indivíduo. Não é por aca­so que o imperativo categórico dirige-se a uma segunda pessoa do singular, dando a impressão de que cada um por si, in foro interno, pode submeter as normas a prova, segundo convém. Mas, de fato, a aplicação reflexiva do teste de generalização exige uma situação de reu­nião em conselho, em que cada um se vê coagido a acatar a perspecti­va de todos os demais, para comprovar se a norma, do ponto de vista de cada um, poderia ser almejada por todos. Essa é a situação de um discurso racional que visa ao entendimento mútuo e do qual partici­pam todos os envolvidos. Um sujeito que julgue algo solitariamente, mesmo ele confere um peso maior a essa idéia do entendimento mú­tuo discursivo do que um teste de generalização a ser aplicado.

É mais provável que Kant tenha errado no encurtamento indivi­dualista de um conceito de autonomia de cunho intersubjetivo do que em uma distinção insuficiente entre os questionamentos ético e prag­mático48. Quem leva a sério as questões do auto-entendimento ético choca-se com a autocompreensão e a compreensão de mundo histo­ricamente variáveis, próprias a indivíduos e grupos. Kant, que como filho do século XVIII ainda refletia a-historicamente, salta por sobre essa camada de tradições em que se formam identidades. Tacitamen­te, ele parte da idéia de que, na formação de juízos morais, qualquer um, em virtude da própria fantasia, é capaz de se pôr suficientemente na situação de qualquer outro. Contudo, quando os envolvidos não

46. Isso é desconsiderado por Chr. M. Korsgaard, The Sources ofNormativity. The Tanner Lectures on Human Values, n. XV ( 1994), pp. 88ss.

47. Cf. Kant, vol. IV, p. 69. 48. O mesmo se pode dizer de Tugendhat, cf. IV, 2, acima.

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podem mais contar com um acordo prévio sobre condições de vida e situações de interesse mais ou menos homogêneas, o ponto de vista moral só pode se realizar sob condições de comunicação que garan­tam que cada um, também da perspectiva de sua própria autocom­preensão e compreensão de mundo, possa testar a aceitabilidade de uma norma elevada a práxis comum. O imperativo categórico con­tém assim uma forma de leitura concernente à teoria do discurso. Em seu lugar, surge o princípio discursivo "D': segundo o qual só podem requerer validação normas que possam contar com a concordância de todos os envolvidos como participes de um discurso prático49•

Partimos da questão genealógica sobre ainda ser possível justifi­car ou não o teor cognitivo de uma moral do respeito indistinto e da responsabilidade solidária por toda e qualquer pessoa após a perda de valor do fundamento religioso de sua validação. Por fim, sob a mesma perspectiva, gostaria de submeter a prova o resultado que al­cançamos pela interpretação intersubjetiva do imperativo categórico. Para tanto é preciso separarmos dois problemas. De uma parte, é pre­ciso esclarecer quais são, afinal, os elementos das instituições origi­nais que a ética discursiva põe a salvo no universo desenganado das tentativas de fundamentação pós-metafísicas, e em que sentido ainda se pode falar de uma validação cognitiva de juízos e posicionamentos morais (VII). De outra parte, é precípuo perguntar se uma moral que parte da reconstrução racional de instituições tradicionais, inicial­mente religiosas, não permanece conteudisticamente presa a seu con­texto original, não obstante seu caráter estimativo, ou seja, estar em permanente processo de avaliação (VIII).

Ao perderem a autoridade epistêmica da posição divina, os man­damentos morais perdem também sua justificação tanto soterioló­gica quanto ontoteológica. A ética discursiva também tem um preço a pagar por isso; ela não pode nem conservar o teor moral íntegro das instituições religiosas ( 1), nem preservar o sentido realista de valida­ção próprio às normas morais (2).

49. Cf. J. Habermas, "Diskursethik': ln: Moralbewufltsein und kommunikatives Hande/n, Frankfurt am Main, 1983, p. 103 [ ed. br.: Consciência moral e agir comunica­tivo, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989].

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( 1) Se a práxis moral, por meio da pessoa do Deus salvador- e de sua função no plano salvífico -, deixa de estar entretecida com a expectativa de salvação pessoal e com uma mudança de vida marcada de maneira exemplar, decorrem daí duas conseqüências lastimáveis. De um lado, o saber moral desprende-se dos motivos subjetivos da ação; de outro lado, o conceito de moralmente correto torna-se diver­so da concepção de um bem-viver desejado por Deus.

A ética discursiva ordena diversas formas de argumentação a questões éticas e morais, a saber, discursos de auto-entendimento de um lado, discursos de fundamentação normativa (ou de aplicação), de outro. Com isso, no entanto, ela não reduz a moral a tratamento indistinto, mas procura fazer jus a dois aspectos: à justiça e à solidarie­dade. Um comum acordo almejado por via discursiva depende simul­taneamente do "sim" ou do "não" insubstituível de cada um dos indi­víduos, bem como da superação da perspectiva egocêntrica, indisso­ciável de todos os envolvidos em uma práxis argumentativa pautada pelo convencimento recíproco. Quando o discurso, em virtude de suas qualidades pragmáticas, possibilita uma formação de vontade discer­nente e garantidora tanto do "sim" quanto do "não", então os posicio­namentos racionalmente motivados, afirmativos ou negativos, podem dar espaço aos interesses de cada indivíduo, sem que se rompa o teci­do social que já de antemão une os participantes voltados ao acordo mútuo em sua atitude transubjetiva.

Por certo, o desacoplamento da moral em relação às questões da vida bem-sucedida tem também seu lado motivacional. Como não há nenhum substituto profano para a expectativa de salvação, perde­se o motivo mais forte para o seguimento de mandamentos morais. Ao ver nos discursos racionais a encarnação do ponto de vista moral, a ética discursiva reforça ainda mais a separação intelectualista entre o juízo moral e a ação. O discernimento a que se chega discursiva­mente não assegura nenhuma transferência para a ação. Com certeza os juízos morais nos dizem o que devemos fazer; e boas razões afe­tam nossa vontade. Isso se revela na má consciência que nos "aflige" quando agimos contra nosso discernimento. Mas o problema da fra­queza da vontade também revela que o discernimento moral se deve à pouca força das razões epistêmicas, sem constituir ele mesmo um motivo racional. Quando sabemos o que é moralmente correto fazer, até sabemos que não há qualquer boa razão - epistêmica - para

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agir de outra maneira. Isso não impede, porém, que outros motivos acabem sendo mais fortes50•

Com a perda da base validativa sotereológica, altera-se em espe­cial o sentido da obrigatoriedade normativa. A própria diferenciação entre dever e vinculação de valor, entre o que é moralmente certo e eticamente almejável, aguça a validação do dever tornando-a em nor­matividade, a que corresponde tão-somente a formação imparcial de juízos. Outra conotação deve-se à mudança da perspectiva, de Deus para o homem. "Validade" significa agora que normas morais conta­rão com a concordância de todos os envolvidos, quando esses, em dis­cursos práticos, testarem em conjunto se a respectiva práxis vem ao encontro do interesse de todos em igual medida. Nessa concordância expressam-se duas coisas: a razão falível dos sujeitos em conselho, que se convencem mutuamente de que uma norma introduzida hipote­ticamente merece reconhecimento, e a liberdade dos sujeitos legislado­res, que se entendem ao mesmo tempo como autores das normas a que se submetem como destinatários. No sentido validativo das normas mo­rais, ficam vestígios tanto da falibilidade do espírito humano que des­cobre, quanto da construtividade do espírito humano que projeta.

(2) O problema sobre em que sentido juízos e posicionamentos morais podem requerer validade revela-se ainda sob outro aspecto quando trazemos à memória as asserções essenciais com que os man­damentos foram justificados onto-teologicamente, no passado, como partes de um mundo racionalmente estabelecido. Enquanto foi possí­vel manifestar o teor cognitivo da moral por meio de asserções descri­tivas, os juízos morais foram falsos ou verdadeiros. Porém, desde que o realismo moral não se deixa mais defender pela evocação da metafísica da criação e do direito natural (ou de sucedâneos para eles), a valida­ção da obrigatoriedade de asserções morais não pode mais ser assimi­lada pela validação da verdade de asserções descritivas. Alguns dizem como são as coisas no mundo, outros dizem o que devemos fazer.

Se supomos que sentenças só podem ser válidas no sentido de se­rem "verdadeiras" ou "falsas': e que se deve entender a "verdade" no sen­tido de uma correspondência entre sentenças e objetos ou fatos, tor-

50. Daí resulta a necessidade de que se complem_ente a moral, apenas fracamente motivada, com um Direito coercitivo e positivo; cf. J. Habermas, Faktizitiit und Geltung, Frankfurt am Main, 1992, pp. 135ss.

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na-se problemática toda reivindicação de validação feita em favor de uma asserção não-descritiva. De fato, o ceticismo moral apóia-se prin­cipalmente na tese de que asserções normativas não podem ser verda­deiras ou falsas, e de que também não podem, portanto, ser funda­mentadas, dada a inexistência de algo como objetos ou fatos morais. Na verdade, somam-se aí uma compreensão de mundo tradicional, como totalidade de objetos e fatos, uma compreensão de verdade baseada na teoria das correspondências e uma compreensão de fundamentação de cunho semântico. Comentarei essas premissas duvidosas de forma breve e em ordem inversa51 •

De acordo com a concepção semântica, uma sentença tem fun­damento quando se pode deduzi-la de sentenças de base, segundo regras essenciais válidas; para tanto, distingue-se uma classe de sen­tenças de base, segundo determinados critérios (lógicos, gnosiológi­cos ou psicológicos). Mas a assunção fundamentalista de uma base como essa, acessível de forma imediata à percepção ou ao espírito, não resistiu à inspeção lingüístico-crítica a que se submeteu a cons­tituição holística da linguagem e da interpretação; toda e qualquer fundamentação precisa ao menos partir de um contexto ou de uma compreensão da circunstância pré-entendidos52• Por isso recomen­da-se conceber a fundamentação de forma pragmática, como uma práxis de justificação pública em que, para solver reivindicações de validação, apresentam-se razões. Com isso, é preciso pôr em discus­são os próprios critérios de racionalidade que distinguem "razões" de "boas razões". É por isso, afinal, que recai sobre as próprias quali­dades rotineiras do processo argumentativo o ónus de elucidar por que os resultados alcançados conforme os procedimentos de rotina têm a seu favor a suposição de validade. A constituição comunicativa de discursos racionais, por exemplo, pode cuidar de que se garanta espaço a todas as contribuições relevantes e de que apenas a compul­são não coerciva do melhor argumento determine o "sim" ou o "não" dos participantes53•

51. Para o que segue cf. }. Heath, Morality and Social Action, tese de doutoramento na Northwestern University, 1995, pp. 86-102.

52. Cf. D. Davidson, Wahrheit und Interpretation, Frankfurt am Main, 1986. 53. Cf. }. Habermas, "Exkurs zur Argumentationstheorie". ln: Theorie des

kommunikativen Handelns, Frankfurt am Main, 1981, vol. l, pp. 44-71; e, do mesmo autor, 1992, pp. 276ss.

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O plano pragmático para a fundamentação abre caminho para um conceito epistêmico de verdade que tem por tarefa oferecer uma saída à teoria das correspondências. Com o predicado de verdade re­ferimo-nos ao jogo de linguagem da justificação, ou seja, da solvência pública das reivindicações de validação. Por outro lado, não se deve igualar "verdade" com fundamentabilidade- warranted assertibility. A utilização "cautelar" do predicado- 'p' pode estar muito bem fun­damentado e mesmo assim não ser verdadeiro- alerta-nos para a diferença semântica entre "verdade" como qualidade inalienável das asserções e "aceitabilidade racional" como qualidade das declarações, mas condicionada pelo contexto 54• Essa diferença pode ser entendida no horizonte das justificações possíveis como a distinção entre "justi­ficado em nosso contexto" e "justificado em qualquer contexto". De nossa parte, podemos fazer jus a essa diferença por meio de uma idea­lização atenuada de nossos processos argumentativos- se concebi­dos como passíveis de prosseguimento. À medida que afirmamos 'p' e que reivindicamos verdade para 'p', assumimos- embora conscien­tes da falibilidade- a obrigação de defender 'p' contra todas as obje-

- , • 55 çoes possiveis . Nesse contexto, interessa-me muito menos a complexa relação

entre verdade e justificação do que compreender o conceito de ver­dade- já depurado pelas conotações de correspondência- como um caso especial de validade, enquanto se introduz esse conceito geral de validade referenciado à solvência discursiva de reivindicações de vali­dação. Com isso, abre-se um espaço conceituai em que se pode abrigar o conceito de validade normativa, e mais especialmente de validade moral. A correção de normas morais (ou de asserções normativas ge­rais) e de mandamentos singulares pode ser entendida por analogia à verdade de sentenças assertivas. O que vincula os dois conceitos de validação é o procedimento da solvência discursiva das reivindica-

54. R. Rorty, "Pragmatism, Davidson and Truth': ln: E. LePre (org.). Truth and Interpretation, Londres, 1986, pp. 264ss.

55. O conceito da "solvibilidade discursiva", reativo, referente não a estados ideais, mas ao enfraquecimento de restrições potenciais, aproxima-se do conceito de "superassertibility": C. Wright, Truth and Objectivity, Cambridge, 1992, pp. 33ss. So­bre a crítica a meu conceito anterior de verdade, ainda orientado por Peirce, v. A. Wellmer, Ethik und Dialog, Frankfurt am Main, 1986, pp. 102 ss; cf. ainda Wingert, 1993, pp. 264ss.

UMA VISÃO GENEALÓGICA DO TEOR COGNITIVO DA MORAL 51

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ções de validação correspondentes. O que os separa é a referência ao mundo social ou ao mundo objetivo, respectivamente.

O mundo social que (como totalidade legitimamente regulada das relações interpessoais) só é acessível com base na perspectiva do participante se constitui historicamente de forma instrínseca e, por­tanto (se assim o quisermos), de forma ontologicamente diversa do mundo objetivamente descritível da perspectiva do observador56• O mundo social está entrelaçado com as intenções e opiniões, com a prá­xis e a linguagem de seus integrantes. Isso vale de modo semelhante para as descrições do mundo objetivo, mas não para ele mesmo. Por isso, o significado da solvência discursiva de reivindicações de verda­de difere do significado das reivindicações morais de validação: em um dos casos, o comum acordo discursivamente alcançado declara terem sido cumpridas as condições de verdade de uma sentença asser­tiva, interpretadas como condições de afirmabilidade; no outro caso, o comum acordo discursivamente alcançado fundamenta a reconhe­cibilidade de uma norma e colabora assim, ele mesmo, para o cum­primento de suas condições de validade. Se a aceitabilidade racional apenas indica a verdade de sentenças assertivas, ela presta uma contri­buição constitutiva para a validação de normas morais. No discerni­mento moral, construção e descoberta se entrelaçam de forma diversa da que ocorre no conhecimento teórico.

É o ponto de vista moral que escapa a nosso desígnio e se impinge a nós, e não uma ordem moral suposta, cuja existência como que in­dependeria de nossas descrições. Não foi o mundo social em si que nos escapou, mas as estruturas e procedimentos de um processo argu­mentativo que se presta tanto à criação quanto à descoberta das normas de um convívio regulado com retidão. O sentido construtivista de uma formação de juíws morais concebida segundo o modelo da autole­gislação não se pode perder, mas ele tampouco pode destruir o sen­tido epistêmico das fundamentações morais57•

56. A partir disso, a propósito, explica-se a carência de complementação dos dis­cursos morais por discursos de aplicação; cf. K. Günther, Der Sinn für Angemessenheit, Frankfurtam Main, 1998; quanto a isso, v. J. Habermas, 1992, pp. 14ls.

57. C( J. Rawls, "Kantian Constructivism in Moral Theory", Journal of Philoso­phy, set. 1980, pp. 519.

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A ética discursiva justifica o teor de uma moral do respeito indis­tinto e da responsabilidade solidária por cada um. Certamente, ela só chega a isso pela via da reconstrução racional dos conteúdos de uma tradição moral abalada em sua base validativa religiosa. Se a maneira de ler o imperativo categórico assumida pela teoria discursiva perma­necesse atrelada a essa tradição da origem, essa genealogia se interpo­ria ao objetivo de comprovar o teor cognitivo dos juízos morais em geral. Ainda falta uma fundamentação, a partir da teoria moral, do próprio ponto de vista moral.

Na verdade, o princípio discursivo responde ao constrangimento que acomete os membros de comunidades morais aleatórias quando estes, durante a transição para sociedades modernas, pluraristas em sua visão de mundo, incorrem no dilema de continuar, como antes, discu­tindo sobre juízos e posicionamentos morais munidos de razões, ades­peito de já ter desmoronado seu consenso substancial de fundo no que concerce às normas morais subjacentes. Tanto em nível global quanto dentro da própria sociedade a que pertencem, essas pessoas envolvem­se em conflitos de conduta que elas mesmas, muito embora seu ethos já esteja em ruínas, ainda entendem como conflitos morais, e portanto solúveis a partir de certa fundamentação. O cenário a seguir não retrata nenhum "estado primordial': mas sim um percurso estilizado de ma­neira ideal e tipificada, tal como ele poderia dar-se sob condições reais.

Tomo como ponto de partida que os envolvidos pretendem so­lucionar seus conflitos sem violência ou acertos ocasionais, mas sim através de um acordo mútuo. Assim, propõe-se de saída a tentativa de estabelecer um conselho e desenvolver, sobre uma base profana, uma autocompreensão ética comum a todos. Sob as condições de vida di­versificadas das sociedades pluralistas, porém, uma tentativa como essa está fadada ao fracasso. Os envolvidos aprendem que, ao se certifica­rem criticamente de suas fortes convicções valorativas, ainda preser­vadas na prática, são constatadas concepções divergentes sobre o que seja o bem. Suponhamos que insistam, ainda assim, em sua intenção de chegar a um acordo mútuo, e que não queiram simplesmente subs­tituir o convívio moral já ameaçado por um modus vivendi qualquer.

Em face da debilidade de um acordo substancial sobre os conteú­dos das normas, os envolvidos vêem-se abandonados a uma circuns-

UMA VISAO GENEALúGICA DO TEOR COGNITIVO DA MORAL 53

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tância até certo ponto neutra, na qual cada um deles partilha uma forma de vida qualquer, que é no entanto comunicativa e está estru­turada por meio de um acordo mútuo lingüístico. Já que processos de acordo mútuo e formas de vida como esses têm certos aspectos estruturais em comum, os envolvidos poderiam perguntar-se se há aí conteúdos normativos que ofereçam uma base para orientações em comum. Teorias alinhadas à tradição de Hegel, Humboldt e G. H. Mead percorreram vestígios como esses e demonstraram que con­dutas comunicativas estão entrelaçadas com suposições recíprocas, que formas de vida comunicativas estão entrelaçadas com relações recíprocas de reconhecimento, e que elas apresentam, portanto, um conteúdo normativo58. Depreende-se dessas análises que a moral extrai, da forma e da estrutura perspéctica da socialização intersub­jetiva intocada, um sentido genuíno e dependente do que é indivi­dualmente bom59•

Qualidades de formas de vida comunicativas certamente não são suficientes para fundamentar o porquê da transgressão de uma orientação particularista de valores por integrantes de uma comuni­dade histórica determinada, nem o porquê de eles deverem integrar­se a relações de reconhecimento totalmente simétricas e ilimitada­mente inclusivas no contexto de um universalismo igualitário. Por outro lado, uma postura universalista preocupada em evitar falsas abstrações precisa aproveitar discernimentos proporcionados pela teoria da comunicação. Do fato de que as pessoas só se individuali­zam pela via da integração a uma sociedade resulta que a deferência moral vale tanto para o indivíduo irrepresentável quanto para quem integra a sociedade60; portanto a justiça vincula a solidariedade. O tratamento igual vale para desiguais como que conscientes de sua pertença em comum. O aspecto segundo o qual pessoas são iguais a todas as demais pessoas não pode ser validado à custa de outro as­pecto, segundo o qual elas também são como indivíduos absoluta-

58. Cf. A. Honneth. Kampf und Anerkennung, Frankfurt am Main, 1992; R. Forst, Kontexte der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1994.

59. Cf. L. Wingert, 1984, pp. 295ss. Sobre a estrutura perspectória da ação orien­tada ao acordo mútuo, v. o artigo que intitula J. Habermas, 1983, pp. 127ss., em espe­cial pp. 144-152.

60. As implicações desse duplo aspecto foram elaboradas energicamente por Wingert, 1993.

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mente diferentes de todos os outros61 • O respeito reciprocamente equâ­nime por cada um, exigido pelo universalismo sensível a diversifica­ções, é do tipo de uma inclusão não-niveladora e não-apreensória do outro em sua alteridade.

Mas como justificar afinal a transição para uma moral pós-tradi­cional? As obrigações enraizadas na ação comunicativa e tradicio­nalmente ajustadas a ela não vão por si sós62 para além dos limites da família, do clã, da cidade ou da nação. É diferente, porém, com a for­ma reflexiva da ação comunicativa: argumentações apontam per se para além de todas as formas particulares de vida. Pois, nos pressupostos programáticos de discursos ou de conselhos racionais, o teor norma­tivo de suposições empreendidas na ação comunicativa é generalizado, abstraído e descingido, ou seja, é estendido a uma comunidade que insere e que, em princípio, não exclui nenhum sujeito capaz de falar e agir, desde que esteja em condições de dar contribuições relevantes. Essa idéia mostra a saída daquela situação em que os envolvidos per­deram o suporte ontoteológico e precisam criar com base em si mes­mos as próprias orientações normativas. Tal como mencionado, os envolvidos só podem recorrer às coisas que têm em comum e das quais dispõem naquele momento. Depois do último fracasso, essas coisas em comum ficaram reduzidas à provisão de qualidades formais disponí­veis na situação de conselho, que podem ser partilhadas performativa­mente por seus integrantes. Todos, afinal, já estão envolvidos no em­preendimento cooperativo de um conselho reunido na prática.

Essa é uma base muito frágil, mas a neutralidade conteudística de sua subsistência comum pode representar também uma chance em face do constrangimento ocasionado pelo pluralismo de cosmovisões. Haveria perspectiva de encontrar um equivalente para a fundamenta­ção conteudística-tradicional de um comum acordo normativo básico, caso a própria forma comunicacional em que se cumprem as reflexões práticas comuns redundasse em um aspecto sobre o qual fosse possí­vel fundamentar normas morais e que, por ser imparcial, fosse con­vincente para todos os envolvidos. O "bem transcendente" que falta

61. Por isso, para se cumprir a condição de imparcialidade, não basta que al­guém isento pondere o bem e o mal em jogo para uma pessoa "qualquer"; posição diversa é a de Tugendhat, 1993, p. 353.

62. Cf. Seel, 1995, p. 204.

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só pode ser compensado de forma "imanente': com base no caráter inerente da práxis de reuniões em conselho. Penso que, a partir daqui, há três passos para se chegar a uma fundamentação do ponto de vista moral, no âmbito da teoria moral.

(a) Se a práxis de reuniões em conselho é, ela mesma, o único expediente possível para o ponto de vista do julgamento imparcial de questões morais, então a referência a conteúdos morais precisa ser substituída pela referência auto-remissiva à forma dessa práxis. Justa­mente essa compreensão da situação é que traz 'D' ao ponto: só po­dem aspirar por validade as normas que puderem merecer a concor­dância de todos os envolvidos em discursos práticos. Diante disso, a "concordância" ensejada sob as condições discursivas assume o signi­ficado de um comum acordo motivado por razões epistêmicas; não se pode entendê-la como um acerto qualquer motivado racionalmente a partir de uma visão egocêntrica. Por outro lado, o princípio discursi­vo deixa em aberto o tipo de argumentação, ou seja, o caminho pelo qual se pode visar a um comum acordo discursivo. Com 'D' não se supõe de saída que uma fundamentação de normas morais seja se­quer possível fora do contexto de um comum acordo substancial.

(b) O princípio 'D', introduzido de forma condicional, indica a própria condição a ser cumprida por normas válidas, caso elas possam­ser fundamentadas. Por ora, então, cabe esclarecer o conceito de nor­ma moral. De maneira intuitiva, os envolvidos também sabem como tomar parte em argumentações. Embora só tenham familiaridade com a fundamentação de sentenças assertivas e ainda não saibam se as rei­vindicações de validação moral podem ser julgadas de modo seme­lhante, estão aptos a imaginar (e de modo a não fazer conjeturas sem exame prévio) o que poderia ser fundamentar normas. No entanto, pa­ra a operacionalização de 'D', falta ainda uma regra para a argumenta­ção que indique como as normas morais podem ser fundamentadas.

O princípio universalizante 'U' certamente está inspirado em 'D', mas por enquanto não passa de uma sugestão obtida por abdução. Ele afirma:

-que uma norma só é válida quando as conseqüências presu­míveis e os efeitos secundários para os interesses específicos e para as orientações valorativas de cada um, decorrentes do cumpri­mento geral dessa mesma norma, podem ser aceitos sem coação por todos os atingidos em conjunto.

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Sobre isso, três comentários: os "interesses específicos e orienta­ções valorativas" põem em questão as razões pragmáticas e éticas dos participantes em particular. A inclusão desses dados deve prevenir uma marginalização da autocompreensão e da compreensão de mundo de participantes em particular e assegurar em geral a sensibilidade her­menêutica por um espectro suficientemente amplo de contribuições. Além disso, a assunção recíproca e generalizada de perspectivas alheias ("cada um"- "por todos em conjunto") exige não apenas empatia, mas também uma intervenção interpretativa na autocompreensão e na compreensão de mundo dos participantes, que precisam se manter abertos a revisões das descrições de si mesmos e dos outros (e abertos, portanto, a revisões da linguagem utilizada em tais descrições). O pro­pósito da "aceitação geral e não coativa", por fim, fixa o aspecto sob o qual as razões apresentadas extraem dos motivos para a ação o senti­do relativo aos atares, e sob o qual assumem um sentido epistêmico sob o ponto de vista da consideração simétrica.

(c) Os próprios envolvidos talvez se dêem por satisfeitos com essa regra de argumentação (ou com uma regra semelhante), à medida que ela se mostre útil e não conduza a resultados contra-intuitivos. É pre­ciso evidenciar que normas capazes de conquistar concordância geral - os Direitos Humanos, por exemplo - estão marcadas por uma práxis fundadora orientada dessa maneira. Mas do ponto de vista do teórico da moral ainda resta um último passo fundador.

Podemos tomar como ponto de partida que a práxis de justifica­ção e reunião em conselhos- a que chamamos argumentação- po­de ser encontrada em todas as culturas e sociedades (se não de forma institucionalizada, ao menos como uma práxis informal) e que não há equivalente algum desse tipo de solução de problemas. Em face da disseminação universal da práxis argumentativa e da falta de al­ternativas para ela, fica difícil contestar a neutralidade do princípio discursivo. Mas, considerada a abdução de 'U', pode ser que esteja subjacente aqui, às escondidas, um pré-entendimento etnocêntrico (e com ele uma determinada concepção do que é bom), não parti­lhado por outras culturas. A suspeita de um comprometimento eu­rocêntrico que recai sobre uma compreensão de moralidade opera­cionalizada por 'U' poderia perder força se fosse possível, de modo aceitável, tornar "imanente" a explicação para o ponto de vista mo­ral, ou seja, se esse ponto de vista moral pudesse ser explicado a par-

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tir do saber sobre o que se faz quando se está envolvido em uma práxis argumentativa63.

Intuitivamente, é fácil perceber tal coisa (ao passo que qualquer tentativa de fundamentação formal demandaria discussões circuns­tanciadas sobre o sentido e a exeqüibilidade de "argumentos trans­cendentais"64). Nesse contexto, vou me dar por satisfeito com o indício fenomenológico de que a argumentação se dá com a intenção de um convencimento recíproco quanto à legitimidade das reivindicações de validação que os proponentes apresentam em favor de suas asser­ções e que eles estão dispostos a defender diante de seus oponentes. Com a práxis argumentativa instaura-se uma concorrência coopera­tiva por argumentos melhores, em que a orientação por um acordo mútuo vincula os participantes a limine. A suposição de que a con­corrência pode conduzir a resultados "racionalmente aceitáveis" e "convincentes" funda-se sobre a força de convencimento dos próprios argumentos. E também o que conta como argumento bom ou ruim pode perfeitamente ser posto em discussão. Por isso a aceitabilidade racional de uma asserção apóia-se afinal sobre razões ligadas a de­terminadas qualidades do próprio processo argumentativo. Mencio­narei apenas as quatro mais importantes: (a) ninguém que possa dar uma contribuição relevante pode ser excluído da participação; (b) a todos se dará a mesma chance de dar contribuições; (c) os partici­pantes devem pensar aquilo que dizem; (d) a comunicação deve ser isenta de coações internas ou externas, de tal forma que os posiciona­mentos de "sim" e "não" ante reivindicações de validação criticáveis sejam motivados tão-somente pela força de convencimento das me­lhores razões. Se cada um que se envolver em uma argumentação ti­ver que fazer ao menos essas pressuposições pragmáticas, então nos discursos práticos, (a) por causa do caráter público e inserção de to­dos os envolvidos e (b) por causa da igualdade de direitos de comu­nicação para todos os participantes, só poderão ter espaço as razões que levem em conta, de forma equânime, os interesses e as orienta­ções de valor de cada um; e por causa da ausência de (c) engano e (d)

63. Cf. Konrad Ott, "Wie begründet man ein Diskussionsprinzip der Moral?". ln: Vom Begründen zum Handeln, Tübingen, 1996, pp. 12-50.

64. Cf. M. Niquet, Transzendentale Argumente, Frankfurt am Main, 1991; idem, Nichthintergehbarkeit und Diskurs, tese de livre-docência (inédita), Frankfurt am Main, 1995.

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coação, só poderão ser decisivas as razões para o assentimento de uma norma discutível. Por fim, sob a premissa de uma orientação segun­do o acordo mútuo, presumida reciprocamente em todos os envol­vidos, essa aceitação "não coativa" só pode dar-se "em comum".

Contra a objeção ao círculo65, deve-se mencionar que o teor dos pressupostos argumentativos gerais ainda não é "normativo", em sen­tido moral. Pois a possibilidade de inserção significa apenas a con­dição de acesso irrestrito ao discurso, e não a universalidade de uma norma de ação vinculativa, qualquer que seja. A distribuição eqüi­tativa de liberdades comunicativas no discurso e a exigência de sin­ceridade em favor do discurso significam deveres e direitos argumen­tativos, e de forma alguma morais. Igualmente, a ausência de coação refere-se ao próprio processo argumentativo, e não a relações inter­pessoais externas a essa práxis. As regras constitutivas do jogo argu­mentativo determinam o intercâmbio de argumentos e de posicio­namentos de "sim" /"não"; elas têm o sentido epistêmico de possibi­litar a justificação de asserções, e não o sentido prático imediato de motivar ações.

O cerne da fundamentação do ponto de vista moral consiste, para a ética discursiva, em que só através de uma regra argumentativa seja possível transferir o teor normativo desse jogo de linguagem epis­têmico para a seleção de normas acionais, sugeridas em discursos prá­ticos -junto com sua reivindicação de validação moral. A obrigato­riedade moral não pode resultar, por si só, de algo como uma impo­sição transcendental de pressupostos argumentativos inevitáveis; mais que isso, ela se liga a objetos peculiares do discurso prático - a nor­mas nele introduzidas, e às quais remontam as razões arregimenta­das nas reuniões em conselho. Destaco essa circunstância lembrando que 'U' pode se tornar plausível a partir do teor normativo de pressu­postos argumentativos ligado a um conceito (fraco, e portanto não pre­julgador) de fundamentação de normas.

A estratégia de fundamentação ora sugerida partilha o ânus dos esforços para tornar-se plausível com um questionamento genealó­gico atrás do qual se escondem algumas suposições caras à teoria da

65. Cf. Tugendhat, 1993, pp. 161ss. A crítica de Tugendhat refere-se a uma versão de meu argumento presente na segunda edição de Moralbewuj3tsein und kommunikatives Handeln [Consciência moral e agir comunicativo, ed. br. cit.] e já revista portanto em 1984(!);v.tb.J.Habermas, 1991,p.134,nota 17.

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modernidade66. Com 'U' (e isso revela também a figura fundadora da comprovação de autocontradições performativas67 utilizada para identificar pressuposições argumentativas, que nos eximimos de dis­cutir neste contexto) asseguramo-nos reflexivamente de uma subs­tância normativa como que remanescente em sociedades pós-tradi­cionais, justamente por se apresentar sob a forma de um resíduo de si mesma poupado da argumentação, e sob a forma da ação orientada ao acordo mútuo.

Como problema seguinte resulta a questão da aplicação da nor­ma. Pois o ponto de vista moral só se valida plenamente com o princí­pio da adequação (desenvolvido por K. Günther68), e apenas em vista de juízos morais singulares. Na concludência de discursos de funda­mentação e aplicação conduzidos com êxito revela-se que questões práticas diferenciam-se sob o ponto de vista moral tomado à risca: questões morais sobre o convívio correto separam-se de questões prag­máticas da escolha racional, de um lado, e de questões éticas do bem­viver ou da vida não-malograda, de outro. Além disso, ficou-me claro, em uma visão retrospectiva, que 'U' operacionaliza um princípio dis­cursivo mais abrangente, primeiramente com vista a um questiona­mento em especial, qual seja o de ordem moral69• O princípio discur­sivo também pode ser operacionalizado em favor de outras questões, tais como para reuniões em conselho de um legislador político ou para discursos jurídicos70•

66. É o que acentua W. Rehg, Insight and Solidarity, Berkeley, 1984, pp. 65ss.; v. tb. S. Benhabib, "Autonomy, Modernity and Community". ln: Situating the Self, Cam­bridge, 1992, pp. 68-88.

67. Cf. K.-0. Apel, "Die transzendentalpragmatische Begründung der Kommuni-kationsethik': ln: Diskurs und Verantwortung, Frankfurt am Main, 1988, pp. 306-369.

68. V. nota 56, acima. 69. Cf. Habermas, 1992, pp. 135ss. e o Posfácio à 4. ed., pp. 674ss. 70. Cf. R. Alexy, Theorie der juristischen Argumentation, Frankfurt am Main, 1991;

idem, Begriff und Geltung des Rechts. Freiburg, 1992; idem, Recht, Vernunft, Diskurs, Frankfurt am Main, 1995. Cf. tb. K. Baynes, The Normative Grounds o[ Social Criticism, Albany, 1992; S. Benhabib, "Deliberative Rationality and Models of Democratic Legitimacy", Constellations, n. I ( 1994): 26-52; e sobretudo R. Forst, 1994.

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2 Reconciliação por meio do uso público da razão*

Uma teoria da justiça de John Rawls marca uma cesura na história mais recente da filosofia prática. Com essa obra; Rawls reabilitou as questões morais reprimidas durante mui­to tempo e apresentou-as como objeto de pesquisas cien­tificas sérias. Kant formulara a questão fundamental da moral de tal forma que ela podia encontrar uma resposta racional: em casos de conflito, devemos fazer aquilo que é igualmente bom para todas as pessoas. Sem recorrer aos pressupostos fundamentais da filosofia transcendental de Kant, Rawls re­novou esse principio, com vistas à justa convivência entre cidadãos de uma comunidade política. Assumindo uma po­sição de vanguarda contra o utilitarismo, por um lado, e o ceticismo, por outro, diante dos valores, ele propôs uma lei­tura intersubjetivista do conceito kantiano da autonomia: agimos de forma autônoma quando obedecemos estrita­mente às leis que todos os envolvidos poderiam aceitar com boas razões, com base em um uso público de sua razão. Rawls utiliza este conceito moral da autonomia como chave para a explicação da autonomia politica dos cidadãos de um estado

• Tradução: Paulo Astor Soethe e George Sperber.

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democrático de direito: ''Our exercise of politicai power is fully proper only, when it is exercised in accordance with a constitution the essentials of which ali citizens as free and equal may reasonably be expected to endorse in the light of principies and ideais acceptable to their common human reason." 1 Essa frase provém do livro com o qual Rawls encerrou, por enquanto, um processo de ampliação e revisão de sua teoria da justiça, que demorou vinte anos. Do mesmo modo como antes se diri­gira contra as posições utilitaristas, ele hoje reage sobretudo contra as posições contextualistas, que contestam o pressuposto de uma razão comum a todos os seres humanos.

Como admiro esse projeto, compartilho sua intenção e considero corretos seus resultados essenciais, o dissentimento de que quero falar acaba ficando dentro dos estreitos limites de um briga de família. Mi­nhas dúvidas limitam-se a saber se Rawls faz valer suas importantes intuições normativas, pertinentes na minha opinião, de um modo sem­pre convincente. Antes de tudo, porém, gostaria de lembrar os contor­nos do projeto, tal como ele agora se apresenta.

Rawls fundamenta princípios segundo os quais se deve instituir uma sociedade moderna, se ela tiver de garantir a cooperação justa e imparcial entre seus cidadãos, como pessoas livres e iguais. Num pri­meiro passo, ele esclarece o ponto de vista a partir do qual represen­tantes fictícios poderiam responder a essa questão de modo imparcial. Ele explica por que as partes, na assim chamada condição primitiva, por-se-iam de acordo quanto a dois princípios, a saber: primeiro, o princípio liberal, de acordo com o qual são concedidas a todos os cida­dãos iguais liberdades subjetivas de ação. Segundo, o princípio subor­dinado que regula e fixa os mesmos direitos de acesso aos cargos públi­cos para todos e que diz que as desigualdades sociais só podem ser acei­tas na medida em que ao menos tragam vantagens aos cidadãos menos privilegiados. Num segundo passo, Rawls mostra que essa concepção, sob aquelas condições de um pluralismo que ela mesma promove, pode esperar ser objeto de aprovação. Do ponto de vista ideológico, o libera­lismo político é neutro porque é uma construção racional, sem su~citar ele próprio uma reivindicação de verdade. Num terceiro passo, Rawls esboça finalmente os direitos fundamentais e os princípios do Estado

l. J. Rawls. Politicai Liberalism TV, New York 1993, p. 137 led. br.: Liberalismo político, São Paulo, Ática, 2000 ].

62 A INCLUSAO DO OUTRO

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de direito que podem ser deduzidos dos dois principias supremos de justiça. Na seqüência desses passos, apresentarei alguns reparos, que se dirigem menos contra o projeto como tal, e mais contra alguns aspec­tos de sua realização. Temo que Rawls faça concessões a posições filo­sóficas contrárias, que prejudicam a clareza de sua própria abordagem.

A minha crítica, feita com intenções construtivas, inicia-se de modo imanente. Em primeiro lugar, tenho dúvidas de se o design da condição primitiva é apropriado em todos os sentidos para explicar e para assegurar o ponto de vista do julgamento imparcial de princípios de justiça entendidos de modo deontológico (1). Além disso, tenho a impressão de que Rawls deveria diferenciar mais nitidamente as ques­tões de fundamentação das questões de aceitabilidade; ele parece ter intenção de conquistar a neutralidade ideológica de sua concepção de justiça ao preço de sua reivindicação cognitiva de validação (II). Essas duas decisões relativas à estratégia de sua teoria têm como conseqüência uma construção do Estado de direito que subordina o principio de legitimação democrática a direitos liberais fundamentais. Assim, Rawls malogra seu objetivo de compatibilizar a liberdade dos modernos e a liberdade dos antigos (III). Encerro com uma tese a respeito do auto­entendimento da filosofia política: nas condições do pensamento pós­metafísico, ela deve ser modesta, mas não da maneira errada.

O papel de adversário que me foi atribuído pela redação do ]ou r­na[ of Philosophy obriga-me a exacerbar objeções e reparos tentativas. Essa exacerbação pode ser justificada com a intenção amistosa e pro­vocante de mexer com a "economia doméstica" argumentativa, nada fácil de manejar, de uma teoria altamente complexa e muito bem lucubrada, de tal modo que ela possa fazer valer suas potencialidades2•

o O design da condição primitiva

Para Rawls, a condição primitiva apresenta-se como uma situação em que pessoas que representam os cidadãos mediante decisões racio-

2. Para a preparação deste texto foram especialmente úteis as seguintes obras: K. Baynes, The Normative Grounds ofSocial Criticism, Albany 1992; R. Forst, Kontexte der Gerechtigkeit, Frankfurt am Maio 1994.

R.ECONCILIAÇAO POR MEIO DO USO PÚBLICO DA RAZÃO 63

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nais vêem-se submetidas a limitações que, justamente elas, garantem um julgamento imparcial de questões ligadas à justiça. O conceito ple­no de autonomia fica reservado aos cidadãos que já vivem sob as insti­tuições de uma sociedade bem ordenada. Para a construção da condi­ção primitiva, Rawls desmembra esse coneeito de autonomia política em dois elementos: nas características moralmente neutras de partes que buscam suas vantagens racionais e nas limitações situacionais mo­ralmente prenhes de conteúdo, sob as quais as partes escolhem funda­mentos para um sistema de cooperação justo e imparcial. Essas limita­ções normativas só permitem equipar as partes com parcimónia, asa­ber, apenas com "a capacidade de serem racionais e de agirem a partir de (sua) concepção do bom, dada em cada caso"3. Seja que as partes só apresentem ponderações racionais e objetivas, seja que também incluam pontos de vista éticos a respeito da condução da vida, elas sempre to­marão suas decisões a partir do ponto de vista de suas próprias orienta­ções de valor (ou seja, a partir da perspectiva dos cidadãos por eles re­presentados). Elas não precisam nem podem observar as coisas a partir do ponto de vista moral, que tornaria necessário considerar o que cor­responde ao interesse homogêneo de todos. Pois essa imparcialidade é imposta por uma situação que deita um véu de insciência por sobre as partes reciprocamente desinteressadas umas pelas outras e que são, a um só tempo, livres e iguais. Como elas não sabem que posições ocupa­rão no futuro, na sociedade por elas ordenada, seu próprio interesse leva-as a pensar a respeito do que seja uniformemente bom para todos.

A construção de uma condição primitiva, que configure a mol­dura racional da liberdade de arbítrio de atares que decidem sensata­mente, explica-se pela intenção inicial de representar a teoria da justi­ça como parte da teoria geral das escolhas racionais. Aliás, Rawls par­tira inicialmente da idéia de que bastaria limitar apropriadamente o campo operacional de atuação das partes que decidem racionalmen­te, para poder deduzir fundamentos de justiça, a partir de seu interes­se esclarecido. Logo, porém, ele teria de reconhecer que a razão de ci­dadãos autónomos não pode ser deduzida da racionalidade seletiva de atares que decidem arbitrariamente4• Mesmo depois da revisão do

3. J. Rawls, "Der Vorrang der Grundfreiheiten". ln: idem, Die ldee des politischen Liberalismus, Frankfurt am Main 1992, 176.

4. Cf. J. Rawls, "Gerechtigkeit ais FairneB". ln: idem ( 1992), 273s., nota 20.

64 A INCLUSÃO DO OUTRO

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objetivo de demonstração a que originalmente deveria servir o design da condição primitiva, ele continuou a insistir claramente em que o sentido do ponto de vista moral pode ser operacionalizado desse modo. Isso traz conseqüências desagradáveis, três das quais quero discutir a seguir: ( 1) Podem as partes, na condição primitiva, perceber apenas com base em seu egoísmo racional os interesses prioritários de seus clientes? (2) É lícito que os direitos fundamentais sejam assimilados como bens fundamentais? (3) O véu da insciência garante a imparcia­lidade do juízo?5

( 1) Rawls não consegue sustentar de forma conseqüente a deci­são de fazer com que cidadãos "plenamente" autónomos sejam repre­sentados por partes às quais falta essa espécie de autonomia. Os cida­dãos são, por pressuposto, pessoas morais, possuidoras de um senso de justiça e da capacidade de ter uma concepção própria do bem, as­sim como de um interesse em que essas predisposições sejam racio­nalmente aperfeiçoadas. Devido a seu design objetivamente racional, as partes são desoneradas justamente dessas características racionais das pessoas morais. Mesmo assim, espera-se que elas entendam e res­peitem adequadamente esses "interesses da mais elevada ordem" dos cidadãos, resultantes justamente dessas características. Elas têm de contar, por exemplo, com que os cidadãos autónomos respeitem os interesses dos outros à luz de princípios justos e não apenas por inte­resse próprio; com que se deixem obrigar a um comportamento leal; com que se deixem convencer, pelo uso público de sua razão, da legiti­midade das instituições e políticas existentes etc. As partes, portanto, devem entender, levar a sério e tornar objeto de sua negociação as con­seqüências de uma autonomia que lhes é vedada em sua extensão in­tegral, assim como as implicações do uso de uma razão prática a que elas próprias não podem recorrer. Isso ainda poderia parecer plausível em face de uma percepção vicária do interesse auto-referido e voltado ao seguimento das diferentes concepções do que seja bom, individual­mente desconhecidas. Mas será que o sentido das questões da justiça pode ficar intocado pelo modo de ver de egoístas racionais? Em todo caso, as partes, dentro das fronteiras de seu egoísmo racional, são in-

5. A partir de outro ponto de vista, há uma crítica da abordagem pela teoria das decisões em T. M. Scanlon, "Contractualism and Utilitarianism». ln: A. Sen, B. Williams (eds.), Utilitarianism and Beyond, Cambridge 1982, l23ss.

RECONCILIAÇÃO POR MEIO DO USO PÚBLICO DA RAZÃO 65

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capazes de realizar reciprocamente a assunção de perspectivas que os cidadãos por elas representados realizam eles mesmos, caso elas se orientem justamente por aquilo que é uniformemente bom para todos: "in their rational deliberations, the parties ... recognize no standpoint external to their own point of view as rational representatives" 6• Mes­mo que as partes entendam o sentido deontológico dos fundamentos de justiça pelos quais procuram, e mesmo que devam respeitar ade­quadamente os interesses de justiça de seus clientes, precisam estar munidas de competências cognitivas que vão além das capacidades com as quais têm de ser dar por satisfeitos a tores que, embora decidam racionalmente, são cegos à justiça.

Naturalmente, Rawls pode variar o design da condição primitiva de modo correspondente. Já em Uma teoria da justiça, ele qualifica a racionalidade das partes contratantes. Por um lado elas não nutrem um interesse recíproco. Comportam-se mutuamente como jogadores que "almejam uma quantidade a mais elevada possível de pontos"7•

Por outro lado, estão munidas de um "sentido de justiça meramente formal"; pois devem saber umas sobre as outras que, na figura de futuros cidadãos, deverão se ater aos acordos estabelecidos, uma vez que passem a viver sob o regime de uma sociedade ordenada8• É pos­sível entender isso pelo fato de que as partes, na condição primitiva, tenham em todo caso conhecimento da espécie de reciprocidade obri­gatória que determinará a vida de seus clientes no futuro, embora elas próprias devam por ora levar adiante suas negociações sob outras premissas. Nada fala contra tais estipulações. Pergunto, apenas, se um design ampliado dessa forma não perde a graça pelo fato de afastar-se demais do modelo original. Pois tão logo as partes dão um passo para além das barreiras de seu egoísmo racional e assumem a mais longín­qua semelhança com pessoas morais, destrói-se a divisão de trabalho entre racionalidade subjetiva de escolha e barreiras objetivas apropria­das, pela qual se espera que sujeitos que agem em seu próprio interes­se cheguem a decisões racionais, ou seja, morais. Essa conseqüência pode não ser de grande relevância para o procedimento que se segue;

6. J. Rawls (1993), 73. 7. J. Rawls, TheoriederGerechtigkeit, Frankfurtam Main 1975, § 25, 168 (ed. br.:

Uma teoria da justiça, São Paulo, Martins Fontes, 32000 ]. 8. Idem, ibidem, p. 169.

66 A INCLUSAO DO OUTRO

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contudo, ela desvia a atenção para os constrangimentos conceituais resultantes da intenção inicial de resolver o problema hobbesiano do ponto de vista da teoria das decisões. Pois mais uma conseqüência do design da condição primitiva a partir da teoria das decisões é a in­trodução de bens fundamentais. E esta definição de rota tem relevância para a ulterior ampliação da teoria.

(2) Para atares que decidem racionalmente, vinculados à pers­pectiva da primeira pessoa, o aspecto normativo, seja qual for, só pode se apresentar como conceitos de interesses ou valores, que são preen­chidos por bens. Os bens são aquilo que é por nós almejado, aquilo que é bom para nós. Coerentemente, Rawls introduz "bens fundamen­tais" como meios generalizados de que as pessoas podem precisar para realizar os seus planos de vida. Embora as partes saibam que, para os cidadãos de uma sociedade bem ordenada, alguns desses bens funda­mentais assumem o caráter de direitos, elas próprias, na situação da condição primitiva, só podem descrever direitos como uma catego­ria de bens entre outras. Para elas, a questão que diz respeito aos prin­cípios de justiça só pode se colocar como uma questão da justa distri­buição de bens fundamentais. Com isso, Rawls se envolve com um conceito de justiça baseado na ética dos bens, que se encaixa melhor nas abordagens aristotélicas ou utilitaristas do que em sua própria teo­ria dos direitos, que parte do conceito da autonomia. Como Rawls se prende a uma concepção de justiça segundo a qual a autonomia dos cidadãos se constitui mediante direitos, o paradigma distributivo lhe traz dificuldades. Os direitos só podem ser "gozados" na medida em que deles se faz uso. Eles não podem ser assimilados a bens distribu­tivos, sem abrir mão de seu sentido deontológico. Uma distribuição uniforme de direitos só ocorre quando os jurisconsortes se reconhe­cem mutuamente como livres e iguais. Naturalmente, existem direi­tos a uma participação justa no todo dos bens e das oportunidades, mas os direitos em si regulam relações entre atares- e não podem ser "possuidos" por estes como se fossem coisas9• Se eu não estiver co­metendo um erro, Rawls vê-se obrigado pelos constrangimentos da estratégia conceituai do modelo ainda eficiente da escolha racional a não conceber imediatamente as liberdades fundamentais como di­reitos fundamentais, mas a reinterpretá-las por ora como bens funda-

9. I. M. Young, Justice and the Politics of Difference, Princeton, p. 25.

RECONCILIAÇÃO POR MEIO DO USO PÚBLICO DA RAzAO 67

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mentais. Mas com isso, ele iguala o sentido deontológico das normas (que nos obrigam) ao sentido teleológico dos valores (que nós prefe­rimos) 10• Assim, Rawls apaga diferenças essenciais, as quais quero lem­brar brevemente, para mostrar como isso o constrange mais adiante em seu procedimento.

À luz das normas é possível decidir o que deve ser feito; no hori­zonte dos valores, qual o comportamento recomendado. Normas reco­nhecidas obrigam seus destinatários por igual e sem exceção, enquan­to os valores exprimem até que ponto determinados bens, que em determinadas coletividades são vistos como almejáveis, merecem pre­ferência. Enquanto as normas são obedecidas, no sentido de cumprir com expectativas generalizadas de comportamento, os valores e os bens só podem ser realizados ou adquiridos mediante uma ação direciona­da. Além disso, as normas se apresentam como uma reivindicação bi­nária de validação: só podem ser válidas ou inválidas. Diante de pro­posições normativas, de modo semelhante ao que ocorre com as propo­sições assertivas, só podemos assumir uma posição de "sim" ou "não" -ou nos abster de opinar. Em comparação com isso, os valores fixam relações de preferência, que dizem que determinados bens são mais atraentes que outros; por isso podemos concordar mais ou menos com proposições de avaliação. Além do mais, a validação de dever das nor­mas tem o sentido absoluto de uma obrigação incondicional e univer­sal: aquilo que se deve também reclama para si ser bom para todos (quer dizer, para todos os destinatários). A atratividade dos valores tem o sentido relativo de uma avaliação de bens, elaborada ou adota­da nas culturas e nas formas de vida. Decisões graves de valor ou pre­ferências de uma ordem mais elevada dizem o que, considerado o todo, é bom para nós (ou para mim). Finalmente, diferentes normas que pretendem ter validade para o mesmo conjunto de destinatários não podem se contradizer mutuamente; elas têm de estar numa relação coerente, ou seja, têm de constituir um sistema. Por sua vez, diferentes valores concorrem entre si pela primazia; na medida em que encon­tram reconhecimento intersubjetivo dentro de uma cultura ou de uma forma de vida, eles constituem configurações flexíveis e tensas. Resu-

I O. Este reparo não se baseia (como no caso de O nora O'Neill, Constructions of Reason, Cambridge 1989, cap. 12, pp. 206ss.) na tese de uma primazia dos deveres sobre os direitos.

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mindo, as normas se diferenciam dos valores, primeiro por meio de suas relações com diferentes tipos de ação comandada por regras ou direcionadas para objetivos; segundo, pela codificação binária ou gra­dual de suas pretensões de validade; terceiro, por sua obrigatoriedade absoluta (ou relativa); e quarto, por meio dos critérios que deve preen­cher o conjunto dos sistemas de normas e de valores.

Ora, Rawls quer levar em conta a intuição deontológica que se exprime nessas diferenciações. Por isso, ao dar primazia ao primeiro princípio, em detrimento do segundo, ele precisa corrigir o nivela­mento da dimensão deontológica que aceitara primeiro - devido ao design da condição primitiva. Contudo, a partir da perspectiva da primeira pessoa, pela qual nós nos orientamos de acordo com nos­sos interesses e valores, não é possível fundamentar uma primazia absoluta das mesmas liberdades subjetivas de ação diante dos bens fundamentais regulados pelo segundo princípio. Esse ponto foi cla­ramente salientado por H. L. A. Hart11 em sua crítica. É interessante que Rawls enfrenta essa crítica apenas na medida em que inclui pos­teriormente entre seus bens fundamentais uma qualificação que lhes assegura uma relação com as liberdades fundamentais enquanto di­reitos fundamentais, a saber, ele só confere validade como bens fun­damentais aos bens sociais que são apropriados para os planos de vida e para o desenvolvimento da capacidade moral dos cidadãos como pes­soas livres e iguais12• Além do mais, Rawls diferencia entre bens funda­mentais que são constitutivos no sentido moral para a moldura ins­titucional da sociedade bem ordenada e os bens fundamentais res­tantes, na medida em que ele inclui no primeiro princípio a garantia do "justo valor" da liberdade13•

Contudo, essa determinação adicional estabelece tacitamente uma diferenciação deontológica entre direitos e bens que contradiz a clas­sificação de direitos e bens feita de início. Porque o justo valor de liber­dades iguais mede-se pelo preenchimento de condições efetivas para um exercício com igualdade de oportunidades dos direitos correspon­dentes- e desse modo apenas os direitos podem ser qualificados. Não

11. Cf. H. L. A. Hart, "Rawls on Liberty and its Priority". ln: N. Daniels (ed.), Reading Rawls, New York, 1975, 230ss.

12. Cf. W. Hinsch, Introdução a: Rawls (1992), 36ss. 13. J. Rawls, "Vorrang': ln: idem (1992), 178ss. e 196ss.

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apenas com referência aos direitos é que podemos diferenciar uma igualdade de competências de uma igualdade de situações efetivas de vida. Somente entre o fazer jus a determinados direitos, por um lado, e as oportunidades dadas para o uso desses direitos, por outro, pode surgir um desnível problemático a partir do ponto de vista da igualdade, ao passo que tal desnível não existe entre a efetiva disponibilidade de bens e o uso efetivo dos bens. Seria ou redundante ou carente de sentido falar no "justo valor" de bens repartidos com igualdade. A diferencia­ção entre igualdade de jure e igualdade de facto não encontra, por mo­tivos gramaticais, como diria Wittgenstein, aplicação aos "bens". Mas se, num segundo passo, a concepção dos bens fundamentais precisa ser corrigida, é o caso de se perguntar se o primeiro passo- o design de uma condição primitiva que obriga a essa concepção - foi sábio.

( 3) As reflexões anteriores mostram que, para as partes da condi­ção primitiva, a capacidade de tomar decisões racionais não é sufi­ciente para poder perceber os interesses prioritários de seus clientes e para entender direitos (no sentido dado por Dworkin) como trunfos, com valor superior ao das metas fixadas coletivamente. Por que então as partes são despidas de sua razão prática e envoltas no véu da ins­ciência? A intuição pela qual Rawls se deixa guiar é nítida: o papel do imperativo categórico é assumido por um procedimento aplicado in­tersubjetivamente por vários participantes, encarnado em condições de admissibilidade, como a da igualdade das partes, e em caracterís­ticas situacionais, como a do véu da insciência. É claro que eu acho que o ganho que poderia advir dessa virada intersubjetivista é nova­mente dissipado pela privação sistemática de informações. A minha terceira questão revela a perspectiva a partir da qual expus também as duas questões anteriores. Quero dizer que Rawls poderia evitar as di­ficuldades ligadas à construção de uma condição primitiva se opera­cionalizasse o ponto de vista moral de um modo diferente e liberasse de conotações substanciais o conceito de procedimento da razão prá­tica, ou seja, se desenvolvesse tal conceito de maneira rigorosamente estimativa.

Já o imperativo categórico supera o egocentrismo da regra de ouro. Essa regra de ouro, "o que não queres que te façam, não o faças tam­bém a outrem': requer um teste de generalização do ponto de vista de um indivíduo qualquer, enquanto o imperativo categórico pede que todos os possivelmente envolvidos devam poder querer uma máxima

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justa como lei geral. Mas enquanto aplicamos monologicamente esse exame mais pretensioso, restam perspectivas individuais isoladas, a partir das quais cada um de nós imagina privadamente o que todos poderiam querer. Isso é insatisfatório. O que de meu ponto de vista é igualmente bom para todos só faria parte cfctiva do interesse uniforme de cada um se, em cada uma das coisas que me parecem evidentes, se refletisse uma consciência transcendente, isto é, uma compreensão de mundo universalmente válida. Nas condições do moderno pluralismo social e ideológico, ninguém mais poderá partir desse pressuposto. Se quisermos salvar a intuição do princípio kantiano de universalização, poderemos reagir a esse fato do pluralismo de diferentes maneiras. Pela limitação da informação, Rawls ftxa as partes da condição pri­mitiva numa perspectiva comum e neutraliza assim de antemão, me­diante um artifício, a multiplicidade das perspectivas particulares de interpretação. A ética do discurso, pelo contrário, vê o ponto de vista moral como encarnado no procedimento de uma argumentação levada a efeito intersubjetivamente, que exorta os participantes a erguerem as barreiras de suas perspectivas de interpretação.

A ética do discurso apóia-se na intuição de que a aplicação do princípio de universalização bem entendido exige uma "assunção ideal de papéis", feita em conjunto. Contudo, ela interpreta essa idéia de­senvolvida por G. H. Mead com os meios de uma teoria pragmática da argumentação14•

Sob os pressupostos comunicacionais de um discurso não-coa­tivo, preocupado em inserir e conduzido entre participantes livres e iguais, cada um é exortado a assumir a perspectiva- e com isso a auto­compreensão e compreensão de mundo - de todos os outros; desse cruzamento de perspectivas constrói-se uma perspectiva em primeira pessoa do plural ("nossa") idealmente ampliada, a partir da qual todos podem testar em conjunto se querem fazer de uma norma discutível a

14. Cf. J. Habermas, Moralbewufitsein und kommunikatives Handeln, Frankfurt am Main 1983 [ ed. br.: Consciência moral e agir comunicativo, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989.]; idem, Erliiuterungen zur Diskursethik, Frankfurt am Main 1992; quan­to ao lugar da ética do discurso na discussão americana contemporânea, cf. S. Benhabib, "ln the Shadow of Aristotle and Hegel: Communicative Ethics and Current Controver­sies in Practical Philosophy", The Philosophical Forum Vol. XXI, inverno 1989/90, 1-31; e mais "Speciallssue: Universalism vs. Communitarianism"; Philosophy and Social Cri­ticism, 14, n. 3/4, 1988.

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base de sua práxis; isso precisa incluir uma crítica recíproca à adequa­ção das interpretações da situação e das carências. No caminho de abstrações empreendidas sucessivamente, pode revelar-se então o cerne de interesses passíveis de generalização15•

A situação muda quando desde o início o véu da insciência res­tringe o campo de visão das partes em condição primitiva a princí­pios, em torno dos quais se presume que cidadãos iguais e livres, sem contar sua autocompreensão ou compreensão de mundo divergentes, iriam todos unir-se. Com esse passo abstrativo inicial, Rawls assume um duplo ônus da prova. O véu da insciência precisa estender-se a todos os pontos de vista e interesses individuais que pudessem com­prometer um juízo imparcial; ao mesmo tempo, porém, ele pode es­tender-se apenas a teores normativos como esses, que desde o início, enquanto candidatos à aceitação comum de si mesmos como algo bom, por parte de cidadãos livres e iguais, podem abandonar a disputa. Essa segunda condição coloca a teoria diante de uma exigência que prati­camente não se pode cumprir; uma reflexão breve demonstra isso. Após a fundamentação dos princípios de justiça, o véu da insciência descer­ra-se passo a passo, nos planos do estabelecimento de uma constitui­ção, da simples legislação e da aplicação jurídica. Como as informa­ções que se acrescentam a partir daí precisam estar em harmonia com os princípios já selecionados durante a subtração de informações, não pode haver maus imprevistos. Se quisermos assegurar tal coisa, no entanto, precisamos construir minuciosamente, de forma consciente ou mesmo preventiva, todos os teores normativos que possam repre­sentar um potencial estimulador para a autocompreensão e compre­ensão de mundo de cidadãos livres e iguais. Em outras palavras, o ônus do processamento da informação, da qual o teórico exime as partes em sua condição primitiva, volta a incidir sobre ele mesmo! A impar­cialidade do juízo só estaria garantida na condição primitiva, se os conceitos normativos básicos usados para sua construção- quais se­jam o cidadão politicamente autónomo, a cooperação justa e honesta e a sociedade bem ordenada (e trata-se aqui de tais conceitos lidos sob o prisma de Rawls) -,resistissem a uma revisão em face de experiên­cias e aprendizados futuros.

15. Cf. W. R. Rehg, Insight and Solidarity. The Discourse Ethik of }ürgen Habermas, Berkeley, 1994.

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Se é tão pesado o ânus da prova ocasionado pela subtração de informações que se inflige com o véu da insciência às partes em con­dição primitiva, então é natural que, para se diminuir esse encargo, se operacionalize o ponto de vista moral de maneira distinta. Penso aqui no procedimento aberto de uma práxis argumentativa que acate as severas pressuposições do "uso público da razão" e que não descarte já de antemão o pluralismo das convicções e cosmovisões. Esse procedi­mento pode ser elucidado sem a recorrência aos conceitos substan­ciais básicos, que Rawls usa para construir a condição primitiva.

O fato do pluralismo e a idéia do consenso abrangente

Desde as preleções sobre Dewey, Rawls acentua o caráter político da justiça e da honestidade. Essa virada foi motivada por uma inquie­tação quanto ao fato do pluralismo social e sobretudo do pluralismo de visões de mundo. Com base no exemplo do "veil of ignorance", passamos a ter clareza sobre o ânus da prova que a teoria da justiça assume ao delinear os primeiros itinerários. Para a fundamentação dos dois princípios superiores, na condição primitiva as negociações são muito menos decisivas do que as instituições e conceitos funda­mentais que orientam a construção dessa mesma condição primitiva. Rawls coloca teores normativos no interior de procedimentos funda­dores, sobretudo os que ele vincula ao conceito de pessoa moral - o senso de honestidade e a capacitação a uma concepção própria do que seja bom. O conceito de pessoa moral, que suporta também o concei­to da cooperação justa e honesta de cidadãos politicamente autâno­mos, necessita portanto de uma fundamentação prévia. Além disso, é preciso demonstrar que essa concepção é neutra, do ponto de vista da visão de mundo, e permanece incontroversa mesmo depois de se ter suspendido o véu da insciência. Com isso é possível esclarecer o inte­resse de Rawls por uma concepção "política"- e não metafísica- de justiça. Suponho haver por trás dessa terminologia certa falta de cla­reza quanto ao caráter da necessidade de fundamentação; daí resulta, por sua vez, uma indecisão na pergunta sobre como se deve entender a reivindicação de validação da própria teoria. Eu gostaria ( 1) de inves­tigar se o consenso abrangente, do qual depende a teoria da justiça,

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desempenha um papel cognitivo ou meramente instrumental - se ele serve primeiramente à justificação posterior da teoria, ou se, sob a luz da teoria já justificada, serve ao esclarecimento de uma condição necessária de estabilidade social. A isso relaciona-se ainda (2) a per­gunta sobre em que sentido Rawls utiliza o predicado "racional": como predicado para a validade de mandamentos morais ou como predi­cado para a atitude refletida de tolerância esclarecida?

( 1) Para dar sustentação a idéias normativamente carregadas, Rawls remete-se ao método do assim chamado equilíbrio reflexivo. É pela via de uma construção racional posterior de instituições legiti­madas, e portanto presentes em uma sociedade democrática, que Rawls obtém tanto o conceito básico de pessoa moral quanto os demais con­ceitos básicos de cidadão politicamente autónomo, cooperação justa e honesta, sociedade ordenada etc. Alcança-se o equilíbrio reflexivo quando o filósofo se assegura de que os integrantes não podem mais rechaçar, nem com boas razões, as instituições assim elucidadas e re­construídas. O procedimento da reconstrução racional cumpre o cri­tério firmado por Scanlon de "not reasonable to reject': Certamente Rawls não quer limitar-se às convicções normativas básicas de uma determinada cultura política - e tampouco o Rawls de hoje, como supõe Rorty, tornou-se um contextualista. Como antes, ele certamente ainda reconstrói uma coluna mestra de noções intuitivas firmada na cultura política de uma sociedade contemporânea e em suas tradições democráticas. Se nessa cultura política subsistente- na norte-ameri­cana, por exemplo- já estão sedimentadas experiências com a institu­cionalização (aparentemente bem-sucedida) de princípios de justiça, a apropriação reconstrutiva pode chegar a bem mais que a mera ates­tação hermenêutica de um contexto tradicional contingente. Assim, o projeto de justiça elaborado sobre essa base ainda precisa ser testado sobre se pode ou não contar com aceitação em uma sociedade plura­lista. Como se comporta esse segundo passo em relação ao primeiro plano da fundamentação dos dois princípios superiores, tal como o consideramos até aqui? Trata-se realmente nesse passo seguinte de uma fundamentação?

Nos últimos capítulos de Uma teoria da justiça, Rawls já havia investigado se uma sociedade instituída segundo princípios de justiça poderia estabilizar-se por si mesma, se ela poderia, por exemplo, encon­trar por força própria os motivos funcionalmente necessários, à me-

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dida que socializasse seus cidadãos de forma correta16. Com vistas ao factum do pluralismo social e de cosmovisões, que só mais tarde pas­sou a ser levado a sério em suas reflexões, Rawls acredita ser preciso testar de forma semelhante se a concepção da justiça em geral, intro­duzida por via teórica, incide "sobre a arte do possível" e se ela, em tal medida, é "praticável"17• Antes de mais nada, é preciso que o conceito central de pessoa, sobre o qual a teoria se apóia, seja tão neutro que possa ser aceito a partir das perspectivas interpretativas de diferentes visões de mundo. Deve-se demonstrar, portanto, que a justiça enquanto honestidade pode compor a base de um "consenso abrangente". Irri­ta-me aí a suposição de Rawls de que tal prova de aceitabilidade seja de tipo semelhante ao da prova de consistência que ele mesmo, no primeiro plano, aplicara em face da possibilidade de auto-estabilização de uma sociedade bem-ordenada.

Essa paralelização metódica é irritante porque desta vez a prova não pode ser tirada internamente à teoria. O teste quanto à neutralida­de de visão de mundo dos conceitos sustentadores básicos segue ou­tras premissas que não aquelas de uma conferição hipotética da capa­cidade reprodutiva de uma sociedade já instituída segundo princípios de justiça. O próprio Rawls fala agora de "dois planos" da formação de teorias. Os princípios fundamentados no primeiro plano precisam ser submetidos publicamente à discussão no segundo plano, porque apenas aí se pode levar em conta o fato do pluralismo e tornar retroativo o corte abstrativo da condição primitiva. Diante do fórum do uso pú­blico da razão, a teoria em seu todo precisa ser exposta à crítica dos cidadãos; trata-se aí não mais de cidadãos fictícios de uma sociedade justa, sobre os quais se podem emitir enunciados no interior da teoria, mas sim de cidadãos de carne e osso; a teoria precisa manter em aber­to o término de um teste como esse. Rawls também tem em vista dis­cursos reais com final em aberto: "What if it turns out that the principies of justice as fairness cannot gain the support of reasonable doctrines, so that the case for stability fails? ( ... ) We should have to see whether acceptable changes in the principies of justice would achieve stability" 18•

16. Cf. }. Rawls, 1975, pp. 539ss. 17. }. Rawls, "Der Bereich des Politischen und der Gedanke eines übergreifenden

Konsenses". ln: J. Rawls, 1992, p. 350. 18. J. Rawls, 1993, pp. 65s.

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É evidente que na melhor das hipóteses o filósofo pode tentar anteci­par no intelecto o sucedimento de discursos reais, tal como eles prova­velmente ocorreriam sob as condições de uma sociedade pluralista. Mas uma antecipação como essa, menos ou mais realista, não se deixa incorporar à teoria da mesma maneira que a dedução de possibili­dades de auto-estabilização a partir de premissas subjacentes a uma sociedade justa. Pois aí os próprios cidadãos discutem as premissas desenvolvidas pelas partes da condição primitiva.

Esse paralelo extraviador não causaria maiores danos se não dis­torcesse a imagem do consenso abrangente que os princípios de jus­tiça devem ser capazes de encontrar. Pelo fato de Rawls colocar em primeiro plano a pergunta sobre a estabilidade, só se expressa no "overlapping consensus" a contribuição funcional que a teoria da jus­tiça pode dar à institucionalização pacífica da cooperação social; e aí já tem que estar pressuposto o valor intrínseco de uma teoria justifi­cada. A partir dessa visão funcionalista, a pergunta sobre se é possível a teoria contar com a concordância pública- ou seja, com a concor­dância de um fórum do uso público da razão sob as perspectivas de diversas visões de mundo- perderia um sentido epistêmico e tocante à própria teoria. O consenso abrangente seria assim apenas um sin­toma de utilidade e não mais uma confirmação de que a teoria é cor­reta; ele perderia seu interesse sob o ponto de vista da aceitabilidade racional e portanto também da validade, e o manteria apenas sob o ponto de vista da aceitação, ou seja, do asseguramento da estabili­dade social. Se é correta minha compreensão de Rawls, no entanto, ele não pretende distinguir dessa maneira as questões sobre a funda­mentação e sobre a estabilidade. A medida que chama de "política" sua concepção de justiça, parece ter muito mais a intenção de afastar a diferenciação entre aceitabilidade fundamentada e aceitação factual: "O objetivo da justiça enquanto honestidade como o de uma con­cepção política não é nem metafísico nem epistemológico. Ela não se revela como uma concepção de justiça que seja verdadeira, mas que serve como base de uma convenção informada e solícita" 19•

Parece-me que Rawls precisaria diferenciar de forma mais exata aceitabilidade de aceitação. Uma compreensão meramente instru-

19. J. Rawls, "Gerechtigkeit ais FairneB: politisch, nicht metaphysisch': ln: J. Rawls, 1992, pp. 263s.

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mental da teoria já fracassa pelo fato de os cidadãos terem primeiro de se convencer da concepção de justiça, antes que se possa firmar tal consenso. Essa última não deve ser erradamente "política", não deve simplesmente conduzir a um modus vivendi. A própria teoria precisa fornecer premissas "que nós e os outros reconhecemos como racio­nais quando temos o objetivo de alcançar uma convenção praticável sobre os pontos fundamentais da justiça política"20• Ao excluir uma interpretação funcionalista da justiça enquanto honestidade, no en­tanto, Rawls precisa acatar uma relação epistêmica qualquer entre a validade de sua teoria e a perspectiva de uma comprovação de sua neutralidade de visão de mundo em discursos públicos. O efeito so­cial estabilizador de um consenso abrangente explica-se então a par­tir da atestação cognitiva da suposição de que a concepção de justiça enquanto honestidade comporte-se de maneira neutra em face de "doutrinas circunscritivas". Não penso que Rawls se apóie em premis­sas que o tenham impedido de chegar a essas conclusões; noto, ape­nas, que ele hesita em expressá-las, porque associa à designação "po­lítico" uma restrição segundo a qual a teoria da justiça não poderia estar munida de um anseio epistêmico, da mesma forma que seu efeito prático esperado não poderia tornar-se dependente da aceitabilidade racional de seus enunciados. Surge-nos, portanto, a ocasião para per­guntar por que Rawls não considera sua teoria como apta à verifica­ção e em que sentido ele se utiliza aqui do predicado "racional" ao invés de dizer "verdadeiro".

(2) Uma teoria da verdade não poder ser verdadeira ou falsa, só pode assumir, em uma interpretação atenuada, o sentido comprome­tedor de que enunciados normativos não retratam nenhuma ordem de fatos morais que dependa de nós. Em uma interpretação bastante severa, essa tese assume o sentido valorativamente cético de que por trás do anseio de validação de enunciados normativos esconde-se algo puramente subjetivo- sentimentos, desejos ou opções expressos, do ponto de vista gramatical, de uma maneira desencaminhadora. Para Rawls, no entanto, realismo valorativo e ceticismo valorativo são igual­mente aceitáveis. Para os enunciados normativos - e para a teoria da justiça como um todo-, a intenção de Rawls é assegurar certa obriga­toriedade apoiada em um reconhecimento intersubjetivo fundamen-

20. J. Rawls, "Der Bereich des Politischen", in ibidem, 1992, p. 301.

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tado, sem atribuir-lhes no entanto um sentido epistêmico. Por isso ele introduz o predicado "racionar: como conceito prático oposto a "ver­dadeiro". A dificuldade consiste em declarar com precisão em que sen­tido uma coisa é "conceito oposto" à outra. Para tanto surgem duas interpretações alternativas. Ou entendemos "racional", no sentido da razão prática, como sinónimo de "moralmente verdadeiro': isto é, como um conceito validativo análogo à verdade, que se diferencia da verda­de proposicional, embora se situe em um mesmo plano que ela; uma linha de argumentação (a) parece levar a isso. Ou então entendemos "racional" como algo próximo a "refletido" no trato com opiniões dis­cutíveis, cuja verdade fica temporariamente adiada; nesse caso, "racio­nal" é utilizado como um predicado de nível mais elevado, que se refe­re antes ao trato com "reasonable disagreements", ou seja, com a cons­ciência falibilista e a atitude civil de pessoas em particular, do que à validação das declarações dessas mesmas pessoas. Parece ser este (b) o tipo de leitura que Rawls favorece.

(a) De início, Rawls introduz o "racional" como qualidade de pessoas morais. São racionais as pessoas que têm um senso de justi­ça, ou seja, que estão prontas a observar condições justas e honestas de cooperação, e que são capazes para tanto; mas também pessoas que têm consciência da falibilidade da capacidade cognitiva humana e que- reconhecendo esse "ónus da razão"- estão dispostas a jus­tificar publicamente sua concepção de justiça política. Diante disso, as pessoas só agem "racionalmente" à medida que, sob a luz de sua concepção do que seja bom, estejam preocupadas com obter vanta­gens de acordo com a prudência21 • O que significa "ser racional", por­tanto, pode ser elucidado com base nas qualidades de uma pessoa moral. Todavia, o próprio projeto de pessoa já pressupõe o conceito de razão prática.

Por fim, Rawls esclarece o significado de razão prática com auxí­lio de duas dimensões; ele se remete, por um lado, à dimensão deon­tológica da validação vinculatória de normas (deixo isso de lado aqui,

21. "What rational agents lack is the particular form of moral sensibility that underlies the desire to engage in fair cooperation as such, and so on terms that others as equals might reasonably be expected to endorse" [O que falta aos agentes racionais é a forma particular de sensibilidade moral que fundamenta o desejo de se engajar em uma cooperação justa e honesta como tal, e isso de modo que se possa esperar racio­nalmente dos outros, como iguais, que eles apóiem tal coisa! J. Rawls, 1993, p. 51.

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por não considerar tal coisa problemática) e, por outro lado, à di­mensão pragmática da condição pública em que se dá a fundamenta­ção de normas (o que desperta especial interesse no contexto de nossa reflexão). A condição pública de seu uso, por assim dizer, está inscrita na razão. "Pública" é a perspectiva comum a partir da qual os cidadãos se convencem reciprocamente do que seja justo ou injusto, com a força do melhor argumento. É tão-somente essa perspectiva do uso pú­blico da razão, partilhada por todos, que confere objetividade às con­vicções morais. Rawls denomina "objetivos" os enunciados normativos válidos; e a objetividade ele fundamenta com base em procedimentos, ou seja, com referência a um uso público da razão que satisfaz certas condições contrafactuais: "Politicai convictions ( which are also moral convictions) are objective- actually found on an order of reasons - if reasonable and rational persons, who are sufficiently intelligent and conscientious in exercising their powers of practical reason ... would eventually endorse those convictions ... provided that these persons know the relevant facts and have sufficiently surveyed the grounds that bear on the matter under conditions favorable to due reflection"22• Embora Rawls acrescente, a essa altura, que razões só podem ser especificadas como boas razões por meio de um progra­ma de justiça já reconhecido, esse programa, por sua vez, tem que contar com a concordância dos envolvidos sob as mesmas condições ideais23• Por isso, suponho que precisamos entender Rawls de modo que, também segundo a concepção dele, o procedimento do uso pú­blico da razão continue sendo para os enunciados normativos a última instância de comprovação.

À luz dessa reflexão, seria cabível dizer que o predicado "racional" refere-se ao cumprimento de um anseio de validação atendido por via discursiva. Por analogia a um programa de verdade não-semântico, pu­rificado de noções de correspondência, poderíamos entender "racional" como um predicado para a validade de enunciados normativos24• Evi­dentemente, Rawls não pretende chegar a tal conclusão - que a meu ver é correta; do contrário, ele teria de evitar o irritante uso lingüístico segundo o qual imagens de mundo não precisam ser "verdadeiras': mes-

22. J. Rawls, 1993, p. ll9. 23. Cf. idem, p. 137. 24. Cf. minhas reflexões in: Habermas, 1991, pp. 125ss.

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mo que sejam "racionais"- e vice-versa. O problema não consiste em que Rawls recuse um realismo valorativo platonizante e que prive, por­tanto, os enunciados normativos de um predicado de verdade entendi­do semanticamente, mas sim em que ele atribua tal predicado de ver­dade a imagens de mundo-"comprehensive doctrines': Com isso ele se furta à possibilidade de confiar à expressão "racional" as conotações epistêmicas que ele mesmo precisa preservar como atributo de sua pró­pria concepção de justiça, caso essa deva poder reivindicar obrigatorie­dade normativa, seja em que sentido for.

(h) Segundo a opinião de Rawls, doutrinas metafísicas e interpre­tações religiosas do mundo podem ser verdadeiras ou falsas. Por con­seguinte, uma concepção política de justiça só poderia ser verdadeira se fosse não apenas compatível com doutrinas como essas, mas tam­bém dedutível de uma doutrina verdadeira. Se é este o caso, isso certa­mente não pode ser constatado a partir da perspectiva da filosofia polí­tica, que é neutra no que concerne a uma visão de mundo. Dessa pers­pectiva, os anseios de verdade de todas as imagens de mundo racionais contam da mesma forma, sendo que se entendem por "racionais" as imagens de mundo concorrentes entre si, sob a consciência reflexiva de que o próprio anseio de verdade só poderá prevalecer a longo prazo em discursos públicos se apresentar as melhores razões. "Reasonable comprehensive doctrines" distinguem-se afinal por meio do reconheci­mento dos "burdens ofproof", de modo que comunidades de fé con­correntes possam aceitar - "for the time being" - um "reasonable disagreement" como fundamento de sua convivência pacífica.

Como a controvérsia sobre verdades metafísicas e religiosas per­manece aberta sob as condições do pluralismo contínuo, é apenas a "racionalidade" dessa consciência reflexiva que pode por ora transfe­rir-se como predicado de validação, passando de imagens de mundo racionais a uma concepção política de justiça compatível com todas as doutrinas desse mesmo tipo racional. Embora uma concepção racio­nal mantenha a referência a um anseio de verdade postergado de acor­do com a idéia, essa mesma concepção não pode ter a certeza de que haja uma doutrina entre as doutrinas de que ela mesma possa derivar­se que seja também a verdadeira. Ela se alimenta tão-somente da "ra­zão" de uma tolerância como a de Lessing em face de imagens de mun­do não racionais. O que nos resta então, como filhos deste mundo, é um ato de fé na razão- o ato de "uma fé racional na exeqüibilidade

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de um estado constitucional justo"25• Esse modo de ver as coisas é muito simpático; mas como conciliá-lo exatamente com as razões pelas quais Rawls e eu aceitamos uma primazia do justo sobre o bom?

Questões de justiça são acessíveis a uma decisão fundada- fun­dada no sentido de uma aceitabilidade racional-, porque elas, a partir de uma perspectiva descingida de modo ideal, referem-se ao que cor­responde equanimemente aos interesses de todos. Em face disso, ques­tões "éticas" em sentido estrito não admitem um julgamento que seja obrigatório para todas as pessoas morais, e isso porque questões como tais se referem, sob a perspectiva da primeira pessoa, ao que no todo e a longo prazo é bom para mim ou para nós enquanto uma determi­nada coletividade - mesmo que tal coisa não seja igualmente boa para todos. Imagens de mundo metafisicas e religiosas estão ao menos impregnadas de respostas a perguntas éticas; pois nelas, de maneira exemplar, articulam-se identidades e esboços de vida. Portanto, ima­gens de mundo medem-se antes pela autenticidade dos estilos de vida que as marcam do que pela verdade dos enunciados que elas contêm. É justamente por serem "abrangentes" no sentido de que interpretam o mundo como um todo que não se podem entender as imagens de mundo como uma quantidade ordenada de enunciados descritivos; elas não se diluem em sentenças aptas à verificação e tampouco cons­tituem um sistema simbólico que seja verdadeiro ou falso como tal. De qualquer maneira, ele se apresenta a nós sob as condições de um pensamento pós-metafisico, sob as quais se deve fundamentar a jus­tiça enquanto honestidade.

Mas então não é possível tornar a validade de uma concepção de justiça dependente da verdade de uma imagem de mundo "racional': seja ela qual for. Sob essa premissa é muito mais sensato analisar os diferentes anseios de validação que vinculamos a enunciados descri­tivos, avaliativos e normativos (de diferentes tipos) independente­mente daquela síndrome característica a reivindicações de validação disparadas de maneira obscura nas interpretações religiosas e meta­físicas do mundo26•

25. J. Rawls, "Der Gedanke eines übergreifenden Konsenses". ln: J. Rawls, 1992, p. 332.

26. Cf. J. Habermas, "Motive nachmetaphysischen Denkens". ln: J. Habermas, Nachmetaphysiches Denken, Frankfurt am Main, 1988, pp. 35-60 led. br.: Pensamento pós-metafísico, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990 ].

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Por que Rawls, como que em bloco, considera aptas à verificação as imagens de mundo que estabilizem identidades? Uma possível ra­zão poderia ser a convicção de que não pode haver uma moral profa­na pairando livremente, por assim dizer, ou que convicções morais precisam estar alojadas em doutrinas metafísicas ou religiosas. Em todo caso isso estaria de acordo com a maneira como Rawls se posi­ciona diante do problema de um consenso abrangente: o modelo que tem diante de si é o da institucionalização da liberdade de crença e cons­ciência que, por via política, pôs fim às guerras civis de caráter confes­sional, na Era Moderna. Mas será que o combate religioso teria chega­do ao fim no sentido de um princípio da tolerância, se o direito à li­berdade de crença e consciência - o cerne dos Direitos Humanos, segundo Jellinek- não tivesse podido reportar-se, e com boas razões, a uma validação moral para além da religião e da metafísica?

Autonomia privada e pública

As objeções que fiz no primeiro item à construção da condição primitiva e, no segundo, à mistura de questões de validação e aceita­ção apontam na mesma direção. Ao circunscrever por meio da deli­mitação racional de situações os partidos que tomam decisões racio­nais, Rawls continua sujeito a suposições básicas fortes e substanciais; e ao redispor uma teoria da justiça de orientação universalista por meio de um consenso abrangente, de tal modo que ela se restrinja a ques­tionamentos sobre a estabilidade política, Rawls diminui a pretensão epistêmica dessa mesma teoria. As duas coisas acontecem à custa de um enfoque procedimental assumido de forma conseqüente. Em vez disso, Rawls poderia ter-se livrado de forma mais elegante do ônus da prova que assumiu com seu conceito de pessoa moral, severo e pre­tensamente neutro em relação a visões de mundo: para tanto, precisa­ria desenvolver os conceitos e suposições básicos substanciais a partir dos procedimentos ligados ao uso público da razão.

O ponto de vista moral já integra a constituição socioontológica da práxis argumentativa pública, e mais especificamente nas comple­xas relações de reconhecimento às quais os envolvidos precisam inte­grar-se quando se dá a formação discursiva de opinião e vontade acerca

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de questões práticas (no sentido de uma coação trascendental ate­nuada). Rawls crê que uma teoria da justiça não poderia ser"suficien­temente estruturada" somente por uma alegação procedimental como essa. Já que prezo em minha reflexão a divisão de trabalho entre teoria moral e teoria da ação, não considero esse reparo decisivo; a estrutu­ração conceituai dos contextos acionais a que se referem as questões da justiça política não é tarefa de uma teoria normativa. Com o con­teúdo de conflitos carentes de solução impõe-se a nós toda uma rede de conceitos básicos da teoria da ação para interações regradas nor­mativamente- uma rede em que têm lugar conceitos como pessoa e relação interpessoal, agente e ação, comportamento divergente da nor­ma ou conforme a ela, imputabilidade e autonomia, e mesmo senti­mentos morais subjetivamente estruturados. Esses conceitos neces­sitam de uma análise prévia. E, então, quando damos ao conceito da razão prática a versão procedimental que o próprio Rawls sugere com seu conceito de uso público da razão, podemos dizer que válidos são justamente os princípios que, sob as condições discursivas, poderiam merecer reconhecimento intersubjetivo isento de coações. Há então uma questão a mais, que se deve responder, a propósito, de forma amplamente empírica, sobre quando é que os princípios válidos tam­bém asseguram estabilidade política sob as condições do pluralismo moderno de visões de mundo. A seguir, será meu interesse executar o enfoque procedimental tão-somente com vistas a uma conclusão que diz respeito à elucidação do estado democrático de direito.

Os liberais acentuaram as "liberdades dos modernos", em pri­meira linha a liberdade de crença e consciência, bem como a defesa da vida, da liberdade e propriedade pessoal, ou seja, o cerne dos direitos civis subjetivos; em face disso, o republicanismo defendeu as "liber­dades dos antigos': quais sejam os direitos políticos de participação e comunicação que possibilitam a práxis autodeterminante dos cida­dãos. Rousseau e Kant tinham a ambição de derivar os dois elementos de uma mesma raiz, ambos como primordiais: nem se podem sim­plesmente abafar os direitos básicos liberais da práxis autodetermina­dora como sendo restrições externas, nem se pode instrumentalizá­los em prol dessas mesmas restrições. Também Rawls segue essa intui­ção; entretanto, da conformação de sua teoria em dois níveis resulta uma vantagem dos direitos fundamentais liberais que chega de certa maneira a obscurecer o processo democrático.

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Rawls parte certamente da idéia da autonomia política e retrata esta última no plano da condição primitiva; ela está representada na combinação entre as partes que decidem por via racional e as condi­ções delimitativas garantidoras da imparcialidade do juízo. Essa idéia, porém, só chega de maneira seletiva à validação no plano do proces­so democrático da formação política da vontade de cidadãos livres e iguais, embora ela mesma provenha daí. O tipo de autonomia polí­tica que cabe a uma vida virtual na condição primitiva, ou seja, no primeiro estágio da formação teórica, não pode perpetuar-se no co­ração da sociedade constituída juridicamente. Os cidadãos de Rawls, afinal, quanto mais se eleva o véu da insciência e quanto mais eles mesmos assumem uma figura real de carne e osso, tanto mais pro­fundamente encontram -se enredados na hierarquia de uma ordem já institucionalizada, passo a passo, sobre suas cabeças. Assim, a teoria priva os cidadãos de muitos dos discernimentos que eles, a cada gera­ção, teriam de reconquistar.

A partir da visão da "teoria da justiça" o ato da fundação do estado democrático de direito não tem que, e nem pode, ser repetido sob as constituições institucionais de uma sociedade justa já instituída, as­sim como o processo da concretização dos direitos não tem de, e nem pode, tornar-se permanente. Os cidadãos, como exigiriam no entan­to as condições históricas que se alteram, não podem experimentar esse processo como um processo aberto, interminado. Na vida real de sua sociedade, eles não podem inflamar o cerne radicalmente de­mocrático que incandesce na condição primitiva, pois a partir da vi­são deles todos os discursos essenciais de legitimação já terão ocor­rido no interior da teoria; e os resultados das discussões teóricas, eles já os encontram sedimentados na constituição. Pelo fato de os cida­dãos não poderem entender a constituição como projeto, o uso pú­blico da razão não tem o sentido de um exercício atual de autonomia política, mas serve tão-somente à manutenção pacífica da estabilida­de política. Essa maneira de ler certamente não resgata a intenção de Rawls27; revela no entanto, se tenho razão, uma de suas conseqüên-

27. Cf. as Tanner Lectures de Rawls, em que se lê no final do parágrafo VII: "O pensamento encaminha-se para a integração de um procedimento efetivo à estrutura básica da sociedade capaz de refletir a representação justa e honesta das pessoas, a qual se conquista por meio da condição primitiva': Rawls, 1992, p. 203.

84 A INCLUSÃO DO OUTRO

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das indesejadas. Isso se mostra, por exemplo, no limite rígido entre a identidade política e a identidade não-pública dos cidadãos. De acordo com Rawls, esse limite é traçado por direitos fundamentais liberais que delimitam de antemão a autolegislação e, com isso, a esfera do que é político, ou seja, sobretudo da formação política da vontade.

Rawls usa a expressão "político" em sentido triplo. Até aqui co­nhecemos o significado teórico específico: uma concepção de justiça é política e não metafísica quando é neutra em relação a visões de mun­do. Mais adiante, Rawls usa a expressão "político" como de costume para a classificação de assuntos de interesse público, de modo que a filosofia política se restringe aí à justificação do contexto institucional e da estrutura básica de uma sociedade. Finalmente, os dois significa­dos estabelecem uma ligação interessante quando se fala de "valores políticos': Nesse terceiro significado, "o político" forma uma reserva tanto para convicções que os cidadãos têm em comum como para os pontos de vista da delimitação regional de um campo objetivo. Rawls - nesse ponto quase um neokantiano como Max Weber - trata a esfera política de valores, que nas sociedades modernas se destaca de outras esferas culturais, como algo dado. Pois é só com a referência a valores políticos, sejam quais forem, que ele pode cindir a pessoa mo­ral em uma identidade pública do cidadão e em uma identidade não­pública da pessoa em particular, determinada por uma respectiva con­cepção própria do que seja bom. Essas duas identidades formam assim os pontos de referência para duas esferas, das quais uma é defendida pelos direitos políticos de participação e comunicação e a outra, por direitos liberais à liberdade. E nisso tem primazia a defesa legal básica da esfera civil, ao passo que "as liberdades políticas" continuam tendo "consideravelmente um papel instrumental de defesa das demais li­berdades"28. Com referência à esfera política de valores exclui-se por­tanto uma esfera de liberdade anterior à política, eximida da interven­ção por parte da autolegislação democrática.

Contudo, um estabelecimento de limites como esse entre auto­nomia privada e pública, firmado a priori, contradiz não apenas a ins­tituição republicana segundo a qual a soberania dos povos e os direi­tos humanos derivam da mesma raiz. Ela contradiz também a expe­riência histórica, em especial a circunstância de que os estabelecimen-

28. J. Rawls, "Der Vorrang der Grundfreiheiten': ln: J. Rawls, 1992, p. 169.

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tos de limites entre esfera privada e pública, historicamente variá­veis, sempre foram problemáticos sob pontos de vista normativos29•

Pode-se ler também, na evolução do estado social, que os limites entre a autonomia pública e privada dos cidadãos estão em proces­so, e que tais estabelecimentos de limites para a formação política da vontade dos cidadãos ficam disponíveis quando os cidadãos devem ter a possibilidade de reclamar o "valor justo e honesto" de suas li­berdades subjetivas em face da justiça e da legislação.

Uma teoria da justiça poderá dar conta dessa circunstância se fi­zer a delimitação do político sob outro aspecto, mencionado por Rawls apenas de passagem - o da regulamentação jurídica. É afinal com o instrumento do direito positivo e coercivo que se regulamenta de maneira legítima o convívio político de uma comunidade política30•

A questão fundamental é então: que direitos pessoas livres e iguais precisam garantir umas às outras quando querem regular seu convívio com os instrumentos do direito positivo e coercivo?

Segundo a definição kantiana da legalidade, o direito coercivo es­tende-se apenas às relações exteriores entre pessoas e está endereçado à liberdade de arbítrio de sujeitos que precisam orientar-se tão-so­mente pelas respectivas concepções do que seja bom. O direito mo­derno, por isso, constitui o status da pessoa juridicamente apta através das liberdades de ação subjetivas que se podem demandar juridica­mente e que se podem usar conforme as preferências de cada um. Como, porém, uma ordem legal legítima também precisa poder ser seguida por razões morais, a legítima situação das pessoas em parti­cular juridicamente aptas é determinada pelo direito a liberdades de ação subjetivas iguai?1• Como direito positivo ou escrito, esse meio requisita, por outro lado, o papel de um legislador político, de modo que a legitimidade da legislação seja elucidada a partir de um processo democrático que garanta a autonomia política dos cidadãos. Os cida­dãos são politicamente autônomos tão-somente quando podem com­preender-se em conjunto como autores das leis às quais se submetem como destinatários.

29. Cf. S. Benhabib, "Models of Public Space".In: S. Benhabib, Situating the Self. Cambridge, 1992, pp. 89-120.

30. Cf. ). Rawls, 1993, p. 215. 31. Esse princípio jurídico de Kant retorna no primeiro princípio de Rawls.

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A relação dialética entre autonomia privada e pública só se torna clara por meio da possibilidade de institucionalização do status de um cidadão como esse, democrático e dotado de competências para o es­tabelecimento do Direito, e isso somente com o auxílio do direito coer­civo. No entanto, porque esse direito se direciona a pessoas que, sem direitos civis subjetivos, não podem assumir de forma alguma o status de pessoas juridicamente aptas, as autonomias privada e pública dos cidadãos pressupõem-se reciprocamente. Como já mencionamos, os dois elementos já estão entrelaçados no conceito do direito positivo e coercivo: não haverá direito algum, se não houver liberdades subje­tivas de ação que possam ser juridicamente demandadas e que garan­tam a autonomia privada de pessoas em particular juridicamente aptas; e tampouco haverá direito legítimo, se não houver o estabelecimento comum e democrático do Direito por parte de cidadãos legitimados para participar desse processo como cidadãos livres e iguais. Quando esclarecemos de tal maneira o projeto do Direito, é fácil notar que a substância normativa dos direitos à liberdade já está contida no ins­trumento que é ao mesmo tempo necessário à institucionalização jurí­dica do uso público da razão por parte de cidadãos soberanos. O objeto central da análise a seguir é formado então pelos pressupostos da co­municação e pelos processos de uma formação discursiva da opinião e da vontade, em que o uso público da razão se manifesta32•

Em comparação com a teoria da justiça de Rawls, uma teoria da moral e do direito como essa, voltada aos procedimentos, é ao mesmo tempo mais modesta e menos modesta. Ela é mais modesta, porque se restringe aos aspectos procedimentais do uso público da razão e por­que desenvolve o sistema dos direitos a partir da idéia de sua insti­tucionalização legal. Ela pode deixar mais perguntas abertas, porque confia mais no processo de uma formação racional da opinião e da vontade. Em Rawls, os pesos são divididos de outra forma: enquanto se reserva à filosofia a precedência para desenvolver a idéia potencial­mente consensual de uma sociedade justa, os cidadãos utilizam essa idéia como base a partir da qual julgam as instituições e os políticos ora subsistentes. Em face disso, sugiro que a filosofia se restrinja ao esclarecimento do processo democrático e do ponto de vista moral, à

32. Sobre a concatenação interna entre estado de direito e democracia, v. neste volume, pp. 285-297.

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análise das condições para discursos e negociações racionais. Com esse papel, a filosofia não procede de maneira construtora, mas sim reconstrutiva. Respostas substanciais que é preciso encontrar aqui e agora, ela as deixará por conta do engajamento menos ou mais escla­recido dos envolvidos, o que não exclui, porém, que também os filó­sofos - no papel de intelectuais, não de especialistas - participem da controvérsia pública.

Rawls insiste em uma modéstia de outra natureza. Ele também pre­tende transferir para as ocupações da filosofia o "method of avoidance" [método de evitação] que deve conduzir a um consenso abrangente nas questões da justiça politica. A filosofia politica deve desonerar-se tanto quanto possível de questões especializadas controversas, à me­dida que ela mesma se especialize. Essa estratégia de evitação pode conduzir, como vimos nesse exemplo grandioso, a uma teoria espanto­samente fechada em si mesma. Mas mesmo Rawls não pode desen­volver sua teoria de maneira tão "desprendida" quanto gostaria. Seu "construtivismo político': como vimos, envolve-o nolens volens na con­trovérsia acerca dos projetos de racionalidade e verdade. Também seu projeto de pessoa ultrapassa os limites da filosofia política. O deli­neamento inicial do itinerário da teoria ocasionam também muitas opções em debates duradouros e ainda em curso, no âmbito de nossa disciplina. Segundo me parece, é o próprio objeto da discussão que torna necessária e às vezes frutífera essa prática imodesta de se aven­turar como diletante p01: áreas afins.

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3

"Racional" versus "verdadeiro"- ou a moral das imagens de mundo*)

John Rawls reivindica para sua idéia de "justiça como honestidade" a condição de uma concepção "vaga": ela se mo, .veria exclusivamente no âmbito do que é político e deixaria a filosofia "tal como é~: O fim e a exeqüibilidade dessa estra­tégia de evitação dependem, naturalmente, do que se enten­de como "político': Em primeira linha, Rawls usa a expressão para o campo objetal de uma teoria política que se refere ao âmbito institucional e à estrutura básica de uma sociedade (moderna). Ora, sempre se pode discutir sobre a escolha mais ou menos convencional de conceitos teóricos fundamentais; mas tão logo uma teoria se mostre útil, essas discussões per­dem seu sentido. Outro uso menos trivial da expressão -"político" por oposição a "metafísico"- por certo ocasiona controvérsias das quais não é tão fácil se livrar.

Rawls usa "político" por oposição a "metafísico" para caracterizar concepções de justiça que satisfazem uma exi­gência básica do liberalismo, qual seja: manter-se neutro em

* Tradução: Paulo Astor Soethe. 1. Agradeço a Rainer Forst, Thomas McCarthy e Lutz Wingert por

suas críticas instrutivas.

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face de imagens de mundo ou comprehensive doctrines [doutrinas cir­cunscritivas] concorrentes. Rawls associa à expressão "político" uma interpretação muito particular de neutralidade: "It means that we must distinguish between how a politicai conception is presented and its being part, or derivable within, a comprehensive doctrine"2 • O tipo de neutralidade caracterizado pela natureza "política" da "justiça como honestidade" pode ser elucidado pelo fato de que se pode apresentar essa concepção como sendo "vaga': O que se tem em mente com esse status, Rawls explica-o com uma das assunções mais notáveis de sua teoria: "I assume ali citizens to affirm a comprehensive doctrine to which the politicai conception they accept is in some way related. But a distinguishing feature of a politicai conception is that it is ... ex­pounded apart from, or without reference to, any such wider back­ground ... The politicai conception is a module ... that fits into and can be supported by various reasonable comprehensive doctrines that endure in the society regulated by it" (PL, p. 12)3•

Nessa segunda acepção, a expressão "político" não se refere a uma matéria determinada, mas sim a um status epistêmico particular ao qual aspiram as concepções políticas de justiça: elas devem se integrar como partes coerentes a diversas imagens de mundo. Muito embora as concepções políticas de justiça possam ser apresentadas indepen­dentemente de contextos ligados a visões de mundo em particular, e mesmo "esclarecidas" dessa forma, ou seja: muito embora possam ser introduzidas de maneira plausível, elas só podem ser fundamentadas em uma doutrina circunscritiva. Também o liberalismo político se arroga um status como esse. E como ele precisa ser explicado no âm­bito dessa teoria, a expressão "vago" tem aqui uma dupla referência. De um lado, designa uma condição necessária de todas as concepções

2. ["Isso quer dizer que precisamos distinguir entre, de um lado, a maneira pela qual uma concepção política é apresentada e, de outro, sua parte existente, ou, o que se pode derivar nesse âmbito, uma doutrina circunscritiva"l Cf. J. Rawls. Politicai Liberalism. New York, 1993, p. 12 (doravante cit. como PL) [ ed. br.: Rawls, Liberalismo político, São Paulo, Atica, 20001.

3. ["Aceito que todos os cidadãos afirmem uma doutrina compreensiva, com a qual a concepção política que eles aceitam está de certo modo relacionada. Mas uma característica distintiva da concepção política é que ela é ... interpretada separada de, ou sem referência a, qualquer circunstância mais ampla ... A concepção política é um módulo ... que cabe em e pode ser apoiada por várias doutrinas racionais compreensi­vas que persistem na sociedade que por ela se regula" 1.

90 A INCLUSÃO DO OUTRO

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de justiça que se possam cogitar como candidatas à inclusão em um "consenso abrangente': De outro lado, o predicado "vago" deve apli­car-se à própria teoria que o explica: "justiça como honestidade" é uma das candidatas mais promissoras. Esse uso auto-referencial de "vago" pode ser entendido como anseio político. Rawls espera que, sob as condições de um "equilíbrio reflexivo ilimitado"\ a própria teoria ofe­reça um fundamento sobre o qual os cidadãos da sociedade norte-ame­ricana (e mesmo de toda e qualquer sociedade "moderna") possam al­mejar um consenso político fundamentaL

Menos plausível é que Rawls ainda onere o uso auto-reflexivo da expressão "vago" com outro anseio, teórico. Ele parece supor que uma teoria vaga no campo do que é político assuma uma mesma posição no campo da filosofia e contorne assim todas as questões controver­sas da metafísica- "leaving philosophy as it is" [deixando a filosofia como ela é]. Não é de se esperar que Rawls possa elucidar o status epis­têmico de uma concepção vaga de justiça sem que precise tomar po­sição em relação a questões filosóficas, que talvez nem se incluam na categoria do que é "metafísico", mas que certamente ultrapassam a esfera do "político".

A expressão "metafísico", na verdade, ganha um sentido próprio a partir da oposição a "político': Sociedades modernas, por causa de seu pluralismo religioso e cultural, dependem de um consenso abrangente sobre questões relacionadas à justiça política, e neutro em relação a visões de mundo em particular. Sem dúvida, mesmo uma teoria que pretenda apenas apoiar tal consenso tem de ser "política e não meta­física': nesse sentido. Disso ainda não resulta, de modo algum, que a própria teoria política possa mover-se "por completo no campo do que é político" (R, p. 133) e manter-se isenta das controvérsias filosóficas remanescentes. Discussões filosóficas podem ultrapassar a esfera do po­lítico em muitas direções. A filosofia, afinal, é um empreendimento institucionalizado que se dá sob a forma de uma busca cooperativa da verdade, e não cultiva necessariamente uma relação interna ao que é "metafísico" (no sentido do Liberalismo político). Se a explicação do status epistêmico de uma concepção "vaga" nos enreda em discussões não-políticas sobre a razão e a verdade, isso não significa eo ipso o envol-

4. J. Rawls, "Reply to Habermas", The ]ournal of Philosophy, XCII, 1995, 141, n. esp. 16 (doravante cit. como R).

"RACIONAL" VERSUS"VERDADEJRO" 91

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vimento em questões e controvérsias metafísicas. De maneira indireta, como que performativa, a investigação a seguir deve aclarar esse pon­to. Ela procurará, de modo explícito, clarear o status epistêmico de uma concepção vaga de justiça em sentido - capciosamente - político.

Eu gostaria de checar como funciona a divisão de trabalho entre o político e o metafísico, que se espelha em uma especial dependência do "racional" em relação ao "verdadeiro': Não é nada evidente que ra­zões publicamente defensáveis e independentes de seus agentes pos­sam ter peso decisivo apenas em favor da "racionalidade" de uma con­cepção política, ao passo que razões não-públicas e dependentes dos agentes devam bastar para a reivindicação autóctone e consolidada de uma "verdade" moral. A resposta generosa e detalhada de Rawls a mi­nhas observações tentativas5 deixa claros - entre outras coisas - os tipos de justificação que conduzem a um "overlapping consensus': Sob a luz desses esclarecimentos, gostaria de desenvolver a seguinte tese: enquanto os cidadãos racionais não estiverem em condições de adotar um "ponto de vista moral" que se mostre independente das perspectivas das diferentes imagens de mundo assumidas por cada um deles em particular e que as preceda, não podemos esperar deles um "consenso abrangente". O conceito "racional"- reasonable- ou inflaciona-se ao ponto de se tornar atenuado demais para assinalar a validade de uma concepção de justiça subjetivamente reconhecida; ou é definido de forma suficientemente severa, mas de modo que o que seja prati­camente "racional" coincide com o moralmente correto. Eu gostaria de demonstrar que- e por que- Rawls não consegue evitar enfim o total esvaziamento das exigências da razão prática - exigências essas que são na verdade arrancadas das imagens de mundo racionais e não se limitam a refletir sobreposições bem-sucedidas dessas mesmas ima­gens de mundo6•

Antes que eu comece medias in res, permitam-me caracterizar o desafio da situação moderna da consciência à qual as teorias da justiça têm de reagir, de um maneira ou de outra (1). Logo a seguir, esboça­rei com a brevidade possível o passo filosófico que leva de Hobbes a Kant (2), pois essa posição constitui o pano de fundo para a peculiar alternativa de Rawls (3). Na parte central, analisarei (4) a divisão dos

5. Cf. J. Rawls, The Journal of Philosophy, XCII, 1995, pp. 109-131. 6. Com isso, torno mais concretas objeções já apresentadas no artigo anterior,

cf. pp. 78ss.

92 A INCLUSÃO DO OUTRO

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ônus de prova entre as concepções "racionais" de justiça e as "verdadei­ras" morais das imagens de mundo, para então (5) discutir as dificul­dades daí decorrentes para a construção da justificativa de um consen­so abrangente. Finalmente, ( 6) menciono argumentos em favor de uma concepção procedimental e próxima a Kant, qual seja a concepção de "uso público da razão': Quando se entende a justiça política dessa ma­neira, (7) a autolegislação democrática assume o lugar ocupado no li­beralismo político pelas liberdades negativas. Assim, os realces deslo­cam-se e posicionam-se em favor de um republicanismo kantiano.

e A moderna situação de partida

O liberalismo político representa uma resposta ao desafio do plu­ralismo. Sua preocupação central volta-se a um consenso fundamental que assegure liberdades iguais a todos os cidadãos, independentemente de sua origem cultural, convicção religiosa e maneira individual de con­duzir a própria vida. O consenso que se almeja em torno de questões da justiça política não pode mais apoiar-se sobre um ethos que perpassa a sociedade como um todo e ao qual as pessoas se habituaram pela tradi­ção. Contudo, os membros das sociedades modernas ainda partilham a expectativa de que possam cooperar uns com os outros de forma pací­fica, justa e honesta. Apesar da falta de um consenso substancial sobre os valores, calcado em uma imagem de mundo aceita pela sociedade como um todo, essas pessoas apelam ontem como hoje a convicções e normas morais, que cada um arroga devam ser partilhadas por todos. Mesmo que um mero modus vivendi fosse o bastante, as pessoas discu­tem sobre questões morais munidas de razões que consideram decisi­vas. Desenvolvem discursos morais no dia-a-dia assim como na polí­tica, e tanto mais em controvérsias da política constitucional. Esses dis­cursos continuam sendo conduzidos, embora sequer esteja claro se os conflitos morais ainda podem ser resolvidos com o auxílio de argu­mentos. Tacitamente, os cidadãos supõem reciprocamente uns nos ou­tros a presença de uma consciência moral ou de um senso de justiça que opera para além dos limites relacionados às visões de mundo em particular, enquanto aprendem, ao mesmo tempo, a tolerar diferenças de visão de mundo como fonte de diversidades racionais de opinião.

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Rawls reage a essa situação moderna da consciência com a pro­posta de uma concepção de justiça suficientemente neutra, em torno da qual se possa cristalizar um acordo político básico, firmado entre cidadãos com diferentes concepções religiosas ou metafisicas. Filóso­fos morais e teóricos da política entenderam como sua tarefa em co­mum a elaboração de um equivalente racional para as justificações tradicionais atribuídas a normas e princípios. Em sociedades tradi­cionais, a moral era parte integrante de imagens de mundo ontológicas ou ligadas à história da salvação que podiam contar com grande acei­tação pública. Normas e princípios morais equivaliam a elementos de uma "ordem das coisas" racional e impregnada de noções de valor, ou então elementos de um caminho exemplar de salvação. Em nosso con­texto é especialmente interessante que essas explicações "realistas" te­nham podido aparecer sob o modo assertivo de sentenças aptas à ve­rificação. Porém, depois da invalidação pública das explicações reli­giosas e metafisicas, e com o crescimento da autoridade epistêmica das ciências empíricas, distinguiu-se mais fortemente entre os enun­ciados normativos e os enunciados descritivos, de um lado, e entre os enunciados normativos e os juízos de valor e enunciados vivenciais, de outro. Seja qual for o posicionamento assumido diante da discus­são sobre ser e dever, o fato é que, com a transição para a modernidade, a razão "objetiva" incorporada na natureza e na história da salvação foi deposta pela razão "subjetiva" do espírito humano. Com isso, im­pôs-se a questão sobre o teor cognitivo de sentenças normativas em geral e sobre a respectiva possibilidade de fundamentá-las.

Essa questão representa um desafio sobretudo para aqueles (como Rawls e eu) que refutam tanto o realismo moral quanto o ceticismo moderno em relação aos valores. A suposição recíproca de uma capa­cidade de julgamento moral que observamos na práxis cotidiana exige uma explicação que não contesta o caráter racional de argumentações morais. A circunstância de que disputas morais continuem em curso revela algo sobre a infra-estrutura da vida social, que está perpassada de reivindicações triviais de validação. A integração social depende ampla­mente de um agir que se oriente pelo acordo mútuo e que esteja emba­sado sobre o reconhecimento de reivindicações de validação falíveis7•

7. Cf. J. Habermas, Theorie des kommunikativen Handels, 2 vols., Frankfurt am Main, 1981. V. tb. minhas "Sprechakttheoretischen Erlãuterungen zum Begriff der kommu­nikativen Rationalitãt': Zeitschrift für philosophische Forschung, n. 50 ( 1996): 65-91.

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Diante desse contexto, nem a premissa com a qual Hobbes pre­tendeu tirar a filosofia prática de seu beco sem saída torna-se mais plau­sível. Hobbes pretendeu reduzir a razão prática a uma razão instru­mental. Na tradição da teoria hobbesiana do contrato, há até hoje en­foques inteligentes que logram, de forma harmónica, entender razões morais no sentido de motivos racionais e atribuir juízos morais à esco­lha racional. O contrato social é sugerido como um procedimento para o qual é suficiente haver o interesse próprio e esclarecido dos partici­pantes. Aos contratantes basta refletir se é racional ou propositado, à luz de seus desejos e preferências, adotar uma regra comportamental ou um sistema de regras desse tipo. Contudo, como demonstra o pro­blema dos que deixam para tomar decisões oportunistas de última hora quando tudo já está praticamente resolvido, essa estratégia ignora o sentido especificamente obrigatório de normas vinculativas e de enun­ciados morais válidos. De passagem, limito-me ao argumento que T. M. Scanlon usou contra o utilitarismo: "The right-making force of a person's desire is specified by what might be called a conception of moral argumentation; it is not given, as the notion of individual well­being may be, simply by the idea of what is rational for an individual to desire"8. Contudo, se não se pode elucidar o teor cognitivo de enuncia­dos normativos segundo os conceitos da racionalidade instrumental, qual é o tipo de razão prática a que devemos recorrer?

De Hobbes a Kant

Aqui se apresenta a alternativa que desencadeou decisivamente o desenvolvimento da teoria de Rawls: ou podemos avançar de Hob­bes a Kant e desenvolver um conceito de razão prática que em certa medida assegure aos enunciados morais um teor cognitivo, ou re­corremos de novo às tradições "fortes" e às doutrinas "circunscri-

8. [A força jurígena do desejo de uma pessoa é especificada pelo que se pode chamar de uma concepção de argumentação moral; ao contrário do que pode ocorrer com a noção de bem-estar individual, essa concepção não é dada simplesmente pela idéia do que seja racional um indivíduo desejar.) Cf. T. M. Scanlon, "Contractualism and Utilitarianism". ln: A. K. Sen et B. Williams (orgs.). Utilitarianism and Beyond. Cambridge Univ. Pr., 1982, p. 199.

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tivas" que garantem a verdade das concepções morais que nelas re­pousam. Nas duas direções acabamos deparando impedimentos. Na primeira direção, precisamos diferenciar claramente a razão prática da teórica, mas de tal forma que ela não ponha a perder seu teor cog­nitivo. Nesse caso, estamos envolvidos com um pluralismo perma­nente de visões consideradas verdadeiras no círculo de seus defen­sores, muito embora todos saibam que apenas uma delas pode ser realmente verdadeira.

Na tradição kantiana, a razão prática determina a perspectiva de um julgamento imparcial de normas e princípios. Esse "ponto de vista moral" é operacionalizado com a ajuda de diferentes preceitos e pro­cedimentos - seja o imperativo categórico, seja uma troca ideal de papéis, tal como em Mead, seja uma regra argumentativa, como em Scanlon, seja a construção de uma condição primitiva que impõe res­trições adequadas à escolha racional das partes, tal como sugere Rawls. Esses diferentes delineamentos têm a finalidade última de possibilitar uma convenção ou um acordo tal, que os resultados de nossa intuição satisfaçam a deferência eqüânime e a responsabilidade solidária de­vidas a cada um. Como os princípios e normas selecionados dessa maneira exigem para si um reconhecimento geral, essa união erigida por via correta precisa qualificar-se em sentido epistêmico. As razões postas na balança precisam ter peso epistêmico e não podem expres­sar tão-somente o que certas pessoas consideram racional fazer, se­gundo suas respectivas preferências dadas.

Uma possibilidade de apreender o papel epistêmico de reuniões práticas em conselho é a descrição exata, sob o ponto de vista moral, da maneira pela qual os interesses pessoais que entram nessas reu­niões como motivos racionais vão alterando seu próprio papel e sig­nificado ao longo da argumentação. Pois em discursos práticos o que "conta" para o resultado são apenas os interesses apresentados como valores intersubjetivamente reconhecidos e que se candidatam a ser aceitos no teor semântico das normas válidas. Somente as orienta­ções de valor generalizáveis ultrapassam esse limiar, ou seja, somente as orientações de valor que podem ser aceitas com boas razões por todos os participantes (e envolvidos) para servirem à normatização de uma matéria carente de regulamentação- e que com isso ganham força normativamente vinculativa. Um "interesse" pode ser descrito como "orientação de valor" quando é partilhado por outros integran-

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tes em situações parecidas. Portanto, caso se deva considerar um in­teresse sob o ponto de vista moral, é preciso que ele se desprenda da vinculação à perspectiva de uma primeira pessoa. Tão logo ele seja traduzido para um vocabulário avaliativo subjetivamente partilhado, aponta para além de desejos ou preferências e então, como candidato a uma generalização valorativa no âmbito de fundamentações mo­rais, pode assumir o papel epistêmico de um argumento. O que in­gressa no discurso como desejo ou preferência só passa no teste de generalização mediante a descrição de um valor que seja considerado por todos os participantes em geral como aceitável para a regulamen­tação da respectiva matéria.

Suponhamos que a reunião prática em conselho possa ser con­cebida como uma forma de argumentação que se diferencie tanto da escolha racional quanto do discurso factual. Aí então uma teoria da ar­gumentação orientada de maneira pragmática se apresentaria como caminho para se elaborar a concepção de uma razão prática distinta tanto da razão instrumental quanto da teórica. Seria possível garantir um sentido cognitivo a sentenças obrigacionais sem assimilá-las a sen­tenças assertivas ou atribuí-las à racionalidade instrumental. Ainda persiste, no entanto, a analogia entre verdade e correção normativa, o que imporia novas questões. Não poderíamos eximir-nos das já co­nhecidas controvérsias sobre conceitos semânticos e pragmáticos de fundamentação e de verdade, nem tampouco da discussão sobre a relação entre significação e validação, sobre a construção e o papel de argumentos, sobre lógica, procedimento e forma comunicativa da ar­gumentação, e assim por diante. Precisaríamos ocupar-nos da rela­ção do universo social com os universos objetivo e subjetivo, e não poderíamos escapar do debate permanente acerca da racionalidade. Por isso é muito compreensível a tentativa de Rawls de evitar discus­sões desse tipo- e mesmo que não se classifiquem essas controvér­sias como sendo "metafísicas".

Por outro lado, se a estratégia de desoneração de uma separação clara entre o político e o metafísico pode ou não ter êxito, essa é outra questão. Inicialmente, Rawls procurou seguir a estratégia kantiana de avanço; em Uma teoria da justiça ele se havia imposto a tarefa de aclarar o "ponto de vista moral" com o auxílio da condição primitiva. De qual­quer modo, a construção da "justiça como honestidade" nutriu-se de uma razão prática que se corporifica nas duas "capacidades elevadas"

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de uma pessoa moral. Nas conferências sobre Dewey, Rawls conti­nuou elaborando esse "construtivismo kantiano"9. Essa tendência também se manifesta no terceiro capítulo de O liberalismo político. Mas no âmbito desse enfoque modificado a razão perde sua posição forte. A razão prática é como que moralmente destituída de seu cerne e deflacionada à condição de uma racionalidade que incorre na de­pendência em relação a verdades morais fundadas em outras bases. A validação moral da concepção de justiça já não se fundamenta mais a partir de uma razão prática vinculativa em geral, mas sim a partir de uma feliz convergência de imagens de mundo racionais que se super­põem de forma suficiente em seus constituintes morais. Na verdade, os restos da concepção original emendam-se, e não sem dificuldades, na teoria atual.

Em O liberalismo político, duas tendências fundadoras divergen­tes se encontram. A idéia do consenso abrangente tem por conseqüên­cia o claro enfraquecimento do anseio de racionalidade da concepção kantiana de justiça. Primeiramente, pretendo apresentar a nova divi­são do ônus da prova, agora entre a razão da justiça política e a ver­dade das imagens de mundo, para então abordar as inconsistências que indicam que Rawls realmente hesita em submeter a razão prática à moral das imagens de mundo, até o ponto em que a alternativa às abordagens kantianas (agora em voga) realmente exigiriam.

A alternativa ao procedimentalismo kantiano

Chega-se a um consenso abrangente "when all reasonable mem­bers of politicai society carry out a justification of the shared politicai conception by embedding it in their several reasonable comprehensive views" [quando todos os membros racionais da sociedade política tornam efetiva a justificação de uma concepção política partilhada, ao integrar essa mesma justificação a suas diversas visões racionais circunscritivas] (R, p. 143). Rawls sugere uma divisão de trabalho en-

9. J. Rawls, "Kantian Constructivism", The fournal of Philosophy, LXXVII ( 1980): pp. 515-573; esse enfoque perdura e é assumido por R. Milo, "Contractarian Constructivism", The fournal ofPhilosophy, XCII (1995): pp. 181-204.

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tre o político e o metafísico, o que resulta na separação entre o con­teúdo- sobre o qual todos os cidadãos podem estar de acordo -e as respectivas razões- a partir das quais o indivíduo pode aceitar esse conteúdo como sendo verdadeiro. Essa construção parte tão-somente de duas perspectivas: cada cidadão vincula a perspectiva de partici­pante à de observador. Observadores podem descrever processos na esfera política, tais como, por exemplo, o fato do surgimento de con­sensos abrangentes. Podem saber que esse consenso se ajusta em de­corrência da sobreposição bem-sucedida das diversas partes de dife­rentes imagens religiosas e metafísicas de mundo, e que ele contribui, desse modo, para que haja estabilidade na coletividade. Porém, nesse ajuste dos observadores, o qual tem por fim a objetivação, os cida­dãos não podem imergir reciprocamente nas demais imagens de mundo, nem reconstituir os respectivos teores de verdade a partir de cada uma das demais perspectivas internas. Banidos às fronteiras dos discursos que se limitam a constatar fatos, veda-se aos cidadãos um posicionamento em face do que os participantes crentes ou convic­tos consideram verdadeiro, correto e valoroso, a partir de suas pers­pectivas de primeira pessoa. Tão logo os cidadãos tenham a intenção de se expressar sobre as verdades morais ou, em geral, sobre as "con­cepções do que tem valor na vida humana" (PL, p. 175), eles se vêem obrigados a reassumir a perspectiva de participante inscrita em sua própria imagem de mundo. Pois os enunciados morais ou os juízos de valor só podem ser fundamentados a partir do contexto de inter­pretações de mundo mais próximo. Razões morais para uma con­cepção de justiça que se tenha presuntivamente em comum são, por definição, razões não-públicas.

Só a partir da perspectiva de seu próprio sistema interpretativo é que os cidadãos podem se convencer da verdade de uma concepção de justiça- adequada para todos. É ao obter uma aprovação funda­mentada de maneira não-pública por todos os envolvidos que tal con­cepção comprova sua adequação como base comum para uma justi­ficação pública de princípios constitucionais. Portanto, a validação pública do conteúdo desse "consenso abrangente" acatado por to­dos, ou seja, sua "racionalidade", decorre tão-somente da feliz cir­cunstância de que no resultado final converjam as razões não-pú­blicas motivadas pelas mais diversas vias. Das premissas de diferen­tes visões resulta, nas conseqüências, uma concordância. Com isso, é

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decisivo para a adoção da teoria no todo que os participantes pos­sam observar essa convergência como mero fato social: "The express contents of these doctrines have no normative role in public justifi­cation" [Os conteúdos expressos dessas doutrinas não desempenham papel normativo no processo de justificação pública] (R, p. 144). Pois nesse estágio Rawls não concede a seus cidadãos uma terceira pers­pectiva, uma perspectiva que venha acrescer-se à dos observadores e participantes. Antes que se chegue a um consenso abrangente, não há qualquer perspectiva pública, intersubjetivamente partilhada, que possa tornar possível aos cidadãos alcançar uma formação de juízo "de casa': por assim dizer. Podemos dizer que falta o "ponto de vista moral" sob o qual os cidadãos, em um conselho público e comunal, possam desenvolver e justificar uma concepção política. O que Rawls denomina "uso público da razão" pressupõe, como base comum, um consenso político fundamental já alcançado. Essa base só é ocupada pelos cidadãos post festum, ou seja, na seqüência da "sobreposição" de suas diferentes convicções de fundo que se vão ajustando: "Only when there is a reasonable overlapping consensos can politicai society's politicai conception of justice be publicy ... justified" [So­mente quando há um consenso racional decorrente da sobreposição é que se pode justificar publicamente a concepção política de justiça de uma sociedade política] (R, p. 144).

Decisiva para a relação complementar entre o político e o me­tafísico é uma descrição da situação de partida tal como representada a partir da visão de "crentes': ou seja, da visão que representa a parte "metafísica". Na divisão de trabalho entre o político e o metafísico re­flete-se a relação complementar entre o agnosticismo público e a con­fissão privada, entre o daltonismo confessional de um poder estatal neutro e a força iluminadora de visões de mundo que pelejam pela "verdade" no sentido enfático. As verdades morais que como antes continuam abrigadas em imagens de mundo religiosas e metafísicas partilham dessa forte reivindicação de verdade, mesmo que o fato do pluralismo também lembre que as doutrinas circunscritivas não estão mais aptas à justificação pública.

A engenhosa distribuição dos ónus de prova liberta a filosofia política de sua inquietante tarefa de criar um sucedâneo para a funda­mentação moral das verdades morais. O metafísico, embora tenha sido riscado da agenda pública, continua sendo o fundamento último para

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a validação do que seja moralmente correto e eticamente bom. De outra parte, o político ficou privado de uma fonte própria de valida­ção. A idéia inovadora do "consenso abrangente" garante à justiça po­lítica uma vinculação interna com os constituintes morais das ima­gens de mundo, evidentemente sob a condição de que essa vinculação só seja discernente para a moral das imagens de mundo, ou seja, desde que elas permaneçam publicamente inacessíveis: "It is up to each com­prehensive doctrine to say how its idea of the reasonable connects with its concept of truth" [Cabe a cada doutrina circunscritiva dizer de que maneira sua idéia do que seja racional vincula-se a seu conceito de verdade] (PL, p. 94). O consenso abrangente apóia-se sobre os dife­rentes constituintes morais do que um cidadão considera verdadeiro no todo. Do ponto de vista do observador, ninguém está apto a saber qual das imagens de mundo concorrentes é realmente verdadeira, caso alguma delas o seja. Entretanto, é certo que a verdade dessa imagem de mundo garantiria "that ali the reasonable doctrines yield the right conception of justice, even though they do not for the right reasons as specified by the one true doctrine" [que todas as doutrinas racionais resultassem na concepção correta de justiça, mesmo que elas não o fizessem por causa das razões corretas, tal como especificadas pela única doutrina verdadeira] (PL, p. 128).

Rawls concentra-se, como Hobbes, sobre as questões da justiça política; ele retira da tradição hobbesiana a noção de que a almejada união pública precisa nutrir-se das razões privadas, que são não-pú­blicas. Mas nele, diferentemente de Hobbes, a aceitabilidade racio­nal de uma sugestão que se revela como aceitável apóia-se sobre a substância moral de diferentes imagens de mundo, que sob esse as­pecto são convergentes- e não sobre as preferências de pessoas di­versas, que se complementam mutuamente. Com a tradição kantia­na Rawls partilha a fundamentação moral da justiça política. As ra­zões moralmente convincentes dão suporte a um consenso - que ultrapassa um mero modus vivendi. Mas essas razões não podem ser publicamente testadas em comum, por todos, já que o uso público da razão depende de uma base que precisa ser produzida à luz de razões não-públicas. O consenso abrangente, tal como um acerto [Kompromiss], repousa sobre as respectivas e diversas razões das partes envolvidas; diferentemente do que se dá em um acerto, porém, essas razões são de natureza moral.

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Uma "terceira" perspectiva para o racional

A noção do overlapping consensus torna necessária uma explica­ção da expressão reasonable. Embora a aceitação de uma concepção vaga de justiça nutra-se de verdades metafísicas complementares, é imperioso, por isso mesmo, que algo próximo a uma "racionalidade" venha aliar-se a essa concepção política e acrescentar às verdades idios­sincráticas e não-transparentes umas para as outras o aspecto do reco­nhecimento público. Sob aspectos validativos subsiste uma incómoda assimetria entre a concepção pública de justiça (que ocasiona um anseio de "racionalidade" atenuado) e as doutrinas não-públicas (com um forte anseio de "verdade"). É contra-intuitivo que uma concepção pú­blica de justiça deva extrair sua autoridade moral de razões não-públi­cas. Tudo o que é válido também tem de poder ser publicamente jus­tificado. Enunciados válidos merecem reconhecimento geral a partir de razões comuns. Nesse sentido, a expressão "agreement" é ambígua. Ao passo que as partes que negociam um acerto podem ser favorá­veis ao resultado por razões diversas, os participantes de uma argu­mentação têm de chegar a uma concordância racionalmente motiva­da, se é que poderão fazê-lo, a partir de razões em comum. Uma práxis justificadora como essa está assentada sobre um consenso alcançado de maneira pública e comunal.

Mesmo aquém da esfera política as argumentações exigem, em certa medida, um uso público da razão. Em discursos racionais, ape­nas se eleva a assunto formal o que no dia-a-dia se presta como um recurso para a força vinculativa dos atas de fala- ou seja, reivindi­cações de validação que clamam por reconhecimento intersubjetivo e que, caso sejam problematizadas, fazem antever uma justificação pública. Da mesma forma ocorre com reivindicações de validação nor­mativas. O hábito de discutir sobre questões morais com base em ra­zões entraria em colapso caso os participantes tivessem de tomar como ponto de partida a noção de que juízos morais dependem es­sencialmente de convicções pessoais de fé, e caso não pudessem mais contar com a aceitação dos que não partilhassem essa mesma fé 10• Isso

10. Cf. L. Wingert, Gemeinsinn und Moral, Frankfurt am Main, 1993, parte II, pp. 166ss.

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certamente não pode ser transferido de maneira imediata para o âm­bito da política; pois as controvérsias políticas são de natureza mista. Mas quanto mais elas se ocupam de princípios constitucionais e com as concepções de justiça subjacentes, tanto mais se assemelham aos discursos morais. No mais, questões fundamentais da política estão relacionadas a questões da implementação jurídica. E são apenas as regulamentações coercivas que tornam necessário um consenso polí­tico básico por parte dos cidadãos.

Não é a própria exigência que se faz discutível, mas sim como ela deve ser cumprida. Questiona-se se os cidadãos em geral podem dis­cernir alguma coisa como sendo "racional': se não lhes é permitido assumir uma terceira posição - ao lado das posições de observador e participante. Pode surgir da pluralidade de razões vinculadas a cosmo­visões em particular, cujo caráter público é reconhecido reciprocamente, um consenso que sirva de base a um uso público da razão por parte dos cidadãos de uma coletividade política? Eu gostaria sobretudo de saber se Rawls pode explicar a formação de tal consenso abrangente sem recorrer tacitamente a uma "terceira" perspectiva como essa, a partir da qual "nós': os cidadãos reunidos em conselho público e comunal, determinamos equanimemente o que é do interesse de cada um.

A perspectiva do membro de uma comunidade de fé difere da perspectiva do participante em discursos públicos. A força decisória existencial de um indivíduo único e irrepresentável, interessado em obter clareza quanto à condução de sua própria vida a partir da perspectiva da primeira pessoa do singular, é algo diferente da consciência falibilis­ta do cidadão que participa da formação de opinião e de vontade por via política. Mas Rawls, conforme se demonstrou, não imagina o pro­cesso do acordo sobre uma concepção comum de justiça como algo do tipo em que os cidadãos assumam uma mesma perspectiva. Porque falta essa perspectiva, a concepção que se revelar "racional" terá de se ajustar ao contexto das imagens de mundo consideradas "verdadeiras". Mas o sentido universalista de "racional" não acaba sendo afetado pela circunstância de que a verdade não-pública das doutrinas metafísicas ou religiosas goza de primazia em relação a uma concepção política?

Rawls introduz o predicado "racional" da seguinte maneira. Cida­dãos que estão em condições e dispostos a viver em uma sociedade "bem ordenada" são denominados "racionais"; como pessoas racio­nais, eles têm também concepções racionais do mundo como um todo.

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Quando o consenso esperado resulta de doutrinas racionais, então também seu conteúdo é considerado racional. Portanto, "racional" refere-se primeiramente ao posicionamento de pessoas que (a) estão prontas a firmar acordos sobre condições justas e honestas para a coo­peração social entre cidadãos livres e iguais, bem como ater-se a essas condições, e (b) pessoas que estão aptas a reconhecer ónus de provas e obrigações argumentativas- "burdens of argument"- e assumir as conseqüências dai decorrentes. O predicado, em um passo seguinte, é transferido dos posicionamentos para as convicções das pessoas ra­cionais. Imagens de mundo racionais reforçam em seus partidários uma atitude tolerante, porque são reflexivas de uma certa maneira e se submetem a determinadas restrições com vistas a conseqüências prá­ticas. Uma consciência "reflexiva" resulta da subsistência de uma dis­sensão racionalmente presumível entre diferentes doutrinas que con­correm entre si. E forças de fé subjetivadas a esse ponto só podem concorrer em condições de igualdade e sob um pluralismo de visões de mundo se seus defensores prescindem do recurso ao poder político quando se trata de impor verdades da fé.

No contexto de nossa discussão, tem especial importância o fato de que uma "racionalidade" assim especificada não requer dos cida­dãos e imagens de mundo uma perspectiva a partir da qual as ques­tões básicas da justiça política possam ser discutidas de maneira pú­blica e comunal. Posicionamentos "racionais" não implicam o ponto de vista moral, nem imagens de mundo "racionais" vêm torná-lo pos­sível. Uma perspectiva como essa só se abre quando um consenso abrangente tiver sido firmado em torno de uma concepção de justiça. Entretanto, Rawls não parece eximir-se de recorrer ao menos de ma­neira não-oficial a essa "terceira" perspectiva "naquele caso fundador da justificação pública" (R, p. 144). Tem-se a impressão de que ele per­manece dividido entre sua estratégia original, perseguida de Uma teoria da justiça e ainda mais fortemente associada a Kant, e a alternativa posterior, que se propôs fazer jus ao fato do pluralismo. Também aqui o filósofo continua assumindo uma perspectiva do julgamento impar­cial; mas essa postura- digamos- profissional não encontra corres­pondente algum em um ponto de vista moral que o próprio cidadão, "de casa", pudesse partilhar.

Nesse ínterim, Rawls chegou a manifestar-se de maneira mais detalhada quanto ao problema da justificação do consenso abrangente

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(R, p. 142 ss.). Ao analisarmos com precisão os "três tipos" de justifi­cação que ele explica nesse texto, deparamos com a interessante ques­tão sobre de que modo identificar como tais as imagens de mundo "racionais': se não se dispõe dos parâmetros de uma razão prática inde­pendente de imagens de mundo. Para a seleção de imagens de mundo racionais são necessárias decisões normativas até certo ponto "enxutas': as quais seria preciso poder fundamentar independentemente de su­posições metafísicas de fundo mais "densas".

O último estágio da justificação11

Rawls denomina o lugar em que deve ocorrer a justificação de uma concepção política de justiça "the place among citizens in civil society- the viewpoint of you and me" [o lugar entre cidadãos em uma sociedade civil- o ponto de vista seu e meu]. Aqui, cada cida­dão parte do contexto de sua própria imagem de mundo e do conceito de justiça aí inserido. Pois para considerações normativas é primeira­mente a perspectiva dos participantes que está à disposição. Em tal medida, não há tampouco no ponto de partida uma distinção rele­vante entre a posição de um cidadão qualquer e a do filósofo. Seja filósofo ou não, uma pessoa racional seguirá seu senso de justiça para desenvolver uma concepção vaga de justiça que, como a própria pes­soa espera, pode ser aceita por todas as pessoas racionais, no papel de cidadãos pretensamente livres e iguais. O primeiro passo construtivo exige, então, a abstração de doutrinas circunscritivas. Além disso, com a finalidade de uma "pro tanto justification" como essa, os cidadãos provavelmente considerarão doutrinas filosóficas diversas e bem con­cebidas. Essas teorias disponibilizam um fio condutor para o passo abstrativo necessário. Por exemplo, a "condição primitiva" oferece-se

11. Seguirei os "três tipos" de justificação na seqüência indicada por Rawls. Essa seqüência lógica não é entendida como uma ordem cronológica de estágios, mas assi­nala o caminho em que cada contemporâneo pode radicalizar seu posicionamento em relação a questões atuais de justiça política. Tão logo sua crítica questione o consenso político fundamental vigente, a partir da visão de uma concepção de justiça concor­rente, já caberá a esse mesmo contemporâneo defender sua alternativa a caminho de uma gênese lógica como essa.

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como esquema para um teste de generalização desse tipo. Princípios que sejam aprovados no teste parecem ser aceitáveis para cada um dos envolvidos.

No entanto, ninguém poderá abdicar por completo de seu pró­prio pré-entendimento, ao fazer uso desse procedimento. "Você e eu" não podemos manusear o teste de generalização sem dispor de alguns pressupostos. É preciso que procedamos a ele a partir da perspectiva que se constitui por meio da imagem de mundo própria a cada um. Com isso, sobretudo as suposições de fundo convergem por sobre a esfera do que é político e por sobre tudo o que se deve contar como assunto político. No passo seguinte, portanto, quando cada cidadão insere na própria imagem de mundo o conceito que lhe parece pro­missor, já não deveria haver praticamente nenhuma surpresa. O teste de generalização certamente exige de todos os cidadãos racionais que eles ignorem o que há de específico em cada uma das diferentes ima­gens de mundo; mas também essa operação de generalização precisa ser conduzida no contexto de uma cosmovisão própria. Pois ninguém pode abrir mão de sua perspectiva de participante sem perder de vista a dimensão normativa como tal- a partir da posição do observador.

Por essa razão, o teste de generalização funciona, em primeiro turno, de uma forma não muito diferente de como funciona a regra de ouro: ele filtra e elimina todos os elementos que segundo minha visão são inadequados para ser aceitos por todas as pessoas racionais. São aprovados no teste justamente os princípios e práticas, bem como regulamentações e instituições, que, depois de lograrem se impor em geral, contemplam o interesse de cada um segundo meu entendimento do que é politico. Nesse sentido, o manuseio dos testes é condicionado pelo pré-entendimento orientado por visões de mundo em particular; do contrário, o terceiro passo justificativo- que se concretiza analo­gamente à passagem da regra de ouro para o imperativo categórico -seria supérfluo12• Rawls considera esse passo necessário porque "você e eu" não podemos saber se fomos bem-sucedidos na abstração de todo e qualquer contexto vinculado a visões de mundo em parti­cular, tal como pretendíamos quando submetemos nossas convicções

12. Cf. J. Habermas, "Vom pragmatischen, ethischen und moralischen Gebrauch der praktischen Vernunft': ln: J. Habermas, Erlauterungen zur Diskursethik, Frankfurt am Main, 1991, pp. 1 06s.

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normativas às restrições impostas pela condição primitiva, cada qual a partir de seu melhor entendimento sobre o que fosse a esfera polí­tica. Apenas no último estágio, que Rawls descreve como "the stage of wide and reflective equilibrium" [o estágio de um equilíbrio amplo e refletivo] (Reply 14, Fn. 16), tomamos conhecimento dos demais cida­dãos: "Reasonable citizens take one another into account as having reasonable comprehensive doctrines that endorse that politicai concep­tion" [Cidadãos racionais levam um ao outro em consideração en­quanto indivíduos que têm doutrinas circunscritivas racionais que endossam essa concepção política] (R, p. 143).

Esse passo que finalmente deve levar ao consenso abrangente pode ser entendido como radicalização de um teste de generalização até en­tão incompleto e conduzido de forma egocêntrica. Somente a apli­cação recursiva desse procedimento faz chegar ao resultado esperado: todos os cidadãos, não apenas você e eu- e cada qual de sua perspec­tiva e segundo sua visão do político- vêem-se obrigados a testar se há uma sugestão capaz de receber aprovação geral. Rawls fala de um "mutual accounting" [ponderação em conjunto]; mas o que se tem em mente é uma observação mútua com a qual se constata se vai ou não se chegar a um acordo. O consenso é um acontecimento que se dá: "Public justification happens (my emphasis) when all the reasonable members of politicai society carry out a justification of the shared politicai conception by embedding it in their several reasonable com­prehensive views" [A justificação pública acontece (grifo meu) quan­do todos os membros racionais da sociedade política tornam efetiva a justificação de uma concepção política partilhada, ao integrar essa mesma justificação a suas diversas visões racionais circunscritivas] (R, p. 143). Nesse contexto, as expressões "public" e "shared" podem con­duzir a enganos. O consenso abrangente resulta de um controle exer­cido por todos ao mesmo tempo, mas cada um por si: trata-se do con­trole quanto à adequação da concepção sugerida a cada imagem de mundo em particular. Se isso der certo, cada um tem de aceitar a mes­ma concepção- certamente a partir de suas próprias razões, que são não-públicas- e ao mesmo tempo assegurar-se dos posicionamen­tos afirmativos de todos os outros: "The express contents of those doc­trines have no role in public justification; citizens do not look into the content of other's doctrines ... Rather, they take into account and give some weight only to the fact - the existence - of the reasonable

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overlapping consensus itself" (p. 144) 13• O consenso abrangente, por­tanto, repousa sobre o que Rainer Forst denominou "um uso privado da razão com intenção político-pública"14• Mais uma vez: nesse deli­neamento dos "três tipos" de justificação falta a perspectiva do julga­mento imparcial, bem como um uso público da razão (em sentido es­trito), que deveria não só ter sido possibilitado pelo consenso abran­gente, mas praticado em comum desde o início. Contudo, se os cida­dãos "racionais"- no sentido indicado- só podem se convencer da validação de um conceito de justiça no contexto de suas respectivas imagens de mundo, não parece muito provável que cheguem algum dia a firmar um consenso abrangente15• As expectativas dependem es­sencialmente de quais revisões será permitido fazer no último estágio de uma justificação descentralizada. A concepção justificada "pro tan­to': que "você e eu" consideramos válidas, de sua ou de minha pers­pectiva, "depois de levar em conta todos os valores", bem pode fra­cassar medjante um veto dos demais. Antes que nossa concepção possa ser esclarecedora para todos os demais ela precisa ser revisada. A dis­sensão desencadeada por esse tipo de adequações diz respeito em pri­meira linha às diferenças que nem você nem eu antecipamos, em primeiro turno, em nosso entendimento sobre o que é político. Se­gundo Rawls, distingo três tipos de diferenças de opinião: uma delas (a) concerne à definição do campo dos assuntos políticos; a outra (b ), à classificação em série e ponderação racional dos valores políticos; e a última e mais importante (c), à primazia de valores políticos sobre valores não-políticos.

Sobre (a) e (b). Diferentes interpretações, por exemplo a do prin­cípio da separação entre Igreja e Estado, respeitam à expansão e di­mensão do campo político; pois elas levam a diversas recomenda­ções normativas, direcionadas, nesse caso, ao status e ao papel de comunidades e organizações religiosas. Outras controvérsias refe­rem-se à classificação em série de valores políticos, por exemplo ao valor intrínseco ou meramente instrumental da participação dos ci-

13. ["O conteúdo expresso dessas doutrinas não tem função na justificação pú­blica; cidadãos não levam em conta o conteúdo de outras doutrinas ... Antes levam em conta e concedem alguma importância apenas ao fato- a existência- do próprio con­senso racional coincidente».]

14. R. Forst, Kontexte der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1994, p. 159. 15. Cf. Forst, 1994, pp. 152-161 e 72ss.

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dadãos em casos nos quais se tem de ponderar sobre os direitos à participação política por oposição a liberdades negativas. Esses casos conflitivos são normalmente levados a juízo, em última instância ao Supremo Tribunal Federal, ou seja, eles são resolvidos com base numa concepção de justiça já aceita. Tal é também o entendimento de Rawls. No entanto, em casos isolados os conflitos podem chegar a tal gravi­dade que as diferenças de opinião põem em questão o próprio con­senso abrangente. Esses conflitos subvertem o próprio consenso abran­gente. Nós, porém, queremos supor que a maioria desses pontos con­flitivos pode ser resolvida por via consensual ou, conforme o caso, por meio de revisões do entendimento constitucional vigente. Adap­tações bem-sucedidas desse tipo viriam confirmar que os cidadãos nesse último estágio da justificação bem podem aprender uns com os outros, mesmo que de forma apenas indireta. O veto dos outros pode provocar em nós, em você e em mim, o discernimento de que nossas concepções de justiça apresentadas inicialmente ainda não estavam suficientemente descentradas.

Sobre (c). Um outro tipo de conflitos estende-se à definição do que se deve poder esperar das imagens de mundo "racionais". Aí está em questão o conceito de "racional". Um exemplo disso, segundo de­terminada descrição, é o conflito acerca do aborto. Os católicos, que insistem em uma proibição genérica, afirmam ser mais importante para eles sua convicção religiosa do valor da inviolabilidade da vida do que qualquer outro valor político em nome do qual os cidadãos esperem contar com sua anuência a uma regulamentação por assim dizer moderadamente liberal. Rawls discute esse caso de passagem, mas transfere o conflito de um plano da primazia dos valores políticos ao plano da ponderação racional entre valores políticos (PL, p. 243 s.). Portanto ele pressupõe que o princípio do uso público da razão pelos cidadãos demanda uma tradução de suas concepções ético-existen­ciais para a linguagem da justiça política. Mas, segundo as premissas do próprio Rawls, a "razão pública" só pode impor tais restrições aos cidadãos quando já se tiver alcançado um consenso político básico. Durante a formação de um consenso abrangente não há nenhum cor­respondente à autoridade neutra de um Supremo Tribunal Federal (que afinal só entende a linguagem do Direito). Nesse estágio, ainda existe a possibilidade de apelar à primazia do justo sobre o bom, já que essa prioridade, por sua vez, pressupõe a primazia de valores políticos

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sobre valores não-políticos16• Rawls admite que um consenso abran­gente só pode firmar-se entre cidadãos que tenham como ponto de partida a supremacia de valores políticos sobre todos os demais valo­res, em casos de conflito (PL, p. 139). Mesmo assim, isso não resulta da "racionalidade" das pessoas nem de suas convicções. Rawls conten­ta-se com a asseveração de que valores políticos sejam "valores muito fortes" (PL, p. 155). Em outros trechos, ele se limita à "esperança" de que essa supremacia dos partidários de imagens de mundo racionais finalmente logre alcançar reconhecimento17•

Depreende-se dessas formulações comedidas que os graves con­flitos do terceiro tipo só podem contar com uma solução se a tolerân­cia dos cidadãos racionais e a racionalidade de suas imagens de mun­do implicarem uma percepção concordante do universo político e uma supremacia dos valores políticos. Mas tal exigência da razão faz trans­parecer não apenas qualidades que as imagens de mundo já revelam, de uma forma ou de outra; a expectativa de racionalidade também precisa ser suscitada nas imagens de mundo concorrentes. Na supre­macia dos valores políticos expressa-se uma exigência imposta pela razão prática- a exigência de uma imparcialidade que aliás se articula no ponto de vista moral. Este, porém, não se encontra no conceito de racional introduzido por Rawls. No posicionamento de pessoas "ra­cionais" dispostas a tratar as demais de maneira justa e honesta, mes­mo que estas últimas não partilhem com elas suas visões religiosas e metafísicas, não está implícito um ponto de vista moral comum a to­dos, nem tampouco na reflexividade ou na renúncia à violência pre-

16. "The particular meaning of the priority of rights is that comprehensive con­ceptions of the good are admissible ... only if their pursuit conforms to the politicai conception of justice" ["O significado próprio de prioridades de direitos é que as concep­ções compreensivas do bem são admissíveis ... apenas se a busca desse bem é conforme à concepção política de justiça"] (PL, p. 176, Fn. 2).

17. "ln this case (i. e. when an overlapping consensus is achieved) citizens embed their shared politicai conception in their reasonable comprehensive doctrines. Then we hope that citizens will judge (by their comprehensive view) that politicai values are normally (though not always) prior to, or outweigh, whatever non-political values may conflict with them" ["Nesse caso (i. é, quando um consenso abrangente é alcan­çado), os cidadãos fixam sua concepção política comum em suas doutrinas racionais compreensivas. Esperamos que então esses cidadãos julguem (com sua visão com­preensiva) que os valores políticos são normalmente (embora não sempre) prioritá­rios, ou mais valiosos, que quaisquer valores não-políticos que possam entrar em conflito com eles") (R., p. 147).

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sentes nas imagens de mundo "racionais': Uma exigência da razão prá­tica, à qual as imagens de mundo tenham de se curvar no caso de um consenso abrangente dever se tornar possível, só pode justificar-se, evidentemente, em virtude de uma autoridade epistêmica que inde­penda das próprias imagens de mundo18•

Com uma razão prática que se emancipasse da dependência da moral das imagens de mundo, no entanto, a relação interna entre o verdadeiro e o racional passaria evidentemente a estar acessível. Essa vinculação tem de permanecer opaca somente enquanto a fundamen­tação de uma concepção política só puder ser discernida a partir do contexto da respectiva imagem de mundo. Contudo, a direção desse ponto de vista inverte-se caso a precedência dos valores políticos tenha de se legitimar a partir de uma razão prática que defina, ela mesma, quais são as imagens de mundo que se podem considerar racionais.

Filósofos e cidadãos

Continua sem solução a tensão entre a "racionalidade" de uma concepção política aceitável para todos os cidadãos que disponham de uma imagem de mundo racional e a "verdade" que o indivíduo confe­re a essa concepção a partir de sua cosmovisão. Por um lado, a validade da concepção política nutre-se dos recursos validativos presentes nas diferentes imagens de mundo, desde que elas sejam racionais. Por ou­tro lado, as imagens de mundo racionais têm de se qualificar conforme parâmetros que lhes são prescritos pela razão prática. O que as assi­nala como racionais encontra sua medida em padrões que não podem ser extraídos da imagem de mundo correspondente. Será que Rawls pode fundamentar essas restrições a partir da razão prática sem retro­ceder à posição kantiana de Uma teoria da justiça, ou ele precisa aban­donar o âmago liberal de uma divisão do trabalho entre o político e o metafísico? Por certo, em O liberalismo político, Rawls também leva em conta as restrições da "razão pública"-"the general ones of theoretical and practical reason". Mas essas restrições só entram em ação após a "justiça como honestidade" ser aceita pelos cidadãos; pois só então

18. Devo esse argumento a R. Forst, 1994, v. Fn. 8.

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elas podem determinar a prioridade do justo sobre o bom (PL. p. 210) e o modo como funciona o uso público da razão (PL, p. 216 ss.).

Quando, porém, a racionalidade das imagens de mundo se ma­nifesta em restrições que elas não podem criar a partir de si mesmas, o que deve valer como racional vê-se obrigado a recorrer a uma instân­cia de imparcialidade já em vigor antes do estabelecimento de um con­senso político fundamental. A "teoria da justiça" reivindicara validade em nome da razão prática; ela independia de afirmação por parte das imagens de mundo racionais. Ao longo do tempo, Rawls alcançou a consciência de que essa teoria, muito mais em sua adoção do que em seu conteúdo, não é suficiente para dar conta "do fato do pluralismo" (Reply, p. 144, Fn. 21). Por essa razão ele apresenta o conteúdo essen­cial da teoria original como um primeiro passo construtivo, carente de complementações. O passo seguinte deve conduzir a teoria de uma fase de preparação para imergi-la na opinião pública do mundo polí­tico e fazer desembocar a investigação política no consenso político fundamental dos cidadãos. A divisão dos ônus de prova entre essas duas partes reflete-se na relação do racional com o verdadeiro. Não o filósofo, mas os cidadãos devem ter a última palavra. Embora Rawls não transfira completamente o ônus da fundamentação para as ima­gens de mundo racionais, garante-se a elas a decisão final. Pois a teoria entraria em choque com seu próprio espírito liberal se prejudicasse a formação política da vontade dos cidadãos e antecipasse os resultados desse processo: "Students of philosophy take part in formulating these ideas but always as citizens among others" [Estudiosos de filosofia to­mam parte na formulação dessas idéias, mas sempre enquanto cida­dãos entre os demais] (R, p. 174).

Por certo, o perigo de um paternalismo filosófico representa certa ameaça apenas por parte de uma teoria que preceitua para os cida­dãos o delineamento completo de uma sociedade bem ordenada. Rawls não leva em conta a alternativa de que um procedimentalis­mo19 conduzido de modo consciente possa diminuir o caráter dra­mático de uma tutela filosófica sobre os cidadãos. Uma teoria que se

19. Estou de acordo com as manifestações de Rawls sobre justiça procedimental versus justiça substancial (R, pp. 170-180 ); contudo, essas reflexões não atingem o sen­tido em que utilizo as expressões "procedimento" e "razão procedimental': quando afirmo que uma práxis argumentativa estabelecida de maneira determinada funda­menta a hipótese da aceitabilidade racional de resultados.

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limite a aclarar as implicações da institucionalização jurídica dos pro­cedimentos de auto legislação democrática não prejulga os resultados que cabe tão-somente aos próprios cidadãos alcançar, no âmbito ins­titucional moldado por esses procedimentos. Uma razão prática que se corporifica em processos e não em conteúdos não assumirá ela mesma nenhum papel paternalista se lhe for conferida uma autori­dade pós-metafisica, independente de imagens de mundo em parti­cular. Para esse enfoque a que sou favorável, há pelo menos alguns pontos de apoio em Rawls.

De início, cabe resumir a reflexão tal como ela se deu até o pre­sente momento. Concepções politicas racionais que validam a prece­dência de valores políticos e que de tal forma também determinam que imagens de mundo religiosas e metafísicas podem ser consideradas racionais devem não apenas ser elaboradas sob um ponto de vista im­parcial, mas também precisam ser aceitas sob um ponto de vista como esse. Tal ponto de vista transcende as perspectivas de participantes as­sumidas por cidadãos enredados no contexto de suas próprias visões de mundo. Por isso os cidadãos só podem continuar tendo a última palavra se participarem da "formulação dessas idéias" a partir de uma perspectiva mais ampla e subjetivamente partilhada, ou seja, se partici­parem dela sob o ponto de vista moral. O teste recursivo de generaliza­ção, que Rawls reserva ao terceiro estágio da justificação, iria tornar-se então parte integrante de uma discussão pública sobre sugestões para uma concepção de justiça capaz de estabelecer consenso. Se o resul­tado for racionalmente aceitável- seja ele a "justiça como honesti­dade" ou uma outra concepção qualquer -, não terá sido constatado pela observação mútua de um consenso infundido; dessa maneira, ca­beria mais força autorizadora às condições discursivas, às qualidades formais de processos que coagem os participantes a assumir o ponto de vista da formação imparcial de juizos.

Uma reflexão muito semelhante encontra-se em O liberalismo poli­tico, mas em outro lugar sistemático - qual seja: o lugar em que o filósofo graças a sua competência profissional desenvolve uma concep­ção vaga de justiça e sua respectiva justificação "pro tanto': para então testar se seus módulos teóricos servem às intuições normativas de fundo difundidas nas tradições politicas de uma sociedade democrática (apre­sentada como um "sistema social completo e fechado"). Testam-se con­ceitos fundamentais como os de pessoa moral, cidadão enquanto mem-

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bro da associação de livres e iguais, sociedade como sistema de coope­ração justa e honesta etc. As duas operações, tanto (a) a construção de uma concepção de justiça, quanto (b) a asseguração reflexiva de seus fundamentos conceituais, têm implicações que elucidam de maneira interessante a relação do filósofo com os cidadãos.

(a) Um filósofo que como Rawls segue os princípios do "constru­tivismo político" compromete-se a ser objetivo, ou seja, ele observa os "essentials of the objective point of view" [elementos essenciais do ponto de vista objetivo] e obedece aos "requirements of objectivity" [às exi­gências da objetividade] (PL III,§§ 5-7). Essas são as determinações procedimentais da razão prática: "It is by the reasonable that we enter the public world of others and stand ready to propose, o r accept, as the case may be, reasonable principies to specify fair terms of cooperation. These principies issues forma procedure of construction that express the principies of practical reason ... " [Faz parte do racional que ingres­semos no mundo público dos demais e que estejamos prontos a pro­por, ou aceitar, conforme o caso, princípios racionais para detalhar ter­mos de cooperação justos e honestos. Esses princípios firmados con­formam um procedimento de construção que expressa os princípios da razão prática ... ] (PL, p. 114). O filósofo, portanto, obedece a pa­drões de racionalidade que, embora independentes de imagens de mundo, contêm um teor moral-prático. Se esses padrões ao mesmo tempo impõem limites às imagens de mundo de cidadãos racionais, isso depende do papel que o filósofo deve desempenhar. Ocasional­mente isso pode soar como se o filósofo, com sua proposta elaborada de forma competente, devesse exercer uma influência estruturadora sobre os cidadãos. Rawls, de qualquer maneira, manifesta sua esperan­ça "that in fact (the philosophical offer) will have the capacityto shape (my emphasis) those doctrines toward itself" (R, p. 145)20•

(b) O método do equilíbrio reflexivo certamente imputa ao filó­sofo um papel mais modesto; ele o remete ao saber básico intersubje­tivamente partilhado de uma cultura liberal. Certamente, esse saber só terá eficácia para a instância de controle na escolha dos conceitos teóricos básicos, se nele já estiver assentada a perspectiva de um julga­mento imparcial nas questões de justiça política. Do contrário, o filó-

20. [" ... de que de fato (a oferta filosófica) será capaz de formatar (grifo meu) essas doutrinas em relação a si mesma"].

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sofo nada poderia aprender dos cidadãos e de suas convicções polí­ticas. Para que o método do equilíbrio reflexivo possa ter êxito, a filo­sofia tem, por assim dizer, de encontrar sua própria perspectiva já de antemão na sociedade dos cidadãos. Não se pode entender tal coisa como se a filosofia pudesse abandonar-se a um consenso fundamen­tal que - como pressuposto -já existisse em sociedades liberais, e que oferecesse assim uma base para o uso público da razão (institu­cionalizado, p. ex., nos tribunais constitucionais). Nem toda cultura que se autodenomina liberal de fato o é. Uma filosofia que se limitasse a esclarecer por via hermenêutica o que de qualquer maneira já existe teria posto a perder sua força crítici1• A filosofia não pode somente aliar-se a convicções factualmente infundidas; ela também tem de po­der julgá-las segundo os parâmetros de uma concepção racional de justiça. Por outro lado, não pode construir tal concepção de próprio punho e impingi-la como norma a uma sociedade destituída de auto­nomia. Precisa evitar tanto a duplicação acrítica da realidade, quanto o deslize para um papel paternalista. Ela não pode nem simplesmente aceitar as tradições já consolidadas, nem traçar conteudisticamente um delineamento para a sociedade bem ordenada.

Um caminho para se deixar esse beco sem saída é apontado pelo próprio método do "equilíbrio reflexivo", quando bem entendido; pois esse método cria compromissos com uma apropriação crítica das tra­dições. Isso dá certo com tradições que se permitem entender como expressão de processos de aprendizagem. Para identificar processos de aprendizagem como tais precisa-se de um ponto de vista prede­cessor e orientado ao julgamento crítico. A filosofia dispõe dele em seu próprio anseio por objetividade e imparcialidade. Mas em seu próprio recurso a determinações procedimentais da razão prática, pode se sentir atestada por uma perspectiva que ela mesma já encontra na sociedade: ou seja, pelo ponto de vista moral sob o qual as socie­dades modernas são criticadas por seus próprios movimentos sociais. A filosofia só pode se comportar de maneira afirmativa em face do potencial negador que se corporifica nas tendências sociais a uma autocrítica sem condescendência.

21. Tal se apresenta a interpretação contextualista da teoria rawlsiana em R. Rorty, "Der Vorrang der Demokratie vor der Philosophie". I n: R. Rorty, Solidaritiit oder Objek­tivitiit, Stuttgart, 1988, pp. 82- I 25; aqui pp. 95ss.

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O âmago do liberalismo

Assim, quando entendemos a justiça de maneira procedimental, as relações entre o político e o moral, e também entre o moral e o ético, passam a ser vistas sob nova luz. Uma justiça política que anda pelas próprias pernas não precisa mais da cobertura de imagens de mundo religiosas ou metafisicas. Enunciados morais não podem sa­tisfazer menos as condições do pensamento pós-metafísico do que enunciados descritivos, mas apenas o fazem de uma maneira diferen­te. Graças a um ponto de vista moral que também se articula no que Rawls denomina "the procedural requirements for a public use of reason" [as exigências procedimentais para um uso público da razão] e "standards of reasonableness" [padrões de racionalidade], os juízos morais ganham independência em relação a contextos determinados por visões de mundo em particular. A correção de enunciados morais é explicada, tal como a verdade de enunciados assertivos, em concei­tos da solução discursiva de reivindicações de validação. (Naturalmente, nenhum dos dois é capaz de esgotar o sentido de verdades metafi­sicas.) Já que os juízos morais só se referem a questões da justiça em geral, questões de justiça política precisam ser especificadas com auxí­lio da remissão ao instrumental do Direito. Aqui, isso não continuará despertando nosso interesse.

Quando porém reflexões morais e políticas retiram sua validação de uma fonte independente, altera-se o papel cognitivo de suas ima­gens de mundo. Aí elas passam a ter um teor essencialmente ético e constroem o contexto para o que Rawls denomina o "valor substancial de concepções circunscritivas do bem". As "visões da vida bem-sucedi­da" são o cerne de um auto-entendimento pessoal ou coletivo. Ques­tões éticas são questões sobre a identidade. Elas têm significado exis­tencial e são bem acessíveis, dentro de certos limites, a um esclareci­mento racional. Discursos éticos obedecem a parâmetros de uma refle­xão hermenêutica sobre o que, visto no todo, "é bom" para mim ou para nós. Recomendações éticas ligam-se a um tipo de reivindicação de vali­dação que se distingue tanto da verdade quanto da correção moral. Elas se medem pela autenticidade de uma autocompreensão de indiví­duos e coletividades que se formou no contexto respectivo, seja de uma vida pessoal, seja de uma ocorrência intersubjetivamente partilhada da

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tradição. Por isso, sob uma forma específica, as razões éticas são de­pendentes de contextos- são "não-públicas" no sentido de Rawls. Por certo, assumimos com cada enunciado os habituais ónus de prova e obrigações argumentativas - burdens of judgement. Mas valorações fortes não estão submetidas apenas às ressalvas genericamente fali­bilistas. De discussões sobre a valoração de estilos e formas de vida dis­crepantes não podemos racionalmente esperar outra coisa senão uma dissensão capaz de suscitar discernimento para os diversos envolvidos22•

Em face disso, quando se trata de questões de justiça política e de mo­ral, então esperamos em princípio respostas vinculativas em geral.

Concepções kantianas reivindicam neutralidade em face das ima­gens de mundo, um status "vago" no sentido da neutralidade ética, mas não no da neutralidade filosófica. A discussão dos fundamentos epistemológicos de O liberalismo politico deveria demonstrar que tam­pouco Rawls pode evitar controvérsias filosóficas. A relação problemá­tica entre o racional e o verdadeiro carece de uma elucidação que põe em questão a estratégia de evitação utilizada por Rawls. O conceito de razão prática evidentemente não pode ser destituído de um cerne mo­ral, nem tampouco a moral pode ser empurrada para dentro da caixa preta das imagens de mundo. Não vejo qualquer alternativa plausível à estratégia kantiana de avanço. Parece não haver caminho algum que permita passar ao largo da necessidade de elucidar o ponto de vista moral com auxílio de um procedimento independente do contexto (se­gundo cada reivindicação). Tal procedimento não está de forma alguma livre de implicações normativas, como Rawls tem razão em acentuar (Reply, p. 170 ss.), justamente porque está irmanado a um conceito de autonomia que integra "razão" e "vontade livre"; em tal medida é que

22. Estou seguramente de acordo com Charles Larmore ("The Foundations of Modern Democracy': ln: European Journal of Philosophy, n. 3, 1995, p. 63) quando ele afirma: "The fact that our vision of the good life is the object of reasonable disagreement does not entail we should withdraw our allegiance to it or regard it henceforth as a mere article of faith ... We should remember only that such reasons are not likely to be acceptable to other people who are equally reasonable, but have a different history of experience and reflection" ["O fato de nossa visão da vida boa ser objeto de desacordo racional não implica que devemos desistir de nossa opção por ela ou considerá-la mero artigo de fé ... Devemos lembrar apenas que tais razões não parecem ser aceitáveis a outras pessoas igualmente razoáveis, mas com uma história de experiência e reflexão diversa"]. Lamore entendeu mal minha concepção do uso ético da razão prática; cf. Habermas, 1991. pp. 100-118.

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ele não pode ser normativamente neutro. Autónoma é a vontade guiada pela razão prática. De modo geral, a liberdade consiste na capacidade de vincular o arbítrio a máximas; mas autonomia é a autovinculação do arbítrio por meio de máximas que tornamos nossas com base no dis­cernimento. Como está mediada pela razão, a autonomia não é um valor como qualquer outro. Isso explica por que esse teor normativo não prejudica a neutralidade de um procedimento. Um procedimento que dá possibilidade de ação ao ponto de vista moral da formação imparcial de juízos é neutro em face de constelações valorativas quais­quer, mas não diante da própria razão prática.

Com a construção de um consenso abrangente Rawls desloca o acento do conceito kantiano de autonomia para algo como uma auto­determinação ético-existencial: é livre quem assume a autoria de sua própria vida. Esse itinerário tem também um mérito especial. Pois a divisão de trabalho entre o político e o metafísico direciona a atenção para a dimensão ética que Kant negligenciou. Rawls preserva um dis­cernimento que Hegel outrora fez prevalecer contra Kant23: manda­mentos morais não podem ser impingidos à história de vida de uma pessoa nem mesmo quando apelam a uma razão comum a todos nós ou a um sentido universal para a justiça. Mandamentos morais têm que manter uma concatenação interna com as projeções e modos de vida da pessoa atingida, uma concatenação que ela mesma seja capaz de reconstituir.

O peso diferenciado atribuído à liberdade moral e à autodeter­minação ético-existencial oferece-se a oportunidade para uma obser­vação de princípios. A maneira como as teorias da justiça política se distinguem em sua adoção, senão em sua própria substância, trai dife­renças em intuições subjacentes.

O liberalismo político ou do estado de direito parte da intuição de que o indivíduo e a condução individual de sua própria vida precisam ser defendidos das intervenções feitas pelo poder estatal: "Politicai liberalism allows ... that our politicai institutions contain sufficient space for worthy ways of life ant that in this sense our politicai society is just and good" [Trad. do inglês] (PL, p. 21 O). Com isso, a diferenciação entre esfera privada e pública ganha um significado precípuo. Ela determina o itinerário para a interpretação decisiva da liberdade: a liberdade de

23. Cf. L. Wingert, 1993, pp. 252ss.

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arbítrio das pessoas jurídicas privadas garantida por via legal circuns­creve o espaço de preservação para uma condução consciente da vida, orientada por cada uma das concepções próprias do que seja o bem. Direitos são liberties, algo como capas protetoras para a autonomia pri­vada. A preocupação central está voltada a garantir a cada um a mesma liberdade para levar uma vida autêntica, autodeterminada. A partir dessa visão, cabe à autonomia pública dos cidadãos do estado que participam da práxis autolegislativa da coletividade possibilitar a autodetermi­nação pessoal das pessoas em particular. Embora a autonomia pública possa ter para algumas pessoas um valor intrínseco, em primeira linha ela parece ser um meio para a possibilitação da autonomia privada.

O republicanismo kantiano, segundo o entendo, parte de uma outra intuição. Ninguém pode ser livre à custa da liberdade de um ou­tro. Pelo fato de as pessoas só se poderem individuar pela via da socia­lização, a liberdade de um indivíduo une-se à de todos os outros, e não apenas de maneira negativa, por meio de limitações mútuas. Delimita­ções corretas, mais que isso, são o resultado de uma autolegislação exer­cida em conjunto. Em uma associação de livres e iguais, todos preci­sam entender-se, em conjunto, como autores das leis às quais se sen­tem individualmente vinculados como seus destinatários. Por isso o uso público da razão legalmente institucionalizado no processo demo­crático representa aqui a chave para a garantia de liberdades iguais.

Tão logo os princípios morais se vêem obrigados a assumir uma forma no ambiente do direito coercivo e positivo, a liberdade da pes­soa moral divide-se em uma autonomia pública do colegislador e uma autonomia privada do destinatário da lei, e de tal maneira que as duas se pressupõem mutuamente. Essa relação complementar entre o públi­co e o privado não reflete dado algum. Mais que isso, ela é criada conceitualmente pela estrutura do ambiente jurídico. Por isso é tarefa do processo democrático definir sempre de novo e desde o início os limites precários entre o público e o privado, de modo a que se garan­tam liberdades iguais a todos os cidadãos, sob as formas tanto da auto­nomia privada quanto da autonomia pública24•

24. Sobre a concatenação interna entre estado de direito e democracia, v. neste vol. pp. 285-297.

"RACIONAL" VERSUS"VERDADEIRO" 119

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4 O Estado nacional europeu - sobre o passado e o futuro da soberania e da ·nacionalid,ade*

Como revela a designação "Nações Unidas': hoje a so-' ciedade mundial é constituída por Estados nacionais. O tipo histórico decorrente'da Revolução Francesa e da Revolução Norte-americana impôs-se em todo o mundo. E essa circuns­tância não é nada trivial.

As Nações-estado clássicas no Norte e Oeste europeus surgiram no interior de Estados territoriais já existentes. Eles eram parte do sistema estatal europeu que já tomara forma na Paz Westfaliana de 1648. Em contrapartida, as Nações "tar­dias", a Itália e a Alemanha em primeiro lugar, assumiram outro desenvolvimento, típico também para as formações nacionais da Europa Central e Oriental. Aqui, a formação do Estado seguiu os vestígios de uma consciência nacional pre­cipitada e disseminada com recursos de propaganda. A di~ ferença dessas duas trilhas ("from state to nation" versus"from nation to state") reflete-se na origem dos atores que consti­tuíam a vanguarda na formação do Estado ou da Nação, caso a caso. De um lado estavam juristas, diplomatas e militares que pertenciam ao Estado-Maior em torno do rei e que cria-

• Tradução: Paulo Astor Soethe.

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ram uma "entidade estatal" racional; de outro, havia escritores e histo­riadores, sobretudo eruditos e intelectuais, que, com a propagação da unidade mais ou menos imaginária de uma "nação cultural': estiveram ocupados em preparar a unificação estatal imposta (apenas em um se­gundo momento) por via diplomático-militar (por Cavour ou Bismarck, por exemplo). Uma terceira geração de Estados nacionais muito diver­sos surgiu após a Segunda Guerra Mundial, como decorrência do pro­cesso de descolonização, sobretudo na África e na Ásia. Não raro, esses Estados fundados nos limites do domínio colonial precedente já re­clamavam soberania antes mesmo que as formas de organização esta­tais importadas pudessem lançar raízes sobre o substrato de uma na­ção-que ultrapassava os limites tribais. Nesses casos, Estados artificiais tiveram de ser "preenchidos" com nações que iam crescendo posterior­mente. Por fim, a tendência à formação de Estados nacionais indepen­dentes continuou na Europa Oriental e Meridional, após o colapso da União Soviética, na trilha de secessões mais ou menos violentas; na si­tuação social e económica precária desses países, os velhos apelos etno­nacionais foram suficientes para mobilizar populações vacilantes de modo que assumissem a luta pela independência.

Hoje, portanto, o Estado nacional impôs-se definitivamente so­bre as formações políticas mais antigas'. Certamente as cidades-esta­do clássicas haviam tido sucessores na Europa moderna, por ora em cidades da Itália Setentrional e - na região da antiga Lotaríngia -nos cinturões urbanos de que surgiram a Suíça e os Países Baixos. Tam­bém reapareceram as estruturas dos Impérios da Antigüidade, inicial­mente sob a forma do Sacro Império Romano-Germânico, e mais tar­de nos Estados pluriétnicos dos Impérios russo, otomano e austro­húngaro. Mas nesse ínterim o Estado nacional recalcou essas heranças pré-modernas. No momento, observamos a profunda transformação da China, o último dos antigos impérios.

Na concepção de Hegel, toda formação histórica, a partir do mo­mento de sua maturidade, está condenada à decadência. Não é preciso adotar sua filosofia da história para reconhecer que essa marcha vito­riosa do Estado nacional tem também sua face irónica. A seu tempo, o Estado nacional foi uma resposta convincente ao desafio histórico de

I. Cf. M. R. Lepsius, "Der europãische Nationalstaat': ln: M. R. Lepsius, Interessen, Jdeen und lnstitutionen, Opladen, 1990, pp. 256-269.

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encontrar um equivalente funcional às formas de integração social tidas na época como em processo de dissolução. Hoje estamos novamente diante de um desafio análogo. A globalização do trânsito e da comu­nicação, da produção econômica e de seu financiamento, da trans­ferência de tecnologia e poderio bélico, em especial dos riscos mili­tares e ecológicos, tudo isso nos coloca em face de problemas que não se podem mais resolver no âmbito dos Estados nacionais, nem pela via habitual do acordo entre Estados soberanos. Salvo melhor juízo, tudo indica que continuará avançando o esvaziamento da soberania de Estados nacionais, o que fará necessária uma reestruturação e am­pliação das capacidades de ação política em um plano supranacional que, conforme já vínhamos observando, ainda está em fase incipiente. Na Europa, na América do Norte e na Ásia, estão se constituindo formas de organização supra-estatal para "regimes" continentais, que poderiam até mesmo ceder a infra-estrutura necessária às Nações Unidas, ainda hoje muito ineficientes.

Contudo, esse passo abstrativo ainda incompleto dá apenas con­tinuidade a um processo para o qual a atuação integradora do Estado nacional constitui um primeiro grande exemplo. Por isso defendo a opinião de que podemos nos orientar nesse caminho incerto rumo às sociedades pós-nacionais justamente segundo o modelo da forma his­tórica que estamos prestes a superar. Em primeiro lugar, gostaria de lembrar as conquistas do Estado nacional, ao aclarar (I) os conceitos de "Estado" e "Nação" e ao elucidar (II) os dois problemas que se solucio­naram nas formas do Estado nacional. Em seguida, trato do potencial de conflito instalado nessa forma estatal, qual seja (III) a tensão entre republicanismo e nacionalismo. Por fim, pretendo abordar dois desa­fios atuais que ultrapassam a capacidade de ação dos Estados nacio­nais: (IV) a diferenciação multicultural da sociedade e os processos de globalização que corroem (V) a soberania interna dos Estados nacio­nais hoje vigentes, bem como (VI) sua soberania externa.

o "Estado, e "Nação,

Segundo a compreensão moderna, "Estado" é um conceito de­finido juridicamente: do ponto de vista objetivo, refere-se a um poder

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estatal soberano, tanto interna quanto externamente; quanto ao es­paço, refere-se a uma área claramente delimitada, o território doEs­tado; e socialmente refere-se ao conjunto de seus integrantes, o povo do Estado. O domínio estatal constitui-se nas formas do direito po­sitivo, e o povo de um Estado é portador da ordem jurídica limitada à região de validade do terrirório desse mesmo Estado. No uso polí­tico da linguagem, os conceitos "nação" e "povo" têm a mesma ex­tensão. Para além da fixação jurídica, no entanto, "nação" também tem o significado de uma comunidade política marcada por uma ascendência comum, ao menos por uma língua, cultura e história em comum. Um povo transforma-se em "nação" nesse sentido his­tórico apenas sob a forma concreta de uma forma de vida em espe­cial. Os dois componentes, que estão enleados em conceitos como "Estado nacional" ou "nação de cidadãos de um mesmo Estado", re­metem-se a dois processos que de modo algum decorreram para­lelamente na história- à formação de Estados (1 ), por um lado, e de nações (2), por outro.

( 1) Em grande parte, o êxito histórico do Estado nacional pode ser esclarecido em decorrência dos méritos do aparato estatal mo­derno como tal. É evidente que o Estado territorial com monopólio de poder e administração diferenciada, autónoma e financiada por impostos pôde cumprir melhor os imperativos funcionais da mo­dernização social, cultural e sobretudo económica do que as for­mações políticas de origem mais remota. Em nosso contexto, basta lembrar as caracterizações de tipos ideais elaboradas por Marx e Max Weber.

(a) O poder executivo do Estado apartado do rei e burocratica­mente configurado constituía-se de uma organização de postos especializados segundo áreas do conhecimento, ocupados por fun­cionários públicos juridicamente treinados e pôde apoiar-se sobre o poder enquartelado do exército, polícia e poder carcerário existen­tes. Para monopolizar esses recursos do uso legítimo do poder, foi preciso impor a "paz nacional". Só é soberano o Estado que pode manter a calma e a ordem no interior e defender efetivamente suas fronteiras externas. Internamente, ele tem de poder se impor contra outros poderes concorrentes e firmar-se internacionalmente como concorrente em igualdade de direitos. O status de um sujeito no di­reito internacional baseia-se no reconhecimento internacional como

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membro "igual" e "independente" no sistema de Estados; e para isso ele precisa de uma posição de poder suficientemente forte. Sobera­nia interna pressupõe a capacidade de imposição da ordem jurídica estatal; soberania externa, a capacidade de auto-afirmação em meio à concorrência "anárquica" pelo poder entre os Estados.

(b) Ainda mais importante para o processo de modernização é a separação do Estado da "sociedade civil", ou seja, a especificação funcional do aparato estatal. O Estado moderno é a um só tempo Estado diretivo e fiscal, o que significa que ele se restringe essencial­mente a tarefas administrativas. Ele abandona as tarefas produtivas que até então vinham sendo cumpridas no âmbito do domínio polí­tico a uma economia de mercado distinta do Estado. Nesse sentido ele se ocupa das "condições gerais de produção", ou seja, do arcabouço jurídico e da infra-estrutura necessários ao trânsito capitalista de mercadorias e à organização do trabalho social correspondente. A demanda financeira do Estado é suprida por uma captação de im­postos gerida de forma privada. As vantagens dessa especialização funcional é paga pelo sistema administrativo com sua dependência da capacidade produtiva de uma economia orientada pelos merca­dos. Pois embora os mercados possam ser instituídos e supervisio­nados politicamente, eles seguem uma lógica própria que escapa ao controle estatal.

A diferenciação entre o Estado e a economia reflete-se na dife­renciação entre o direito público e privado. A medida que o Estado moderno se serve do direito positivo como de um meio de organiza­ção de sua dominação, vincula-se a um instrumento que- com os conceitos da lei, do direito subjetivo (que se deduz a partir daí) e da pessoa jurídica (como detentora de direitos)- confere validação a um princípio novo, explicitado por Hobbes: em uma ordem do direi­to positivo eximida da moral (apenas sob um certo sentido, é claro) permite-se aos cidadãos tudo aquilo que não é proibido. A despeito do fato de o próprio poder estatal já estar domesticado em sua con­dição de Estado de direito, e de a coroa já estar "sob a lei", o Estado não pode se servir do instrumento do direito sem organizar os trâ­mites na esfera da sociedade civil (distinta dele mesmo), e isso de tal forma que as pessoas em particular possam chegar ao gozo de liber­dades subjetivas - distribuídas de forma desigual, em um primeiro momento. Com a separação entre os direitos privado e público, o cida-

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dão individual no papel do "súdito"- tal como ainda se expressou Kant- é quem ganha uma área crucial de autonomia privada2•

(2) Hoje vivemos todos em sociedades nacionais que devem sua unidade a uma organização desse tipo. Tais Estados já existiam muito antes de haver "nações" em sentido moderno. Somente a partir das revoluções do final do século XVIII é que Estado e nação se fundiram para se tornar Estado nacional. Antes de me dedicar ao que há de espe­cífico nessa vinculação, gostaria de lembrar, sob a forma de um pe­queno excurso sobre a história dos conceitos, o surgimento da forma­ção consciencial moderna que permite interpretar povo como "nação': em um sentido diverso do exclusivamente jurídico.

Segundo o uso lingüístico clássico dos romanos, "natio': assim como "gens", é um conceito que surge por oposição a "civitas". Nações são em primeiro lugar comunidades de ascendência comum, que se integram geograficamente por vizinhança e assentamento, cultural­mente por uma língua, hábitos e tradição em comum, mas que ainda não se encontram reunidas no âmbito de uma forma de organização estatal ou política. Essa raiz mantém-se vigente por toda a parte, du­rante a Idade Média e o início da Era Moderna, quando "natio" e "lín­gua" se equivalem. Assim, por exemplo, os estudantes em universidades medievais eram subdivididos em "nationes", de acordo com sua ori­gem enquanto conterrâneos. Com o crescimento da mobilidade geo­gráfica, o conceito serviu em geral para as diferenciações internas de ordens de cavalaria, universidades, mosteiros, concílios, ligas comer­ciais etc. Portanto, a origem nacional, que era atribuída por outros, es­teve associada desde o início com a delimitação negativa entre o pró­prio e o estrangeiro3•

É em outro contexto que a expressão "nação" vem assumir um significado contrário e de caráter apolítico. Da associação de feuda­tários do Império Alemão haviam se desenvolvido estados de classe; eles se baseavam em contratos em que o rei ou imperador, que depen-

2. Em seu artigo "Über den Gemeinspruch", Kant distingue claramente "a igual­dade (do indivíduo) a cada outro enquanto súdito" da "liberdade do ser humano" e da "autonomia do cidadão", Werke (Weischedel), vol. VI, p. 145.

3. "O modelo de nações ingressou na história européia sob a natureza de con­ceitos opostos assimétricos': H. Münkler, "Die Nation ais Modell politischer Ordnung", Staatswissenschaft und Staatspra.xis, ano 5, cad. 3 (1994): p. 381.

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dia de impostos e proteção militar, concedia privilégios à nobreza, à Igreja e às cidades, ou seja, lhes concedia uma participação limitada no exercício do domínio político. E essas classes dominantes, reuni­das em "parlamentos" ou "câmaras", representavam o "país" ou mes­mo a "nação" diante da corte. Como "nação", a aristocracia assumia uma existência política que ainda era negada ao povo enquanto con­junto de súditos. Isso explica o sentido revolucionário de formulações como "King in Parliament" e tanto mais a identificação do "terceiro estado" com a "nação".

A transformação da "nação aristocrática" em "nação popular", que avança a partir de fins do século XVIII, pressupõe uma mudan­ça de consciência, inspirada por intelectuais, que se impõe inicial­mente na burguesia citadina, sobretudo academicamente letrada, antes de alcançar eco em camadas mais amplas da população e oca­sionar progressivamente uma mobilização das massas. A consciên­cia nacional popular cristaliza-se em "comunidades imaginárias" (Anderson) engendradas nas diferentes histórias nacionais, as quais se tornaram o cerne da consolidação de uma nova auto-identifica­ção coletiva: "Assim surgiram as nações nas últimas décadas do sé­culo XVIII e ao longo do século XIX( ... ): gestadas por um grupo bem delimitado de eruditos, jornalistas e poetas- nações popula­res na idéia, mas ainda longe de sê-lo na realidade"4. Na mesma me­dida em que essa idéia se difundiu, também ficou claro, no entanto, que o conceito político de nação popular, modificado a partir do conceito de nação aristocrática, havia emprestado do conceito de "na­ção" como designação de ascendência e procedência (mais antigo e anterior à política) também a força que o movia à formação de este­reótipos. A auto-estilização positiva da própria nação transforma­va-se agora no eficiente mecanismo de defesa contra tudo que fosse estrangeiro, mecanismo de desapreço de outras nações e de exclusão de minorias nacionais, étnicas e religiosas- em especial dos judeus. Na Europa, o nacionalismo vinculou-se de forma muito conseqüente ao anti-semitismo.

4. H. Schulze, Staat und Nation in der Europaischen Geschichte, München, 1994, p. 189.

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A nova forma de integração social

Ao interpretar processos ramificados e de longa duração a partir de seus resultados, vê-se que, na transformação do Estado moderno da fase inicial em uma república democrática, a "invenção da nação" (H. Schulze) desempenhou o papel de um catalisador. A autocompre­ensão nacional constituiu o contexto cultural em que os súditos pude­ram tornar-se cidadãos politicamente ativos. Apenas o fato de per­tencerem à "nação" pôde criar entre pessoas até então estranhas entre si uma coesão solidária. O mérito do Estado nacional consistiu, por­tanto, em ter resolvido dois problemas: com base em um novo modo de legitimação, ele tornou possível uma nova forma de integração social mais abstrata.

Em poucas palavras, o problema da legitimação resultou de que se desenvolveu, na seqüência da cisão entre as confissões, um pluralis­mo de visões de mundo que pouco a pouco privou a autoridade polí­tica de sua base religiosa, a "graça divina". O Estado secularizado pre­cisava legitimar-se a partir de outras fontes. O outro problema da inte­gração social, igualmente simplificado, passou a estar relacionado à

urbanização e modernização econômica, com a expansão e acelera­mento da circulação de produtos, pessoas e informações. A população foi arrancada dos liames sociais organizados em estamentos, existentes no início da Era Moderna, e viu-se assim, ao mesmo tempo, posta em movimento e individualizada. Aos dois desafios o Estado nacional res­ponde com a mobilização política de seus cidadãos. Pois a consciência nacional emergente tornou possível vincular uma forma abstrata de integração social a estruturas políticas decisórias modificadas. Uma participação democrática que se impõe passo a passo cria com o status da cidadania uma nova dimensão da solidariedade mediada juridica­mente; ao mesmo tempo, ela revela para o Estado uma fonte seculari­zada de legitimação. Por certo, o Estado moderno já vinha regulando desde o início seus limites sociais sobre os direitos de nacionalidade, isto é, os direitos de integrar o Estado. Mas integrara Estado, no início, não significava mais do que a submissão ao poder estatal. É só com a transição ao Estado democrático de direito que deixa de prevalecer esse caráter de concessão que se faz ao indivíduo, de que ele possa integrar

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uma organização, para então prevalecer a condição de membro inte­grante do Estado conquistada agora (ao menos pela anuência implí­cita) por cidadãos participantes do exercício da autoridade política. Nessa expansão do significado que o conjunto de membros experi­menta a partir da mudança do status dos que integram o Estado, e que passam então a ser seus cidadãos, com certeza precisamos distinguir o aspecto político-jurídico do aspecto verdadeiramente cultural.

Conforme se mencionou, o Estado moderno tem duas marcas constitutivas: a soberania do poder estatal, corporificada no príncipe, e a diferenciação do Estado em relação à sociedade, ainda que, de ma­neira paternalista, se tenha reservado às pessoas em particular um teor essencial de liberdade subjetiva. Com a mudança da soberania basea­da no príncipe para a de cunho popular, esses direitos dos súditos trans­formam-se em direitos do homem e do cidadão, ou seja, em direitos liberais e políticos de cidadania. Do ponto de vista de uma tipologia ideal, tais direitos garantem não só a autonomia privada, mas também a autonomia política, que em princípio é atribuída com igualdade a cada um. O Estado constitucional democrático, de acordo com a idéia que o sustenta, é uma ordem desejada pelo próprio povo e legitimada pelo livre estabelecimento da vontade desse mesmo povo. Segundo Rousseau e Kant, os destinatários do direito também devem enten­der-se como seus próprios autores.

Caso o povo, porém, que se autocompreendia autoritativamente, não tivesse se tornado uma nação de cidadãos autoconscientes, haveria faltado força propulsora 11 uma reformulação jurídico-política como essa, e também força vital, à república formalmente instituída. Para a mobilização política que ocorreu foi necessária uma idéia cuja força fosse capaz de integrar as consciências morais, com um apelo ainda mais forte aos corações e ânimos do que aquele exercido pela soberania popular e os direitos humanos. Essa lacuna é preenchida pela idéia de nação. É ela que torna consciente aos habitantes de um mesmo território a nova forma de pertença a um todo, política e juridicamente mediada. Apenas a consciência nacional que se cristaliza em torno da percepção de uma ascendência, língua e história em comum, apenas a consciên­cia de se pertencer a "um mesmo" povo torna os súditos cidadãos de uma unidade política partilhada- torna-os, portanto, membros que se podem sentir responsáveis uns pelos outros. A nação ou o espírito do povo - a primeira forma moderna de identidade coletiva - provê a

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forma estatal juridicamente constituída de um substrato cultural. Essa fusão totalmente artificial de antigas lealdades em uma nova consciên­cia nacional, até mesmo segundo necessidades burocráticas, foi des­crita pelos historiadores como um processo de longo prazo.

Esse processo conduz a uma codificação dupla da cidadania, de tal modo que o status definido pelos direitos dos cidadãos assume ao mesmo tempo o significado de pertença a um povo culturalmente definido. Sem essa interpretação cultural dos direitos de cidadania, o Estado nacional quase não teria encontrado forças durante seu sur­gimento para constituir um novo plano de integração social, mais abs­trato, pela via do estabelecimento da cidadania democrática. O exem­plo oposto, oferecido pelos Estados Unidos, porém, demonstra que o Estado nacional pode assumir e manter uma forma republicana, mes­mo sem ter por base uma população culturalmente homogeneizada. Em lugar do nacionalismo, no entanto, apresenta-se aqui uma reli­gião civil enraizada na cultura da maioria.

Até agora, falou-se aqui das conquistas do Estado nacional. Mas a ligação entre republicanismo e nacionalismo também gera perigo­sas ambivalências. Com o surgimento do Estado nacional, também se modifica, como vimos, o sentido da soberania estatal. Isso não diz respeito tão-somente à reversão da soberania do Estado principesco em Estado popular; também a percepção da soberania externa sofre modificações. A idéia de nação enreda-se à vontade maquiavélica de auto-afirmação, pela qual o Estado soberano se havia deixado con­duzir desde o início, na arena dos "poderes': A auto-afirmação exis­tencial da nação nasce da auto-afirmação estratégica do Estado mo­derno contra seus inimigos externos. Com isso entra em jogo um ter­ceiro conceito de "liberdade". Um conceito coletivo de liberdade nacio­nal concorre com os dois conceitos individualistas de liberdade, quais sejam a liberdade privada do cidadão na sociedade e a autonomia política do cidadão no Estado. Mais importante ainda é como se pen­sou essa liberdade da nação- em analogia com a liberdade das pes­soas em particular, que se afastam umas das outras e concorrem entre si, ou então segundo o modelo da autodeterminação cooperativa dos cidadãos autônomos do Estado.

É quando se concebe a nação como uma grandeza juridicamente construída, ou seja, como uma nação de cidadãos vinculados a um Estado, que o modelo da autonomia pública assume a liderança. Tais

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cidadãos podem ser até mesmo patriotas que compreendem e defen­dem a própria constituição como uma conquista no contexto da his­tória de seu país. Mas eles concebem a liberdade da nação- em sentido propriamente kantiano- de maneira cosmopolita, ou seja, como uma autorização e um compromisso em prol de um acordo cooperativo ou de um ajuste de interesses com outras nações, no âmbito de uma aliança entre os povos que assegure a paz. Por outro lado, o entendimento na­turalista de nação como uma grandeza anterior à política sugere outra interpretação. Segundo ela, a liberdade da nação consiste essencialmente na capacidade de afirmar sua própria independência, até mesmo pela força militar, em casos extremos. Tal como as pessoas em particular nas relações de mercado, também os povos perseguem cada qual seus interesses próprios na selva da política de dominação no cenário eco­nómico internacional. A imagem tradicional da soberania externa é ornada com as cores nacionais e desperta assim novas energias.

GD A tensão entre nacionalismo e republicanismo

Diferentemente das liberdades republicanas dos indivíduos, a in­dependência das respectivas nações, que precisa ser defendida até mes­mo com o "sangue de seus filhos", em casos extremos, caracteriza o local em que o Estado secularizado preserva um resíduo não secula­rizado de transcendência. O Estado nacional que guerreia impõe a seus cidadãos a obrigação de pôr em risco a própria vida em prol da cole­tividade. Desde a Revolução Francesa, a obrigatoriedade do serviço militar revela-se como o outro lado da moeda dos direitos do cidadão; na prontidão a combater e morrer pela pátria devem afirmar-se em igual medida a consciência nacional e a atitude moral republicana. Assim, as inscrições da história nacional da França refletem um duplo rastro de lembranças: os marcos em pedra da luta pela liberdade repu­blicana vinculam-se à simbologia de morte presente na memoração dos mortos em combate.

A nação tem duas faces. Ao passo que a nação dos cidadãos li­gados ao Estado, fruto da vontade, é fonte de legitimação democrática, a nação de compatriotas, gerada de maneira espontânea, provê a in­tegração social. Os cidadãos, por força própria, constituem a associa-

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ção política entre os livres e iguais; os compatriotas encontram-se em uma comunidade cunhada por uma língua e história em comum. Permitiu-se que a tensão entre o universalismo de uma comunidade jurídica igualitária e o particularismo de uma comunidade histórica que partilha um mesmo destino ingressasse na conceitualidade do Estado nacional.

Essa ambivalência só não oferece perigo, enquanto um entendi­mento cosmopolita da nação de cidadãos vinculados ao Estado puder prevalecer sobre a interpretação etnocêntrica de uma nação que se encontra em um estado de guerra latente e duradouro. Apenas um conceito não-naturalista de nação amolda-se sem dificuldades a uma autocompreensão universalista do Estado de direito democrático. Aí sim a idéia republicana pode assumir a liderança e penetrar, de sua parte, as formas de vida socialmente integrativas, bem como estrutu­rá-las de acordo com modelos universalistas. O Estado nacional deve seu êxito histórico à circunstância de ter substituído as débeis alianças corporativas da sociedade pré-moderna pela coesão solidária dos cida­dãos. Mas essa conquista republicana passa a correr perigo se, ao in­vés, a força integrativa da nação de cidadãos for atribuída a um dado que se pretenda anterior à política, ou seja, a existência de um povo constituído por via natural e, portanto, a algo independente da for­mação política da opinião e da vontade dos próprios cidadãos. Para a incidência em um nacionalismo, naturalmente se podem elencar mui­tas razões. Mencionarei duas: uma delas é de natureza conceituai, a outra de natureza empírica.

Na construção jurídica do Estado constitucional persiste uma la­cuna que convida a que se a preencha com um conceito naturalista de povo. Pois em conceitos normativos como tais não se pode explicar de que maneira compor o elemento básico partilhado pelas pessoas que se unem para regulamentar seu próprio convívio de forma legítima e com recursos do direito positivo. Do ponto de vista normativo, são con­tingentes os limites sociais de uma associação entre jurisconsortes livres e iguais. Como o voluntarismo da decisão em favor de uma práxis cons­tituinte não passa de ficção racional-jurídica, resta-nos no mundo que conhecemos abandonar ao acaso histórico e à faticidade dos aconte­cimentos- normalmente ao expediente natural de conflitos violentos, guerras e guerras civis -a determinação de quem fica com o poder de definir os limites de uma comunidade política. É um erro teórico- que

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remonta ao século XIX e que traz muitas conseqüências- supor que se possa responder também a essa questão de maneira normativa, ou seja, através de um "direito à autodeterminação nacional"5•

O nacionalismo resolve à sua maneira o problema das fronteiras. Se a própria consciência nacional é um artefato, ela esboça a grandeza imaginária da nação como algo que cresceu de forma natural e que obviamente se entende por oposição à ordem artificial do direito po­sitivo e da construção do Estado constitucional. O regresso à nação "orgânica", portanto, pode afastar das fronteiras - historicamente casuais, em maior ou menor grau- o que elas têm de apenas contin­gente, pode provê-las da aura de uma substancialidade reproduzida e legitimá-las através da "origem".

A outra razão é mais trivial. A artificialidade dos mitos nacionais, tanto o trato científico quanto a mediatização propagandística que re­cebem, torna o nacionalismo, já em sua origem, vulnerável ao abuso de elites políticas. O fato de que os conflitos internos sejam neutralizados por êxitos na política externa baseia-se em um mecanismo sociopsico­lógico do qual os governos sempre fizeram uso. Mas para um Estado nacional que anseia de maneira belicista por reconhecimento interna­cional, já ficam delineadas de antemão as trilhas pelas quais se podem direcionar os conflitos que surgem da cisão de classes durante o pro­cesso de acelerada industrialização capitalista: a liberdade coletiva da nação pôde ser interpretada no sentido de um desdobramento impe­rial do poder. A história do imperialismo europeu entre 1871 e 1914, tal como o nacionalismo integral do século XX (isso sem falar no racis­mo dos nazistas), ilustra o triste fato de que a idéia de nação serviu muito menos para fortalecer as populações em sua lealdade ao Estado constitucional do que para mobilizar as massas em favor de objetivos que dificilmente se podem harmonizar com princípios republicanos6•

A lição que podemos tirar dessa história é evidente. O Estado nacional precisa livrar-se do potencial ambivalente que em outros tem-

5. O jurista liberal Johann Caspar Bluntschli, especialista em direito do Estado, já se manifestava da seguinte forma: "Cada nação está vocacionada, e tem portanto o direito, a constituir um Estado ... Assim como a humanidade está dividida em uma série de nações, da mesma forma é imperioso(!) que o mundo seja repartido em um igual número de Estados. Cada nação, um Estado. Cada Estado, um ente nacional» (cit. cf. H. Schulze, 1994, p. 225).

6. Cf. H. Schulze, 1994, pp. 243ss.

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pos teve para ele um efeito propulsor. Hoje, quando a capacidade de ação do Estado nacional chega a seus limites, seu exemplo também se revela, por outro lado, muito instrutivo. A seu tempo, o estado nacio­nal proporcionou um contexto de comunicação política em que foi possível aparar os impulsos abstrativos da modernização social, to­mar uma população privada do contexto de vida que ela havia herda­do da tradição e reacomodá-la no encadeamento de um mundo vital ampliado e racionalizado, também pela via da consciência nacional. Foi-lhe possível cumprir essa função integrativa assim que o status jurídico do cidadão vinculou-se ao fato de se pertencer culturalmente à nação. Já que o Estado nacional se vê desafiado internamente, pela força explosiva do multiculturalismo, e externamente, pela pressão problematizadora da globalização, cabe perguntar se há hoje um equi­valente para o elemento de junção entre a nação de cidadãos e a nação que se constitui a partir da idéia de povo.

A unidade da cultura política na multiplicidade das subculturas

Originalmente, a sugestiva unidade de um povo mais ou menos homogêneo foi capaz de proporcionar a acomodação cultural da ci­dadania juridicamente definida. Nesse contexto, a cidadania demo­crática pôde constituir o ponto de entrecruzamento das responsabili­dades recíprocas. Em nossas sociedades pluralistas, porém, convive­mos hoje com evidências cotidianas que se distanciam cada vez mais do caso modelar do Estado nacional com uma população cultural­mente homogênea. Cresce a multiplicidade de formas culturais de vida, grupos étnicos, confissões religiosas e diferentes imagens de mundo. Não há qualquer alternativa a isso, a não ser que se pague o preço normativamente insuportável de purificações étnicas. Por isso, o re­publicanismo tem de aprender a andar com as próprias pernas. Nele, é essencial que o processo democrático também se preste como fiança da integração social de uma sociedade que se mostra cada vez mais diferenciada e autonomizada. Em uma sociedade que é pluralista no que diz respeito à cultura e às visões de mundo, esse papel de fiador não pode ser transferido dos planos da formação política da vontade e

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da comunicação pública ao substrato aparentemente natural de um povo pretensamente homogêneo. Por trás de uma fachada como essa, iria esconder-se apenas a cultura hegemónica de uma parcela domi­nadora da sociedade. Por razões históricas, subsiste em muitos países uma fusão da cultura de maioria com determinada cultura política geral que arroga a si mesma ser reconhecida por todos os cidadãos, independentemente da origem cultural de cada um. Essa fusão tem de ser dissolvida, caso devam poder coexistir com os mesmos direitos, no interior de uma mesma coletividade, formas diversas de vida cultu­ral, étnica e religiosa, e não apenas lado a lado, mas também umas com as outras. O plano da cultura política partilhada precisa desaco­plar-se do plano das subculturas e de suas identidades, cunhadas de uma maneira anterior à política. O anseio por uma coexistência sob direitos iguais certamente sofre uma restrição segundo a qual as con­fissões e práticas a que se dispensa proteção não podem contradizer os princípios constitucionais vigentes (tal como entendidos na res­pectiva cultura política).

A cultura política de um país cristaliza-se em torno da constitui­ção em vigor. Toda cultura nacional, sob a luz da própria história, amolda em cada caso um tipo de leitura diferente para os mesmos princípios- tais como soberania do povo e direitos humanos-, os quais também se corporificam em outras constituições republicanas. Sobre a base dessa interpretação, um "patriotismo constitucional" pode ocupar o lugar do nacionalismo original. Tal patriotismo constitu­cional é visto por alguns observadores como liga demasiado fraca quan­do se trata de dar consistência a sociedades complexas. Portanto, tor­na-se tanto mais urgente a pergunta quanto às condições sob as quais as provisões de uma cultura política liberal bastariam para preservar a consistência íntegra de uma nação de cidadãos, independente de asso­ciações com a noção racial de povo.

Hoje isso se tornou um problema até mesmo para países de imi­gração, como os Estados Unidos. A cultura política norte-americana, mais do que outros países, garante espaço para a coexistência pacífica de cidadãos provindos de ambientes culturais os mais diversos; lá, cada pessoa pode viver com duas identidades concomitantes, ser ao mes­mo tempo integrante e estrangeiro no próprio país. Porém, o funda­mentalismo e mesmo o terrorismo crescentes (como em Oklahoma, há poucos anos) é um sinal de que até mesmo aí pode romper-se a

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rede de segurança proporcionada pela religião civil, que há mais de duzentos anos vem interpretando uma história constitucional admi­ravelmente contínua. Presumo que as sociedades multiculturais só poderão manter-se coesas por meio de uma cultura política como essa, que já deu mostras de sua eficiência, se a democracia for compensada não apenas sob a forma de direitos liberais à liberdade e direitos polí­ticos à participação, mas também mediante o gozo profano de direi­tos sociais e culturais ao compartilhamento. Os cidadãos precisam poder experienciar o valor de uso de seus direitos também sob a forma da segurança social e do reconhecimento recíproco de formas de vida culturais diversas. A cidadania democrática e ligada ao Estado só exer­cerá força integrativa - ou seja, só promoverá solidariedade entre estranhos- quando der mostras de sua eficiência enquanto meca­nismo pelo qual os pressupostos constitutivos das formas de vida de­sejadas possam de fato tornar-se realidade.

Essa perspectiva, em todo caso, é sugerida pelo Estado de bem­estar social que se desenvolveu na Europa sob as circunstâncias mui­to favoráveis do período que sucedeu o pós-guerra, mas que tam­pouco subsistiram por muito tempo. Nesse momento, após a cesura imposta pela Segunda Guerra Mundial, haviam se esgotado as fontes de energia de um nacionalismo exacerbado. Sob a égide do equilíbrio nuclear entre as superpotências, ficou interditado aos poderes euro­peus- e não apenas à Alemanha dividida- o exercício de uma polí­tica externa autônoma. Questões polêmicas sobre fronteiras não es­tavam na ordem do dia. Conflitos sociais não podiam estender-se ao exterior; tinham de ser contornados sob o primado da política inter­na. Sob essas condições, o entendimento universalista do Estado de direito democrático pôde desvencilhar-se amplamente dos impera­tivos de uma política de dominação orientada por interesses nacio­nais e motivada por razões geopolíticas. Apesar do clima de guerra civil universal e das figurações anticomunistas do inimigo, tornou-se mais brando, também na consciência da opinião pública, o tradicio­nal imbricamento entre republicanismo e os objetivos de uma auto­afirmação nacional.

A tendência a uma autocompreensão até certo ponto "pós-na­cional" da coletividade política pôde firmar-se mais fortemente na Alemanha Ocidental do que nos demais Estados europeus, já que sua situação peculiar privava-a claramente dos direitos de soberania

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mais essenciais. Na maioria dos países da Europa Ocidental e Seten­trional, no entanto, a pacificação socioestatal do antagonismo de das­ses criou uma situação nova. Ao longo do tempo, criaram-se e am­pliaram-se sistemas de seguridade social, consolidaram-se reformas em áreas como educação, família, direito penal e poder carcerário, defesa de dados pessoais etc., e ao menos se começaram a implemen­tar políticas feministas de igualização. No interior de uma geração o status dos cidadãos, mesmo que de maneira incompleta, melhorou muito em sua substância jurídica. Isso sensibilizou os próprios cida­dãos (e eis o que me importa) para a precedência do tema da trans­formação dos direitos fundamentais em realidade, ou seja, sensibi­lizou-os para essa precedência cuja tarefa é resguardar a nação real de cidadãos ante a nação imaginada, supostamente constituída dos membros de um mesmo povo.

O sistema dos direitos foi concebido sob condições económicas muito favoráveis, em um período de crescimento económico compa­rativamente longo. Assim, cada um pôde conhecer e honrar o status de cidadão enquanto algo que o vincula aos demais membros da cole­tividade política e que o torna ao mesmo tempo dependente desses outros membros eco-responsável por eles. Todos puderam ver que a autonomia privada e a pública se pressupõem mutuamente no movi­mento contínuo de reprodução e melhoria das condições favoráveis às maneiras prediletas de viver. Todos perceberam ao menos intuiti­vamente que só pode delimitar honestamente as fronteiras entre os espaços privados de ação quem fizer uso adequado de suas competên­cias como cidadão; e perceberam ainda que eles mesmos só estão ap­tos a essa participação política com base em uma esfera privada intacta. A constituição revelou-se como moldura institucional eficiente para uma dialética entre a igualdade jurídica e factual, que ao mesmo tem­po fortalece a autonomia privada dos cidadãos, bem como sua auto­nomia cidadã no âmbito do Estado7•

Mas essa dialética, independentemente de causas locais, encon­tra-se agora desativada. Se queremos explicar tal fato, precisamos voltar o olhar às tendências que hoje ganham especial atenção sob a palavra­chave "globalização".

7. Cf. J. Habermas, Faktizitat und Geltung, Frankfurt am Main, 1992, pp. 493ss.

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o Limites do Estado nacional:

restrições da soberania interna

No passado, o Estado nacional guardou de forma quase neurótica suas fronteiras territoriais e sociais. Hoje em dia, processos suprana­cionais irrefreáveis malogram esses controles em diversos pontos. A. Giddens definiu globalização como o adensamento, em todo o mun­do, de relações que têm por conseqüência efeitos recíprocos desenca­deados por acontecimentos tanto locais quanto muito distantes8• As comunicações de alcance mundial seguem por meio das línguas natu­rais (na maioria das vezes, por meios eletrônicos) ou códigos especiais (sobretudo o dinheiro e o direito). Já que "comunicação" assume aqui um significado duplo, resultam desses processos tendências diver­gentes. De um lado, eles incrementam a expansão da consciência dos agentes, de outro lado, a ramificação, o alcance e as ligações de siste­mas, redes (tais como mercados, por exemplo) ou organizações. Em­bora o crescimento de sistemas e redes multiplique os cantatas e infor­mações possíveis, ele não tem como conseqüência per se a ampliação de um mundo intersubjetivamente partilhado, nem tampouco a união discursiva de pontos de vista relevantes, temas e contribuições, dos quais surgem grupos de opinião pública de caráter político. A consciência de sujeitos que planejam, comunicam-se e agem uns com os outros parece ser ao mesmo tempo ampliada e fragmentada. Os grupos de opinião pública criados na Internet continuam segmentados, separados uns dos outros como comunidades aldeãs globais. De início não fica claro se uma consciência pública em expansão, mas que permance centrada em seu universo vital, ainda pode abranger as concatenações sistemi­camente diferenciadas e autonomizadas, ou se os acontecimentos sistêmicos tornados autônomos já deixaram mesmo para trás todas as concatenações proporcionadas pela comunicação política.

O Estado nacional foi no passado o âmbito em que se articulou, e de certa maneira também institucionalizou, a idéia republicana da ação

8. A. Giddens, The Consequences ofModernity, Cambridge, 1990, p. 60 [ed. br.: As conseqüências da modernidade, São Paulo, Unesp, 1991); idem, Beyond Left and Right, Cambridge, 1994, pp. 78ss. [ ed. br.: Para além da esquerda e da direita, São Paulo, Unesp,1996).

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consciente e efetiva da sociedade sobre si mesma. Eram típicas para ele, como já se mencionou, tanto uma relação complementar entre Estado e economia, quanto uma relação complementar entre política de as­suntos interiores e concorrência de poderes interestatais. Esse esquema, por certo, só se aplica a contextos em que a política nacional ainda é capaz de exercer influência sobre uma respectiva "economia popular': Assim, por exemplo, o crescimento na era da política económica keynesiana dependia de fatores que não beneficiavam apenas a valori­zação do capital, mas também a população como um todo - ou seja, ele dependia também: da abertura do consumo de massa (sob a pressão de sindicatos livres); da intensificação de forças produtivas e ao mesmo tempo redutoras do tempo de trabalho (sobre os fundamentos de uma pesquisa básica independente); da qualificação das forças de trabalho no âmbito de um sistema educacional em expansão (que melhorava o nível educacional da população); e assim por diante. No âmbito das eco­nomias nacionais, em todo caso, foram cultivados economicamente os espaços de distribuição que se podiam utilizar tanto em termos de ne­gociações salariais, quanto - por parte do Estado - em termos do desenvolvimento de políticas sociais, e isso com a finalidade de satis­fazer as aspirações de uma população exigente e inteligente.

Embora o capitalismo tenha se desenvolvido desde o início em di­mensões mundiais9, essa dinâmica económica desencadeada em com­binação com o sistema estatal moderno colaborou antes de mais nada com a consolidação do Estado nacional. Mas já faz tempo que esses dois processos deixaram de se fortalecer reciprocamente. É certo que "a limitação territorial do capital jamais correspondeu à sua mobi­lidade estrutural. Ela se deveu às condições históricas da sociedade burguesa na Europa" 10• No entanto, essas condições alteraram-se radi­calmente com a desnacionalização da produção económica. Nos úl­timos tempos, todos os países industrializados são afetados pela cir­cunstância de que as estratégias de investimento de um número cada vez maior de empresas orientam-se pelos mercados financeiros e de trabalho, organizados hoje em rede mundial.

Os "debates sobre a situação atual" que conduzimos hoje tornam evidente a cisão sempre maior entre os limitados espaços de ação cir-

9. Cf. I. Wallerstein, The Modem World System, New York, 1974. 10. R. Knieper, Nationale SouveriinitiU, Frankfurt am Main, 1991, p. 85.

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cunscritos aos Estados nacionais, de um lado, e os imperativos econô­micos globais, ou seja, os imperativos econômicos que praticamente não se podem mais influenciar por meios políticos, de outro. As variá­veis mais importantes são, por um lado, o desenvolvimento e difusão acelerados de tecnologias novas e fomentadoras da produção e, por outro, o enorme crescimento das reservas de mão-de-obra proporcio­nalmente baratas. Os dramáticos problemas de emprego no antes cha­mado Primeiro Mundo resultam não das relações clássicas do comér­cio internacional, mas sim de relações produtivas globalmente ligadas em rede. Estados soberanos só podem tirar proveito de seus respec­tivos economistas à medida que ainda existirem as economias nacio­nais, feitas sob medida para políticas intervencionistas.

Com o mais recente impulso em direção à desnacionalização da economia, porém, a política nacional perde progressivamente o do­mínio sobre as condições de produção sob as quais surgem os lucros e receitas tributáveis. Os governos têm cada vez menos influência sobre as empresas, as quais tomam suas decisões de investimento em um horizonte de orientação globalmente ampliado. Eles se vêem ante o dilema de ter que evitar duas reações igualmente irracionais. Pois as­sim como são ineficazes as tentativas de um enclaustramento prote­cionista e da formação de cartéis de repúdio, também é igualmente perigosa, em face das conseqüências sociais vindouras, uma adequa­ção de custos alcançada através da desregulamentação sociopolítica.

Abdicar da política e aceitar com isso uma taxa de desemprego alta e duradoura, bem como o desmonte do Estado social em prol do objetivo da capacidade de concorrer no mercado internacional, traz consigo conseqüências sociais que já se delineiam, por exemplo, nos países da OECD ( Organization for Economic Cooperation and Deve­lopment). As fontes da solidariedade social secam, de tal modo que as condições de vida existentes até então no Terceiro Mundo expandem­se nos grandes centros do Primeiro. Essas tendências intensificam-se no fenômeno de uma nova "subclasse". Com esse singular que pode induzir a erros, os sociólogos sintetizam um conjunto de grupos mar­ginalizados, que amplas parcelas da sociedade tratam de segmentar e isolar. A essa underclass pertencem os grupos pauperizados que se vêem abandonados a si mesmos, embora não tenham mais condições de alterar, com as próprias forças, sua situação social. Eles não dispõem de nenhum potencial de ameaça, da mesma forma que se dá com as

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regiões miseráveis em face das regiões desenvolvidas de nosso mundo. No entanto, esse tipo de segmentação não significa que sociedades dessolidarizadas possam simplesmente afastar de si partes da popula­ção sem que isso tenha conseqüências políticas. Em uma visão de longo alcance, há pelo menos três conseqüências inevitáveis. Uma subclasse gera tensões sociais cuja descarga se dá em revoltas despropositadas e autodestrutivas, que só podem ser controladas com recursos repressi­vos. A construção de penitenciárias, a organização da segurança in­terna em geral revelam-se uma indústria em crescimento. Além disso, a desolação social e a miserabilização física não se deixam delimitar localmente. O veneno do gueto também age sobre a infra-estrutura dos centros urbanos, atinge regiões inteiras e se fixa nos poros de toda a sociedade. Por fim, isso tem como conseqüência uma erosão moral da sociedade, que necessariamente danifica toda e qualquer coletivi­dade republicana em seu âmago universalista. Pois decisões de maio­ria estabelecidas de maneira formalmente correta e que apenas refle­tem os temores pela manutenção do status e reflexos de auto-afirma­ção por parte de uma classe média ameaçada pela descensão social corroem a legitimidade dos procedimentos e instituições. Por essa via, desvirtua-se a verdadeira conquista do Estado nacional, que tratou de integrar sua população por meio da participação democrática.

Esse cenário pessimista não é irrealista, mas certamente ilustra apenas uma entre muitas perspectivas para o futuro. A história des­conhece quaisquer leis em sentido estrito; e as pessoas, mesmo as so­ciedades, são capazes de aprender. Uma alternativa a se renunciar à política consistiria em que ela voltasse a crescer no sentido de acom­panhar os mercados - com a formação de agentes capazes de atuar em nível supranacional. Um exemplo disso é a Europa a caminho da União Européia. Infelizmente, esse exemplo não é instrutivo em ape­nas uma direção. Hoje os Estados europeus detêm-se ante o limiar de uma união monetária em favor da qual os governos nacionais terão de abandonar sua soberania financeira. Uma desnacionalização do dinheiro e da política monetária tornaria necessária uma política so­cial, econômica e financeira comum. Desde o Tratado de Maastricht, cresce nos Estados-membros a resistência à expansão vertical de uma União Européia que dessa forma assumiria ela mesma os traços es­senciais de um Estado e mediaria as relações entre seus membros, todos eles Estados nacionais. Sob a consciência das conquistas histó-

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ricas, o Estado nacional assume uma postura rígida ao levar em conta sua identidade, já que se vê atropelado e enfraquecido pelos proces­sos de globalização. Hoje como ontem, a política de cunho estatal­nacional ainda se limita a adequar a sociedade, da forma o mais in­dulgente possível, aos imperativos sistêmicos e efeitos secundários de uma dinâmica económica global que se mostra amplamente des­vinculada das condições políticas circunstantes. Em vez disso, ela te­ria de empreender a tentativa de superar-se a si mesma e formar pes­soas capazes de agir politicamente em um plano supranacional. Se nesse processo ainda fosse preciso fazer valer a herança normativa do Estado de direito contra a dinâmica de uma valorização do capital que momentaneamente se encontra isenta de quaisquer liames, isso teria que se dar sob formas associadas a processos de formação de­mocrática de vontade política.

"Superação" do Estado nacional: supressão ou suprassunção?

O discurso sobre a superação do Estado nacional é ambíguo. De acordo com uma maneira por assim dizer pós-moderna de entender a questão, o fim do Estado nacional leva-nos também à separação do projeto de autonomia para o Estado de cidadãos que, segundo essa vi­são, estourou seu crédito sem esperanças de recuperação. Para a outra maneira de entender a questão, não derrotista, ainda há chance para o projeto de uma sociedade apta a aprender e capaz de agir sobre si mes­ma por meio da vontade e da consciência política, mesmo para além de um mundo constituído por Estados nacionais. A controvérsia desen­volve-se em torno da autocompreensão normativa do Estado demo­crático de direito. Será que ainda agora, na era da globalização, pode­mos nos reconhecer aí, ou só nos cabe libertar-nos desse legado da velha Europa, honorável, mas que hoje perdeu por completo sua função?

Se não é apenas o Estado nacional que chega a seu fim, mas com ele também toda forma da socialidade política, então os cidadãos se­rão encaminhados a um mundo de relações enredadas de forma anó­nima, no qual lhes caberá decidir entre opções criadas sistemicamente, segundo as respectivas preferências. Nesse mundo pós-político, a em-

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presa transnacional se transformará em modelo comportamental. A autonomização do sistema económico global em face das tentativas inócuas de influência política empreendidas por via normativa mani­festa-se do ponto de vista da teoria dos sistemas como caso particular de um desenvolvimento mais abrangente. O ponto de fuga nesse hori­zonte é a sociedade global plenamente descentrada, que se decompõe em uma quantidade desordenada de sistemas funcionais que se repro­duzem e se orientam a si mesmos. Assim como as pessoas em estado natural no pensamento de Hobbes, esses sistemas constituem uns para os outros não mais que um entorno. Eles já não têm nenhuma língua em comum. Sem um universo de significados intersubjetivamente partilhado, esses sistemas apenas deparam uns com os outros com base em observações mútuas e comportam-se uns diante dos outros se­gundo imperativos de autoconservação.

J. M. Guéhenno descreve esse mundo anónimo da perspectiva dos cidadãos em particular, que se desligam da associação (já liquidada) entre sociedades estatais solidárias e que precisam situar-se então nesse contexto indiscernível de desordem, em que os sistemas de auto-afir­mação operam sem quaisquer normas. Essas "novas" pessoas desfa­zem-se da autocompreensão ilusória da modernidade. Mais do que evidente revela-se o cerne neoliberal dessa visão helenista. A autono­mia dos cidadãos é prontamente diminuída na proporção do compo­nente moral da autodeterminação ligada à cidadania reconhecida pelo Estado e realocada para o fundamento de uma autonomia privada: "As­sim como o cidadão romano na época de Caracalla, o cidadão da era da integração em rede define-se cada vez menos por seu compartilhamento do exercício de soberania e cada vez mais pelo fato de poder desenvol­ver uma atividade em um âmbito no qual todos os procedimentos obe­deçam a regras claras e previsíveis ... Deixará de ter importância se uma norma foi estabelecida por uma empresa privada ou por um funcioná­rio da administração pública. A norma não será mais expressão da so­berania, mas tão-somente um fator de redução da incerteza, um meio para a diminuição de custos operacionais, à medida que se aprimorar a transparência"11 • Em uma alusão renitente à polêmica de Hegel contra o "Estado de exceção e o Estado do entendimento", o Estado democrá­tico é substituído por um "Estado do direito privado sem qualquer re-

II. J. M. Guéhenno, Das Ende der Demokratie, München-Zürich, 1994, pp. 86s.

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missão filosófica ao direito natural, reduzido a um código de regras e legitimado apenas pela comprovação diária de sua capacidade funcio­nal"12. Em lugar de normas que são efetivas e que também obedecem a pontos de vista como soberania popular e direitos humanos, surge agora -sob a forma de uma "lógica da integração em rede"- a mão invi­sível de processos regulados de maneira pretensamente espontânea. Mas esses mecanismos insensíveis a custos externos deixam justamente de suscitar confiança. Isso se aplica em todo caso a dois dos exemplos mais conhecidos de auto-regulamentação global.

O "equilíbrio das potências': que durante três séculos serviu de base ao sistema internacional, entrou em colapso o mais tardar com o evento da Segunda Guerra Mundial. Sem tribunais internacionais ou poderes de sanção supraestatais, não se podia proceder judicialmente em relação ao direito das gentes qual um direito interno ao Estado, nem se podia fazer valer esse direito. De qualquer modo, a moral con­vencional e a "moralidade" das relações dinásticas zelaram por uma certa diligência normativa nas guerras. No século XX, a guerra total fez explodir também essa guarnição normativa já bastante fraca. O estágio avançado da tecnologia de armamentos, a dinâmica de ampliação do aparato bélico e a proliferação das armas de destruição em massa13 aca­baram por tornar evidentes os riscos dessa anarquia dos poderes que não estava mais orientada por qualquer mão invisível. A fundação da Aliança dos Povos de Genebra foi a primeira tentativa de ao menos domesticar o gerenciamento incalculável do poder no interior de um sistema coletivo de segurança. Com a fundação das Nações Unidas empreendeu-se um segundo assalto no sentido de estabelecer forças supranacionais capazes de agir em prol de uma ordem global pací­fica, que ainda continuava incipiente. Com o fim do equilíbrio bipolar do terror, e apesar de todos os retrocessos, parece abrir-se a perspec­tiva de uma "política interna internacional" (C. F. von Weizsãcker) no campo da política internacional de segurança e direitos humanos. O fracasso do equilíbrio anárquico entre as potências ao menos deixou claro ser desejável uma regulamentação política nesse campo.

12. J. M. Guéhenno,l994, p. 140. 13. Presumivelmente, há hoje dez países que dispõem de armas nucleares, mais

de vinte dispõem de armas químicas e já se supõe a existência de armas bacterioló­gicas no Oriente Médio e Próximo; cf. E. O. Czempiel, Weltpolitik im Umbruch, Mün­chen, 1993, p. 93.

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Algo semelhante se dá com o outro exemplo de integração es­pontânea em rede. Caso se deva suplantar a interdependência assimé­trica entre o mundo da OECD e os países marginalizados que ainda precisam desenvolver economias auto-sustentáveis, o mercado global não pode ficar sob o domínio exclusivo do Banco Mundial e do Fun­do Monetário Internacional. A conta apresentada em Copenhague pela Cúpula Social Mundial é aterradora. Faltam agentes capazes de atuar com força suficiente no plano internacional para atingir consensos em torno dos arranjos, procedimentos e condições políticas circuns­tanciais prementes. Não são apenas as disparidades entre o Norte e o Sul que exigem uma cooperação como essa, senão também a deca­dência do padrão social nas sociedades abastadas do Atlântico Norte. Neles, a política social limitada pelas estruturas do Estado nacional revela-se ineficiente no combate às conseqüências dos baixos custos da mão-de-obra em mercados de trabalho globalizados e em rápida expansão. Em especial, a falta de forças de ação supranacionais capa­zes se faz notar quando se trata de problemas ecológicos como os que foram negociados em sua abrangência global na reunião de cúpula do Rio de Janeiro. Uma ordem mundial e uma ordem económica global mais pacífica e mais justa não podem ser concebidas sem instituições internacionais capazes de agir, nem sem processos de conciliação en­tre os regimes continentais ora emergentes, nem tampouco sem polí­ticas que provavelmente só poderão se impor sob a pressão de uma sociedade civil capaz de transitar em esfera global.

Isso já sugere a outra maneira de ler a questão, segundo a qual o Estado nacional teria sido antes "suprassumido': e não extinguido. A essa noção luminosa das figuras capazes de agir em um plano supra­nacional e capazes de dar condições às Nações Unidas e a suas organi­zações regionais para que iniciem uma nova ordem mundial e uma nova ordem económica global, segue no entanto uma pergunta assam­brosa e inquietante: resta saber se uma formação democrática de opi­nião e vontade realmente poderá alcançar a força vinculativa neces­sária, mais além da fase de integração ligada ao Estado nacional.

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5 Inserção - inclusão ou confinamento? DA RELAÇÃO ENTRE NAÇÃO, ESTADO DE DIREITO E DEMOCRACIA Pam Hans-Ulrich Wehler, no seu 65° aniversário*

Tal como o período da descolonização após a Segunda Guerra Mundial, também a desagregação do império sovié­tico caracterizou-se por uma rápida seqüência de formações dissolutivas de Estados. A paz assinada em Dayton e Paris constitui a conclusão provisória de secessões bem-sucedi­das, que levaram à fundação de novos Estados nacionais ......... ou ao restabelecimento de Estados nacionais liquidados, le­vados a uma situação de dependência ou divididos. Pelo que parece, esses são apenas os sintomas mais nítidos da força vital de um fenômeno mais ou menos esquecido, não ape­nas pelas ciências sociais: "Quando da desagregação de es­paços de domínio imperial, forma-se de novo o mundo de Estados a partir de linhas de fronteiras marcadas pelas ori­gens, cujo curso é explicado recorrendo-se à historiografia nacional"1• Hoje em dia, o futuro político parece pertencer novamente às "potências originais", entre as quais Hermann Lübbe conta "a religião, a confissão constituída de modo ecle­sial, por um lado, e a nação, pelo outro". Outros autores falam

• Tradução: George Sperber. L H. Lübbe, Abschied vom Superstaat, Berlin 1994, 33s.

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de "etnonacionalismo", para salientar a indisponível relação com as origens, seja no sentido físico de uma ascendência comum, seja no sentido mais amplo de uma herança cultural comum.

As terminologias estão longe de ser inocentes. Elas sugerem de­terminado modo de ver. A recente criação do termo "etnonaciona­lismo" passa por cima da diferença fixada na terminologia tradicio­nal entre "ethnos" e "demos"2• A expressão salienta a proximidade entre, por um lado, as etnias, ou seja, as comunidades de ascendên­cia, pré-políticas, organizadas segundo relações de parentesco, e, por outro lado, as nações organizadas como Estados e que pelo menos aspiram à independência política. Com isso, contradiz-se implici­tamente a pressuposição de que as comunidades étnicas são "mais naturais" e "mais antigas': do ponto de vista da evolução, do que as na­ções3. A "consciência do nós': fundada num imaginário parentesco de sangue ou identidade cultural, de pessoas que compartilham a cren­ça numa origem comum e se identificam mutuamente como "mem­bros" de uma mesma comunidade, diferenciando-se assim dos que os rodeiam, deveria constituir o cerne comum das comunidades étni­cas ou nacionais. Em vista desses aspectos comuns, as nações dife­renciar-se-iam essencialmente de outras comunidades étnicas pela sua complexidade e tamanho: "It is the largest group that can command a person's loyalty because of felt kinship ties; it is, from this perspective, the fully extended family"4.

Esse conceito etnológico de nação entra em concorrência com o conceito empregado historicamente, porque apaga as referências es­pecíficas à ordem do Estado democrático de direito, à historiografia política e à dinâmica da comunicação de massas, às quais a consciência nacional surgida na Europa do século XIX deve seu caráter reflexivo e

2. Cf. M. R. Lepsius, "'Ethnos' und 'Demos'". ln: idem:, lnteressen, Ideen und lnsti­tutionen, Opladen 1990, 247 -256; idem, Demokratie in Deutschland, Gõttingen 1993.

3. Cf. C. Leggewie, "Ethnizitiit, Nationalismus und multikulturelle Gesellschaft". ln: H. Berding (ed.), Nationales Bewufttsein und kollektive Identitiit, Frankfurtam Main 1995,54.

4. [É o maior grupo que pode comandar a lealdade de uma pessoa devido ao sentimento de liames de parentesco; é, a partir desta perspectiva, a família extensa ple­na.] W. Connor, Ethnonacionalism, Princeton U. P., 1994, 202: Ou r answer to that often asked question, "What is a nation'; is that it is a group of people who feel they are ancestrally related ["Nossa resposta à pergunta freqüentemente formulada, "o que é uma nação?': é que ela é um grupo de pessoas que ~entem que são ancestralmente relacionadas.]

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peculiarmente artificial5. Quando o "nacional" surge, a partir do ponto de vista de um construtivismo generalizado, de modo semelhante ao que já se deu com o étnico, como "comunidade crida" ou "imaginada" (M. Weber), é possível conferir à "invenção da nação-povo" (H. Schulze) um viés surpreendentemente afirmativo. Enquanto cunho especial de uma forma universal de comunitarização, a imaginária primordia­lidade natural do nacional quase ganha novamente, até mesmo para o cientista, que parte de seu caráter de construção, algo de natural. Pois tão logo vemos no nacional apenas uma variante de um universal so­cial, o retorno do nacional não requer maiores explicações. Quando a presunção de normalidade reverte em favor do etnonacionalismo, nem mesmo faz sentido descrever os conflitos que hoje voltam a chamar a atenção enquanto fenômenos regressivos de alienação, ou tentar tor­ná-los compreensíveis, por exemplo, como compensações pela perda de um status internacional de potência ou como elaboração de uma relativa privação económica.

Ora, as sociedades modernas, funcionalmente coesas pelo mer­cado e pelo poder administrativo, certamente continuam a se delimi­tar umas das outras como "nações". Mas isso ainda nada diz a respeito da espécie do auto-entendimento nacional. Permanece a questão em­pírica a respeito de quando e em que medida as populações moder­nas se entendem a si mesmas como uma nação de membros de um povo ou de concidadãos. Essa dupla codificação toca a dimensão de fechamento e inserção. A consciência nacional oscila estranhamente entre a inserção ampliada e o fechamento renovado.

Enquanto moderna formação da consciência, a identidade na­cional caracteriza-se, por um lado, pela tendência para a superação de vinculações regionais, particularistas. Na Europa do século XIX, a nação funda um novo relacionamento solidário entre pessoas que, até então, eram estranhas umas para as outras. A transformação uni­versalista das lealdades tradicionais para com a aldeia e a família, a região e a dinastia, é um processo difícil e, sobretudo, longo, que mes­mo nos clássicos estados-nação do Ocidente não deve ter abrangido e permeado toda a população antes do início do século XX6 • Por outro lado, não foi por acaso que essa forma mais abstrata de integração se

5. Cf. H. Schulze, Staat und Nation in der Europaischen Geschichte, München, 1994. 6. Cf. p. ex. P. Sahlins, Boundaries, University of California Press, Berkeley 1989.

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manifestou na disposição para a luta e o sacrifício dos recrutas que foram mobilizados contra os "inimigos da pátria". Em casos de emer­gência, a solidariedade dos concidadãos deveria afirmar-se como a solidariedade daqueles que arriscam sua vida pelo povo e pela pá­tria. No conceito de povo inspirado pelo romantismo, que afirma sua existência e sua particularidade na luta contra outras nações, a primordialidade natural da imaginária comunidade de língua e ascen­dência funde-se com a idéia da comunidade de destino, construída mediante a narrativa dos acontecimentos. Mas essa identidade na­cional enraizada num passado fictício carrega simultaneamente o projeto orientado para o futuro da realização dos direitos republica­nos de liberdade.

Essa característica bifronte da nação, que se abre para dentro e se fecha para fora, já fica nítida no significado ambivalente do conceito de liberdade. A liberdade particularista de um coletivo que afirma sua independência nacional diante do exterior, apresenta-se apenas como um invólucro protetor para as liberdades individuais dos cidadãos, realizadas no interior - a autonomia privada dos membros da so­ciedade, na mesma medida da autonomia política dos cidadãos. Nessa síndrome dilui-se o antagonismo conceituai entre uma concernência sem alternativa, porque adscritícia, a um povo, que se constitui numa característica imperdível, e a qualidade de membro, livremente assu­mida e garantida por direitos subjetivos, numa comunidade política voluntária, que oferece a seus cidadãos a opção da egressão. Esse có­digo duplo suscita até hoje interpretações concorrentes e diagnósticos políticos antagónicos.

A idéia da nação de um povo conduz à hipótese de que o demos dos concidadãos tem de se enraizar no ethnos dos membros de um povo, para poder estabilizar-se como uma associação política de juris­consortes* livres e iguais. Segundo se diz, a força vinculativa da co­munitarização republicana é insuficiente para isso. A lealdade do cida­dão precisa de uma ancoragem na consciência da solidariedade do povo, marcada por uma primordialidade natural e pelo destino his­tórico. A "pálida" idéia, nascida em seminários acadêmicos, de um

• N.T.: Permito-me, apoiado na existência da palavra "litisconsorte", sugerir este neologismo para traduzir a palavra alemã Rechtsgenosse, que poderia também ser tra­duzida como "membro de uma comunidade jurídica".

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"patriotismo constitucional" não pode suplantar uma "sã consciência nacional": "Esse conceito (do patriotismo constitucional) paira ... no ar ... O recurso à nação, ... à consciência de um 'nós' nela contida, capaz de criar liames emocionais, não pode ser, portanto, elidido"7• É certo que, a partir de outra perspectiva, a simbiose entre naciona­lismo e republicanismo se apresenta mais como uma constelação pas­sageira. Foi apenas uma consciência nacional propagada por intelec­tuais e sábios, que se espraiou lentamente a partir da burguesia urba­na culta e se cristalizou em redor da ficção de uma ascendência co­mum, da construção de uma história compartida e de uma língua escrita, gramaticalmente simplificada, aquilo que certamente trans­formou os súditos em cidadãos politicamente conscientes, que se iden­tificam com a constituição da república e com seus fins declarados. Contudo, o nacionalismo não é, não obstante esse papel catalisador, uma condição prévia necessária para um processo democrático. A progressiva inclusão da população no status de cidadãos não apenas abre para o estado uma fonte secular de legitimação, mas também produz o novo patamar para uma integração social abstrata, juridi­camente mediada.

Ambas essas interpretações partem da idéia de que o Estado na­cional reagiu ao problema da desintegração de uma população que foi arrancada dos liames sociais estamentais da sociedade dos pri­mórdios da Idade Moderna. Mas um dos lados localiza a solução do problema no nível da cultura, e o outro, no nível das instituições e dos procedimentos democráticos. Ernst Wolfgang Bõckenfõrde salienta a identidade coletiva: "No sentido contrário, é necessária ... uma re­lativa homogeneização numa cultura comum ... , para que a socieda­de, tendencialmente atomizada, possa ser novamente coesa e - sem levar em consideração sua diferenciada multiplicidade - associada numa unidade capaz de agir. Essa função é assumida, ao lado e de­pois da religião, pela nação e pela consciência natural a ela perten­cente ... Assim, não se pode ultrapassar a meta e substituir a identi­dade nacional, nem mesmo em favor da idéia da universalidade dos direitos humanos"8. O lado contrário está convencido de que o pró­prio processo democrático pode assumir o papel de fiador em caso

7. E. W. Bõckenfõrde, "Die Nationn, Frankfurter Allgemeine Zeitung, 30.09.1995. 8. Bõckenfõrde, op. cit.

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de falta da integração social, numa sociedade que cada vez mais se diferencia internamente9• Assim é que, nas sociedades pluralistas, esse ônus não pode ser desviado do nível da formação de vontade política e da comunicação pública e aberta para o substrato cultural, aparen­temente de origem natural, de um povo supostamente homogêneo. Sob essa premissa, Hans-Ulrich Wehler chega a emitir a opinião de que "as uniões federativas de Estados, juntamente com um sentimento de lealdade baseado primordialmente nas prestações do Estado cons­titucional e social, encarnam uma utopia incomparavelmente mais atraente do que o retorno para a presumida normalidade do Estado nacional. .. alemão" 10•

Falta-me competência para levar adiante esta disputa com argu­mentos históricos. Em lugar disso, interessam-me as construções, em termos de direito constitucional, das relações entre nação, Estado de direito e democracia, com as quais é disputada esta questão em nível normativo. Juristas e politólogos interferem nos processos de auto­comunicação dos cidadãos com meios outros, porém não menos efi­cientes, do que os historiadores; eles podem até mesmo exercer in­fluência sobre a práxis decisória do Supremo Tribunal Federal. De acor­do com o conceito clássico de fins do século XVIII, 'nação' significa o povo de um Estado, que se constitui como tal, na medida em que ele se confere uma constituição democrática. Esse conceito está em con­corrência com a visão, surgida no século XIX, segundo a qual a sobe­rania popular pressupõe um povo que, em contraste com a ordem artificial do direito positivo, projeta-se para o passado como algo orga­nicamente crescido: "O 'povo', ... que é considerado o sujeito do poder constituinte nas democracias, não obtém a sua identidade apenas a partir da constituição que ele se confere. Essa identidade é muito mais um fato pré-constitucional, histórico. Certamente contingente, mas nem por isso aleatório, muito mais, indisponível para aqueles, que acham que pertencem a um povo" 11 •

Na história dos efeitos dessa tese, Carl Schmitt teve um papel rele­vante. Inicialmente, compararei a construção de Schmitt referente à rela-

9. Cf. J. Habermas, Die Normalitiit einer Berliner Republik, Frankfurt am Main, 1995, 181.

10. H. U. Wehler, "Nationalismus und Nation in der deutschen Geschichte': in Berding (1995), 174s.

11. H. Lübbe (1994), 38s.

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ção entre nação, Estado de direito e democracia com a respectiva visão clássica (I). Disso resultam diversas conseqüências para alguns proble­mas atuais e relacionados entre si: para o direito à autodeterminação nacional (II) e para a igualdade de direitos nas sociedades multicul­turais (III), assim como para o direito às intervenções humanitárias (IV) e para a transferência de direitos de soberania a instituições suprana­cionais (V). Seguindo o fio condutor desses problemas, gostaria de dis­cutir a inconveniência da visão etnonacionalista da soberania popular.

o Construções da soberania popular

no direito constitucional

( 1) Em sua interpretação da Constituição de Weimar, Carl Schmitt confere a um etnonacionalismo concebido de modo construtivista a hierarquia de um direito constitucional. A república de Weimar fazia parte da tradição de um Estado de direito- já desenvolvido durante a monarquia constitucional - que deveria proteger os cidadãos dos abusos do poder do Estado; contudo, ela integrava, pela primeira vez em solo alemão, o Estado de direito com a forma do Estado e com o conteúdo político da democracia. Essa situação inicial, específica do desenvolvimento jurídico alemão, reflete-se na estrutura da "doutrina constitucional" de Schmitt. Nela, Schmitt estabelece uma nítida di­visão entre a parte "de Estado de direito" e a parte "política" da cons­tituição, utilizando depois a "nação" como dobradiça, que articula os princípios tradicionais do Estado burguês de direito com o princípio democrático da autodeterminação do povo. Ele declara a homoge­neidade nacional como sendo condição necessária para o exercício democrático do poder: "Um Estado democrático, que encontra os pres­supostos de sua democracia na homogeneidade nacional de seus ci­dadãos, corresponde ao assim chamado princípio de nacionalidade, segundo o qual uma nação constitui um Estado, e um Estado cons-

. . - nl2 t1tm uma naçao . Com isso, Schmitt acompanha uma idéia de Johann Caspar

Bluntschli; sente-se também em consonância com os princípios-

12. C. Schmitt, Verfassungslehre, Berlin 1983, 231.

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compartidos igualmente por Wilson e por Lenin -, segundo os quais os tratados assinados no subúrbio de Paris tinham fixado a ordem européia do pós-guerra. Mais importante do que essas concordâncias históricas é a precisão conceituai. Schmitt imagina a participação po­lítica uniforme dos cidadãos na formação da vontade política como um acordo voluntário das manifestações de vontade dos participantes uníssonos de um povo mais ou menos homogêneo13• A democracia só pode existir na figura da democracia nacional, porque o sujeito do autogoverno do povo é concebido como um macrossujeito capaz de agir, e porque a nação de um povo parece ser a grandeza adequada para ocupar esse espaço conceituai. Ela é vista como um substrato su­postamente natural da organização do Estado. Essa interpretação coletivista do modelo rousseauniano da auto legislação condiciona todo e qualquer raciocínio posterior.

É certo que a democracia só pode ser exercida como uma práxis comunitária. Mas Schmitt não constrói essa comunidade como a in­tersubjetividade de grau superior de um acordo mútuo entre cida­dãos, que se reconhecem reciprocamente como livres e iguais. Ele a coisifica enquanto homogeneidade dos membros de um povo. A ori­gem da norma da igualdade de tratamento é procurada no fato da igualdade da origem nacional: "A igualdade democrática é uma igual­dade substancial. Porque todos os cidadãos participam dessa subs­tância, eles podem ser tratados como iguais, podem ter o mesmo direito de votar e de ser votados etc." 14• A partir dessa substancialização do povo de um Estado, resulta como mais uma sinalização de direção conceituai uma concepção existencialista do processo democrático de decisão. Schmitt concebe a formação da vontade política como a auto­afirmação coletiva de um povo: "O que o povo quer é bom, justamen­te porque o povo (o) quer" 15• A separação entre democracia e Estado de direito mostra aqui o seu sentido oculto: como a vontade política orientadora não tem um conteúdo normativo racional, como ela se esgota, antes, no conteúdo expressivo de um espírito popular natura­lizado, ela também não precisa surgir de uma discussão pública.

13. Cf. I. Maus, "Rechtsgleichheit und gesellschaftliche Differenzierung bei Carl Schmitt". ln: idem, Rechtstheorie und Politische Theorie im Industriekapitalismus, München, 1986,111-140.

14. C. Schmitt (1983), 228. 15. C. Schmitt (1983), 229.

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Aquém da razão e da desrazão, a autenticidade da vontade popu­lar atesta-se unicamente na execução plebiscitária da manifestação de vontade de uma multidão de populares, reunida num dado momen­to. Antes mesmo de o autogoverno de um povo se solidificar nas com­petências dos órgãos de um Estado, ele se manifesta em posiciona­mentos espontâneos pelo sim ou pelo não, diante de alternativas dadas: "Só o povo realmente reunido é povo ... e pode fazer aquilo que faz parte específica da atividade desse povo; pode aclamar, isto é, expri­mir a sua concordância ou discordância pelo simples brado"16• Are­gra da maioria apenas operacionaliza a consonância das manifestações individuais de vontade- "todos querem o mesmo". Essa convergên­cia traz à consciência o a priori substancial de uma forma coletiva de vida nacional. O acordo prévio apriorístico é garantido pela homoge­neidade substancial dos membros de um povo, que se diferenciam como uma nação especial das outras nações: "O conceito democrático da igualdade é um conceito político e faz referência à possibilidade da diferenciação. A democracia política, portanto, não pode fundamen­tar-se na falta de diferenças entre todos os seres humanos, mas apenas na concernência a um determinado povo ... A igualdade, que faz parte da essência da democracia, dirige-se portanto apenas para dentro, não para fora" 17•

Desse modo, Schmitt faz o "povo" assumir uma posição polêmica diante de uma "humanidade", entendida como um conceito "huma­nista': com o qual se associa o conceito moral do respeito igual para todos: "O conceito central da democracia é o povo, não a humanidade. Se a democracia quiser ser uma forma política, só existe uma democra­cia popular, e não uma democracia humanitária" 18• Na medida em que "a idéia da igualdade dos seres humanos"- no sentido do respeito uniforme pelos interesses de cada um- tem alguma relevância para a constituição, ela se expressa no princípio jurídico, no direito aos mesmos direitos subjetivos, assim como na organização constitucional do poder do Estado. O sentido de inserção dos direitos humanos esgota-se no gozo privado das mesmas liberdades liberais, enquanto o exercício cida­dão das liberdades políticas deve obedecer a uma lógica totalmente

16. C. Schmitt ( 1983), 243. 17. C. Schmitt ( 1983), 227. 18. C. Schmitt ( 1983), 234.

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diversa. O sentido da autodeterminação democrática baseada na ho­mogeneidade é a independência nacional- a auto-afirmação, auto­confirmação e auto-realização de uma nação em sua peculiaridade. Essa 'nação' medeia entre o Estado de direito e a democracia, porque do exercício democrático do poder só podem participar os cidadãos que surgiram da transformação dos particulares em membros de uma nação politicamente consciente.

(2) Com esse desacoplamento dos direitos fundamentais, que regulam o trato privado dentro da sociedade burguesa, de uma "demo­cracia popular" substancial19, Schmitt coloca-se em crassa contradi­ção com o republicanismo inspirado no direito racional. Nessa tra­dição, "povo" e "nação" são conceitos que podem ser trocados entre si, concernentes a uma cidadania que tem igualdade de origem com sua comunidade democrática. O povo de um Estado não vale como um dado pré-político, mas como produto do contrato social. Na medida em que os participantes decidem em comum fazer uso de seu direito primitivo de "viver sob leis públicas reguladoras da liberdade': eles constituem uma associação de jurisconsortes livres e iguais. A decisão de viver em liberdade política tem o mesmo significado que a incitava em favor de uma práxis constituinte. Graças a isso, e diferentemente do que ocorre com Carl Schmitt, soberania popular e direitos huma­nos, democracia e Estado de direito estão conceptualmente interli­gados. Pois a decisão inicial em favor de uma legislação democrática só pode ser executada pela via da realização daqueles direitos que os participantes devem reconhecer reciprocamente, se quiserem regular legitimamente a sua convivência com os meios do direito positivo. Isso exige, por sua vez, um processo de legiferação que garanta legiti­midade e que estabeleça a longo prazo a configuração do sistema das leis20• Nesse caso, segundo a fórmula rousseauniana, todos devem de­cidir o mesmo para todos. Portanto, os direitos fundamentais surgem da idéia da institucionalização jurídica de tal processo de autolegisla­ção democrática.

A idéia de uma soberania popular de tal modo procedimentalizada e orientada para o futuro faz com que perca sentido a reivindicação de

19. B. O. Bryde, "Die bundesrepublikanische Volksdemokratie ais lrrweg der Demokratietheorie': Staatswissenschaften und Staatspraxis, 5, 1994, 305-329.

20. Cf. J. Habermas, Faktizitat und Geltung, Frankfurt am Main, 1992, cap. 3.

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retornar a formação da vontade política ao a priori substantivo de um consenso passado obtido entre membros de um povo homogeneizado num momento pré-político: "O direito positivo não é legítimo pelo fato de corresponder a princípios substantivos de justiça, mas por ter sido criado em processos que, por sua própria estrutura, são justos, quer dizer, democráticos. O fato de, durante o processo legislativo, todos decidirem a mesma coisa a respeito de todos, é um pressuposto normativo pretensioso, que não mais se define pela substância, mas pela autolegislação dos destinatários do direito, pela igualdade de po­sições nos processos e pela generalidade das regras jurídicas, e deve impedir o arbítrio e minimizar a dominação"21 • Não é necessário um consenso básico anterior, garantido pela homogeneidade cultural, porque uma formação democraticamente estruturada de opinião e de vontade possibilita um acordo normativo racional também entre es­tranhos. Pelo fato de o processo democrático, graças às suas caracte­rísticas procedimentais, garantir legitimidade, ele pode, quando ne­cessário, preencher as lacunas da integração social. Porque, na medida em que garante uniformemente o valor de uso das liberdades subjeti­vas, ele cuida de que a rede da solidariedade cidadã não se rompa.

A crítica dessa interpretação clássica dirige-se sobretudo contra sua leitura "liberalista': Carl Schmitt questiona a força de integração social do Estado de direito centrado no processo democrático a partir dos dois aspectos que já tinham sido determinantes para a crítica feita por Hegel do "Estado da necessidade e da razão", característico do mo­derno direito natural, e que hoje são retomados pelos "comunitaristas" na sua discussão com os "liberais"22• Os alvos são a concepção atomística do indivíduo como um "eu desvinculado" e o conceito instrumentalista da formação da vontade política como uma agregação de interesses sociais. Os contraentes do contrato social são apresentados como egoís­tas isolados, racionalmente esclarecidos, que não estão cunhados por tradições comuns, ou seja, não compartilham orientações culturais de valor e não agem orientados para o acordo mútuo. Segundo essa des­crição, a formação de vontade política ocorre exclusivamente pelo modo de negociações a respeito de um modus vivendi, sem que seja possível

21.1. Maus, '"Volk' und 'Nation' im Denken der Autklãrung", Bliitter für deutsche und internationale Politik, 5, 1994, 604.

22. Cf. R. Forst, Kontexte der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main 1994, Cap. I e III.

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um entendimento a partir de pontos de vista éticos ou morais. É de fato difícil imaginar como pessoas dessa espécie poderiam chegar por essa via a uma ordem jurídica intersubjetivamente reconhecida, da qual se esperaria que forjasse uma nação de cidadãos a partir de um grupo de estranhos, ou seja, que estabelecesse uma solidariedade cidadã entre estranhos. Diante de um pano de fundo como esse, pintado com cores da gama preferida por Hobbes, recomenda-se então a origem étnica ou cultural comum de um povo mais ou menos homogêneo, como origem e fiador daquela espécie de vínculos normativos, diante dos quais o individualismo possessivo é cego.

Contudo, a crítica justificada dessa variante do direito natural não acerta o alvo de uma concepção intersubjetivista da soberania po­pular procedimentalizada, com a qual, aliás, o republicanismo tem maior afinidade. Segundo essa leitura, o modelo de contrato do direi­to privado entre participantes do mercado é substituído pela práxis da consulta entre participantes do processo de comunicação, que gosta­riam de chegar a decisões motivadas pelo bom senso. A formação da opinião e da vontade políticas não se realiza apenas na forma dos com­promissos, mas também segundo o modelo dos discursos públicos, que visam a aceitabilidade racional das regras, à luz de interesses ge­neralizados, de orientações de valor compartidas e de princípios fun­damentados. Desse modo, esse conceito não-instrumental de política apóia-se no conceito da pessoa que age comunicativamente. Também as pessoas jurídicas não devem ser concebidas como proprietárias de si mesmas. Faz parte do caráter social das pessoas físicas o fato de elas se desenvolverem em meio a formas de vida compartidas intersubjeti­vamente, para se tornarem indivíduos e estabilizarem sua identidade em condições de reconhecimento recíproco. Por isso, também a partir de um ponto de vista jurídico, a pessoa individual só pode ser protegi­da juntamente com o contexto dos seus processos de formação, ou seja, com um acesso seguro a relações impessoais de sustentação, às redes sociais e às formas da vida cultural. Um processo legislativo e de tomada de decisões políticas, instruido de modo discursivo e sem per­der de vista o que acabou de ser dito, tem de respeitar tanto as prefe­rências existentes quanto os valores e as normas. Desse modo, esse processo se qualifica muito bem para a tarefa de assumir o papel de fiador político em caso de inadimplência das funções de integração, ocorrida num outro ponto.

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Dos pontos de vista de Kant e de um Rousseau bem entendido23,

a autodeterminação democrática não possui o sentido coletivista e ao mesmo tempo excludente da afirmação da independência nacio­nal e da concretização da singularidade nacional. Mais do que isso, tem o sentido de inserção de uma autolegislação que inclui unifor­memente todos os cidadãos. Inserção significa que tal ordem polí­tica se mantém aberta para equiparar os discriminados e para incluir os marginalizados, sem confiná-los na uniformidade da comunidade homogênea de um povo. Para isso é significativo o princípio da volun­tariedade; a nacionalidade do cidadão fundamenta-se em seu con­sentimento, pelo menos implícito. A visão substancialista da sobe­rania popular refere "liberdade" essencialmente à independência ex­terna na existência de um povo; a visão procedimentalista, por sua vez, refere-a à autonomia privada e pública, uniformemente garanti­da internamente a uma associação de jurisconsortes livres e iguais. A partir dos desafios com que hoje nos vemos confrontados, gostaria de mostrar que essa leitura do republicanismo, feita segundo os prin­cípios da teoria da comunicação, é mais apropriada do que uma vi­são etnonacionalista, ou mesmo comunitarista dos conceitos de na­ção, Estado de direito e democracia.

Sentido e falta de sentido da autodeterminação nacional

O princípio de nacionalidade significa um direito a autodetermi­nação nacional. De acordo com ele, toda nação que quer se governar a si própria tem direito a uma existência enquan!Q Estado independente. A visão etnonacionalista da soberania popular parece oferecer solução para um problema, ao qual a republicanismo ficou devendo resposta. Como pode ser definida a totalidade fundamental daqueles aos quais se devem legitimamente referir os direitos fundamentais?

Kant reconhece que todo ser humano tem, enquanto tal, o di­reito a ter direitos e a regular comunitariamente a convivência com os outros, de tal modo que todos possam usufruir das mesmas liber­dades, segundo leis públicas e obrigatórias. Mas com isso ainda não

23. Cf. I. Maus, Zur Aufkli:irung der Demokratietheoríe, Frankfurt am Main 1992.

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está definido quem de fato pode fazer uso desse direito, com quem, onde e quando, nem quem pode associar-se numa comunidade autodeterminada, sobre o fundamento de um contrato social. A ques­tão da composição legítima da comunidade básica dos cidadãos fica aberta enquanto a autodeterminação democrática se referir apenas à espécie de organização da convivência de jurisconsortes associados. É certo que a autolegislação de uma nação democraticamente cons­tituída provém das decisões de uma geração de fundadores, no sentido de se conferir a si mesmos uma constituição. Contudo, através desse ato, os participantes só se qualificam retrospectivamente como povo de um Estado. É pela vontade coletiva de criar uma existência enquan­to Estado e, como conseqüência dessa decisão, através da própria práxis constituinte, que os participantes se constituem numa nação de cidadãos.

Essa visão não é problemática enquanto as questões defrontei­ras realmente não forem objeto de disputa- como por exemplo na Revolução Francesa, ou na Americana, quando os cidadãos tiveram de lutar para conquistar as liberdades republicanas, seja contra o próprio governo, quer dizer dentro das fronteiras de um Estado exis­tente, seja contra um senhor colonial que tinha demarcado ele pró­prio as fronteiras da desigualdade. Contudo, a resposta circular, de que os próprios cidadãos se constituem enquanto povo e, com isso, demarcam o seu território geográfica e socialmente, é insuficiente em outros casos de conflito: 'To say that ali people ... are entitled to the democratic process begs a prior question. When does a collection of persons constitute an entity- 'a people'- entitled to govern itself democratically?"24• No mundo, tal qual o conhecemos, é o acaso his­tórico, normalmente o simples resultado de conflitos armados, guer­ras e guerras civis, quem decide a quem caberá, em cada caso, o exer­cício do poder e definirá as fronteiras controvertidas de um Estado. Enquanto o republicanismo reforça a nossa consciência da contin­gência dessas fronteiras, o recurso à idéia de uma nação de origem primordial, capaz de vencer essa contingência, pode ornar as fron­teiras com uma aura de substancialidade simulada, legitimando-as

24. [Dizer que todos os povos ... têm direito a um processo democrático pressu­põe uma pergunta anterior. Quando uma coleção de pessoas constitui uma entidade re 'um povo' re com direito a se autogovernar democraticamente?] R. A. Dahl, Democracy and Its Critics, Yale U. P., New Haven e Londres, 1989, 193.

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através de relações artificiais de origem. O nacionalismo preenche a lacuna normativa com um apelo a um assim chamado "direito" à autodeterminação nacional.

Divergindo da teoria racional do direito, que reconhece que as condições jurídicas surgem das relações individuais do reconhecimen­to intersubjetivo, Carl Schmitt parece poder fundamentar tal direito coletivo. Pois, quando a autodeterminação democrática é introduzi­da com o sentido da auto-afirmação e da auto-realização coletivas, ninguém pode realizar seu direito fundamental a uma série de di­reitos fundamentais iguais fora do contexto de um povo constituído em nação, que goza de independência enquanto Estado. A partirdes­se ponto de vista, o direito coletivo de todos os povos a uma existên­cia própria na forma de Estado é condição necessária para a garantia eficiente de direitos individuais iguais para todos. Essa fundamenta­ção do princípio da nacionalidade, em termos da teoria da democra­cia, permite conferir retroativamente força normativa ao sucesso fac­tual de movimentos de independência nacional. Porque determinado povo se qualifica para o direito à soberania nacional pelo fato de ele próprio se definir como povo homogêneo e de ter, simultaneamente, o poder para controlar as fronteiras que são deduzidas de tais carac­terísticas adscritícias.

Por outro lado, a hipótese de um povo homogêneo contradiz o princípio da voluntariedade e conduz às conseqüências normativas indesejáveis que Schmitt nem mesmo procura ocultar: "Um Estado nacionalmente homogêneo apresenta-se então como algo normal; um Estado, ao qual falta essa homogeneidade, tem algo de anormal, algo que se constitui em ameaça para a paz"25• A pressuposição de uma identidade coletiva indisponível acaba forçando a políticas repres­sivas, seja de assimilação coercitiva de elementos estranhos, seja de preservação da pureza do povo, mediante apartheid ou limpeza étni­ca, pois "um Estado democrático perde(ria) sua própria substância por um reconhecimento conseqüente da igualdade geral entre os se­res humanos no âmbito da vida pública e do direito geral"26• Além das medidas preventivas para o controle da admissão de estrangeiros, C. Schmitt fala ainda na "submissão e evacuação da população heterogê-

25. C. Schmitt (1983), 231. 26. C. Schmitt (1983), 233.

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nea", assim como em sua segregação geográfica, ou seja, na instalação de protetorados, colônias, reservas, homelands etc.

A concepção republicana naturalmente não exclui que comuni­dades étnicas possam conferir-se uma constituição democrática e pos­sam se estabelecer como Estados soberanos, na medida em que essa independência se legitime a partir do direito individual de cada cida­dão a viver em liberdade, de acordo com as leis. Porém, via de regra, os Estados nacionais não se desenvolvem de modo pacífico, a partir de etnias individuais, que vivem de forma isolada. Com muito maior fre­qüência eles se expandem para regiões, tribos, subculturas e comuni­dades lingüísticas e religiosas vizinhas. Os novos Estados nacionais surgem geralmente à custa de 'povos inferiores' assimilados, oprimidos ou marginalizados. A formação de Estados nacionais sob o signo do etnonacionalismo foi quase sempre acompanhada de sangrentos ri­tuais de limpeza e sempre submeteu novas minorias a novas repres­sões. Na Europa dos fins do século XIX e do século XX, ela deixou as marcas cruéis da emigração e expulsão, da evacuação pela força, da privação de direitos e do extermínio físico - até o genocídio. Com bastante freqüência, após terem conseguido sua emancipação, os per­seguidos transformam-se em perseguidores. Na prática do direito internacional relativa ao reconhecimento, o surgimento do princípio das nacionalidades correspondeu à mudança para o princípio da efe­tividade, segundo o qual qualquer novo governo - independente­mente de sua legitimidade- podia contar com o reconhecimento, na medida em que sua soberania estivesse suficientemente estabilizada, para fora e para dentro de seu território.

Tal como ocorre nos casos gritantes de domínio estrangeiro e de colonialismo, a injustiça contra a qual se dirige uma resistência legítima não surge da infração de um direito supostamente coletivo à autodeterminação nacional, mas da infração de direitos funda­mentais individuais. A reivindicação da autodeterminação só pode ter como conteúdo imediato a concretização de direitos de cidada­nia iguais para todos. Dar um fim à discriminação das minorias não precisa absolutamente pôr sempre em questão os limites de determi­nado regime ilegítimo. Uma reivindicação de secessão só se justi­fica se o poder central do Estado nega seus direitos a uma parte de sua população, concentrada num território; nessas circunstâncias a reivindicação da inclusão pode ser imposta pela via da independên-

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cia nacional. Foi a partir desse ponto de vista que a independência dos Estados Unidos foi reconhecida pela Espanha e pela França já em 1778. A partir da secessão das colônias espanholas nas Américas do Sul e Central, contrariamente à prática usual até então27, prevale­ceu a visão de que o reconhecimento internacional de uma secessão da metrópole também seria permissível sem a anuência do sobera­no anterior28 •

Na medida em que os movimentos de independência nacional apelam para a autodeterminação, no sentido republicano do termo, uma secessão (ou a anexação de uma parte separada a um outro Esta­do) não é justificável sem atentar para a legitimidade do status quo. Porque, enquanto todos os habitantes gozarem dos mesmos direitos e ninguém for discriminado, não existe nenhum motivo normativamen­te convincente para a separação da comunidade existente. Porque, sob tais circunstâncias, não se pode falar em repressão nem em "domínio estrangeiro", que dariam direito de secessão a uma minoria. A isso cor­responde também a resolução pertinente da Assembléia Geral das Nações Unidas que, de acordo com a Carta das Nações Unidas, conce­de a todos os povos um direito à autodeterminação, sem contudo fi­xar o conceito de "povo" no sentido étnico do termo29 • Aliás, nega-se expressamente a existência de um direito à secessão, isto é, "um direito à separação daqueles Estados que se comportam de acordo com os princípios da igualdade de direitos e do direito à autodeterminação dos povos e, portanto, possuem um governo que representa a todo o povo, sem discriminação de raça, crença ou sexo"30•

27. Só em 1581, quando a independência dos Países Baixos, declarada unilate­ralmente, foi reconhecida pela Espanha através do Tratado de Paz da Vestfália, esse tipo de questão ficou completamente esclarecida para as potências européias.

28. Cf. J. A. Frowein, "Die Entwicklung der Anerkennung von Staaten und Re­gierungen im Võlkerrecht", Der Staat, Ano 11, 1972, 145-159.

29. O Art. I o do Pacto sobre os Direitos Humanos, de 16 de dezembro de 1966, surgido na fase da descolonização pacífica, posterior à Segunda Guerra Mundial, diz: "Ali peoples have the right to self-determination. By virtue of that right they freely deter­mine their politicai status and freely pursue their economic, social and cultural development': ("Todos os povos têm o direito à autodeterminação. Em virtude de tal direito, eles determinam livremente o seu status político e procuram livremente o seu desenvolvi­mento económico, social e cultural"].

30. A. Verdross, B. Si ma, Universelles Volkerrecht, Berlin 3 1984, 318 ( § 511).

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Inclusão com sensibilidade para as diferenças

A leitura liberalista da autodeterminação democrática mascara, contudo, o problema das minorias "inatas", que é percebido com maior clareza a partir do ponto de vista comunitarista31 , assim como do ponto de vista intersubjetivista da teoria do discurso32• O proble­ma também surge em sociedades democráticas, quando uma cultura majoritária, no exercício do poder político, impinge às minorias a sua forma de vida, negando assim aos cidadãos de origem cultural diversa uma efetiva igualdade de direitos. Isso tange questões políti­cas, que tocam o auto-entendimento ético e a identidade dos cida­dãos. Nessas matérias, as minorias não devem ser submetidas sem mais nem menos às regras da maioria. O princípio majoritário chega aqui a seu limite, porque a composição contingente do conjunto dos cidadãos condiciona os resultados de um processo aparentemente neutro. "The majority principie itself depends on prior assumptions about the unit: that the unit within which it is to operate is itself legitima te and that the matters on which it is employed properly fall within its jurisdiction. ln other words, whether the scope and domain of majority rule are appropriate in a particular unit depends on assumptions that the majority principie itself can do nothing to justify. The justification for the unit lies beyond the reach of the majority principie and, for that matter, mostly beyond the reach of democratic theory itself"33•

O problema das minorias "inatas" explica-se pelo fato de que os cidadãos, mesmo quando observados como personalidades jurídicas, não são indivíduos abstratos, amputados de suas relações de origem.

31. Cf. Ch. Taylor, Multikulturalismus und die Politik der Anerkennung, Frank­furtam Main 1993.

32. Cf. J. Habermas, "Kampf um Anerkennung im demokratischen Rechtsstaat", vide adiante.

33. ["O princípio da maioria em si depende de pressupostos prévios a respeito da unidade: depende de que a unidade dentro da qual ele deve operar seja em si legíti­ma e de que os assuntos aos quais é aplicado recaiam apropriadamente em sua jurisdi­ção. Com outras palavras, o fato de o escopo e o domínio da regra majoritária serem apropriados para uma unidade específica depende de pressupostos para cuja justifica­tiva o princípio da maioria em si nada pode contribuir e que, por isso mesmo, ficam além do alcance da própria teoria democrática"] Dahl (1989), 104.

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Na medida em que o direito intervém em questões ético-políticas, ele toca a integridade das formas de vida dentro das quais está enfronhada a configuração pessoal de cada vida. Com isso entram em jogo - ao lado de considerações morais, de reflexões pragmáticas e de interesses negociáveis- valorizações fortes, que dependem de tradições intersub­jetivamente compartidas, mas culturalmente específicas. As ordens de direito também são, em seu todo, "eticamente impregnadas", porque interpretam o conteúdo universalista dos mesmos princípios consti­tuintes de modo diferente em cada caso, a saber, no contexto das ex­periências de uma história nacional e à luz de uma tradição, uma cul­tura e uma forma de vida historicamente predominantes. Na regula­ção de matérias culturalmente delicadas, como por exemplo a lingua­gem oficial, os currículos da educação pública, o status das igrejas e das comunidades religiosas, as normas do direito penal (por exemplo quanto ao aborto), mas também em assuntos menos chamativos, como por exemplo a posição da família e dos consórcios semelhantes ao matrimônio, a aceitação de normas de segurança ou a delimitação das esferas pública e privada- em tudo isso reflete-se amiúde apenas o auto-entendimento ético-político de uma cultura majoritária, domi­nante por motivos históricos. Por causa de tais regras, implicitamente repressivas, mesmo dentro de uma comunidade republicana que ga­ranta formalmente a igualdade de direitos para todos, pode eclodir um conflito cultural movido pelas minorias desprezadas contra a cul­tura da maioria. Exemplos recentes desse fenômeno são dados pela mi­noria de fala francesa no Canadá, pelos valões na Bélgica, pelos bascos e catalães na Espanha etc.

Uma nação de cidadãos é composta de pessoas que, devido a seus processos sociais, encarnam simultaneamente as formas de vida den­tro das quais se desenvolveu sua identidade - e isso ocorre mesmo quando, como adultos, eles se libertaram das tradições da sua origem. Naquilo que é relevante para seu caráter, as pessoas são como entron­camentos numa rede adscritícia de culturas e tradições. A composição contingente do povo de um Estado, a unidade política, na terminolo­gia de Dahl, determina também implicitamente o horizonte das orien­tações de valor, dentro do qual ocorrem os conflitos culturais e os dis­cursos do auto-entendimento ético-político. Junto com a composição social da cidadania também muda esse horizonte de valores. Por exem­plo: as questões políticas que dependem de um horizonte cultural espe-

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cífico não são necessariamente discutidas de modo diferente após uma secessão, mas são votadas com resultados diferentes. Nem sempre há novos argumentos, mas sim, novas maiorias.

É claro que uma minoria discriminada só pode obter a igualdade de direitos por meio da secessão sob a improvável condição de sua concentração espacial. Caso contrário, os velhos problemas ressurgi­rão com outros sinais. Em geral, a discriminação não pode ser abolida pela independência nacional, mas apenas por meio de uma inclusão que tenha suficiente sensibilidade para a origem cultural das diferen­ças individuais e culturais específicas. O problema das minorias "ina­tas", que pode surgir em todas as sociedades pluralistas, agudiza-se nas sociedades multiculturais. Mas quando estas estão organizadas como Estados democráticos de direito, apresentam-se, todavia, diversos ca­minhos para se chegar a uma inclusão "com sensibilidade para as dife­renças": a divisão federativa dos poderes, uma delegação ou descen­tralização funcional e específica das competências do Estado, mas aci­ma de tudo, a concessão de autonomia cultural, os direitos grupais específicos, as políticas de equiparação e outros arranjos que levem a uma efetiva proteção das minorias. Através disso, dentro de determi­nados territórios e em determinados campos políticos, mudam as to­talidades fundamentais dos cidadãos que participam do processo de­mocrático, sem tocar nos seus princípios.

A coexistência com igualdade de direitos de diferentes comuni­dades étnicas, grupos lingüísticos, confissões religiosas e formas de vida, não pode ser obtida ao preço da fragmentação da sociedade. O pro­cesso doloroso do desacoplamento não deve dilacerar a sociedade numa miríade de subculturas que se enclausuram mutuamente34 • Por um lado, a cultura majoritária deve se soltar de sua fusão com a cultura política geral, uniformemente compartida por todos os cidadãos; caso contrário, ela ditará a priori os parâmetros dos discursos de auto-en­tendimento. Como parte, não mais poderá constituir-se em fachada do todo, se não quiser prejudicar o processo democrático em determi­nadas questões existenciais, relevantes para as minorias. Por outro lado, as forças de coesão da cultura política comum- a qual se torna tanto mais abstrata quanto mais forem as subculturas para as quais ela é o

34. Cf. H. J. Puhle, "Vom Bürgerrecht zum Gruppenrecht? Multikulturelle Politik in den USA': ln: K. J. Baade (ed.), Menschen überGrenzen, Herne 1995, 134-149.

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denominador comum- devem continuar a ser suficientemente fortes para que a nação dos cidadãos não se despedace: "Multiculturalism, while endorsing the perpetuation of several cultural groups in a single politicai society, also requires the existence of a common culture ... Members of ali groups ... will have to acquire a commoil politicai language and conventions of conduct to be able to participate effecti­vely in the competition for resources and the protection of a group as well as individual interests in a shared politicai arena"35•

Democracia e soberania do Estado: o caso das intervenções humanitárias

As visões substancialista e procedimentalista da democracia con­duzem a conceitos diferentes não apenas no que se refere à autodeter­minação nacional e ao multiculturalismo. Diversas conseqüências ocorrem também no que se refere a conceptualização da soberania do Estado. O Estado, tal como se desenvolveu durante a Idade Moderna na Europa, apóia-se desde seus primórdios no poder aquartelado do exército, da polícia e da execução penal, e monopoliza os meios do uso legítimo da violência. A soberania interna significa a imposição efi­ciente da ordem jurídica do Estado; a soberania externa significa a capacidade de se afirmar na concorrência com as grandes potências (tal como elas surgiram, depois da paz da Vestfália, no sistema dos Es­tados europeus). A partir desse ponto de vista, a democratização, sur­gida passo a passo com a formação dos Estados nacionais, apresenta-se como a passagem do poder soberano dos príncipes para o povo. Con­tudo, tendo em vista a alternativa que interessa no contexto de que estamos tratando, essa fórmula é muito pouco nítida.

35. ["O multiculturalismo, ao mesmo tempo que apóia a perpetuação de vários grupos culturais dentro de uma mesma sociedade politica, também requer a existên­cia de uma cultura comum ... Membros de todos os grupos culturais ... terão de ad­quirir uma linguagem politica e convenções de comportamento comuns para serem capazes de participar eficientemente na competição por recursos e na proteção dos interesses do grupo, assim como dos interesses individuais em meio a uma arena poli­tica compartida») J. Raz, "Multiculturalism: A Liberal Perspective': Dissent, inverno 1994,pp.67-79,aqui 77.

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Se autodeterminação democrática quer dizer participação ho­mogênea de cidadãos livres e iguais no processo da tomada de deci­sões e da legiferação, o que muda com a democracia, em primeira linha, são a espécie e o exercício da soberania interna. O Estado demo­crático de direito revoluciona o fundamento da legitimação do poder. Mas se, pelo contrário, autodeterminação democrática quer dizer a auto-afirmação e a auto-realização coletivas de membros homogê­neos ou participantes de uma mesma comunidade, é o aspecto da soberania exterior que vem ocupar o primeiro plano. Porque através disso, a manutenção do poder do Estado dentro do sistema das po­tências ganha mais um significado, a saber, o de que uma nação, com a sua existência, garante simultaneamente a sua peculiaridade diante das demais nações. A combinação da democracia com a soberania do Estado estabelece, no primeiro caso, condições ambiciosas para a le­gitimidade da ordem interna, enquanto deixa aberta a questão da soberania externa. No outro caso, ela interpreta a posição do Estado nacional na arena internacional, enquanto não necessita, para o exer­cício do poder em seu interior, de nenhum outro critério de legitima­ção além da paz e da ordem.

A partir do conceito de soberania do direito público interna­cional clássico resulta a proibição fundamental de intromissão nos assuntos internos de um estado reconhecido internacionalmente. Embora essa proibição seja reforçada na Carta das Nações Unidas, desde seu surgimento ela entra em concorrência com o desenvolvi­mento da proteção internacional dos direitos humanos. O princípio da não-intromissão foi minado durante as últimas décadas, mormente pela política dos direitos humanos36. Não causa surpresa o fato de C. Schmitt ter-se insurgido veementemente contra essa evolução. Sua rejeição das intervenções baseadas nos direitos humanos explica-se já a partir de sua visão belicista das relações internacionais e da polí­tica como um todo37• Ele não teve de esperar pela criminalização dos crimes contra a humanidade para exprimir seu desdenhoso protesto; já a discriminação contra a guerra de agressão38 lhe parece inconci-

36. Cf. R. Wolfrum, "Die Entwicklung des internationalen Menschenrechts­schutzes", Europa-Archiv 23, 1993, 681-690.

37. Cf. C. Schmitt, Der Begriffdes Politischen (1932), Berlin, 1979. 38. Cf. C. Schmitt, Die Wendung zum diskriminierenden Kríegsbegrijf(1938),

Berlin, 1988.

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liável com o status e o campo de ação aberto às nações, que só pode­riam afirmar sua existência e suas características peculiares no exer­cício do papel antagônico de sujeitos soberanos do direito internacio­nal público.

Michael Walzer, que está muito longe de ser um etnonacionalista militante, seguidor do credo de Schmitt, defende posição parecida. Sem querer sugerir falsos paralelos, gostaria de mencionar suas reser­vas, motivadas por causas de cunho com unitarista, diante das inter­venções humanitárias39, porque elas iluminam a correlação interna entre o conceito de democracia e o tratamento dos direitos de sobe­rania. Em seu tratado sobre a "guerra justa"40, ele parte do princípio da autodeterminação nacional, que cabe a toda comunidade com identidade coletiva própria, quando esta, cônscia de sua herança cul­tural, tem a vontade e a força para conquistar uma forma de existên­cia como Estado e para afirmar sua independência política. Um povo goza do direito à autodeterminação nacional, quando assume esse direito com sucesso.

Walzer certamente não entende a comunidade politicamente ca­paz como uma comunidade de descendentes étnicos, mas como uma comunidade de herdeiros culturais. Mas tal como no caso da comu­nidade genealógica, também a nação fruto de uma história cultural deve ser vista como uma realidade pré-política, que tem o direito de preservar a sua identidade na forma de um Estado soberano: "The idea of communal integrity derives its moral and politicai force from the rights of contemporary men and women to live as members of a historie community and to express their inherited culture through politicai forms worked out among themselves"41 • A partir desse di­reito à autodeterminação, Walzer também deduz exceções ao princí­pio da não-intromissão. Ele considera as intervenções permissíveis

39. Quanto à discussão desse aspecto na obra de Walzer, cf. B. Jahn, "Humanitãre lntervention und das Selbstbestimmungsrecht der Võlker': Politische Vierteljahresschrift, 34,1993,567-587.

40. M. Walzer, Just and Unjust Wars. A Moral Argument with Historical Illustrations (1977). N. Y. 1992.

41. ["A idéia de uma integridade comunitária deriva sua força moral e política dos direitos dos homens e das mulheres contemporâneos a viver como membros de uma comunidade histórica e de exprimir a cultura por eles herdadas, mediante formas políticas elaboradas por eles mesmos"] M. Walzer, "The Moral Standing of States", Philosophyand Public Affairs, 9, 1980,209-229, aqui 211.

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nos seguintes casos: a) para apoiar um movimento de libertação na­cional que manifeste a identidade de uma comunidade independente no ato da resistência, e b) para a defesa da integridade de uma comu­nidade que está sendo atacada, se tal comunidade só puder ser pre­servada mediante uma intervenção contrária. Mesmo a terceira exce­ção Walzer não a justifica per se com a tos de violação de direitos hu­manos, mas dizendo que, c) em casos de escravização, massacres ou genocídio, um governo criminoso impede seus próprios cidadãos de exprimir suas formas peculiares de vida e, com isso, de preservar sua identidade coletiva.

Também a interpretação comunitarista da soberania popular salienta o aspecto da soberania externa de tal modo que a questão da legitimidade da ordem interna passa a segundo plano. O cerne da re­flexão de Walzer é o seguinte: uma intervenção humanitária contra a violação dos direitos humanos por parte de um regime ditatorial só é justificável se os cidadãos atingidos se insurgirem eles próprios con­tra a repressão política e comprovarem, mediante um ato nítido de rebelião, que o governo vai contra as verdadeiras aspirações do povo e ameaça a integridade da comunidade. De acordo com isso, a legi­timidade de determinada ordem mede-se, em primeiro lugar, pela harmonia existente entre as lideranças políticas e a forma cultural de vida que é constitutiva da identidade de um povo: "A state is legi­timate or not, depending upon the 'fit' of government and commu­nity, that is, the degree to which the government actually represents the politicallife of its peop_le. When its doesn't do that, the people have a right to rebel. But if they are free to rebel then they are also free not to rebel. .. because they still believe the government to be tolerable, or they are accustomed to it, o r they are personally loyal to its leaders ... Anyone can make such arguments, but only subjects or citizens can act on them"42•

42. ["Um estado é legítimo ou não, dependendo do 'ajuste' entre o governo e a comunidade, isto é, do grau em que o governo representa efetivamente a vida política de seu povo. Quando não o faz, o povo tem o direito a se rebelar. Mas se ele tem a liberdade para se rebelar, também tem a liberdade para não se rebelar ... porque ainda acredita que o governo seja tolerável, ou porque está acostumado a ele, ou porque tem uma lealdade pessoal para com os seus lideres ... Qualquer pessoa pode fazer essa es­pécie de raciocínio, mas apenas os súditos ou os cidadãos podem agir de acordo com ele"! M. Walzer (1980), 214.

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Os críticos de Walzer partem de outra concepção da autodeter­minação democrática; negam-se a reduzir eventualmente o aspecto da soberania interna à efetiva manutenção da calma e da ordem. De acordo com essa leitura, o pivô do julgamento da legitimidade da ordem interna não é a herança cultural comum, mas a realização dos direitos de cidadania: "The mere fact that the multitude shares some form of common life- common traditions, customs, interests, his­tory, institutions and boundaries - is not sufficient to generate a genuine, independent, Jegitimate politicai community"43 • Os críticos refutam o princípio da não-intromissão e preferem, na medida do pos­sível, uma ampliação da proteção internacional dos direitos huma­nos. Aqui, o fato de um Estado ser ilegítimo quando avaliado pelos parâmetros do Estado democrático de direito, naturalmente não é uma condição suficiente para uma intervenção em seus assuntos in­ternos. Caso contrário, a composição da Assembléia Geral das Na­ções Unidas teria de ser muito diferente. Com toda razão, Walzer cha­ma a atenção para o fato de que, do ponto de vista moral, toda deci­são no sentido de agir em lugar dos cidadãos de um outro país é pre­cária. Por isso, as propostas de uma casuística da intervenção44 respei­tam os limites e os drásticos perigos com que se defronta uma política de direitos humanos45• Contudo, as estratégias e decisões da organi­zação mundial, sobretudo as intervenções das potências que desde 1989 executam um mandato das Nações Unidas, indicam a direção em que o direito internacional público está se transformando paulati­namente num direito cosmopolita46•

A política e o desenvolvimento jurídico reagem dessa forma a uma situação objetivamente mudada. A mera categoria e dimensão daquela espécie de criminalidade governamental que se espraiou à sombra da Segunda Guerra Mundial, ultrapassando todos os limites tecnológicos

43. ["O mero fato de a multidão compartir alguma forma de vida em comum re tradições, costumes, interesses, história, instituições e fronteiras comuns re não é su­ficiente para gerar uma comunidade política genuína, independente, legítima':] G. Doppelt, "Walzer's Theory of Morality in International Relations", Philosophy and Pu­blic Affairs, 8, I 978, 3-2, aqui 19.

44. Cf. D. Senghaas, Wohin driftet die Welt?, Frankfurt am Main 1994,185. 45. Cf. K. O. Nass, "Grenzen und Gefahren humanitarer Interventíonen·: Europa­

Archiv, I O, 1993, 279-288. 46. Cf. Ch. Greenwood, "Gibt es ein Recht aufhumanitãre Jntervention?': Europa­

Archiv, 23, 1993, 93-106.

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e desrespeitando todos os escrúpulos ideológicos até então conheci­dos, faz com que a tradicional presunção de inocência dos sujeitos so­beranos do direito internacional pareça o mais puro escárnio. Uma política previdente de garantia da paz exige o respeito das complexas causas sociais e políticas das guerras. O que está na ordem do dia são estratégias que, evitando, na medida do possível, o uso da violência, influenciem a situação interna de Estados formalmente soberanos com o objetivo de incentivar uma economia auto-sustentada e condições sociais suportáveis, uma participação democrática uniforme, a vigên­cia do Estado de direito e uma cultura da tolerância. Contudo, tais in­tervenções em favor de uma democratização da ordem interna são inconciliáveis com uma concepção da autodeterminação democrática que fundamenta um direito à independência nacional para favorecer o autodesenvolvimento coletivo de uma forma cultural de vida.

Somente uma Europa das Pátrias?

Diante das coações e dos imperativos subversivos do mercado global e tendo em vista o adensamento mundial das comunicações e do transporte, a soberania externa dos Estados, seja qual for sua fun­damentação, tornou-se hoje em dia, aliás, um anacronismo. Além dis­so, tendo em vista as crescentes ameaças globais que há tempo uniram as nações do mundo numa involuntária comunidade de risco, resulta a necessidade prática de criar instituições políticas eficientes em nível supranacional. Por enquanto, faltam os atores coletivos capazes de fa­zer uma política interna mundial, com a força necessária para chegar a um acordo quanto às necessárias condições de contorno, arranjos e processos. Mas, devido a essas pressões, existem entrementes associa­ções mais amplas de Estados nacionais. Como bem o demonstra o exemplo da União Européia, junto com elas surgem perigosas lacunas de legitimação. Com novas organizações, mais afastadas ainda das bases, como a burocracia de Bruxelas, cresce o desnível entre, por um lado, as administrações e as redes sistêmicas autoprogramadas e, pelo outro, os processos democráticos. Só que basta observar as desvalidas reações defensivas a esses desafios para mostrar a inadequação de uma concepção substancialista da soberania popular.

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A sentença do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha a respeito dos tratados de Maastricht, embora confirme o resultado da prevista ampliação de tarefas da União Européia, parte em sua funda­mentação da noção de que o princípio democrático seria "esvaziado" de um modo insuportável, se o exercício das competências do Estado não pudesse ser vinculado a um povo "relativamente homogêneo': O Tribunal, que fez referência a Hermano Heller (e não a Carl Schmitt) quer impedir, ao que tudo indica, o uso de um conceito etnonaciona­lista de povo. Mesmo assim ele defende a opinião de que um poder do Estado, democraticamente legitimado, tem que emanar de um povo que, quando da formação da vontade política, articule a sua "identi­dade nacional·: entendida como pré-política e extrajuridica. Aliás, para que um processo democrático possa até mesmo começar a se desen­volver, o povo de um Estado deveria ter a possibilidade de "dar expres­são jurídica àquilo que o une, espiritual, social e politicamente, de um modo relativamente homogêneo"47.

Como conseqüência dessa hipótese fundamental, o Tribunal ex­plicita por que o Acordo de Maastricht não cria um Estado federati­vo europeu, dentro do qual a República Federal da Alemanha seria absorvida, o qual lhe tiraria a posição de um sujeito do direito inter­nacional público (com direito às suas próprias politicas de justiça, do interior e do exterior, e à manutenção de suas próprias forças ar­madas)48. Essencialmente, a argumentação da Segunda Câmara visa a prova de que o Acordo da União não fundamenta uma competên­cia de competências de um sujeito independente de direito supra­nacional (em analogia, por exemplo, com os Estados Unidos da Amé­rica). A "união de Estados"49 deverá ser resultado exclusivamente das "autorizações dadas por Estados que continuam sendo soberanos": "O Acordo da União leva em consideração a independência e a sobe-

47. Sentença da 2• Câmara do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, de 12 de outubro de 1993- 2 BvR, 2134/92, Vol. 2, 2159/92, Europiiische Grundrechte Zeitschrift 1993, 429-447, aqui 438.

48. Cf. D. Murswiek, "Maastricht und der Pouvoir Constituant", Der Staat, 1993, 161-190.

49. A respeito desse conceito, que é na realidade um understatement, cf. H. P. lpsen: "Zehn Glossen zum Maastricht-Urteil", Europarecht, 29, 1994,20: "Com a intro­dução do conceito 'união de estados: (a sentença) emprega uma terminologia não apro­priada, porque já 'ocupada' pela economia. Ela ignora desnecessariamente a lingua­gem comunitária e outros estados-membros':

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rania dos Estados-membros, na medida em que obriga a União ares­peitar as identidades nacionais dos Estados-membros"50. Formula­ções desse tipo revelam as barreiras conceituais erguidas pelo concei­to substancialista da soberania popular contra a transferência de di­reitos de soberania a unidades supranacionais. Elas obrigam, aliás, a deduções surpreendentes, que não estão de acordo com decisões an­teriores do Tribunal quanto à prioridade do direito comunitário51 .

Provavelmente não incorreremos em erro se reconhecermos no teor da fundamentação da sentença certa correspondência com a con­clusão tirada por Hermann Lübbe em sua filípica contra os "Estados Unidos da Europa", os quais, como diz com arrogância o subtítulo, "nunca hão de existir": "A legitimidade da futura União Européia ... estriba-se nos interesses de igual sentido dos seus países-membros, mas não na vontade autodeterminada de um povo europeu. Não exis­te politicamente um povo europeu, e mesmo que não haja motivos para dizer que uma experiência de concernência comum, análoga a um povo, seria impensável, no momento não podem ser entrevistas quaisquer circunstâncias, nas quais poder-se-ia formar uma vonta­de popular européia, capaz de dar fundamento esse tipo de legitimi­dade"52. Em contraposição a isso, é possível chamar a atenção para a experiência histórica decisiva que realmente une os povos europeus. Pois os europeus aprenderam, de fato, nas catástrofes de duas guer­ras mundiais, que precisam superar tipos de mentalidade nos quais se enraízam os mecanismos nacionalistas de exclusão. Por que não poderia nascer, a partir disso, a consciência de uma pertença polí­tico-cultural- sobretudo diante do amplo pano de fundo de tradi­ções divididas, que atingiram uma importância histórica universal, assim como sobre a base de um entrelaçamento de interesses e de um adensamento da comunicação, tais como ocorreram nas déca­das de uma União Européia economicamente bem-sucedida? O euroceticismo de Lübbe nutre-se evidentemente da exigência cons­truída de uma concernência "análoga a um povo". Mas o "povo homo­gêneo", que novamente se constitui em barreira para o pensamento, é uma analogia errônea.

50. Europaische Grundrechte Zeitschrift 1993, 439. 51. Cf. J. A. Frowein, "Das Maastricht-Urteil und die Grenzen der Verfassungs­

gerichtsbarkeit", Zeitschrift for ausliindisches offentliches Recht und Volkerrecht, 1994, 1-16. 52. H. Lübbe ( 1994), 100.

174 A INCLUSAO DO OUTRO

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A história, rica em conflitos, da formação de Estados durante a fase pós-colonial. na Ásia e, sobretudo, na África, não é um exemplo negativo convincente. Quando as antigas colónias, pela desistência de suas metrópoles, foram "dispensadas" para a independência, o proble­ma consistiu em que esses territórios, na realidade surgidos artificial­mente, ganharam uma soberania externa sem contar de imediato com um efetivo poder de Estado. Em muitos casos, os novos governos, após a retirada das administrações coloniais, só puderam afirmar sua sobe­rania interna com muitas dificuldades. Essa condição não pôde ser cum­prida nem mesmo recorrendo à "autoridade do Estado", entenda-se, à repressão: "The problem was everywhere to 'fi]] in' ready made states with national content. This poses the interesting question, why post­colonial states had to be nations ... Nation-building as development means the extension of an active sense of membership to the entire populace, the secure acceptance of state-authority, the redistribution of resources to further the equality of members, and the extension of effective state operation to the periphery"53• Os duradouros conflitos tribais em Estados pós-coloniais tornados formalmente independen­tes lembram que as nações só surgem após terem percorrido o árduo caminho que leva das comunidades etnicamente fundamentadas, cons­tituídas de indivíduos que se conhecem entre si e que reconhecem seus traços comuns para uma solidariedade juridicamente mediada entre cidadãos que são estranhos entre si. No Ocidente, essa formação dos Estados nacionais não se deu por meio da fusão de tribos e regiões, mas pelo entrelaçamento, que demorou mais de um século.

Justamente graças ao exemplo desse processo de integração é possível aprender em que consistiram realmente as condições fun­cionais indispensáveis para uma formação democrática da vontade: nos circuitos públicos de comunicação de opiniões políticas, que se desenvolveram sobre a base do sistema de associações civis e através

53. ["Em toda parte o problema era 'preencher' Estados'pré-fabricados' com con­teúdos nacionais. Isso coloca a interessante questão de por que os Estados pós-colo­niais têm que ser nações ... A construção de uma nação, enquanto desenvolvimento, significa a extensão de sentimento ativo de pertença a toda a população, a aceitação segura da autoridade do Estado, a redistribuição de recursos para fomentar a igualda­de dos membros, assim como a extensão de uma operacionalidade efetiva do Estado à periferia"] Ch. Joppke, Nation-Buildingafter World War Two, (European lnstitute), Florença 1995, p. 10.

INSERÇÃO - INCLUSÃO OU CONFINAMENTO? 175

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dos meios de comunicação de massa. Dessa forma, os mesmos temas puderam ganhar a mesma relevância, ao mesmo tempo, para um gran­de público, que permaneceu anónimo, atravessando grandes distân­cias, estimulando-o a trazer contribuições espontâneas. A partir dis­so surgem as opiniões públicas, que enfeixam temas e posicionamen­tos até transformá-los em fatores políticos de influência. A analogia correta é fácil de achar: o próximo impulso no sentido da integração numa sociabilização pós-nacional não depende do substrato de al­gum "povo europeu", mas das redes de comunicação de uma opinião pública política de alcance europeu, enfronhada numa cultura políti­ca comum, sustentada por uma sociedade civil com associações de interesses, organizações não-governamentais, iniciativas e movimen­tos cívicos, e que seja assumida pelas arenas nas quais os partidos políticos possam se referir imediatamente às decisões das institui­ções européias, para além das alianças de bancadas, até chegarem a ser um sistema partidário europeu54•

54. O Tribunal Federal Constitucional alemão, num determinado trecho da ti.m­damentação de sua sentença sobre Maastricht, até mesmo insinua esta interpretação: "A democracia ... depende da existência de determinados pressupostos pré-jurídicos, tais como uma permanente e livre discussão entre as forças sociais, os interesses e as idéias que se defrontam umas com as outras, através da qual também seja possível esclarecer e modificar metas políticas e a partir da qual uma opinião pública pré-for­mula a vontade política. . . Partidos, associações, imprensa e radiodifusão são tanto meio como fator deste processo de intermediação, a partir do qual poderá configurar­se uma opinião pública na Europa." Europiiische Grundrechte Zeitschrift 1993, 437s. A observação seguinte, a respeito da necessidade de uma língua comum, parece ter a finalidade de construir uma ponte entre este conceito de democracia, baseado na teo­ria da comunicação, e a homogeneidade do povo de um estado, geralmente considera­da como necessária.

176 A INCLUSÃO DO OUTRO

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6 A Europa necessita de uma Constituição? UM COMENTÁRIO SOBRE DIETER GRIMM *1

Em partes essenciais, estou de acordo com o diagnóstico apresentado por D. Grimm; a análise de sua fundamentação, porém, leva-me a outro raciocínio político.

O diagnóstico: sob pontos de vista relativos à política constitucional, a situação atual da União Européia está mar­cada por uma contradição. Por um lado, a UE é uma organi­zação supranacional sem constituição própria, fundada so­bre contratos do direito público internacional. Em tal medida ela não é um Estado (no sentido do Estado constitucional moderno, amparado sobre o monopólio do poder e sobera­no tanto interna quanto externamente). Por outro lado, os ór­gãos da comunidade criam um direito europeu que vincula os Estados-membros. E em tal medida a UE exerce direito de soberania, que até então estava reservado ao Estado em sentido estrito.

Daí se origina o déficit democrático contra o qual se protesta com certa freqüência. As decisões da Comissão e do

• Tradução: Paulo Astor Soethe. 1. Cf. a contribuição homônima de D. Grimm no European Law Jour­

nal, n. 1, nov. 1995.

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Conselho de Ministros, bem como as decisões do Tribunal Europeu, intervêm cada vez mais profundamente nas relações dos Estados-mem­bros. No âmbito dos direitos de soberania que foram transferidos à União, o Poder Executivo Europeu pode impor suas decisões à revelia do descontentamento de governos nacionais. Ao mesmo tempo, en­quanto o Parlamento Europeu dispuser apenas de competências bran­das, falta a essas decisões uma legitimação democrática imediata. Os órgãos executivos da Comunidade derivam sua legitimação da legiti­mação dos governos dos Estados-membros. Eles não são órgãos de um Estado que tivesse sido constituído por um ato da vontade dos cidadãos europeus unidos. Com o passaporte europeu não se vincu­lam até o momento quaisquer direitos que fundamentem uma cida­dania democrática de base estatal.

A conseqüéncia politica: em face dos federalistas, que exigem uma configuração democrática da UE, Grimm adverte contra um desgaste ainda maior das competências dos Estados nacionais no âmbito do direito europeu. Segundo ele, o déficit democrático não seria solucio­nado pela "redução estatizante" dos problemas, mas sim aprofundado. Novas instituições políticas - um Parlamento Europeu munido das competências usuais, uma Comissão alçada a governo, uma Segunda Câmara que substituísse o Conselho de Ministros e um Tribunal Eu­ropeu com competências ainda maiores - não constituem per se so­lução alguma. Enquanto não se lhes infundir vida, elas antes corrobo­ram a tendência de crescimento da autonomia de uma política buro­crática, já perceptível no âmbito nacional. Até hoje, porém, faltam os pressupostos reais de uma formação da vontade dos cidadãos integrada em âmbito europeu. O euroceticismo quanto ao direito constitucional leva portanto a um argumento empiricamente fundamentado: enquan­to não houver um povo europeu suficientemente "homogêneo" para formar uma vontade política, não deve tampouco haver uma Cons­tituição européia.

Para discussão: minhas ponderações voltam-se (a) contra ades­crição incompleta das alternativas e (b) contra a fundamentação nor­mativa (não totalmente isenta de ambigüidades) das exigências fun­cionais para uma formação democrática da vontade.

Sobre (a): D. Grimm evidencia as conseqüências indesejadas que a transformação da União Européia em um Estado confederado de constituição democrática poderia ocasionar, caso as novas instituições

178 A INCLUSAO DO OUTRO

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não pudessem lançar raízes em solo fértil. Enquanto faltarem uma sociedade civil integrada em âmbito europeu, uma opinião pública de dimensões européias sobre assuntos de ordem política e uma cultura política em comum, os processos decisórios supranacionais necessa­riamente continuarão se autonomizando em face dos processos de formação de opinião e de vontade, que são hoje como ontem organi­zados em âmbito nacional. Considero plausível esse prognóstico em relação aos perigos. Mas qual é a alternativa?

A opção de Grimm parece sugerir que o status quo do direito público pode ao menos congelar o déficit democrático hoje existen­te. Com total independência em relação a inovações do direito cons­titucional, porém, esse déficit continua aumentando dia após dia, e isso porque a dinâmica económica e social, no âmbito institucional ora dado, continua impulsionando o desgaste das competências dos Estados nacionais por parte do direito europeu. O próprio Grimm afirma: "O princípio democrático recebe validação nos Estados-mem­bras, no entanto tiram-se deles os poderes decisórios; e esses mes­mos poderes aumentam na Comunidade Européia, embora nela o princípio democrático só esteja constituído de maneira débil': Mas se de qualquer maneira continua aumentando a disparidade entre os crescentes poderes decisórios das autoridades européias e a legiti­mação precária das regulamentações européias, que continuam a adensar-se, a decisão inflexível pelo modo de legitimação exclusiva­mente ligado aos Estados nacionais não significa simplesmente a es­colha de um mal menor. Os federalistas assumem como um desafio o risco (previsto, e muitas vezes evitável) de uma autonomização de orga­nizações supranacionais. Os eurocéticos, por sua vez, conformam-se desde o início com a erosão da substância democrática (inevitável, segundo eles), para não terem que abandonar a morada aparente­mente segura proporcionada pelo Estado nacional.

Só que nessa morada há cada vez menos aconchego. Os debates sobre a situação atual, tal como os conduzimos hoje, revelam outra disparidade ainda maior: a que se delineia entre os espaços de ação limitados pela via dos Estados nacionais e os imperativos das condi­ções de produção integradas em âmbito global. Os Estados moder­nos, que vivem de tributos, só poderão ter ganhos com suas respecti­vas economias enquanto abrigarem "economias nacionais" sobre as quais ainda possam exercer influência por meios políticos. Com a

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desnacionalização da economia, em especial dos mercados financei­ros e da própria produção industrial, e sobretudo em face dos merca­dos de trabalho globalizados e em expansão, os governos nacionais vêem-se compelidos agora a assumir cada vez mais o ônus de taxas crescentes de desemprego duradouro e a marginalização de uma mino­ria sempre mais numerosa, a fim de atingir capacidade competitiva no cenário internacionaL Caso o Estado social deva ser mantido ao menos em sua substância, e caso se deva evitar a segmentação de uma subclasse, então é preciso constituir instâncias capazes de agir em um plano supranacional. Apenas os regimes de abrangência regional, tais como a União Européia, ainda poderiam influir sobre o sistema glo­bal, segundo uma política interna coordenada em âmbito globaL

Na descrição de Grimm, a União Européia surge como uma ins­tituição que deve ser suportada e com cujas abstrações nós temos de conviver. Ele não manifesta as razões pelas quais nós deveríamos desejá-la politicamente. A meu ver, o maior perigo parece advir de uma autonomização das redes e mercados globalizados que também colabora com a fragmentação da consciência pública. Se com essas redes sistêmicas de integração não surgirem instituições capazes de agir politicamente, acabará por se renovar a partir do âmago de uma modernidade econômica altamente móvel o fatalismo dos Antigos Impérios, paralisante de um ponto de vista sociopolítico. A miséria pós-industrial das populações "supérfluas" produzidas pelas socie­dades de consumo - o Terceiro Mundo dentro do Primeiro - e a erosão moral da coletividade que daí decorre seriam elementos deter­minantes para o cenário futuro. Esse presente vindouro iria conce­ber-se retrospectivamente como o futuro de uma ilusão passada -a ilusão democrática, como se as sociedades ainda pudessem exercer influência sobre seu próprio destino através da vontade e consciên­cia políticas.

Sobre (b): Isso posto, não se teria tocado ainda no problema das conseqüências de uma autonomização de aparatos supranacionais, apontados por Grimm com toda razão. Evidentemente, a avaliação das chances de uma democracia que se estenda a toda a Europa de­pende de argumentos empíricos. Mas em nosso contexto trata-se em primeira linha da determinação das exigências funcionais; e para isso assume grande importância a perspectiva normativa a partir da qual se podem fundamentar essas exigências.

180 A INCLUSÃO DO OUTRO

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Grimm repudia uma Constituição européia "por não haver até hoje um povo europeu". A isso parece estar subjacente a premissa que definiu o tom do julgamento do Tribunal Constitucional Fede­ral alemão em Maastricht: ou seja, a noção de que a base democrá­tica para a legitimação do Estado exige certa homogeneidade do povo que o compõe. Ao mesmo tempo, no entanto, Grimm distancia-se igualmente da forma de entendimento de uma homogeneidade do "povo" tal como defendida por Carl Schmitt: "Aqui, os pressupostos da democracia não se desenvolvem a partir do povo, mas da socieda­de que se quer constituir enquanto unidade política. Afinal, a socie­dade carece de uma identidade coletiva, caso pretenda resolver seus conflitos de forma pacífica, ater-se às regras de maioria e praticar a solidariedade". Essa formulação no entanto deixa aberto como se deve entender a identidade coletiva que se exige. Vejo o cerne do republi­canismo no fato de que as formas e procedimentos do Estado consti­tucional, associados ao modo de legitimação democrático, geram um novo plano de coesão social. A cidadania democrática - no sentido de citizenship- gera uma solidariedade entre estranhos, relati­vamente abstrata, ou em todo caso juridicamente mediada; e essa forma de integração social, que desponta inicialmente com o Estado nacional, realiza-se sob a forma de um contexto comunicacional que se estende até a socialização política. Esse contexto certamente de­pende do cumprimento de exigências funcionais importantes e que não podem ser simplesmente criadas por meios administrativos. A isso também pertencem condições sob as quais se pode constituir e reproduzir comunicativamente uma autocompreensão ético-política dos cidadãos - mas de modo algum uma identidade coletiva inde­pendente do processo democrático, e portanto dada de antemão. O que une uma nação constituída de cidadãos - diferentemente da nação constituída por um mesmo povo- não é um substrato preexistente, mas sim um contexto intersubjetivamente partilhado de entendimen­tos possíveis.

Por isso é importante nesse contexto especificar o uso da expres­são "povo': no sentido juridicamente neutro de "povo de um Estado", ou saber se ela está associada com noções identitárias de outra natu­reza. Segundo a opinião de Grimm, a identidade da nação de cidadãos "também pode ter outros fundamentos" que não os de uma "ascen­dência étnica': Em face disso, penso que se o processo democrático

A EUROPA NECESSITA DE UMA CONSTITUIÇÃO? 181

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deve assumir a qualquer tempo garantias em favor da integração so­cial de uma sociedade diferenciada e autonomizada - e que hoje se diferencia e autonomiza cada vez mais -, então essa identidade de fato precisa ter outra base. Não se pode permitir que o "lastro afiança­dor" seja transferido de âmbitos da formação política da vontade para substratos pré-políticos previamente dados, porque o Estado cons­titucional garante que ele mesmo- nas formas juridicamente abstra­tas do compartilhamento político e do status dos cidadãos ampliado de forma substancial por via democrática- assegure obrigatoriamente a integração social. As sociedades pluralistas do ponto de vista cultu­ral e em relação a diferentes visões de mundo tratam de tornar cons­ciente esse clímax normativo. A autocompreensão multicultural da Nação de cidadãos, desenvolvida em países de imigração clássica, como os Estados Unidos, tem muito mais a ensinar nesse sentido do que o modelo francês da assimilação de culturas. Se formas de vida cultu­rais, religiosas e étnicas diferentes devem coexistir e interagir em igual­dade de direitos no interior de uma mesma coletividade democrática, então a cultura de maioria decorrente dessa fusão - historicamente explicável - tem de se fundir também à cultura política partilhada por todos os cidadãos.

A coesão política entre cidadãos que, enquanto estranhos entre si, devem como que se responsabilizar uns pelos outros, tem o caráter de algo produzido; e por certo ela se apresenta como coesão comuni­cacional plena de pressupostos. Quanto a isso não há dissensão alguma. O cerne é constituído por uma opinião pública de cunho político que possibilita aos cidadãos posicionar-se ao mesmo tempo em relação aos mesmos temas de mesma relevância. Essa opinião pública- não­deformada, e que não sofre ocupação nem de dentro nem de fora­precisa estar inserida no contexto de uma cultura política liberal; e também precisa ser sustentada pela livre condição associativa de uma sociedade civil em direçãu à qual possam afluir experiências social­mente relevantes, advindas de campos vitais privados que continuem intactos, a fim de que se possa elaborá-las nessa mesma sociedade civil e transformá-las em temas passíveis de recepção pela opinião pública. Os partidos políticos- não-estatizados- precisam permanecer tão enraizados nesse complexo, a ponto de se mostrarem capazes de inter­mediar, por um lado, os campos da comunicação informal pública e, por outro, os processos institucionalizados de deliberação e decisão.

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Por isso, do ponto de vista normativo, não poderá haver um Estado federativo europeu merecedor do nome de uma Europa democrática, se não se afigurar, no horizonte de uma cultura política, uma opinião pública integrada em âmbito europeu, uma sociedade civil com asso­ciações representativas de interesses, organizações não-estatais, movi­mentos de cidadania etc., um sistema político-partidário concebido em face das arenas européias- em suma: um contexto comunica­cional que avance para além das fronteiras de opiniões públicas de inserção meramente nacional, até o momento.

As grandes exigências funcionais impostas à formação democrá­tica da vontade praticamente não podem ser cumpridas de maneira satisfatória no âmbito dos Estados nacionais; e isso vale tanto mais para a Europa. O que me importa, no entanto, é a perspectiva a partir da qual se possam fundamentar essas condições funcionais; pois a vi­são normativa prejulga de certa maneira a avaliação política empírica da importância das dificuldades existentes. Caso se considere necessá­ria uma identidade coletiva como substrato cultural que se articule tão-somente no cumprimento das exigências funcionais já menciona­das, essas dificuldades, "for the time being", terão mesmo de parecer intransponíveis. Mas uma compreensão de democracia a partir da teo­ria da comunicação, que também parece ser a preferência de Grimm, não pode se apoiar durante muito tempo sobre o conceito concretista de "povo": pois ele trata apenas de simular homogeneidade onde nada há senão coisas heterogêneas.

Dessa perspectiva, a autocompreensão ético-política do cidadão de uma coletividade democrática não surge como elemento históri­co-cultural primário que possibilita a formação democrática da von­tade, mas como grandeza de fluxo em um processo circular que só se põe em movimento por meio da institucionalização jurídica de uma comunicação entre cidadãos de um mesmo Estado. Foi exatamente assim que se formaram as identidades nacionais na Europa moderna. E por isso seria de esperar que as instituições políticas que viessem a ser criadas por uma Constituição Européia tivessem um efeito indutivo. No entanto - enquanto houver vontade política para isso - nada depõe a fortiori contra a possibilidade de se criar o contexto comunica­cional politicamente necessário em uma Europa que cresce unida (eco­nômica, social e administrativamente) e na qual se dispõe de uma base cultural comum e uma experiência histórica conjunta de bem-suce-

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dida superação do nacionalismo. Na verdade, para que esse contexto de comunicação se estabeleça parece faltar apenas um desencadeamento por via jurídica constitucional. Também a exigência de uma língua comum- inglês como second first language [segunda primeira lín­gua]- poderia deixar de representar um empecilho intransponível, haja vista a situação atual da educação escolar formal nos países euro­peus. Identidade européia não pode significar nada senão unidade na pluralidade nacional; para isso, a propósito, após o aniquilamento da Prússia e o equilíbrio entre as diversas confissões religiosas, o federa­lismo alemão não oferece um mau modelo.

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7 A idéia kantiana de paz perpétua - à distância histórica de 200 anos*

A "paz perpétu~", que o abade St. Pierre já invocara, é para Kant um ideal ique deve conferir atratividade e força elucidativa à idéia da condição cosmopolita. Com isso, Kant acrescenta uma terc~ira dimensão à teoria do direito: ao di­reito público e ao direito internacional vem somar-se o direi­to cosmopolita. Essa inovação traz muitos desdobramen­tos. A ordem republicana de um Estado constitucional ba­seado sobre direitos humanos não exige apenas uma imersão atenuada em relações internacionais dominadas pela guer­ra, no âmbito do direito internacional. Mais que isso, a condi­ção jurídica no interior de um mesmo Estado deve antever como término para si mesma uma condição jurídica global que una os povos e elimine as guerras: "A idéia de uma consti­tuição em consonância com o direito natural do ser humano, isto é, que os obedientes à lei, unidos, também devam ser ao mesmo tempo legisladores, subjaz a todas as formas de Es­tado; e a essência comum- que, de acordo com essa idéia, cabe chamar de ideal platônico - não é apenas quimera, mas sim a norma eterna para toda a constituição burguesa

• Tradução: Paulo Astor Soethe.

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em geral, e afasta toda guerra" (Streit der Fakultaten, WerkeVI, 3641).

Surpreendente aí é a conseqüência: " ... e afasta toda guerra". Isso aponta para que as normas do direito das gentes, que regulam a guer­ra e a paz, só devam estar vigentes de maneira peremptória, isto é, só devam vigorar até o momento em que o pacifismo jurídico, ao qual Kant apontou em seu texto "Sobre a paz perpétua", tenha levado ao estabelecimento de uma categoria cosmopolita e, portanto, à supres­são da guerra.

Naturalmente, Kant desenvolve essa idéia segundo os conceitos do direito racional e no horizonte de experiência de sua época. As duas coisas afastam-nos de Kant. Com o imerecido "saber melhor" alardeado pelas gerações mais jovens, reconhecemos hoje que a cons­trução sugerida por Kant enfrenta dificuldades conceituais e já não se mostra mais adequada a nossas experiências históricas. Por isso, tra­tarei primeiro de rememorar as premissas assumidas por Kant como ponto de partida. Elas dizem respeito a todos os três passos de seu raciocínio: tanto à definição do fim imediato, a paz perpétua, à defi­nição do verdadeiro objetivo, a forma jurídica de uma aliança entre os povos, e à solução histórico-filosófica do problema aí proposto, a concretização da idéia da condição cosmopolita (I). A isso sucede a pergunta sobre como se apresenta a idéia kantiana à luz da história dos últimos duzentos anos (II) e de que maneira essa idéia precisa ser reformulada em vista da situação mundial em nossos dias (III). A alternativa esboçada por juristas, politólogos e filósofos à reincidên­cia em uma condição natural suscitou restrições ao universalismo do direito cosmopolita e à política de direitos humanos, que podem ser atenuadas por meio de uma diferenciação adequada entre direito e moral em relação ao conceito de direitos humanos (IV). Essa diferen­ciação também apresenta a chave para uma metacrítica dos argumentos de Carl Schmitt contra os fundamentos humanistas do pacifismo ju­rídico, argumentos a propósito bem-sucedidos sob o ponto de vista da história de sua recepção (V).

I. Na seqüência, farei as citações de acordo com a Studienausgabe das obras de Kant da Wissenschaftlichen Buchgesellschaft de Darmstadt, publicada pela ln sei-Verlag, Frankfurt am Main, 1964. As indicações sem menção do título referem-se ao tratado "Sobre a paz perpétua", Werke VI, 195-251.

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8 Kant determina por via negativa o objetivo dessa almejada "con­

dição jurídica" entre os povos como supressão da guerra: "Não deve haver guerra", deve-se dar fim ao "funesto guerrear" ["Encerramento" da Doutrina do Direito, Werke IV, 478). O anseio por uma paz desse tipo é fundamentado por Kant com a referência aos males ocasiona­dos pelo tipo de guerra que os príncipes da Europa vinham travando na época, com o auxílio de exércitos mercenários. Entre esses males ele não menciona em primeiro lugar as vítimas fatais, mas sim os "hor­rores da violência" e as "devastações", sobretudo as pilhagens e em­pobrecimento do país por causa do ânus da guerra e, como possíveis conseqüências suas, a subjugação, a perda da liberdade e o domínio estrangeiro. A isso vem somar-se a brutalização dos costumes, quando os súditos são instigados pelo governo a ações injurídicas, à espiona­gem e à difusão de notícias falsas ou à perfídia - tal como nos papéis de atirador de elite ou assassino profissional, por exemplo. Aqui se revela o panorama da guerra restrita que, no âmbito do assim chamado direito das gentes, fora institucionalizado no sistema das potências in­ternacionais, como instrumento legítimo para a solução de conflitos. O encerramento de uma guerra como essa define a situação de paz. E assim como determinado tratado de paz põe fim aos males de uma guerra em particular, dessa mesma forma uma aliança pela paz deve "encerrar todas as guerras para todo o sempre" e suprimir como tais todos os males ocasionados pela guerra. É esse o significado da "paz perpétua". A paz, dessa maneira, é circunscrita da mesma maneira que a própria guerra.

Kant pensava aí em conflitos espacialmente delimitados entre Estados e alianças em particular, e não em guerras mundiais. Pensava em guerras travadas entre gabinetes e Estados, e não em guerras na­cionais ou civis. Pensava em guerras tecnicamente delimitadas, que permitem a distinção entre tropas de combate e população civil, mas não em guerrilha e terrorismo. Pensava em guerras com objetivos po­liticamente delimitados, e não em guerras de aniquilamento ou ba­nimento, ideologicamente motivadas2. É sob a premissa da guerra de-

2. Emborta Kant mencione em sua doutrina do direito o "inimigo injusto': "cuja vontade expressa trai uma máxima segundo a qual não seria possível haver paz alguma

A ID~IA KANTIANA DE PAZ PERP~TUA 187

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limitada que a normatização do direito internacional se estende à con­dução da própria guerra e ao regramento da paz. O direito "à guerra", o assim chamado ius ad bellum, anteposto ao direito "na guerra" e ao direito "no pós-guerra", não é rigorosamente direito algum, porque só expressa o livre-arbítrio concedido aos sujeitos do direito internacional em condição natural, ou seja, na condição extralegal da relação consi­go mesmos (Werke VI, 212). As únicas leis penais que intervêm nessa situação extralegal- ainda que sejam cumpridas apenas por tribu­nais do próprio Estado beligerante- referem-se ao comportamento na guerra. Crimes de guerra são crimes cometidos na guerra. Apenas o alargamento do conceito de guerra, ocorrido nesse meio tempo, e a respectiva ampliação do conceito de paz irão despertar a noção de que a própria guerra - sob a forma da guerra de ataque - é ela mesma um crime, merecedor de censura e reprovação. Para Kant ainda não há o crime da guerra.

A paz perpétua é um elemento característico importante, mas não passa de um sintoma da condição cosmopolita. O problema con­ceitua[ que Kant precisa resolver é a conceitualização jurídica de uma condição como essa. Ele precisa indicar a diferença entre direito cos­mopolita e o direito internacional clássico, manifestar o elemento es­pecífico desse ius cosmopoliticum.

Ao passo que o direito das gentes, como qualquer direito em condição natural, tem vigência apenas peremptória, o direito cosmo­polita acabaria definitivamente com a condição natural, assim como faz o direito sancionado na forma estatal. É por isso que Kant, para ilustrar a transição a uma condição cosmopolita, recorre sempre à analogia com o primeiro abandono de uma condição natural, que, com a constituição de determinado Estado com base no contrato so­cial, possibilita aos cidadãos do país uma vida de liberdade assegurada por via legal. Assim como terminou a condição natural entre indiví-

entre os povos se ela se tornasse regra geral"(§ 60, Werke VI, 473 ), os exemplos que ele apresenta - a ruptura de contratos do direito internacional ou a divisão de um país vencido (como a Polónia, em seu tempo) -deixam claro o status acidental dessa figura de pensamento. Uma "guerra punitiva" contra inimigos injustos continua sendo uma noção sem maiores conseqüências enquanto continuarmos contando com Esta­dos soberanos. Pois não é possível para os Estados soberanos reconhecer uma instância judicial que julgue de maneira imparcial as violações a regras nas relações interestatais, sem que eles restrinjam sua própria soberania. Somente a vitória e a derrota são deci­sivos sobre "de que lado está o direito" ( Werke VI, 200).

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duos abandonados a si mesmos, também deve findar a condição na­tural entre Estados belicistas. Em um tratado publicado dois anos antes da concepção de Sobre a paz perpétua, Kant vê entre esses dois processos um paralelo bastante rigoroso. Ele também menciona aqui a destruição do bem-estar e a perda da liberdade como o mal maior, e então prossegue: "Diante disso não há outro meio possível senão um direito das gentes baseado em leis públicas, dotadas de poder, e às quais cada Estado tenha de se submeter (segundo a analogia de um direito burguês ou do direito estatal de pessoas particulares);- pois uma paz geral e duradoura, por meio de um assim chamado equilí­brio das potências na Europa, é quimera e nada mais" ("Ober den Ge­meinspruch", Werke VI, 172). Ainda se fala aqui em um "Estado das nações" em geral, a cujo poder cada Estado em particular deve se ade­quar, de maneira voluntária. Decorridos apenas dois anos, contudo, Kant irá distinguir cuidadosamente entre "liga das nações" e "Estado das nações".

Pois essa condição doravante denominada "cosmopolita" deve se distinguir da condição jurídica atinente ao interior de cada Estado: nela os Estados não se submetem a um poder superior, tal como fa­zem os cidadãos em particular em relação às leis coativas, mas cada qual mantém sua independência. A federação de Estados livres, como prevista, renuncia de uma vez por todas ao instrumento da guerra para a relação dos Estados entre si, e deve manter intacta a soberania de seus membros. Os Estados em associação duradoura preservam sua dupla competência e não se diluem em uma república investida de qualidades estatais. Em lugar da "idéia positiva de uma república mundial" surge a "sub-rogação negativa de uma aliança que refuta a guerra" (Werke VI, 213). Essa aliança deve surgir dos atos soberanos de vontade expressos em contratos do direito internacional, conce­bidos agora não mais nos moldes do contrato social. Pois os contra­tos já não fundamentam quaisquer postulações legais a que os mem­bros possam recorrer, mas apenas unem estes últimos em torno de uma aliança perdurável- em torno de "uma associação duradouramente livre". O que leva esse ato de unificação em torno de uma liga das na­ções a superar a débil força vinculativa do direito internacional nada mais é senão sua marca de "permanência". Kant mesmo compara a liga das nações a um "congresso estatal permanente" ("Doutrina do direito",§ 61).

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É evidente a contradição desse construto. Pois em outra parte Kant entende por congresso "tão-somente um agrupamento arbitrá­rio de diversos Estados, dissolúvel a qualquer tempo, e não uma união (como a dos Estados americanos) que se funda sobre uma constitui­ção estatal" ("Doutrina do direito", Werke IV, 475). Kant não explicou, porém, nem como garantir a permanência dessa união, da qual de­pende "a natureza civil" da harmonização de conflitos internacionais, nem como fazê-lo sem a obrigação jurídica de uma instituição análo­ga à constituição. Por um lado, ele quer preservar a soberania dos membros, com a ressalva sobre a dissolubilidade do contrato; é o que sugere a comparação com congressos e associações voluntárias. Por outro lado, a federação, que fomenta a paz de forma duradoura, deve distinguir-se de alianças passageiras, e isso através de um sentimento por parte dos membros, que os mova a se considerar obrigados a sub­meter a própria razão de Estado ao fim comum declarado em conjun­to, qual seja "não resolver seus conflitos ( ... ) por meio da guerra, mas ( ... )como que mediante um processo". Sem esse momento da obri­gação o congresso de Estados pela paz não pode tornar-se "perma­nente", a associação voluntária não se pode firmar como "duradoura"; ela permanece atrelada, isso sim, a constelações de interesse instáveis e acaba por decair - como veio a ocorrer mais tarde com a Liga das Nações de Genebra. Kant de fato não pode ter em mente uma obriga­ção jurídica, mesmo porque sua liga das nações não é concebida como uma organização com unidades coordenadas, que conquista uma qua­lidade estatal e com isso uma autoridade coercitiva. Portanto, ele pre­cisa fiar-se exclusivamente em uma união moral dos governos entre si. Por outro lado, isso é quase inconciliável com as realistas e austeras descrições da política contemporânea feitas por Kant.

O próprio filósofo vê inteiramente o problema, só que ao mes­mo tempo o encobre, usando para isso um mero apelo à razão: "Quan­do (um) Estado diz: 'Não deve haver guerra entre mim e outros Es­tados, mesmo sem que eu reconheça qualquer outro poder legislativo acima de mim que assegure meu direito, ou eu o direito dele', então não se pode compreender de modo algum em que elemento eu pre­tendo fundar a confiança em relação a meu direito, a menos que caiba à razão unir ao conceito do direito das gentes justamente a sub-rogação da aliança social burguesa, ou seja, o federalismo livre" ( Werke VI, 212). Essa asseveração, no entanto, deixa suspensa a pergunta deci-

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siva sobre como assegurar a permanência da autovinculação de Esta­dos que continuam sendo soberanos. Isso ainda não diz respeito -nota bene - à questão empírica da aproximação a uma idéia, mas sim à versão conceituai dessa mesma idéia. Se a aliança entre os povos não deve constituir um evento moral, mas sim jurídico, então não lhe devem faltar as qualidades de uma boa "constituição de Estado", tal como Kant as esclarecerá poucas páginas adiante- isto é, as quali­dades de uma constituição que não se abandona à "boa formação moral" de seus membros, mas que na melhor das hipóteses pode esti­mular essa mesma formação.

Sob o ângulo da história, foi certamente muito realista a reserva manifestada por Kant em face do projeto de uma comunidade consti­tucional dos povos. O Estado democrático de direito recém-nascido das Revoluções Americana e Francesa ainda era a exceção, não a regra. O sistema das potências funcionava sob o pressuposto de que somen­te Estados soberanos podiam ser sujeitos do direito internacional. A soberania externa significa a capacidade do Estado de afirmar sua in­dependência na arena internacional, ou seja, manter a integridade de suas fronteiras, se necessário com a força militar; e soberania interna significa a capacidade, baseada no monopólio da força, de preservar a tranqüilidade e a ordem no próprio país, com recursos do poder ad­ministrativo e do direito positivo. A razão de Estado define-se por prin­cípios de uma política de poder prudente, que inclui guerras delimi­tadas, e segundo os quais a política interna permanece sob o primado da política externa. A clara separação entre política externa e interna baseia-se em um conceito de poder estrito e discernidor, que se mede em última instância pelo modo como o detentor do poder faz uso da força polícia! e militar disponível nos quartéis.

Enquanto esse universo estatal clássico-moderno determina o horizonte intransponível, toda perspectiva de uma constituição cos­mopolita e que não respeite a soberania dos Estados surge necessaria­mente como irreal. Isso explica também por que a possibilidade de uma união dos povos sob a hegemonia de um Estado poderoso, que Kant vislumbra na imagem de uma "monarquia universal" ( Werke VI, 247), na verdade não representa qualquer alternativa: sob as premissas já mencionadas, tal condução do poder teria que ter por conseqüência o "mais terrível despotismo" ( Werke VI, 169). Como Kant não chega a transpor esse horizonte de experiências, acaba sendo igualmente difí-

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cil crer em uma motivação moral para a criação e manutenção de uma federação de Estados livres e comprometidos em uma política conjun­ta de poder. Para a solução desse problema, Kant esboça uma filosofia da história com intenções cosmopolitas, cuja tarefa é tornar plausível, a partir de uma "intenção da natureza" ainda oculta, a "consonância entre política e moral", tão improvável em um primeiro momento.

Kant menciona essencialmente três tendências naturais que vêm ao encontro da razão, e às quais cabe a tarefa de explicar por que uma aliança entre os povos poderia corresponder ao interesse próprio e esclarecido dos Estados. São elas: a natureza pacífica das repúblicas ( 1 ), a força geradora de comunidades, própria do comércio interna­cional (2) e a função de cunho político da opinião pública (3). Um olhar histórico sobre esses argumentos é elucidativo em um duplo sentido. De um lado, eles foram falsificados em seu manifesto teor significativo pelos desenvolvimentos dos séculos XIX e XX. De outro lado, direcionam a atenção para desenvolvimentos históricos que apre­sentam uma dialética peculiar. Na verdade, esses desenvolvimentos revelam em primeiro lugar que as premissas subjacentes à teoria de Kant, firmadas sob as condições percebidas em fins do século XVIII, já não estão mais corretas; por outro lado, no entanto, eles também depõem em favor de que uma concepção do direito cosmopolita, refor­mulada de acordo com os novos tempos - em conformidade com a maneira como interpretamos as condições já bastante diversas deste final do século XX -, bem poderia aplicar-se a uma constelação de forças predisposta a aceitá-los.

( 1) O primeiro argumento afirma que as relações internacionais perdem seu caráter belicista à mesma medida que se impõe nos Esta­dos a forma de governo republicano; pois as populações de Estados constitucionais democráticos, movidas por interesses próprios, com­pelem seus governos a desenvolver políticas de paz: "Quando se con­vida os cidadãos do Estado a manifestar-se sobre a necessidade de ha­ver guerra, nada mais natural que eles, ao se verem obrigados a decidir sobre os encargos que a guerra acarretará sobre si mesmos, tenham sérias dúvidas quanto a dar início a um jogo tão nocivo." Essa suposi­ção otimista foi refutada pela força mobilizadora de uma idéia que

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Kant, em 1795, ainda não podia conhecer em sua ambivalência: penso aqui na idéia de nação. O nacionalismo foi certamente um veículo da transformação de súditos em cidadãos ativos que se identificam com o Estado a que pertencem. Isso porém não tornou o Estado nacional mais pacífico do que seu antecessor, o Estado dinástico absolutista3•

Pois sob a perspectiva dos movimentos nacionais, a auto-afirmação clássica do Estado soberano ganha as conotações de liberdade e inde­pendência nacional. E por isso a consciência moral republicana dos cidadãos deveria comprovar-se em sua prontidão a lutar e morrer pelo povo e pela pátria. Com razão, Kant viu nos exércitos mercenários de seu tempo instrumentos para o "uso de pessoas como meras máqui­nas na mão de um outro': e exigiu a instauração de exércitos; ele não pôde prever que a mobilização maciça de jovens em serviço militar obrigatório, inflamados pelo sentimento nacionalista, ainda iria oca­sionar uma era de guerras de libertação catastróficas e descontroladas, do ponto de vista ideológico.

Por outro lado, não está totalmente errada a noção de que uma condição democrática no interior do Estado sugere para ele um com­portamento externo pacifista. Na verdade, exigências histórico-esta­tísticas demonstram que Estados de constituição democrática não tra­vam menos guerras do que regimes autoritários (de um tipo ou de outro); demonstram, porém, que esses Estados se comportam de ma­neira menos belicista nas relações entre si. Esse resultado permite fa­zer uma leitura interessante4• À medida que as orientações universalistas valorativas de uma população acostumada a instituições liberais im­pregnam também a politica externa, as guerras travadas pela coletivi­dade republicana, mesmo que ela no todo não se comporte de manei­ra pacífica, assumem um caráter diverso. Com os motivos dos cida­dãos, altera-se também a politica externa do Estado que integram. O uso de força militar não é determinado exclusivamente por uma razão de Estado essencialmente particularista, mas também pelo desejo de fomentar a expansão internacional de formas de Estado e de governo não-autoritárias. Quando, porém, as preferências valorativas se expan­dem para além da percepção de interesses nacionais e em favor da

3. Cf. H. Schulze, Staat und Nation in der Europiiischen Geschichte, München, 1994. 4. Cf. D. Archibugi; D. Held (orgs.), Cosmopolitan Democracy, Cambridge, 1995.

Introdução, pp. lOss.

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afirmação da democracia e dos direitos humanos, então se alteram também as condições sob as quais funciona o sistema de potências.

(2) A história, que nesse meio tempo já podemos observar em seu conjunto, agiu de maneira analogamente dialética em relação ao se­gundo argumento. De modo imediato, Kant errou, mas de maneira in­direta também teve razão. Pois Kant viu na crescente interdependência das sociedades ("Doutrina do direito",§ 62)- incrementada pela cir­culação de informações, pessoas e produtos, e em especial na expansão do comércio - uma tendência que favorece a união pacífica dos po­vos. As relações comerciais em expansão no início da Era Moderna in­tensificam-se e acabam por constituir um mercado mundial que, se­gundo a opinião de Kant, deveria fundamentar "através do proveito próprio mútuo" um interesse pelo asseguramento de relações pacíficas: "Com a guerra não pode subsistir o espírito comercial, que se apodera cedo ou tarde de cada um dos povos. Pois já que entre todos os poderes a que se subordina o poder estatal o poder financeiro seja talvez o mais confiável, os Estados vêem-se compelidos a fomentar a paz valorosa" ( Werke VI, 226). Certamente Kant ainda não havia aprendido - tal como Hegel irá fazê-lo logo a seguir, com a leitura dos economistas in­gleses5 - que o desenvolvimento capitalista iria resultar em um con­flito entre classes sociais que ameaça duplamente a paz e a presumível disposição para a paz, demonstrada justamente pelas sociedades politi­camente liberais. Kant não pôde antever tampouco que as tensões so­ciais, fortalecidas em um primeiro momento no decorrer de uma in­dustrialização capitalista acelerada, iriam onerar a politica interna com lutas de classe e direcionar a politica externa às vias de um imperialis­mo belicoso. Ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX, os governos europeus serviram-se reiteradamente da força propul­sora proporcionada pelo nacionalismo, a fim de desviar os conflitos sociais para fora e neutralizá-los por meio de êxitos na política externa. Só após a catástrofe da Segunda Guerra Mundial, quando se esgotam as fontes de energia do nacionalismo integral, uma pacificação bem-suce­dida do antagonismo de classes, promovida pelo Estado social, modi­fica a situação interna das sociedades desenvolvidas, a ponto de o entre­laçamento econômico mútuo entre as economias nacionais- ao me­nos no universo da OECD- poder levar a uma espécie de "economi-

5. Cf. G. Lukács, Der junge Hegel, Zürich, 1948.

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zação da política internacional"6, em face da qual Kant alimentara a forte expectativa de um efeito pacificador. Hoje em dia, meios de comu­nicação, redes e sistemas ramificados em geral compelem a um adensa­mento das relações sociais e simbólicas em nível global, que têm por conseqüência efeitos recíprocos desencadeados por acontecimentos tanto locais quanto muito distantes7• Esses processos de globalização deixam cada vez mais vulneráveis as sociedade complexas, com sua infra­estrutura tecnicamente debilitada. Ao passo que conflitos militares entre as grandes potências nucleares tornam-se cada vez mais improváveis, pelos riscos imensos que isso implicaria, cresce abertamente o número de conflitos locais, com um número de vítimas grande e assustador. Por outro lado, a globalização questiona pressupostos essenciais do direito público internacional em sua forma clássica- a soberania dos Estados e as separações agudas entre política interna e externa.

Agentes não-estatais como empresas transnacionais e bancos pri­vados com influência internacional esvaziam a soberania dos Estados nacionais que eles mesmos acatam de um ponto de vista formal. Hoje em dia, cada uma das trinta maiores empresas do mundo em opera­ção movimenta uma receita maior que o produto nacional bruto de noventa dos países representados na ONU, considerados individual­mente. Mas mesmo os governos dos países economicamente mais for­tes percebem hoje o abismo que se estabelece entre seu espaço de ação nacionalmente delimitado e os imperativos que não são sequer do co­mércio internacional, mas sim das condições de produção integradas em uma rede global. Estados soberanos só podem ter ganhos com suas próprias economias enquanto se tratar aí de "economias nacionais" sobre as quais eles possam exercer influência por meios políticos. Com a desnacionalização da economia, porém, em especial com a integração em rede dos mercados financeiros e da produção industrial em nível global, a política nacional perde o domínio sobre as condições gerais de produção8 - e com isso o leme com que se mantém em curso o nível social já alcançado.

6. D. Senghaas, "Internationale Politik im Lichte ihrer strukturellen Dilemmata': ln: Wohin driftet die Welt?, Frankfurt am Main, 1994. pp. 121 ss. Na citação acima, p. 132.

7. Eis como A. Giddens define "globalização': in: The Consequences of Modemity, Cambridge, 1994, p. 64[ ed. br.: Gll>DENS, A., As conseqüências da modernidade, São Paulo, Unesp, 1991].

8. Cf. R. Knieper, Nationale Souveranitat, Frankfurt am Main, 1991.

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Ao mesmo tempo torna-se indiferenciado para os Estados sobera­nos o limite constitutivo entre política interna e externa. A imagem da política clássica de poder não se altera apenas mediante pontos de vista normativos complementares à política de democratização e direitos hu­manos, mas também por meio de uma difusão muito peculiar do poder. Sob a crescente compulsão a que se estabeleçam formas de cooperação, ganha significado sempre maior a influência mais ou menos di reta sobre a estruturação das situações de que se pode tirar proveito, a influência sobre o estabelecimento de contatos ou a interrupção de vias de comuni­cação, e sobre a definição de pautas e problemas. Freqüentemente, a influência que se exerce sobre as condições circunstantes sob as quais outros agentes tomam suas próprias decisões acaba sendo mais impor­tante que a imposição direta dos próprios objetivos, o exercício de po­der executivo ou a ameaça por meio da violência9• O "soft power" recalca o "hard power': e priva os sujeitos- a partir dos quais Kant concebera a associação de Estados livres - da base de sua independência.

(3) Por sua vez, a situação é semelhante no que diz respeito ao terceiro argumento, proposto por Kant para minimizar a suspeita de que a projetada aliança entre os povos não passasse de uma "idéia fer­vorosa': Em uma coletividade republicana, os princípios da constitui­ção afiguram parâmetros segundo os quais é preciso poder avaliar a política publicamente. Governos como esses não se podem permitir "fundar publicamente a política apenas com base em torneios da pru­dência" ( Werke VI, 238)- mesmo que eles se vejam obrigados a cum­prir sua função apenas da boca para fora. Em tal medida, a opinião pública cidadã e de cunho político tem uma função controladora: por meio da crítica aberta, ela pode impedir a concretização de intenções "avessas à luz do dia", inconciliáveis com máximas publicamente defen­sáveis. Além disso, segundo a opinião de Kant, a opinião pública deve ganhar uma função programática à medida que os filósofos, na função de "professores públicos do direito" ou intelectuais, "falem aberta e pu­blicamente sobre as máximas da condução da guerra e promoção da paz': e à medida que possam convencer o público de cidadãos da cor­reção de seus princípios. Foi provavelmente o exemplo de Frederico II e Voltaire que Kant teve em vista ao escrever a comovente sentença a seguir: "Não é de esperar que reis filosofem ou filósofos reinem; nem

9. Cf. ). S. Nye, "Soft Power", Foreign Policy, n. 80, pp. 153-171, 1990.

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se deve querer tal coisa, porque a posse do poder inevitavelmente corrói o livre juízo da razão. Mas que os soberanos e os povos soberanos que dominam a si mesmos segundo as leis da igualdade não eliminem nem calem a classe dos filósofos, e deixem-na, sim, falar publicamente­ora, isso é insuspeito e indispensável para o esclarecimento dos ofícios de ambos" ( Werke VI, 228).

Como demonstra pouco tempo depois na peleja sobre o ateísmo, em torno de Fichte, Kant tinha boas razões para temer a censura. Também queremos ser complacentes com a confiança que o filósofo depositava na força de convencimento da filosofia, e com sua elo­qüência; o ceticismo histórico em face da razão surge no século XIX, e foi apenas em nosso século que intelectuais cometeram a grande traição. O que mais importa aqui é que Kant naturalmente ainda contava com a transparência de uma opinião pública visível em seu todo, marcada pela literatura, acessível a argumentos e sustentada por membros de uma camada de cidadãos cultos relativamente pe­quena. Ele não pôde prever a transformação estrutural dessa opi­nião pública burguesa em uma outra, dominada pelos meios eletrôni­cos de comunicação, semanticamente degenerada e tomada por ima­gens e realidades virtuais. Ele não pôde intuir que esse universo de um Esclarecimento "loquaz" pudesse ser refuncionalizado tanto no sentido de um doutrinamento sem linguagem quanto de um embuste com a linguagem.

Provavelmente, esse véu da insciência explica o ânimo em face da antecipação de uma opinião pública mundial- antecipação de bem largo alcance, mas que hoje em dia se revela clarividente. Pois ela só agora se configura, ou seja, após o evento da comunicação global: "Já que a comunidade dos povos da Terra(!), causa de tanto alarme no passado, logrou chegar tão longe, a ponto de se poder sentir a vio­lação do direito ocorrida em um local do planeta em todos os demais locais, também assim a idéia de um direito cosmopolita não é um tipo de imaginação fantasmática e exagerada do direito, mas sim um com­plemento necessário ao direito público e internacional em favor dos direitos humanos e portanto da paz perpétua; e se podemos nos sen­tir lisonjeados por nos aproximar continuamente dessa paz perpé­tua, isso só pode acontecer sob essa condição [qual seja, a de que haja uma opinião pública mundial em funcionamento, J. Habermas]". (WerkeVI, 216 s.).

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Os primeiros acontecimentos que de fato chamaram a atenção de uma opinião pública mundial e que polarizaram as opiniões em proporções globais foram provavelmente a Guerra do Vietnã e a Guer­ra do Golfo. Só mais recentemente, e em uma seqüência muito rápi­da, a ONU organizou uma série de conferências sobre questões de abrangência planetária envolvendo a ecologia (no Rio de Janeiro), os problemas do crescimento populacional (na cidade do Cairo), da po­breza (em Copenhague) e do clima (em Berlim). Podemos entender essas "cúpulas mundiais", e tantas outras, ao menos como tentativas de exercer uma pressão política sobre os governos, seja pela simples tematização de problemas de importância vital mediante uma opi­nião pública de âmbito mundial, seja por um apelo direto à opinião internacional. Por certo não se pode ignorar que essa atenção susci­tada temporariamente e ligada a temas muito específicos é canaliza­da, hoje como ontem, por meio de estruturas das opiniões públicas nacionais, que se esforçam por partilhar certo entrosamento. É ne­cessária uma estrutura de sustentação, para que se estabeleça a comu­nicação permanente entre parceiros distantes no espaço, que in­tercambiem ao mesmo tempo contribuições de mesma relevância so­bre os mesmos temas. Nesse sentido ainda não há uma opinião públi­ca global, nem tampouco uma opinião pública de alcance europeu, tão urgentemente necessária. Mas o papel central que vêm desempe­nhando organizações de um novo tipo, ou seja, as organizações não­governamentais como Green Peace ou Anistia Internacional- e isso não só em conferências como as mencionadas antes, mas em geral, no que diz respeito à criação e mobilização de uma opinião pública supranacional-, é sinal claro de que certos agentes ganham influên­cia crescente na imprensa, como forças que fazem frente aos Estados, surgidas a partir de algo semelhante a uma sociedade civil internacio­nal, integrada em rede10•

O papel da divulgação na imprensa e da opinião pública, que Kant destacou com razão, faz voltar os olhos à coesão entre a consti­tuição jurídica e a cultura política de uma coletividade11 • Pois uma

10. Sobre a "despedida do mundo dos Estados': v. E. O. Czempiel, Weltpolitik im Umbruch, München, 1993, pp. 105ss.

11. Cf. as contribuições de Albrecht Wellmer e Axel Honneth in: M. Brumlik; H. Brunkhorst (orgs.), Gemeinschaft und Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1993, pp. 173ss. e 260ss.

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cultura política liberal constitui o território em que as instituições da liberdade podem lançar raízes, mas é ao mesmo tempo o meio sobre o qual se concretizam avanços no processo de civilização polí­tica de uma população12• Por certo, Kant fala do "crescimento da cul­tura" que levaria a "um maior ajuste em torno de princípios" ( Werke VI, 226); ele também espera que o uso público das liberdades comu­nicativas se transforme em processos de esclarecimento que, pela via da socialização política, afetem o posicionamento e a forma de pen­sar de uma população. Nesse contexto ele fala da "participação afe­tiva no Bem, da qual nenhum cidadão esclarecido que o concebe por completo pode se eximir de ter" ("Idee zu einer Allgemeinen Ges­chichte", Werke VI, 46 s.). Essas observações, porém, não ganham significado sistemático algum, porque a formação conceituai dico­tômica da filosofia transcendental separa o que é interior do que é exterior, a moralidade da legalidade. Kant ignora em especial a coe­são- criada por uma cultura política liberal- entre a contemplação prudente de interesses, o discernimento moral e o costume, entre a tradição e a critica. As práticas de tal cultura intermedeiam a moral, o direito e a política, e configuram ao mesmo tempo o contexto ade­quado a uma opinião pública que exige processos políticos de apren­dizado13. É por isso que Kant não precisaria ter recorrido a uma in­tenção natural metafísica, caso quisesse explicar de que maneira "uma convergência patológico-forçosa em direção a uma sociedade pode tornar-se, afinal, em um todo moral" ("Idee zu einer Allgemeinen Geschichte", Werke VI, 38).

Essas considerações "criticas demonstram que a idéia kantiana da condição cosmopolita tem de ser reformulada, caso não queira per­der o contato com uma situação mundial que se modificou por com­pleto. Haverá facilidade em se fazer a revisão cabível no âmbito con­ceituai básico, pelo fato de a própria idéia não haver estacionado, por assim dizer. Afinal, ela passou a ser assumida e implementada pela política, desde a iniciativa do presidente Wilson e a fundação da Liga das Nações em Genebra. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial,

12. Cf. o texto que intitula: J. Habermas, Die Normalitiit einer Berliner Republik, Frankfurt am Main, 1995, pp. 167ss.

13. Sobre o "povo como soberano em aprendizado': cf. H. Brunkhorst, Demokratie und Differenz. Frankfurt am Main, 199ss.

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a idéia da paz perpétua ganhou uma forma palpável nas instituições, declarações e políticas das Nações Unidas (bem como em outras or­ganizações supranacionais). A força desafiadora das incomparáveis catástrofes do século XX colidiu com a idéia, empurrando-a. Em face desse contexto sombrio, o espírito do mundo, como se expressou He­gel, esquivou-se com um salto.

A Primeira Guerra Mundial pôs as sociedades européias em con­fronto com os assombros e horrores de um conflito desenfreado quan­to ao uso de recursos técnicos e propagação espacial; a Segunda Guerra Mundial confrontou-a com os crimes em massa de um conflito ideolo­gicamente descomedido. Sob o véu da guerra total tramada por Hitler cumpriu-se uma ruptura civilizacional, que desencadeou uma como­ção em nível mundial e propiciou a transição do direito internacio­nal ao direito cosmopolita. De uma parte, a proscrição da guerra, já declarada no Pacto de Kellogg, de 1928, foi transformada pelos tribu­nais militares de Nürenberg e Tóquio em instrução judiciária penal. Esta última não se limita aos delitos cometidos na guerra, mas incri­mina a própria guerra como delito. Daí para diante é possível perse­guir "o delito da guerra': De outra parte, as leis penais foram esten­didas a "crimes contra a humanidade"- a ações legalmente determi­nadas por órgãos do Estado e cumpridas com o auxílio de inúmeros membros de organizações, altos funcionários, servidores públicos, pessoas particulares ou ligadas a negócios. Com essas duas inovações, pela primeira vez os sujeitos estatais do direito internacional viram-se desprovidos da hipótese genérica de inocência associada a uma su­posta condição natural.

A revisão conceituai básica diz respeito à soberania externa dos Estados c ao carátcr modificado das relações interestatais (1), à sobe­rania interna dos Estados e às restrições normativas da política clássi­ca de poder (2), e ainda à estratificação da sociedade mundial e a uma globalização dos riscos, algo necessário a partir de uma conceitualização modificada do que entendemos por "paz" (3).

( 1) Como já se demonstrou, não é consistente o conceito kantia­no de uma aliança dos povos firmada de forma duradoura e capaz de respeitar, ao mesmo tempo, a soberania dos Estados. O direito cos-

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mopolita tem de ser institucionalizado de tal modo que vincule os governos em particular. A comunidade de povos tem ao menos de poder garantir um comportamento juridicamente adequado por par­te de seus membros, sob pena de sanções. Só assim o sistema de Esta­dos soberanos em constante atitude de auto-afirmação, instável e ba­seado em ameaças mútuas poderá transformar-se em uma federação com instituições em comum, que assumam funções estatais, ou seja, que regulem a relação de seus membros entre si e controlem a obser­vância dessas regras. O estatuto diferenciado das relações internacio­nais reguladas por contrato, que por si mesmas constituem mundos à parte, terá de ser modificado pelo estabelecimento de uma relação interna de base regimental ou constitucional. Esse sentido está con­templado na Carta das Nações Unidas, que proíbe guerras de agressão (com a interdição do uso da violência no artigo 2, 4) e que autoriza o Conselho de Segurança a tomar medidas adequadas, inclusive ações militares, nos casos graves em que "haja uma ameaça ou violação da paz, ou quando estiverem ocorrendo ações de ataque" (capítulo VII). Por outro lado, é expressamente vedado às Nações Unidas intervir em assuntos internos de um Estado (cf. o artigo 2, 7). Cada Estado man­tém o direito à autodefesa militar. Em dezembro de 1991, a Assem­bléia Geral corroborou esse princípio (em sua Resolução 46/182): "A soberania, integridade territorial e unidade nacional de um Estado, em consonância com a Carta das Nações Unidas, têm de ser inteiramente respeitadas" 14•

Com essas regulamentações ambíguas, que a um só tempo limi­tam e garantem a soberania própria a um Estado em particular, a

14. Com a surpreendente construção de "direitos fundamentais do Estado", ). lsensee defende uma proibição qualificada de intervenções "contrárias às crescentes tendências de degradação" (cf. "Weltpolizei für Menschenrechte': ]uristische Zeitung, ano 50, fase. 9, pp. 421-430, 1995): "O que vale para os direitos fundamentais dos indivíduos, mutatis mutandis, vale também para os 'direitos fundamentais' dos Esta­dos, sobretudo no que diz respeito a sua igualdade soberana, sua autodeterminação de soberania pessoal e territorial" (p. 424; e, nesse mesmo sentido, p. 429). A consti­tuição de uma analogia entre a soberania dos Estados reconhecida pelo direito inter­nacional e a liberdade garantida segundo os direitos fundamentais de pessoas natu­rais do direito não apenas ignora o status fundamental dos direitos subjetivos indivi­duais e o talhe individualista das ordens jurídicas modernas, mas também o sentido especificamente jurídico dos direitos humanos como direitos subjetivos dos cidadãos de uma ordem cosmopolita.

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Carta presta contas a uma situação transitória. As Nações Unidas ainda não dispõem de forças próprias de combate, tampouco de forças que elas pudessem empregar sob comando próprio, nem muito menos de um monopólio do poder. Elas dependem, para fazer valer suas decisões, da cooperação voluntária dos membros capazes de tomar parte nas ações. Essa base de poder bastante precária precisou ser com­pensada com o estabelecimento de um Conselho de Segurança ao qual foram integrados como membros permanentes da Organização Mundial as grandes potências com direito a veto. Isso certamente re­sultou em que as superpotências, ao longo de décadas, bloquearam-se mutuamente. E na medida em que o Conselho de Segurança toma certas iniciativas, faz um uso altamente seletivo de seu espaço de atua­ção ponderativo, com cuidado para não ferir o princípio do tratamen­to igualitário15• Esse problema voltou a ser atual com o episódio da Guerra do Golfo16• O Tribunal Internacional em Haia tem apenas um significado simbólico, ainda que não totalmente desimportante; ele só entra em ação mediante requerimento e não é, com seus veredictos, capaz de obrigar os governos (o que voltou a se evidenciar no caso Nicarágua versus EUA).

A segurança internacional, ao menos nas relações entre as potên­cias nucleares, não se garante hoje pelas delimitações normativas da ONU, mas sim por acordos em torno do controle de armamentos, e sobretudo pelo estabelecimento de "parcerias de segurança". Esses con­tratos bilaterais determinam inspeções e impõem ações coordenadas a grupos de poder concorrentes, de modo que se manifesta, para além da transparência dos planejamentos e da previsibilidade dos motivos, uma confiabilidade não-normativa em relação às expectativas, funda­mentada de maneira puramente racional-finalista.

(2) Por considerar intransponíveis as barreiras da soberania esta­tal foi que Kant concebeu a união cosmopolita como uma federação de Estados, e não de cidadãos. Isso foi tão pouco conseqüente de sua parte quanto remeter toda condição jurídica ao direito original cabí­vel a toda pessoa "enquanto ser humano': e não somente a condição que afete questões internas do Estado. Para Kant, todo indivíduo tem

15. Cf. os exemplos dados por Chr. Greenwood, "Gibt es ein Recht aufhumanitãre Intervention?", Europa-Archiv, n. 4, pp. 93-106, 1993. Na citação acima, p. 94.

16. Cf. J. Habermas, Vergangenheit ais Zukunft, München, 1993. pp. 10-44.

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direito às mesmas liberdades segundo leis gerais ("sobre as quais to­dos decidem, levando em conta todos os demais, da mesma forma que cada um o faz, levando em conta a si mesmo"). Essa fundamentação do direito em geral com base nos direitos humanos assinala os indi­víduos como portadores de direitos e confere a todas as ordenações jurídicas modernas um talhe imprescindivelmente individualista17• Se Kant, no entanto, considera essa garantia de liberdade - "o que o ser humano deve fazer segundo as leis da liberdade"- como o que há de "mais essencial na intenção de se alcançar a paz perpétua", "e isso se­gundo todas as três dimensões do direito público: o direito do Estado, das gentes e o direito cosmopolita" ( Werke VI, 223), então ele de fato não pode fazer que a autonomia dos cidadãos seja mediatizada pela soberania dos respectivos Estados.

Antes de mais nada, o cerne do direito cosmopolita consiste em que ele se lance por sobre as cabeças dos sujeitos jurídicos coletivos do direito internacional, que se infunda no posicionamento dos sujeitos jurídicos individuais e que fundamente para esses últimos uma condi­ção não-mediatizada de membros de uma associação de cidadãos do mundo livres e iguais. Carl Schmitt compreendeu esse ponto central e percebeu que segundo essa concepção "todo indivíduo é ao mesmo tempo cidadão do mundo (no sentido jurídico pleno da palavra) e cidadão de um Estado em particular" 18 • Já que a dupla competência recai sobre "a federação mundial dos Estados", e os indivíduos assu­mem nessa comunidade internacional uma posição juridicamente imediata, o Estado em particular transforma-se assim "em mera com­petência de determinadas pessoas, que entram em cena com um duplo papel de função nacional e internacional"19• A competência mais im­portante de um direito que se infunde por meio da soberania dos Es­tados é a responsabilização de pessoas em particular por crimes come­tidos em serviços prestados sob ordens do Estado ou na guerra.

Também quanto a isso o desenvolvimento até os dias de hoje foi para além de Kant. Em seqüência à Carta do Atlântico de agosto de 1941, a Carta das Nações Unidas de junho de 1945 obriga os Estados

17. Cf. pp. 229ss., infra. 18. Em um comentário à obra de Georges Scelle, Précis de droit des gens, Paris.

vol. 1, 1932; vol. 2, 1934: C. Schmitt, Die Wendung zum diskriminierenden Kriegsbegriff (1938), Berlin, 1988, p. 16.

19. Cf. Schmitt, 1988, p. 19.

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membros em geral à observância e cumprimento dos direitos huma­nos. Eles receberam um detalhamento modelar por parte da Assem­bléia Geral com sua "Declaração Universal dos Direitos Humanos", em dezembro de 1948, que continua a desenvolvê-los até hoje, em di­versas Resoluções20• As Nações Unidas não abandonam a defesa dos direitos humanos somente a seu cumprimento nacional; dispõem tam­bém de um instrumental próprio para a constatação de eventuais vio­lações dos direitos humanos. Para os direitos fundamentais de teor social, económico e cultural, limitados apenas pela "medida do possí­vel': a Comissão de Direitos Humanos instituiu órgãos fiscalizadores e relatórios de rotina; além disso, para os direitos políticos e de cida­dania instituiu ainda procedimentos vindicativos.

Teoricamente (ainda que na verdade ela não seja reconhecida por todos os Estados subscritores) confere-se maior significado à vindi­cação individual do que à vindicação apresentada por um Estado em particular. A vindicação individual, a propósito, confere meios jurídi­cos ao cidadão em particular contra o governo de seu próprio país. Até o momento, porém, inexiste um tribunal para ações penais que julgue e decida sobre casos comprovados de violações dos direitos humanos. Na Conferência dos Direitos Humanos de Viena ainda não havia sido possível fazer valer a sugestão de investidura de um alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Tribunais instituídos ad hoc para o julgamento de crimes de guerra segundo o modelo das Cortes Militares Internacionais em Nürenberg e Tóquio constituem até hoje a exceção21 • Contudo, a Assembléia Geral das Na­ções Unidas reconheceu os princípios mestres subjacentes aos vere­dictos pronunciados naquelas ocasiões como "princípios do direito in­ternacional': Em tal medida, não é verdadeira a afirmação de que esses processos contra líderes militares, diplomatas, servidores ministeriais, médicos, banqueiros e grandes industriais do regime nacional-sacia-

20. Sobre a Conferência dos Direitos Humanos de Viena, v. R. Wolfrum, "Die Entwicklung des internationalen Menschenrechtsschutzes': Europa-Archiv, n. 23, pp. 681-690, 1993; sobre o status dos polêmicos direitos à solidariedade, cf. W. Huber, "Menschenrechte/Menschenwürde': Theologische Realenzyklopiidie, v. XXII, Berlin; New York, 1992. pp. 577 -602; e ainda: E. Riedel, "Menschenrechte der dritten Dimension", Europiiische Grundrechte Zeitschrift (EuGRZ), pp. 9-21, 1989.

21. Em 1993, o Conselho de Segurança constituiu um tribunal como esse para proceder à perseguição de crimes de guerra e contra a humanidade na antiga Iugoslávia.

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lista tenham consistido em procedimentos judiciais "únicos': sem for­ça de precedência juridicamente constitutiva22•

O ponto vulnerável da defesa global dos direitos humanos, de sua parte, é a falta de um poder executivo que possa proporcionar à Declaração Universal dos Direitos Humanos sua efetiva observância, inclusive mediante intervenções no poder soberano de Estados na­cionais, se necessário for. Como em muitos casos os direitos huma­nos teriam de se impor à revelia dos governos nacionais, é preciso rever a proibição de intervenções prevista pelo direito internacional. Se não inexistir um poder estatal, como no caso da Somália, a Orga­nização Mundial só intervém com a anuência dos governos envolvi­dos (foi o que ocorreu na Libéria e na Croácia/Bósnii3). No entanto, com a Resolução 688, de abril de 1991, durante a Guerra do Golfo, ela de fato trilhou um novo caminho, ainda que não no sentido da fundamentação jurídica. Naquela ocasião, as Nações Unidas remete­ram-se ao direito de intervenção que lhes cabe em casos de "ameaça à segurança internacional': de acordo com o capítulo VII da Carta; em tal medida, do ponto de vista jurídico, nessa ocasião elas tampouco intervieram nos "assuntos interiores" de um Estado soberano. Para os Aliados, entretanto, esteve muito claro que eles estavam fazendo justamente isso, no momento em que determinaram zonas de proi­bição de vôo sobre o espaço aéreo iraquiano e também quando em­pregaram tropas de solo no Iraque Setentrional para criar "portos de fuga" (dos quais a Turquia vinha abusando nesse ínterim), destinados a fugitivos curdos, ou seja, para defender os membros de uma mino­ria nacional contra o próprio Estado24• O ministro de relações exte­riores britânico falou, na ocasião, de uma "expansão das fronteiras para o comércio internacional"25•

(3) A revisão de conceitos básicos que se faz necessária em vista do caráter modificado das relações interestatais e da restrição norma-

22. É o que afirma H. Quaritsch em seu Posfácio a Carl Schmitt, Das international­rechtliche Verbrechen des Angrijfskrieges (1945), Berlin, 1994. pp. 125-247. No contexto acima, pp. 236ss.

23. Cf. as análises e conclusões de Chr. Grenwood, op. cit., 1993. 24. Greenwood ( 1993) chega à seguinte conclusão: "Atua1mente, já parece estar

mais consolidada a idéia de que as Nações Unidas poderiam lançar mão de suas atri­buições para intervir em um Estado por razões humanitárias" (p. 104).

25. Cit. cf. Greenwood, 1993, p. 96.

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tiva do espaço de ação de Estados soberanos traz conseqüências às concepções de aliança entre os povos e de condição cosmopolita. Em parte, as severas normas ora vigentes prestam contas a isso; mas hoje como ontem persiste uma grande discrepância entre a letra e o cum­primento das normas. A situação mundial da atualidade pode ser en­tendida, na melhor das hipóteses, como transição do direito interna­cional ao direito cosmopolita. Muitas coisas parecem indicar, mais que isso, uma reincidência no nacionalismo. Nessa linha, o julgamento depende da maneira como avaliamos a dinâmica das tendências "con­vergentes': Estávamos acompanhando a dialética dos desdobramen­tos cujo início Kant havia tido em vista, em sua época, ao falar de uma condição pacífica das repúblicas, da força agregadora dos mercados globais e da pressão normativa da opinião pública liberal. Hoje, essas tendências dizem respeito a uma constelação imprevista.

Kant imaginara a ampliação da associação de Estados livres de tal maneira que um número sempre maior de Estados viesse a cristali­zar-se em torno do núcleo de uma vanguarda de repúblicas pacíficas: "Pois quando a felicidade concede às coisas ser de tal modo: que um povo poderoso e esclarecido possa formar uma república, então essa fornece a outros Estados um centro de unificação federativa, para jun­tar-se a eles, e depois sempre expandir-se, mais e mais, através de su­cessivas unificações desse tipo" ( Werke VI, 211 s.). Na realidade, po­rém, a Organização Mundial abriga hoje praticamente todos os Esta­dos sob um mesmo teto, e independentemente de serem republicanos e de respeitarem ou não os direitos humanos. A união política do mundo encontra expressão na Assembléia Geral das Nações Unidas, na qual todos os governos estão representados com igualdade de direi­tos. Com isso a Organização Mundial abstrai não somente das dife­renças de legitimidade de seus membros no interior da comunidade de Estados, mas também de suas diferenças de status no interior de uma sociedade mundial específica. E falo de uma "sociedade mundial", por­que os sistemas comunicacionais e os mercados criaram um contexto global; mas é preciso falar de uma sociedade mundial "estratificada", porque o mecanismo do mercado mundial acopla uma produtividade progressiva à miserabilização crescente, isto é, processos de desenvol­vimento a processos de subdesenvolvimento. A globalização divide o mundo e ao mesmo tempo o desafia, enquanto comunidade de risco, ao agir cooperativo.

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Da perspectiva das ciências políticas, o mundo fragmentou -sedes­de 1917 em três mundos. Certamente, os símbolos do Primeiro, Se­gundo e Terceiro Mundos assumiram um significado diferente a partir de 198926• O Terceiro Mundo é constituído hoje de territórios nos quais a infra-estrutura e o monopólio do poder têm uma formação tão de­bilitada (Somália) ou tão fragmentada (Iugoslávia), nos quais as ten­sões sociais são tão intensas, e os limiares de tolerância da cultura po­lítica, tão baixos, que os poderes indiretos de natureza mafiosa ou fun­damentalista abalam a ordem interna. Essas sociedades estão amea­çadas por processos de decadência étnicos, nacionais ou religiosos. De fato, as guerras que ocorreram nas últimas décadas, muitas vezes sem a devida atenção da opinião pública mundial, foram em sua imensa maio­ria guerras civis desse tipo. Em contraposição, o Segundo Mundo foi marcado pela herança de políticas de poder que assumiu dos Estados nacionais europeus resultantes da descolonização. Em assuntos inte­riores, esses Estados compensam situações de instabilidade com cons­tituições autoritárias e se enrijecem em suas relações externas (como acontece na região do Golfo, por exemplo), insistindo em sua própria soberania e na não-intervenção. Investem no poder militar e obedecem exclusivamente à lógica do equilíbrio de forças. Apenas os Estados do Primeiro Mundo logram até certo ponto harmonizar seus interesses internacionais com os pontos de vista normativos que determinam o nível de exigência quase cosmopolita das Nações Unidas.

Como indicadores da pertinência a esse Primeiro Mundo, R. Cooper menciona: uma crescente irrelevância das questões ligadas a fronteiras e a tolerância em face de um pluralismo legalmente libera­do, em assuntos interiores; uma influenciação reciproca, nas relações interestatais, sobre assuntos tradicionalmente internos e, em geral, uma fusão crescente das políticas interna e externa; a sensibilidade em face da pressão da opinião pública liberal; a refutação do poder militar como meio para a solução de conflitos e a fixação jurídica das relações internacionais; e, por fim, o favorecimento de parcerias que funda­mentem a segurança sobre a transparência e a confiabilidade das ex­pectativas. É esse Primeiro Mundo que define algo como o meridiano de um tempo presente, com base no qual se mede a simultaneidade

26. Cf. R. Cooper, "Gibt es eine neue Welt-Ordnung?': Europa-Archiv, n. 18, pp.509-516, 1993.

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do que é econômica e culturalmente não-simultâneo. Kant, que como filho do século XVIII ainda pensava a-historicamente, havia ignorado tudo isso, e deixado de perceber a abstração real que a organização da comunidade dos povos cumpre, e à qual ela também deve prestar con­tas em suas políticas.

A política das Nações Unidas só é capaz de considerar essa "abs­tração real" à medida que se empenha em favor da superação das ten­sões sociais e dos desequilíbrios econômicos. Isso, por sua vez, só pode ter êxito quando se criar, apesar da estratificação da sociedade mundial, um consenso em pelo menos três direções: uma consciência histórica partilhada por todos os membros em relação à não-simultaneidade das sociedades, que no entanto dependem, todas ao mesmo tempo, da coexistência pacífica; uma concordância normativa sobre direitos hu­manos, cuja interpretação ainda causa polêmica entre europeus, de um lado, asiáticos e africanos, de outro27; e um entendimento comum sobre a concepção da condição pacífica almejada. Kant havia podido contentar-se com um conceito negativo de paz. Isso hoje é insuficiente, e não só por causa do descomedimento na condução da guerra, mas sobretudo por causa da circunstância de que o surgimento de guerras tem causas sociais.

De acordo com uma sugestão de Dieter e Eva Seghaas28 , a com­plexidade das causas da guerra exige uma concepção que entenda a paz como um processo que decorre sem violência, mas que não almeja simplesmente a preservação do poder, e sim o cumprimento de pres­supostos reais para o convívio livre de tensões entre grupos e povos. As regulamentações implementadas não podem ferir a existência e a honra dos envolvidos, nem podem restringir demais os interesses vi­tais e as noções de _justiça, ao ponto de que as partes conflitantes voltem a recorrer à guerra, caso se esgotem as possibilidades de ação. As po­líticas que se orientam segundo um conceito de paz como esse recor­rerão a todos os meios aquém do uso do poder militar, inclusive à intervenção humanitária, para exercer influência sobre a situação in­terna de Estados formalmente soberanos, com o objetivo de fomentar

27. Uma sugestão raroável para se estabelecer um âmbito de discussão é apre­sentada por T. Lindholm, "The Cross-Cultural Legitimacy of Human Rights': Norwegian lnstitut of Human Right, Oslo, n. 3, 1990.

28. Cf. D. e E. Senghaas, "Si vis pacem, para pacem': Leviathan, pp. 230-247,1992.

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neles uma autonomia auto-sustentável com relações sociais admis­síveis, a participação democrática, a tolerância cultural e a condição efetiva de um Estado de direito. Essas estratégias não-violentas em fa­vor de processos de democratização29 contam com que as integrações globais em rede, nesse entremeio, tenham tornado todos os Estados em dependentes de seu mundo circunstante, e também sensíveis ao poder "brando" de influências indiretas- inclusive a sanções econômi­cas impostas de maneira explícita.

Com a complexidade dos objetivos e o alto custo das estratégias, é claro que também crescem as dificuldades de implementação; isso faz com que as potências em posição de liderança fiquem reticentes quanto a tomar iniciativas e arcar com os custos. É preciso ao menos mencionar quatro variáveis importantes para esse contexto: a compo­sição do Conselho de Segurança que precisa se unir em torno de um objetivo único; a cultura política dos Estados, cujos governos só se dei­xam mobilizar em prol de políticas "abnegadas" a curto prazo, quando têm de reagir à pressão normativa da opinião pública; a formação de regimes regionais que propiciem só então alicerces efetivos à Orga­nização Mundial; e, por fim, a incitação branda a um comércio coorde­nado em nível global, cujo ponto de partida é a percepção dos perigos globais. São evidentes os perigos resultantes de desequilíbrios ecoló­gicos, de assimetrias do bem-estar e do poder econômico, das tecno­logias pesadas, do comércio de armas, do terrorismo, da criminalidade ligada às drogas etc. Quem não é levado forçosamente a desesperar da capacidade de aprendizagem do sistema internacional tem de deposi­tar as próprias esperanças no fato de que a longo prazo a globalização desses perigos, de modo objetivo, acabou por integrar o mundo em uma comunidade de risco involuntária.

A reformulação da idéia kantiana de uma pacificação cosmopo­lita da condição natural entre os Estados, quando adequada aos tempos de hoje, inspira por um lado esforços enérgicos em favor da reforma

29. E. O. Czempiel investiga essas estratégias com base em diversos exemplos, tal como em: G. Schwarz, "Internationale Politik und der Wandel von Regimen': Sonderheft der Zeitschrift für Politik, Zürich, pp. 55-75, 1989.

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das Nações Unidas e de modo geral a ampliação das forças capazes de atuar em nível supranacional, em diferentes regiões do planeta. Tra­ta-se aí de uma melhora da circunstância institucional de uma política de direitos humanos que ganhou impulso desde a presidência de Jimmy Carter, mas que também sofreu retrocessos sensíveis ( 1). Essa política, por outro lado, fez entrar em cena uma forte oposição, que vê na tenta­tiva de imposição internacional dos direitos humanos o funcionamento de uma moralização autodestrutiva da política. Os argumentos contrá­rios, por sua vez, apóiam-se sobre um conceito vago de direitos huma­nos, que não diferencia satisfatoriamente entre direito e moral (2).

(1) A "retórica do universalismo" à qual se dirige essa crítica en­contra sua expressão mais objetiva em sugestões de parâmetros segun­do os quais se deveriam ampliar as Nações Unidas, de modo a torná-la uma "democracia cosmopolita': As sugestões de reforma concentram­se em três pontos: na instalação de um parlamento mundial, na am­pliação da estrutura jurídica mundial e na reorganização do Conselho de Segurança30•

As Nações Unidas ainda mantêm traços de um "congresso per­manente de Estados". Se elas pretendem perder esse caráter de assem­bléia das delegações dos governos, então a Assembléia Geral precisa tornar-se uma espécie de Senado Federal e partilhar suas competências com uma Segunda Câmara. Nesse parlamento os povos estariam re­presentados como a totalidade dos cidadãos do mundo, mas não por seus governos, e sim por representantes eleitos. Países que se neguem a permitir a eleição de deputados segundo procedimentos democráti­cos (e levando em consideração suas minorias étnicas) poderiam ser representados provisoriamente por organizações não-estatais desig­nadas pelo próprio Parlamento Mundial como representantes das populações oprimidas.

O Tribunal Internacional em Haia não dispõe de competência para propor acusação; ele não pode emitir veredictos obrigatórios e tem de se restringir às funções de um tribunal de arbitragem. Sua jurisdição, além disso, está restrita às relações entre os Estados; ela não se estende a conflitos entre pessoas em particular ou entre cida­dãos em particular e seus governos. Em todos os sentidos, seria pre-

30. Sigo aqui D. Archibugi, "From the United Nations to Cosmopolitan Demo­cracy".ln: Archibugi; Held, op. cit., 1995, pp. 121-162.

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ciso aumentar as competências do Tribunal, segundo a linha de su­gestões já elaborada por Hans Kelsen meio século atrás31 • A jurisdição penal, que até hoje só se instalou ad hoc para processos específicos de crimes de guerra, teria que institucionalizar-se de forma permanente.

O Conselho de Segurança foi concebido como poder compensa­tório da Assembléia Geral, composta de forma igualitária; ele deve retratar as relações efetivas de poder no cenário internacional. Esse princípio racional, depois de cinco décadas, exige adaptações à nova situação mundial. E essas adaptações não deveriam esgotar-se em uma atualização da representação de Estados nacionais influentes (por exemplo, pela aceitação da Alemanha e do Japão como membros per­manentes). Em vez disso, propõe-se que ao lado das potências mun­diais (como os EUA) também se conceda um voto privilegiado a regi­mes regionais (como a União Européia). No mais, deve-se suprimir a obrigatoriedade de voto unânime entre os membros permanentes e substituí-la por regulamentações de maioria, apropriadas às diversas situações. O Conselho de Segurança poderia ser totalmente reformado segundo o modelo do Conselho de Ministros em Bruxelas, para tor­nar-se um poder executivo capaz de agir. Os Estados, além disso, só adequarão suas políticas externas tradicionais ao imperativo de uma política interna mundial quando a Organização Mundial puder em­pregar forças de conflito sob seu próprio comando e desempenhar funções policiais.

Essas considerações são convencionais, à medida que se orien­tam por elementos organizativos das constituições nacionais. Por cer­to, a implementação de um direito cosmopolita conceitualmente cla­ro exige um pouco mais de criatividade institucional. O universalis­mo moral que orientou Kant em suas aspirações continua sendo de alguma maneira a intuição que constitui os parâmetros nessa ques­tão. No entanto, um argumento tem-se voltado contra essa auto­compreensão moral-pragmática da modernidade32 e obtido êxito em sua recepção na Alemanha desde a crítica de Hegel à moral kantiana da humanidade, com marcas profundas, visíveis até hoje. Sua formu-

31. Cf. H. Kelsen, Peace through Law, Chapei Hill, 1944. 32. Cf. J. Habermas, Der Philosophische Diskurs der Moderne, Frankfurt am Main,

1985. pp. 309ss. [ ed. br.: O discurso filosófico da modernidade, São Paulo, Martins Fon­tes, 2000].

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lação mais aguda deve-se a Carl Schmitt, com base em uma funda­mentação em parte perspicaz, em parte confusa.

Schmitt confere à frase "quem fala em humanidade tem a inten­ção de enganar" a impactante formulação: "Humanidade, bestialida­de". Segundo essa concepção, o "logro do humanismo" tem suas raízes na hipocrisia de uma pacifismo jurídico que pretende fazer "guerras justas" sob o signo da paz e do direito cosmopolita: "Se o Estado com­bate seu inimigo em nome da humanidade, não se trata aí de uma guerra da humanidade, mas sim de uma guerra em que determinado Estado, diante de seu opositor bélico, tenta ocupar um conceito uni­versal, de forma semelhante a quando se tenta abusar de conceitos como paz, justiça, progresso e civilização, a fim de requisitá-los para si e subtraí-los ao inimigo. 'Humanidade' é um instrumento ideológico particularmente útil ... "33

Esse argumento de 1932, ainda voltado contra os Estados Unidos e as potências vencedoras em Versailles, será depois estendido por Schmitt a determinadas ações da Aliança dos Povos de Genebra e das Nações Unidas. Em sua opinião, a política de uma organização mun­dial que se inspira na idéia kantiana de paz perpétua e que visa à cons­trução de uma condição cosmopolita obedece à mesma lógica: o pan­intervencionismo leva obrigatoriamente a uma pancriminalização34

e, com isso, à perversão dos objetivos aos quais ela se propõe servir. (2) Antes de abordar o contexto específico dessas considerações,

gostaria de tratar do argumento em geral e chegar, passo a passo, ao cerne do problema. As duas asserções decisivas afirmam o seguinte: primeiro, a política dos direitos humanos ocasiona guerras que­disfarçadas de ações policiais- assumem qualidade moral; segundo, a moralização classifica opositores como inimigos, de modo que essa criminalização dá rédeas largas à desumanidade: "Conhecemos a lei secreta desse vocabulário e sabemos que hoje se pode fazer a guerra

33. C. Schmitt, Der Begriff des Politischen ( 1932), Berlin, 1963. p. 55. O mesmo argumento é apresentado por J. Jsensee ( 1995): "Desde que há intervenções, elas servi­ram às ideologias, aos princípios confessionais nos séculos XVI e XVII, aos principias monarquistas, jacobinistas, humanitários, à revolução socialista mundial. Agora che­gou a vez dos direitos humanos e da democracia. Na longa história da intervenção, a ideologia serviu para dourar os interesses de expansão de poder dos que intervinham e para ungir a efetividade da medida com uma aura de legitimação" (p. 429).

34. Cf. C. Schmitt, Glossarium (1947-1951), Berlin, 1991. p. 76.

212 A INCLUSÃO DO OUTRO

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mais terrível e cometer as desumanidades mais atrozes em nome da humanidade"35. Os dois enunciados parciais são fundamentados com o auxílio de duas premissas: (a) a política dos direitos humanos serve à imposição de normas que são parte de uma moral universalista; (b) como juízos morais obedecem ao código de "bem" e "mal", a valoração moral negativa (de um oponente político ou) de um opositor bélico destrói a limitação juridicamente institucionalizada (da confronta­ção política ou) do combate militar. Enquanto a primeira premissa é falsa, a segunda premissa, no contexto de uma política dos direitos humanos, sugere um pressuposto falso.

Sobre (a): direitos humanos em sentido moderno remontam à Virginia Bill of Rights e à Declaração de Independência norte-ameri­cana de 1776, bem como à Déclaration des droits de l'homme et du citoyen, de 1789. Essas declarações são inspiradas pela filosofia polí­tica do direito racional, em especial por Locke e Rousseau. Não é por acaso, no entanto, que os direitos humanos só assumam uma figura­ção concreta no contexto das primeiras constituições- justamente como direitos fundamentais garantidos no âmbito de uma ordem ju­rídica nacional. Contudo, ao que parece eles têm um caráter duplo: como normas constitucionais eles gozam de uma validação positiva, mas como direitos cabíveis a cada ser humano enquanto pessoa tam­bém se confere a eles uma validação sobrepositiva.

Para a discussão filosófica36, essa ambigüidade foi muito insti­gante. Segundo uma das concepções, o status dos direitos humanos deve situar-se entre o direito positivo e o direito moral; segundo a outra, os direitos devem poder aparecer tanto sob a forma de direitos morais quanto de direitos jurídicos, caso haja coincidência dos conteúdos­"como direito válido, de modo preestatal, mas nem por isso como di­reito já vigente': Os direitos humanos "não são, na verdade, assegura­dos ou negados; em relação a eles ou se exercem garantias ou se pra­ticam violações"37• Essas formulações de ocasião sugerem que o legis­lador constitucional traduza para as palavras do direito positivo normas morais já dadas. Com esse regresso à distinção clássica entre direito

35. C. Schmitt, 1963, p. 94. 36. Cf. St. Shue, S. Hurley (orgs.), On Human Rights. NewYork, 1993. 37. O. Hõffe, "Die Menschenrechte ais Legitimation und kritischer MaGstab der

Demokratie': ln: J. Schwardtlander (org.), Menschenrechte und Demokratie, StraGburg, 1981. p. 250. Cf., do mesmo autor, Politische Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1987.

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natural e direito positivo, não me parece que se tenha trilhado corre­lamente o itinerário da questão. O conceito de direitos humanos é de origem moral, mas também uma manifestação específica do conceito moderno de direitos subjetivos, ou seja, uma manifestação da concei­tualidade jurídica. Os direitos humanos são já a partir de sua origem de natureza jurídica. O que lhes confere a aparência de direitos morais não é seu conteúdo, nem menos ainda sua estrutura, mas um sentido validativo que aponta para além das ordens jurídicas características dos Estados nacionais.

Os textos constitucionais históricos reportam -se ao direitos "i na­tos" e têm em geral a forma comemorativa de uma "declaração": as duas coisas têm por tarefa prevenir um mal-entendido positivista, como diríamos hoje, e expressar que os direitos humanos não "estão à dis­posição"38 do respectivo legislador. Mas essa restrição retórica não pode preservar os direitos fundamentais do destino que cabe a todo direito positivo; também os direitos fundamentais podem ser alterados ou suspensos, por exemplo no caso de uma mudança de regime. Como partes de uma ordem jurídica democrática, e tal como as demais nor­mas legais, eles gozam de "validade" em um duplo sentido: eles não valem apenas de maneira factual, ou seja, não são apenas impostos em virtude da força sancionadora do Estado, mas também reivindicam legitimidade para si, ou seja, devem ser passíveis de uma fundamenta­ção racional. Sob esse aspecto da fundamentação, os direitos funda­mentais dispõem mesmo de um status notável.

Como normas constitucionais, eles com certeza desfrutam de uma precedência que se manifesta entre outras coisas no fato de se­rem, como tais, constitutivos da ordem jurídica, e de estabelecerem assim o âmbito em que se deve mover a legislação normal. Entretan­to, os direitos fundamentais se destacam no conjunto das normas cons­titucionais. Por um lado, os direitos fundamentais liberais e sociais têm a forma de normas genéricas endereçadas aos cidadãos em sua qualidade de "seres humanos" (e não de integrantes do Estado). Mes­mo que os direitos humanos sejam cumpridos tão-somente no âmbi­to de uma ordem jurídica nacional, nesse campo validativo eles ga­rantem direitos para todas as pessoas, e não só para os integrantes do

38. S. Kõnig, Zur Begründung der Menschenrechte. ln: Hobbes - Locke - Kant, Freiburg, 1994, pp. 26ss.

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Estado. Quanto mais se explora o teor da Constituição alemã, tanto mais se aproxima o status jurídico de quem vive na Alemanha sem ser cidadão do Estado alemão ao de quem é cidadão alemão39• É essa va­lidação universal, voltada a seres humanos como tais, que os direitos fundamentais têm em comum com as normas morais. De certa ma­neira, o que se revelou com a recente controvérsia sobre o direito de voto aos estrangeiros, na Alemanha, também se aplica aos direitos políticos fundamentais. E isso remete a um segundo aspecto, ainda mais importante. Direitos fundamentais estão investidos de tal an­seio de validação universal porque só podem, exclusivamente, ser fun­damentados sob um ponto de vista moral. É certo que as outras nor­mas jurídicas também são fundamentadas com o auxílio de argumen­tos morais, mas em geral a fundamentação se dá igualmente com pon­tos de vista ético-políticos e pragmáticos que se referem à forma de vida concreta de uma comunidade jurídica histórica, ou então ao es­tabelecimento concreto de objetivos ligados a determinadas políticas. Os direitos fundamentais, ao contrário, regulam matérias de tal gene­ralidade que bastam os argumentos morais para sua fundamentação. Eis aí argumentos que fundamentam a razão pela qual o assegura­menta de regras como essas desperta em igual medida o interesse de todas as pessoas na sua qualidade de pessoas em geral, ou ainda, por que elas são igualmente boas para todo mundo.

O modus da fundamentação, no entanto, em nada prejudica a qua­lidade jurídica dos direitos fundamentais, nem faz deles normas mo­rais. Normas jurídicas - no sentido moderno do direito positivo -conservam sua conformidade jurídica, não obstante a natureza das ra­zões que ajudem a fundamentar sua pretensão de legitimidade. Pois as normas jurídicas devem esse caráter à estrutura delas mesmas, e não a seu conteúdo. E os direitos fundamentais, segundo sua estrutura, são direitos subjetivos que se podem vindicar em juízo e que têm o sentido, entre outros, de desvincular pessoas do direito dos mandamentos mo­rais- e isso de maneira claramente delimitada-, à medida que reser­vam aos agentes espaços legais em que estes possam agir segundo orien­tação de suas próprias preferências. Se direitos morais podem ser funda-

39. De todo modo, o teor humanitário-jurídico dos direitos políticos de parti­cipação afirma que cada um tem o direito de pertencer, como cidadão, a uma coletivi­dade política.

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mentados a partir de deveres que vinculem o arbítrio de pessoas autó­nomas, os deveres jurídicos resultam apenas como conseqüência de autorizações a um agir arbitrário, ou seja, da restrição legal dessas liber­dades subjetivas40•

Esse privilégio conceituai básico de que dispõem os direitos em face dos deveres resulta da estrutura do direito coercitivo moderno, que Hobbes foi o primeiro a validar. Hobbes, em face do direito pré­moderno e ainda delineado a partir do ponto de vista religioso ou metafísico, introduziu aí uma mudança de perspectiva41 • Diferente­mente da moral deontológica, que fundamenta deveres, o direito pres­ta-se a defender o livre arbítrio dos indivíduos, segundo o princípio de que tudo o que não é explicitamente proibido por leis gerais de restrição da liberdade é permitido. Entretanto, se os direitos subjeti­vos decorrentes dessas leis devem ser legítimos, a generalidade delas tem de satisfazer o ponto de vista moral da justiça. O conceito de di­reito subjetivo, que defende uma esfera do livre arbítrio, tem uma for­ça constitutiva para as ordens jurídicas modernas como um todo. É por isso que Kant concebe o direito "como quintessência das condi­ções sob as quais o livre arbítrio de uma pessoa pode subsistir com o livre arbítrio de outra, de acordo com uma lei geral da liberdade" ("Dou­trinado direito", Werke IV, 337). Todos os direitos humanos especiais têm sua razão, segundo Kant, no direito original único a liberdades subjetivas iguais: "A liberdade (a independência em relação a um arbí­trio coativo alheio), enquanto puder subsistir em conjunto com a liber­dade de cada um dos outros indivíduos, é esse c;Jireito único, original, cabível a cada ser humano em virtude de sua humanidade" ("Dou­trina do direito': Werke IV, 345).

Em Kant, e de maneira muito conseqüente, os direitos humanos encontram seu lugar na doutrina do direito, e apenas aí. Assim como

40. Cf. a análise da estrutura dos direitos humanos em: H. A. Bedau, "Internatio­nal Human Rights". ln: T. Regan; D. van de Weer (orgs.), And justice for Ali, Totowa, 1983, p. 297, onde o autor se reporta a Henry Shue: "The emphasis on duties is meant to avoid leaving the defense of human rights in a vacuum, bereft of any moral signi­ficance for the specific conduct of others. But the duties are not intended to explain and generate the duties" ("A ênfase nos deveres é para evitar que a defesa dos direitos humanos caia num vácuo, destituida de todo significado moral para a conduta especí­fica dos demais. Mas deveres não foram feitos para explicar ou gerar direitos; ao con­trário, os direitos é que costumam explicar e gerar deveres"].

41. Cf. S. Kõnig, 1994, pp. 84ss.

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outros direitos subjetivos, eles, e sobretudo eles, têm um teor moral. Mas a despeito desse teor, os direitos humanos, segundo sua estru­tura, pertencem a uma ordem do direito positivo e coercitivo que fundamenta reivindicações jurídicas subjetivas que se podem recla­mar em juízo. Em tal medida, é inerente ao sentido dos direitos hu­manos o fato de exigirem para si o status de direitos fundamentais cuja observância se deve assegurar no âmbito de uma ordem jurídica subsistente, seja ela nacional, internacional ou global. Mas se esses direitos são confundidos até hoje com direitos morais, isso ocorre por­que, não obstante sua pretensão de validade universal, foi só nas or­dens jurídicas nacionais de Estados democráticos que eles puderam assumir uma forma positiva inequívoca. Para além disso, eles só con­tam com uma validação atenuada por parte do direito internacional e ainda esperam pela institucionalização no âmbito da ordem cosmopo­lita concebida apenas como algo que está por surgir.

Sobre (b ): Se porém for falsa a primeira premissa, segundo a qual os direitos humanos são direitos morais desde sua origem, fica sem base o primeiro dos dois enunciados parciais-qual seja o enunciado de que a imposição global dos direitos humanos seguiria uma lógica moral e portanto conduziria a intervenções apenas disfarçadas em ações policiais. E ao mesmo tempo abala-se o segundo enunciado, de que uma política de direitos humanos intervencionista teria de degenerar em uma "luta contra o mal': Esse enunciado, de qualquer modo, suge­re o falso pressuposto de que o direito internacional clássico, restrito a guerras comedidas, seria suficiente para dar aos conflitos militares um rumo "civilizado". Mesmo que esse pressuposto fosse correto, seriam muito mais as ações policiais de uma organização mundial- apta para agir e democraticamente legitimada - que viriam a merecer o nome de uma solução "civil" de conflitos internacionais, e não guerras empreendidas dessa maneira, por mais comedidas que fossem. Pois o estabelecimento de uma situação cosmopolita significa que as viola­ções aos direitos humanos não são julgadas e punidas imediatamente sob pontos de vista morais, mas sim perseguidas como ações criminosas no âmbito de uma ordem jurídica estatal- e segundo procedimentos jurídicos institucionalizados. É justamente a formalização jurídica da condição natural entre os Estados que oferece defesa em face de uma diferenciação e autonomização moral do direito e é ela que garante aos réus, mesmo nos casos hoje relevantes de crimes de guerra e de

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crimes contra a humanidade, total direito de defesa, ou seja, defesa contra uma discriminação moral que se imponha sem mediações42 •

Gostaria de desenvolver esse argumento de maneira metacrítica, em controvérsia com as restrições de Carl Schmitt. Primeiramente, preciso dedicar-me ao contexto dessas restrições, porque Schmitt as­socia diversos planos da argumentação de uma maneira nem sempre clara. A crítica a um direito cosmopolita que perpasse a soberania dos Estados em particular ocupa Schmitt sobretudo em vista do conceito discriminativo de guerra. Com isso, sua crítica parece assumir um foco claro e juridicamente delimitado. Ela se volta reiteradamente contra a penalização da guerra de ataque, firmada na Carta das Nações Unidas, e contra a responsabilização de pessoas em particular por um tipo de crime de guerra ainda desconhecido para o direito internacional clás­sico, válido até a Primeira Guerra Mundial. No entanto, essa discussão jurídica, inofensiva em si mesma, recebe de Schmitt uma carga de con­siderações políticas e fundamentações metafísicas. Por isso, precisa­mos em primeiro lugar desnudar a teoria de fundo subjacente a essa discussão (I) e avançar até o cerne moral-crítico do argumento (2).

( 1) A primeira vista, a argumentação jurídica almeja civilizar a guerra pela via do direito internacional (a); ela se vincula a uma argu­mentação política que parece preocupar-se apenas com a preservação de uma ordem internacional já assegurada (b).

(a) Se Schmitt refuta a distinção entre guerra de ataque e guerra de defesa, ele não o faz pela razão pragmática de que é difícil ope­racionalizar tal distinção. Mais que isso, a razão jurídica reside em que apenas um conceito de guerra moralmente neutro, que exclua a respon­sabilidade pessoal por uma guerra penalizada, pode conciliar-se com a soberania de sujeitos do direito internacional; pois o ius ad bellum, isto é, o direito de começar uma guerra seja por que razão for, é cons­titutivo da soberania de um Estado. Como bem demonstra seu escrito decisivo sobre o assunto43, nesse plano da argumentação ainda não

42. Quanto à diferenciação entre ética, direito e moral, v. R. Forst, Kontexte der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1994. pp. 131-142.

43. Cf. C. Schmitt, 1994.

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importam a Schmitt as conseqüências desastrosas do universalismo moral, mas sim a limitação da atividade bélica. Só mesmo à práxis da não-discriminação da guerra cabe limitar as ações bélicas e prestar defesa em face dos males de uma guerra total (a qual já havia sido analisada por Carl Schmitt antes da Segunda Guerra Mundial, com desejável clareza44).

Em tal medida, Schmitt apresenta a exigência de um retorno ao status quo ante da guerra delimitada, pura e simplesmente como a al­ternativa mais realista a uma pacificação cosmopolita da condição natural existente entre os Estados; eliminar guerra, se comparado com civilizar a guerra, é um objetivo muito amplo e, segundo parece, utó­pico. Certamente há boas razões empíricas com as quais se pode pôr em dúvida o "realismo" dessa sugestão. A mera remissão a um direito internacional, nascido das guerras confessionais, e entendido como uma das grandes conquistas do racionalismo ocidental, ainda não aponta para nenhum caminho viável rumo à reconstrução do mundo clás­sico-moderno do equilíbrio entre as potências. Pois em sua forma clássica, é evidente que o direito internacional fracassou ante os fatos das guerras totais deflagradas no século XX. Por trás dos descomedi­mentos territoriais, técnicos e ideológicos da guerra, há forças propul­soras muito vigorosas. As sanções e intervenções de uma comunidade de povos organizada ainda podem domesticar essas forças melhor do que um apelo (juridicamente inócuo) ao discernimento de governos soberanos; pois com um regresso à ordem jurídica internacional clás­sica, a liberdade plena de ação voltaria justamente às mãos dos agen­tes jurídicos coletivos que precisariam alterar seu comportamento incivilizado. Essa fragilidade do argumento é um primeiro indício de que a argumentação jurídica constitui apenas uma fachada por trás da qual se ocultam restrições de um outro tipo.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a fim de salvaguardar a con­sistência de uma argumentação que procedesse de maneira puramen­te jurídica, Carl Schmitt lançou mão de isolar sob uma categoria pró­pria os crimes de massa cometidos durante o nazismo; com isso, pre­tendeu assegurar para a guerra ao menos uma aparência de neutra­lidade moral. Em 1945, no parecer que emite para o réu Friedrich Flick, julgado em Nürenberg, Carl Schmitt distingue de maneira muito cons-

44. Cf. C. Schmitt, 1963 e 1988.

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ciente entre crimes de guerra e aquelas "atrocities" que, enquanto "de­clarações características de certa mentalidade desumana'~ superam a capacidade de sofreamento do ser humano: "O comando de um supe­rior não pode justificar ou desculpar atrocidades como essas"45• O sen­tido meramente tático-processual dessa distinção, que Schmitt privi­legia aqui como advogado, reaparece em textos de diários pessoais redigidos poucos anos depois, com uma clareza brutal. Nesse "glos­sário" evidencia-se que Schmitt pretendia ver descriminalizados não apenas a guerra de agressão, mas também a ruptura civilizacional cons­tituída pelo extermínio de judeus. Ele pergunta: "O que é um 'crime contra a humanidade'? Existem crimes contra o amor?" E duvida de que se trate sequer nesse caso de uma situação jurídica, já que os "objetos de defesa e ataque" desses crimes não podem ser circunscritos de for­ma suficientemente precisa: "Genocídios, assassinatos de povos, um conceito tocante; vivi um exemplo na própria carne: aniquilação do funcionalismo público prussiano-germânico no ano de 1945': Essa em­baraçosa compreensão de genocídio leva Schmitt à seguinte conclu­são: "'Crime contra a humanidade' é apenas a mais geral de todas as cláusulas gerais destinadas à destruição do inimigo': E em outro trecho lê-se: "Há crimes contra e crimes a favor da humanidade. Os crimes contra a humanidade são cometidos pelos alemães. Os crimes a favor da humanidade têm por objeto os alemães"46•

Aqui se impõe evidentemente outro argumento. A imposição do direito cosmopolita que tem por conseqüência um conceito de guerra discriminativo deixa de ser concebida como reação incorreta ao desen­volvimento que leva à guerra total, e passa a ser concebida como causa desse desenvolvimento. A guerra total é a forma de expressão contem­porânea da "guerra justa" na qual uma política de direitos humanos intervencionista fatalmente terá que desembocar: "É decisivo, sobre­tudo, que a justiça da guerra pertença a sua totalidade"47• Com isso, o universalismo moral assume o papel do explanandum, e a argumenta­ção desloca-se do plano jurídico para o plano moral-crítico. De início, Schmitt parece ter recomendado o regresso ao direito internacional clás­sico com o intuito de evitar a guerra total. Mas já não se sabe ao certo se

45. C. Schmitt, 1994, p. 19. 46. C. Schmitt, Glossarium (1947-1951), Berlin, 1992. pp. 113,264, 146,282. 4 7. C. Schmitt, 1988, p. 1.

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ele via o descomedimento total da guerra como o mal maior, ou seja, o caráter desumano da condução da guerra, ou se ele, muito mais que isso, temia em primeira linha a desvalorização da guerra como tal. Em todo caso, em um corolário escrito em 1938 sob o título O conceito de político, Schmitt descreve a extensão totalitária da condução da guerra a campos não-militares, de tal maneira que atribui à guerra total jus­tamente o mérito de uma purificação dos povos: "O passo que conduz para além do puramente militar traz não apenas uma extensão quanti­tativa, mas também uma intensificação qualitativa. Com isso, [a guerra total] não significa uma atenuação, mas sim uma intensificação da inimicícia. Com a mera possibilidade de tal aumento da intensidade, 'amigo' e 'inimigo' tornam-se de novo conceitos políticos e libertam-se da esfera de modos de dizer particulares e psicológicos, mesmo onde seu caráter político esteja plenamente empalidecido"48•

(b) Contudo, se não é tanto a domesticação da guerra desenca­minhada de modo totalitário que importa a esse opositor convicto do pacificismo, poderia tratar-se então de outra coisa: da manutenção de uma ordem internacional em que guerras acontecem, e em que os con­flitos podem ser resolvidos dessa maneira. A práxis da não-discrimi­nação da guerra mantém intato um mecanismo de auto-afirmação nacional ilimitado e ordenador. O mal evitável, então, não é a guerra total, mas a decomposição de uma esfera do político fundada sobre a divisão clássica entre política interna e externa. É isso que Schmitt fun­damenta por meio de sua teoria do político. Segundo ela, a política interna juridicamente pacificada precisa ser complementada por uma política externa beligerante e licenciada no âmbito do direito interna­cional, já que o Estado monopolizador do poder só pode manter o direito e a ordem, opondo-se à força virulenta dos inimigos subversi­vos de dentro do Estado, enquanto preservar e regenerar sua substân­cia política no combate a inimigos externos. Essa substância deve re­novar-se tão-somente no medium da prontidão nacional para matar e morrer, porque o que é político, segundo sua essência, refere-se à "real possibilidade do assassínio físico". "Política" é a capacidade e von­tade de um povo de reconhecer o inimigo e de se afirmar contra "a negação da própria existência" pela "diversidade do estrangeiro"49•

48. C. Schmitt, 1963, p. 110. 49. C. Schmitt, 1963, p. 27.

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Nesse contexto, é pelo status de que gozam que tais considera­ções torpes sobre a "essência do político" acabam sendo de nosso inte­resse. Pois a carga vitalista do conceito de político é o pano de fundo para a afirmação de que a força criativa do político precisa transfor­mar-se em uma força destrutiva, tão logo ela se veja encerrada, entre os lobos, na arena internacional "do poder conquistador". A imposi­ção global de direitos humanos e democracia, que tem por tarefa fo­mentar a paz mundial, teria o efeito desintencional de extrapolar os limites da guerra "comedida" e feita segundo o direito internacional. Sem um ponto de escoamento que lhe desse livre vazão, a guerra teria de inundar os campos vitais civis das sociedades modernas, já autô­nomos, ou seja, acabaria por aniquilar a complexidade de sociedades já diferenciadas e autonomizadas. Essa prevenção quanto às conse­qüências catastróficas de um aniquilamento da guerra por meio de um pacifismo jurídico explica-se por uma metafísica que pode sere­portar- como característica de época, na melhor das hipóteses- à estética da "tempestade de aço", um pouco desgastada desde então.

(2) Certamente é possível extrair e especificar um ponto de vista a partir dessa filosofia belicista da vida. Na concepção de Schmitt, é o universalismo da moral da humanidade - conceitualizada por Kant -que está por trás dessa "guerra contra a guerra", que se fundamenta ideologicamente e que confere ao combate militar entre "unidades nacionais organizadas': limitado temporal, social e objetivamente, o status endêmico de uma guerra civil paramilitar e descomedida.

Tudo indica que Carl Schmitt, em face de intervenções feitas pelas Nações Unidas para estabelecer ou manter a paz, não reagiria diferen­temente do que fez Hans Magnus Enzensberger: "A retórica do univer­salismo é específica do Ocidente. Os postulados aí estabelecidos devem valer para todos sem exceção e sem diferença. O universalismo não distingue proximidade e distância; é incondicionado e abstrato ... Mas como todas as nossas possibilidades de ação são finitas, aumenta sem­pre mais o abismo entre anseio e realidade. Logo se ultrapassa o limite e se chega à hipocrisia objetiva; aí então o universalismo se revela uma armadilha moral"50• Portanto, são as falsas abstrações da moral da

50. Cf. H. M. Enzensberger, Aussichten auf den Bürgerkrieg, Frankfurt am Main, 1993. p. 73s. (ed. bras.: Visões da guerra civil. ln: Guerra civil. São Paulo, Cia. das Letras, 1995); v. ainda A. Honneth, "Universalismus ais moralische Falle?", Merkur, n. 546, v. 47,

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humanidade que nos fazem mergulhar em auto-ilusão e nos desviam para uma auto-exigência demasiada e hipocrítica. Enzensberger, tal como Arnold Gehlen51 , determina antropologicamente os limites so­bre os quais se eleva uma moral desse tipo; e o faz em conceitos de proximidade e distância espacial: um ente cunhado em madeira tão torta só pode funcionar de forma moral em um campo próximo de si e preenchível de maneira plástica.

Carl Schmitt, ao falar de hipocrisia, tem antes em mente a crítica de Hegel a Kant. Ele orna sua condenável formulação "Humanidade, bestialidade" com um comentário ambíguo, que em um primeiro mo­mento parece poder vir de Horkheimer: "Dizemos 'o cemitério muni­cipal central' e calamos, com muito tato, sobre o abatedouro. Mas o abate é algo óbvio, e seria desumano, bestial mesmo, pronunciar a pa­lavra abate"52. O aforismo é ambíguo à medida que parece se voltar inicialmente, por um viés crítico-ideológico, contra o efeito abstrativo falso (porque transfigurador) de conceitos gerais platónicos com os quais freqüentemente velamos o lado inverso de uma civilização de vencedores, ou seja, o sofrimento das vítimas marginalizadas dessa mesma civilização. Esse tipo de leitura, no entanto, exigiria justamen­te o tipo de atenção igualitária e de compaixão universal que o univer­salismo moral, ora combatido, trata de validar. O que o anti-huma­nismo de Schmitt pretende validar (em conjunto com o Hegel de Mussolini e de Lênin53) não é o gado de abate, mas o combate - a mesa de abate dos povos, segundo Hegel, a "honra da guerra", já que mais adiante se afirma: "A humanidade não pode travar guerra al-

pp. 867-883, 1994. Enzensberger apóia-se sobre uma descrição altamente seletiva da situação internacional, na qual deixa de mencionar a surpreendente expansão das for­mas democráticas do Estado na América Latina, África e Europa Oriental nos últimos vinte anos (cf. E. O. Czempiel, Weltpolitik im Umbruch, München, 1993. pp. 103ss.). Além disso, ele põe às avessas a complexa relação entre a assimilação fundamentalista de potenciais de conflito no interior do Estado, de um lado, as espoliações sociais e as tradições liberais inexistentes, de outro, transformando-as, de maneira precipitada, em constantes antropológicas. O conceito ampliado de paz, justamente ele, propõe estratégias profiláticas e não-violentas, além de tornar conscientes restrições pragmá­ticas das quais necessariamente decorrem intervenções humanitárias - como mos­tram o exemplo da Somália e a situação totalmente diversa na antiga Iugoslávia. Sobre o casuísmo de diversos tipos de intervenção, v. D. Senghaas, 1994, pp. 185ss.

51. A. Gehlen, Moral und Hypermora~ Frankfurt am Main, 1969. 52. C. Schmitt, Glossarium (1947-1951), Berlin, 1991, p. 259. 53. Cf. C. Schmitt, 1991, p. 229.

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guma ... O conceito de humanidade exclui o conceito de inimigo"54.

Para Carl Schmitt, portanto, é essa a ordem natural do que é político, ou seja, a distinção supostamente inevitável entre amigo e inimigo, da qual a moral da humanidade abstrai, de maneira errónea. Como ela subsume relações "políticas" sob conceitos de "bem" e "mal", ela faz do oponente bélico "o monstro desumano que se deve não apenas recha­çar, mas destruir em definitivo"55• E já que o conceito discriminativo de guerra remonta ao universalismo dos direitos humanos, ele acaba equivalendo à infectação do direito internacional pela moral, que ex­plica a desumanidade cometida "em nome da humanidade" pelas guer­ras e guerras civis modernas.

Mesmo sem levar em conta o contexto em que Carl Schmitt se insere, a história da recepção desse argumento moral-crítico ficou inapelavelmente condenada. Pois nele imbricam-se, de um lado, um discernimento correto e, de outro, um erro fatal, alimentado pelo con­ceito de amigo-inimigo concernente ao que é político. O verdadeiro cerne da questão consiste em que uma moralização imediata do direi­to e da política realmente faz romper as zonas de defesa que, por ra­zões boas e mesmo morais, pretendemos ver garantidas para as pes­soas do direito. É errónea, no entanto, a suposição de que só se pode­ria evitar essa moralização caso se mantivesse a política internacional isenta ou purificada do direito, ou o direito isento e purificado da moral. Sob as premissas do Estado de direito e da democracia, as duas coisas são falsas: a idéia do Estado de direito exige que, por meio do direito legitimo, a substância coercitiva do Estado seja canalizada tanto para fora quanto para dentro; e a legitimação democrática do direito deve garantir que o direito esteja em sintonia com as proposições morais fundamentais já reconhecidas. O direito cosmopolita é uma conse­qüência da idéia do Estado de direito. Só com ele é que se constrói uma simetria entre a ordenação jurídica do trânsito social e político, para além e para aquém das fronteiras do Estado.

Carl Schmitt é elucidativamente incongruente quando insiste em sustentar a assimetria entre uma condição jurídica pacifista nos assun­tos interiores e um belicismo nos assuntos exteriores. Como ele tam­bém imagina a paz jurídica estatal interior como uma confrontação

54. C. Schmitt, 1963, pp. 54s. 55. C. Schmitt, 1963, p. 37.

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latente entre os órgãos estatais e os inimigos do Estado mantidos em cheque por meios repressivos, reserva aos detentores do poder estatal o direito de declarar representantes da oposição política como inimi­gos da ordem interna do Estado- uma prática que, a propósito, dei­xou marcas na República Federal da Alemanha56• De maneira diversa do que se dá no Estado constitucional democrático, em que tribunais independentes e cidadãos em sua totalidade (mobilizados até mesmo através da desobediência civil, em casos extremos) decidem sobre ques­tões delicadas envolvendo o comportamento anticonstitucional, Carl Schmitt deixa nas mãos dos respectivos detentores do poder a decisão sobre considerar criminosos os próprios oponentes políticos, como se fossem seus oponentes em uma guerra civil. Pelo fato de os controles jurídico-estatais se tornarem menos austeros nessa wna limítrofe das relações intra-estatais, verifica-se aí justamente o efeito que Carl Schmitt temia como conseqüência de uma pacificação das relações interestatais: a intromissão de categorias morais em uma ação política juridicamente assegurada, e a estilização dos inimigos como agentes do mal. Diante disso, torna-se incoerente a exigência de que se preserve o trânsito in­ternacional de regulamentos análogos ao direito estatal.

De fato, uma moralização não-mediatizada da política teria efei­tos tão perniciosos no cenário internacional quanto na confrontação do governo com seus inimigos internos. Se Carl Schmitt admite a moralização neste último caso, isso se dá porque, ironicamente, ele situa mal os danos aí envolvidos. Na verdade, porém, os danos decor­rem exclusivamente, em ambos os casos, de uma codificação dupla­mente errada da ação política ou estatal: ou seja, primeiro se moraliza a ação (ela é julgada segundo critérios de "bem" e "mal") e depois criminalizada (ela é sentenciada segundo critérios de "legalidade" e "ilegalidade"), sem que se tenham cumprido- e eis aí o ponto deci­sivo que Schmitt elide - nem os pressupostos jurídicos de uma ins­tância judicial que sentencie com imparcialidade, nem o estabeleci­mento de um poder carcerário neutro. A política de direitos humanos de uma organização mundial pode incidir em um fundamentalismo dos direitos humanos; isso só ocorre, porém, quando ela-sob o man­to de uma pseudolegitimação jurídica- confere legitimação moral a

56. Cf. J. Habermas, Kleine Politische Schriften I-IV. Frankfurt am Main, 1981, pp. 328-339.

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intervenções que não passem do mero combate de um partido por outro. Nesses casos, a organização mundial (ou a aliança que age em seu nome) comete um "engodo", porque faz passar por medida poli­cial neutra e justificada por leis e sentenças penais cabíveis o que na verdade é apenas um confronto militar entre partes beligerantes. "Se constituem a origem única de sanções exigidas e não visam à imple­mentação de procedimentos jurídicos em favor da imposição e apli­cação (ou mesmo positivação) dos direitos humanos, mas apenas in­terferem de maneira imediata sobre o esquema interpretativo com que se determinam violações a esses mesmos direitos, é aí que os ape­los moralmente justificados revelam-se na iminência de assumir tra­ços fundamentalistas"57•

Além disso, Carl Schmitt pretende sustentar a asserção de que a ordenação jurídica da política de expansão e exercício de poder para além das fronteiras estatais, ou seja, a imposição internacional de di­reitos humanos em um cenário dominado até hoje pela força militar, resulta sempre e necessariamente em tal fundamentalismo dos direitos humanos. Essa afirmação é falsa porque subjaz a ela a falsa premissa de que os direitos humanos sejam de natureza moral, isto é, de que a imposição dos direitos humanos significaria uma moralização. A face problemática de uma ordenação moral das relações internacionais, já mencionada, não consiste em que uma ação concebida até hoje como "política" deva ajustar-se de agora em diante a categorias jurídicas. Pois, diferentemente do que faz a moral, o código jurídico não exige de modo algum uma valoração moral imediata segundo critérios de "bom" ou "mau': Klaus Günther esclarece o ponto central: "Excluir uma inter­pretação política (no sentido de Carl Schmitt) do comportamento que contraria os direitos humanos não pode implicar que uma intepretação imediatamente moral venha ocupar o lugar deixado por ela" 58• Não se podem confundir direitos humanos com direitos morais.

Contudo, a diferença entre direito e moral, à qual Günther de­dica especial atenção, não significa de modo algum que o direito posi­tivo não tenha um teor moral. No procedimento democrático da le-

57. Klaus Günther, "Kampf gegen das Bõse? Wider die ethische Aufrüstung der Kriminalpolitik': Kritische /ustiz. n. 27, pp. 135-157, 1994 (acréscimos entre parênteses são meus).

58. K. Günther, 1994, p. 144 (acréscimo meu, entre parênteses).

226 A INCLUSÃO DO OUTRO

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gislação política, os argumentos morais também desempenham pa­pel na fundamentação do estabelecimento de normas e, com isso, no próprio direito. Como já dissera Kant, o direito e a moral distinguem­se por qualidades formais de legalidade. Com isso, uma parte do com­portamento passível de julgamento moral (sentimentos morais e mo­tivos, por exemplo) ficam eximidos de uma regulamentação jurídica. O código jurídico de julgamentos e sanções das instâncias responsá­veis pela defesa dos atingidos, porém, vincula-se sobretudo a condi­ções muito claras de procedimento jurídico estatal, intersubjetiva­mente testáveis. Ao passo que a pessoa moral fica como que exposta à instância interna do julgamento da consciência, a pessoa do direito permanece envolvida no manto dos direitos à liberdade- moralmente bem fundamentados. A resposta correta ao perigo de uma moralização não mediatizada da política de expansão e exercício do poder, por­tanto, "não é isentar a política de uma dimensão moral, mas sim trans­formar a moral, por via democrática, em um sistema positivado de direitos, dotado de procedimentos jurídicos para sua aplicação e im­posição"59. Não se pode evitar o fundamentalismo dos direitos huma­nos por meio da renúncia a uma política de direitos humanos, mas apenas por meio da transformação cosmopolita da condição natural entre os Estados em uma condição jurídica entre eles.

59. K. Günther, 1994. p. 144.

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8 A luta por reconhecimento no Estado democrático de direito*

As constituições modernas devem-se a uma idéia advinda do direito racional, segundo a qual os cidadãos, por decisão própria, se ligam a uma comunidade de jurisconsortes livres e iguais. A constituição faz valer exatamente os direitos que os cidadãos precisam reconhecer mutuamente, caso queiram re­gular de maneira legitima seu convivio com os meios do di­reito positivo. Aí já estão pressupostos os conceitos do direito subjetivo e da pessoa do direito enquanto individuo portador de direitos. Embora o direito moderno fundamente relações de reconhecimento intersubjetivo sancionadas por via esta­tal, os direitos que daí decorrem asseguram a integridade dos respectivos sujeitos em particular, potencialmente violáveL Em última instância, trata-se da defesa dessas pessoas indi­viduais do direito, mesmo quando a integridade do indiví­duo- seja no direito, seja na moral- dependa da estrutura intacta das relações de reconhecimento mútuo. Será que uma teoria dos direitos de orientação tão individualista pode dar conta de lutas por reconhecimento nas quais parece tratar-se sobretudo da articulação e afirmação de identidades coletivas?

* Tradução: Paulo Astor Soethe.

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Uma constituição pode ser entendida como projeto histórico que os cidadãos procuram cumprir a cada geração. No Estado democrá­tico de direito, o exercício do poder político está duplamente codifi­cado: é preciso que se possam entender tanto o processamento insti­tucionalizado dos problemas que se apresentam quanto a mediação dos respectivos interesses, regrada segundo procedimentos claros, como efetivação de um sistema de direitos'. Mas nas arenas políticas, quem se defronta são agentes coletivos, que discutem sobre objetivos coletivos e acerca da distribuição dos bens coletivos. Apenas diante de um tribunal e no âmbito de um discurso jurídico é que se trata ime­diatamente de direitos individuais cobráveis através de ação judicial. Quanto ao direito vigente, também ele precisa ser interpretado de maneira diversa em face de novas necessidades e situações de inte­resse. Essa disputa acerca da interpretação e imposição de reivindica­ções historicamente irresolvidas é uma luta por direitos legítimos, nos quais estão implicados agentes coletivos que se defendem contra a desconsideração de sua dignidade. Nessa "luta por reconhecimento", segundo demonstrou A. Honneth, articulam-se experiências coletivas de integridade feridi. Esses fenômenos são conciliáveis com uma teoria dos direitos de orientação individualista?

As conquistas políticas do liberalismo e da social-democracia, decorrentes do movimento emancipatório burguês e do movimento de trabalhadores europeu, sugerem uma resposta afirmativa a essa pergunta. Ambos tiveram por objetivo suplantar a privação de direi­tos de grupos desprivilegiados e, com isso, a fragmentação da socie­dade em classes sociais; contudo, a luta social contra a opressão de grupos que se viram privados de chances iguais de vida no meio social concretizou-se sob a forma da luta pela universalização socioestatal dos direitos do cidadão, empreendida tão logo o reformismo socioli­beral viu-se capaz de agir. Na verdade, após a bancarrota do socia­lismo de Estado restou apenas essa perspectiva: por meio da promo­ção do status do trabalho assalariado dependente, alcançado com o acréscimo de direitos de compartilhamento e participação política, cabe à massa da população a chance de viver com expectativas bem fundadas de contar com segurança, justiça social e bem-estar. As in-

I. Cf. J. Habermas, Faktizitat und Geltung, Frankfurt am Main, 1992. cap. III. 2. A. Honneth, Kampf um Anerkennung, Frankfurt am Main, 1992.

230 A INCLUSÃO DO OUTRO

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justas condições sociais de vida da sociedade capitalista devem ser compensadas com a distribuição mais justa dos bens coletivos. Esse fim é plenamente conciliável com a teoria do direito, porque os "bens fundamentais" (no sentido proposto por Rawls) ou são distribuídos individualmente (tal como acontece com dinheiro, tempo livre ou prestações de serviços), ou são utilizados individualmente (tal como se dá com as infra-estruturas do sistema viário, de saúde e educação), e portanto se pode preservá-los sob a forma de reivindicações indi­viduais de benefícios.

Em um primeiro momento, no entanto, as coisas parecem ser di­ferentes quando se trata de reivindicar reconhecimento para identida­des coletivas ou igualdade de direitos para formas de vida culturais. Fe­ministas, minorias em sociedades multiculturais, povos que anseiam por independência nacional ou regiões colonizadas no passado e que hoje reclamam igualdade no cenário internacional, todos esses agentes sociais lutam hoje em favor de reivindicações como as que acabei de mencionar. O reconhecimento de formas de vida e tradições culturais marginalizadas- ora no contexto de uma cultura majoritária, ora na sociedade mundial dominada por forças eurocêntricas ou do Atlântico Norte- não exige garantias de status ou de sobrevivência? Não exige ao menos uma espécie de direitos coletivos que faz ir pelos ares a auto­compreensão do Estado democrático de direito que herdamos, molda­da segundo direitos subjetivos, e portanto de caráter "liberal"?

Diante dessa pergunta, Charles Taylor dá um resposta diversa, que permite à discussão dar um grande passo adiante3. Como demons­tram os comentários publicados no mesmo volume, suas idéias origi­nais certamente suscitam crítica. No ponto decisivo, Taylor continua sendo ambíguo. Ele diferencia duas formas de compreensão do Estado democrático de direito, que denomina liberalismo I e liberalismo 2. A denominação sugere que a segunda forma de compreensão (favoreci­da por Taylor) vem simplesmente corrigir um entendimento indevi­do das proposições de base do liberalismo. Contudo, ao se observar atentamente a leitura feita por Taylor, percebe-se que ela ataca esses próprios princípios e que põe em questão o cerne individualista da compreensão moderna de liberdade.

3. Cf. Ch. Taylor et alii, Multikulturalismus und die Politik der Anerkennung, Frank­furtam Main, 1993, pp. 13ss.

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO EsTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 231

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o A "política do reconhecimento" tayloriana

É consensual a declaração de Amy Gutmann: "O reconhecimen­to público pleno conta com duas formas de respeito: 1) o respeito pela identidade inconfundível de cada indivíduo, independentemente de sexo, raça ou procedência étnica; e 2) o respeito pelas formas de ação, práticas e visões peculiares de mundo que gozam de prestígio junto aos integrantes de grupos desprivilegiados, ou que estão intimamente li­gados a essas pessoas, sendo que em um país como os Estados Unidos tanto mulheres pertencem a tais grupos desprivilegiados, quanto ame­ricanos de origem asiática, afro-americanos, americanos de origem indígena e um grande número de outros grupos"4 • Evidentemente, o mesmo vale para trabalhadores estrangeiros e outros estrangeiros em geral residentes na República Federal da Alemanha, vale para croatas na Sérvia, russos na Ucrânia, curdos na Turquia, vale para deficientes, homossexuais etc. Essa exigência não visa em primeira linha ao igua­lamento das condições sociais de vida, mas sim à defesa da integridade de formas de vida e tradições com os quais os membros de grupos discriminados possam indentificar-se. Normalmente ocorre que o não­reconhecimento cultural coincide com condições rudes de demérito social, de modo que as duas coisas se fortalecem de maneira cumula­tiva. Polêmico é definir se a exigência 2 resulta da exigência 1 - ou seja, se ela resulta do princípio de que deve haver igual respeito por cada indivíduo em particular- ou se essas duas exigências têm mes­mo de colidir, ao menos em alguns casos.

Taylor parte de que o asseguramento de identidades coletivas passa a concorrer com o direito a liberdades subjetivas iguais- com o di­reito humano único e original, portanto, segundo Kant-, de modo que no caso de uma colisão entre ambos é preciso decidir sobre apre­cedência de um ou de outro. A reflexão a seguir depõe em favor disso: já que a exigência 2 exige a consideração de particularidades das quais a exigência 1 parece abstrair, o princípio de tratamento eqüitativo deve alcançar validação nas políticas correntes- em uma política de respei­to por todas as diferenças, por um lado, e em uma política de univer-

4. Idem, ibidem, p. 125.

232 A INCLUSAO DO OUTRO

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salização de direitos subjetivos, por outro. Uma política deve com­pensar as desvantagens do universalismo uniformizante que a outra ocasiona. Taylor esmiúça essa oposição- construída sem razão plena, como procurei demonstrar - segundo os conceitos de bom e justo, advindos da teoria moral. Liberais da grandeza de Rawls ou Dworkin propugnam por uma ordem jurídica eticamente neutra que deve as­segurar chances iguais a todos, de modo que cada um possa orientar­se por uma concepção própria do que seja bom. Em face disso, comu­nitaristas como Taylor e Walzer contestam que haja neutralidade ética no direito e permitem-se, portanto, esperar também do Estado de di­reito a fomentação ativa de determinadas concepções do bem viver, caso isso se faça necessário.

Taylor refere-se ao exemplo canadense da minoria francófona que constitui maioria na província do Québec. Essa população reclama pa­ra o Québec o direito de formar no conjunto do Estado uma "socieda­de de natureza própria". Pretende assegurar a integridade de sua for­ma de vida por oposição à cultura majoritária anglo-saxã, entre ou­tras coisas mediante regulamentos que proíbem à população francó­fona e a imigrantes matricular os filhos em escolas inglesas, que pre­ceituam o francês como língua de comunicação para empresas com mais de 50 empregados e que prescrevem o francês como língua ofi­cial. Uma teoria dos direitos do primeiro tipo fecha-se a objetivos co­letivos dessa natureza: "Uma sociedade com fins coletivos, como é o caso do Québec, contraria esse modelo. ( ... ) De acordo com esse mode­lo, uma distinção importante estaria sendo perigosamente ignorada, caso a possibilidade de fazer propaganda em qualquer língua, por exem­plo, passasse a ser considerada um direito fundamental. Trata-se mui­to mais de distinguir entre as liberdades elementares - que jamais se podem restringir e que precisam portanto de alicerces sólidos - e os direitos de precedência e privilégios, também importantes, mas que -por razões políticas, embora só quando muito consistentes- po­dem sofrer refutações ou limitações"5• Taylor sugere um modelo al­ternativo que sob determinadas condições admite haver garantias de status restritivas aos direitos fundamentais, quando isso se dá em favor da sobrevivência de formas de vida culturais, e que permite haver polí­ticas "ativamente empenhadas em gerar integrantes desses grupos,

S. Idem, ibidem, pp. 51-53.

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 233

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desde que dedicadas, por exemplo, a que gerações futuras também se identifiquem como sendo francófonas. Não se pode afirmar que uma política como essa esteja preocupada apenas com criar determinada possibilidade para uma população já existente"6•

Em primeiro lugar, é preciso observar que Taylor torna plausível sua tese da inconciliabilidade ao apresentar sua teoria dos direitos sob um enfoque seletivo de leitura ligado ao liberalismo 1. Além disso, ele interpreta seu exemplo canadense de maneira pouco rigorosa; e é pouco rigorosa, também, a referência jurídica da questão. Antes de me dedi­car a esses dois problemas, gostaria de demonstrar que uma teoria dos direitos, se entendida de forma correta, jamais fecha os olhos para as diferenças culturais.

Com liberalismo 1, Taylor designa uma teoria segundo a qual se garantem liberdades de ação subjetivas iguais para todos os juriscon­sortes, sob a forma de direitos fundamentais; em casos controversos os tribunais decidem que direitos cabem a quem; assim, o princípio do direito igual para todos encontra validação tão-somente sob a for­ma de uma autonomia juridicamente apoiada, à disposição do uso de qualquer um que pretenda realizar seu projeto de vida pessoal. Essa interpretação do sistema dos direitos continua sendo paternalis­ta, porque corta pela metade o conceito de autonomia. Ela não leva em consideração que os destinatários do direito só podem ganhar autonomia (em sentido kantiano) à medida que eles mesmos pos­sam compreender-se como autores das leis às quais eles mesmos estão submetidos enquanto sujeitos privados do direito. O liberalismo 1 ignora a eqüiprocedência das autonomias privada e pública. Não se trata aí apenas de uma complementação que permaneça externa à autonomia privada, mas sim de uma concatenação interna, ou seja, conceitualmente necessária. Pois os sujeitos privados do direito não poderão sequer desfrutar das mesmas liberdades subjetivas enquan­to não chegarem no exercício conjunto de sua autonomia como cida­dãos do Estado, a ter clareza quanto aos interesses e parâmetros auto­rizados, e enquanto não chegarem a um acordo acerca das visões rele­vantes segundo as quais se deve tratar como igual o que for igual e desigual o que for desigual.

6. Idem, ibidem, p. 52.

234 A INCLUSÃO DO OUTRO

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Quando tomarmos a sério essa concatenação interna entre o Estado de direito e a democracia, porém, ficará claro que o sistema dos direitos não fecha os olhos nem para as condições de vida sociais desiguais, nem muito menos para as diferenças culturais. A "acroma­topia" do enfoque seletivo de leitura desaparece desde que atribuamos aos portadores dos direitos subjetivos uma identidade concebida de maneira intersubjetiva. Pessoas, inclusive pessoas do direito, só são individualizadas por meio da coletivização em sociedade7• Sob essa premissa, uma teoria dos direitos entendida de maneira correta vem exigir exatamente a política de reconhecimento que preserva a inte­gridade do indivíduo, inclusive nos contextos vitais que conformam sua identidade. Para isso não é preciso um modelo oposto que corrija o viés individualista do sistema de direitos sob outros pontos de vista normativos; é preciso apenas que ocorra a realização coerente desse viés. E sem os movimentos sociais e sem lutas políticas, vale dizer, tal realização teria poucas chances de acontecer.

Gostaria de ilustrar isso com base na história do feminismo, que, sob forte oposição, precisou empreender vários assaltos até fazer valer seus objetivos legais e políticos. Assim como o desenvolvimento do di­reito nas sociedades ocidentais em geral, as políticas feministas pela igualdade de direitos também têm seguido um modelo, nestes últimos cem anos, que se pode descrever como o de uma dialética entre as igual­dades jurídica e factual. Competências jurídicas iguais criam espaço para liberdades de ação que se podem utilizar diferenciadamente e que portanto não fomentam a igualdade factual das situações de vida ou das posições de poder. É bem verdade que se devem cumprir certos pressupostos factuais para que competências jurídicas sob condições de igualdade sejam distribuídas com eqüidade, caso se deseje evitar que o sentido normativo da igualdade de direitos se inverta por com­pleto. No entanto, uma equiparação de situações de vida e posições de poder factuais pretendida sob um ponto de vista como esse não pode resultar em intervenções padronizadoras, a ponto de os pretensos be­neficiários verem-se limitados em sua liberdade de conformar auto­nomamente a própria vida. Enquanto se restringir o olhar sobre o asse-

7. Cf. J. Habermas, "Individuierung durch Vergesellschaftung': ln: Nachmeta­physisches Denken. Frankfurt am Main, 1988, pp. 187-241 [ed. br.: Pensamento pós­metafísico, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990 ].

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 235

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guramento da autonomia privada, e enquanto isso obscurecer a con­catenação interna entre os direitos subjetivos das pessoas em particular e a autonomia pública dos cidadãos do Estado envolvidos no estabe­lecimento dos direitos, então a política concernente ao direito oscilará, desamparada, entre os pólos de dois paradigmas jurídicos: um liberal, em sentido lockiano, e outro socioestatal, igualmente míope. O mes­mo ocorre com a igualdade de tratamento entre homens e mulheres8•

Inicialmente, a política liberal tencionou desacoplar conquista de status e identidade de gênero, bem como garantir às mulheres uma igualdade de chances na concorrência por postos de trabalho, prestí­gio social, nível de educação formal, poder político etc. A igualdade formal parcialmente alcançada, no entanto, só fez evidenciar a desi­gualdade de tratamento factual a que as mulheres estavam submeti­das. A política socioestatal, sobretudo no âmbito do direito social, tra­balhista e de famüia, reagiu a isso com regulamentações especiais, rela­tivas a gravidez ou maternidade, ou então a encargos sociais em casos de divórcio. Nesse ínterim, não apenas as exigências liberais irresolvidas, mas também as conseqüências ambivalentes de programas socioestatais implementados com êxito tornaram-se objeto da crítica feminista -por exemplo, os riscos decorrentes do trabalho, que cresceram por causa das compensações sociais acima mencionadas, a presença excessiva de mulheres nas camadas de remuneração mais baixas, o problemático "bem-estar da criança", a crescente "feminização" da pobreza de modo geral etc. De um ponto de vista jurídico, uma razão estrutural para essa discriminação criada por via reflexiva consiste nas classificações sobre­generalizantes que se aplicam a situações lesantes e pessoas lesadas. Pois as classificações "erradas" levam a intervenções no modo de vida em questão, que o "normalizam" e que permitem converter as almeja­das compensações de perdas em novas discriminações, ou seja, per­mitem converter garantia de liberdade em privação de liberdade. Em áreas do direito feminista, o paternalismo socioestatal assume um sen­tido literal, já que o poder legislativo e a jurisdição se orientam confor­me modelos tradicionais de interpretação, o que só corrobora estereó­tipos sobre a identidade de gênero ora vigentes.

A classificação dos papéis sexuais e das diferenças dependentes do gênero diz respeito a camadas elementares da autocompreensão

8. Cf. D. L. Rhode, Justice and Gender, Cambridge, Mass., 1989. Parte Um.

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cultural da sociedade. Só agora o feminismo radical toma consciên­cia do caráter dessa autocompreensão, que se revela falível, profun­damente questionável e carente de revisão. Ele insiste, e com razão, em que se devem esclarecer junto à opinião pública de caráter políti­co, ou seja, em um debate público acerca da interpretação adequada das carências, os enfoques sob os quais as diferenças entre experiên­cias e situações de vida de determinados grupos de homens e mulhe­res se tornam significativos para um uso das liberdades de ação em igualdade de chances9• Por isso é possível, com base no exemplo des­sa luta pela igualdade das mulheres, demonstrar de forma especial­mente clara a imprescindível transformação da compreensão para­digmática do direito. Em lugar de uma disputa sobre a melhor forma de assegurar a autonomia das pessoas do direito- ora por meio das liberdades subjetivas em prol da concorrência das pessoas em parti­cular, ora mediante reivindicações de benefícios garantidas para clien­tes de burocracias de Estados de bem-estar social-, o que se apre­senta é uma concepção procedimental do direito, segundo a qual o pro­cesso democrático pode assegurar a um só tempo a autonomia privada e a pública: os direitos subjetivos, cuja função é garantir às mulheres uma organização particular e autónoma da própria vida, não podem ser formulados de maneira adequada sem que antes os próprios atin­gidos possam articular e fundamentar, em discussões públicas, os as­pectos relevantes para o tratamento igualitário ou desigual de casos típicos. É apenas pari passu com a ativação de sua autonomia en­quanto cidadãos do Estado que se pode assegurar, a cidadãos de di­reitos iguais, sua autonomia privada.

Uma leitura "liberal" do sistema de direitos que ignore essa rela­ção não tem saída senão entender erroneamente o universalismo dos direitos fundamentais enquanto nivelamento abstrato de diferenças, e de diferenças tanto culturais quanto sociais. Caso se queira tornar o sistema de direitos efetivo por via democrática, é preciso que se consi­derem as diferenças com uma sensibilidade sempre maior para o con­texto. Ontem como hoje, a universalização dos direitos é o motor de uma diferenciação progressiva do sistema de direitos, sistema que logra manter segura a integridade dos sujeitos jurídicos, mas não sem um

9. Cf. N. Fraser, "Struggle over needs". ln: Unruly Practices, Oxford, 1989. pp. 144-160.

A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 237

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tratamento rigidamente igualitário (e monitorado pelos próprios cida­dãos) dos contextos de vida de cada um, os quais originam sua própria identidade individual. Caso se corrija a forma seletiva com que teoria dos direitos faz sua leitura da realidade, e caso se propicie com isso tal compreensão democrática da efetivação dos direitos fundamentais, então nem se precisará contrapor ao "liberalismo 1 reduzido" um mo­delo que introduza direitos coletivos estranhos ao próprio sistema.

Lutas por reconhecimento-os fenômenos e os planos de sua análise

Feminismo, multiculturalismo, nacionalismo e a luta contra a herança eurocêntrica do colonialismo, todos esses são fenômenos apa­rentados entre si, mas que não cabe confundir. Seu parentesco consis­te em que as mulheres, as minorias étnicas e culturais, as nações e culturas, todas se defendem da opressão, marginalização e desprezo, lutando, assim, pelo reconhecimento de identidades coletivas, seja no contexto de uma cultura majoritária, seja em meio à comunidade dos povos. São todos eles movimentos de emancipação cujos objetivos políticos coletivos se definem culturalmente, em primeira linha, ainda que as dependências politicas e desigualdades sociais e econômicas também estejam sempre em jogo.

(a) Embora o feminismo não seja a causa de uma minoria, ele se volta contra uma cultura dominante que interpreta a relação dos gê­neros de uma maneira assimétrica e desfavorável à igualdade de direi­tos. A diferenciação de situações de vida e experiências peculiares ao gênero não recebe consideração adequada, nem jurídica nem infor­malmente; tanto a autocompreensão cultural das mulheres quanto a contribuição que elas deram à cultura comum estão igualmente dis­tantes de contar com o devido reconhecimento; e com as definições vigentes, as carências femininas mal podem ser articuladas de forma satisfatória. Assim, a luta politica por reconhecimento tem início como luta pela interpretação de interesses e realizações peculiares aos dife­rentes gêneros; à medida que logra êxito, essa luta modifica a identi­dade coletiva das mulheres, e com ela a relação entre os gêneros, afe­tando assim, de forma imediata, a autocompreensão dos homens. A

238 A INCLUSAO DO OUTRO

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escala de valores da sociedade como um todo entra em discussão; as conseqüências dessa problematização chegam até as áreas centrais da vida privada e atingem também os limites estabelecidos entre as esferas pública e privada10•

(b) A situação é diferente quando se trata da luta de minorias étnicas e culturais pelo reconhecimento de sua identidade coletiva. Como esses movimentos de emancipação também visam à superação de uma cisão ilegitima da sociedade, a autocompreensão da cultura majoritária pode não sair ilesa. De sua perspectiva, no entanto, a inter­pretação modificada das realizações e interesses dos outros não precisa modificar tanto seu papel como a reinterpretação da relação entre os gêneros modificou o papel do homem.

Movimentos de emancipação em sociedades multiculturais não constituem um fenômeno unitário. Eles apresentam desafios diferen­tes, de acordo com a situação: as minorias endógenas podem tornar­se conscientes de sua identidade ou podem surgir novas minorias por causa da imigração; pode ser que a tarefa caiba a Estados que se auto­compreendem como Estados de imigração, em face de sua história e cultura politica, ou então ela pode caber a Estados cuja autocompreen­são nacional tenha primeiro que se adaptar à integração de culturas estrangeiras. Quanto mais profundas forem as diferenças religiosas, raciais ou étnicas, ou quanto maiores forem os assincronismos his­tórico-culturais a serem superados, tanto maior será o desafio; e tanto mais ele será doloroso, quanto mais as tendências de auto-afirmação assumirem um caráter fundamentalista-delimitador, ora porque a minoria em luta por reconhecimento se desencaminha para regres­sões, por causa de experiências anteriores de impotência, ora porque ela precise primeiro despertar a consciência em prol da articulação de uma nova identidade nacional, gerada por uma construção atra­vés da mobilização de massa.

(c) Cabe distinguir ai outro tipo de nacionalismo: o das popu­lações que, por compartilharem um destino histórico comum, enten­dem-se como grupos étnico e lingüisticamente homogêneos e dese­jam manter sua identidade não apenas enquanto comunidades de ascendência comum, mas sim sob a forma de um povo organizado como Estado e politicamente capaz de agir. O modelo de movimentos

10. Cf. S. Benhabib, Situating the Self Oxford, 1992. Parte II.

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nacionais quase sempre foi o Estado nacional constituído por via re­publicana, tal como surgiu da Revolução Francesa. A Itália e a Ale­manha, em comparação com os Estados nacionais da primeira gera­ção, foram chamadas "nações tardias". Outro contexto foi dado pelo período de descolonização após a Segunda Guerra Mundial. Outra constelação, por sua vez, é dada pela decadência de impérios como o Reino Otomano, a Áustria-Hungria ou a União Soviética. Disso se distingue a situação de minorias nacionais que nasceram em virtude da formação de Estados nacionais, como é o caso de bascos, curdos e irlandeses do norte. Um caso especial é a fundação do Estado de Israel, decorrente de um movimento nacional-religioso e dos horrores de Auschwitz, na região da Palestina, inicialmente de mandato inglês e reivindicada por árabes.

( d) Eurocentrismo e predomínio da cultura ocidental, afinal, são termos essenciais para uma luta por reconhecimento em nível inter­nacional. Mais recentemente, a Guerra do Golfo tornou consciente essa dimensão: à sombra de uma história colonial ainda presente, a intervenção dos Aliados foi vista por massas religiosamente mobili­zadas e também por intelectuais secularizados como abuso da identi­dade e autonomia do mundo arábico-islâmico. Os rastros de reconhe­cimento fracassado marcam até hoje as relações históricas entre Oci­dente e Oriente, e tanto mais o relacionamento do Primeiro Mundo com o Terceiro, como antes era chamado.

Mesmo essa classificação ligeira dos fenômenos permite reconhe­cer que se trata, na controvérsia constitucional do governo canadense com o Québec, de um caso intermediário entre (b) e (c). Sob o limiar separatista da fundação de um Estado próprio, a minoria francófona luta claramente por direitos que sem dúvida lhe caberiam caso ela se declarasse uma nação estatal independente - assim como fizeram recentemente a Croácia, a Eslovênia ou a Eslováquia, os Estados dos Bálcãs ou a Geórgia. Ela, no entanto, almeja um "Estado dentro do Estado': condição para a qual se oferecem construções federalistas den­tro de um espectro amplo, que vai de regulamentações federativas até uma tênue aliança entre Estados. No Canadá, a descentralização de forças de soberania estatal alia-se à questão da autonomia cultural para uma minoria que pretende, na própria casa, tornar-se maioria relati­va. Nessa mudança de coloração da cultura majoritária, por sua vez, surgiriam outras novas minorias.

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Ao lado dos fenômenos descritos de (a) a (d), ainda é preciso diferençar e autonomizar diversos planos de sua análise. As conside­rações de Taylor concernem ao menos a três discursos inflamados por esses fenômenos.

(e) No debate sobre politicai correctness, esses fenômenos ocasio­nam em pri!Jleiro lugar um auto-entendimento entre os intelectuais norte-americanos sobre o status da modernidade11 • Nenhuma das duas partes em conflito gostaria por si mesma de levar adiante a moderni­dade enquanto projeto inabdicável12• O que para os "radicais" signifi­ca um passo encorajador rumo à pós-modernidade e à remoção de figuras de pensamento totalizadoras configura para os "tradicionalis­tas" um sinal de uma crise que só pode ser superada por um persistente regresso às tradições clássicas do Ocidente. Podemos deixar esse de­bate de lado, já que ele contribui com muito pouco para a análise das lutas por reconhecimento no Estado democrático de direito e pratica­mente com nada para a solução política dessas lutas13•

(f) Num outro plano situam-se os discursos filosóficos em sen­tido estrito, que partem dos fenômenos acima mencionados para des­crever problemas de ordem geral. Os fenômenos prestam-se bem à ilustração de dificuldades do acordo mútuo intercultural; eles esclare­cem a relação entre moral e eticidade ou uma vinculação interna entre significação e validação, e realimentam a velha questão sobre poder­mos transcender o contexto de nossa respectiva língua e cultura ou, ao contrário, todos os padrões de racionalidade estarem atrelados a

11. Cf. P. Berman (org.), Debating P. C., NewYork, 1992; cf. aí também J. Searle, "Storm over the University': pp. 85-123.

12. Cf. J. Habermas, O discurso filosófico da modernidade, São Paulo, Martins Fontes, 2000.

13. A. Gutmann manifesta-se sobre o método de desmascaramento como a se­guir: "Em geral, conduz-se essa argumentação abreviada em favor de grupos sub-re­presentados na universidade e depreciados na sociedade; é dificil divisar, no entanto, de que maneira ele pode ser de alguma serventia para quem quer que seja. Tanto do ponto de vista lógico quanto do ponto de vista prático, ele mina seu próprio funda­mento. De acordo com sua lógica interna, a tese desconstrutivista de que parâmetros intelectuais nada mais são senão mascaramentos de anseios por poder conduz a que também nela se espelhe um anseio de poder, qual seja o dos próprios desconstrutivistas. Mas se as pessoas de fato só têm em mente o poder político, por que é que elas se dedicam a questões intelectuais que certamente não são o caminho mais rápido e mais seguro para alcançá-lo, e nem mesmo o caminho mais cómodo?" Ch. Taylor et alii, Multikulturalismus und die Politik der Anerkennung, Frankfurt am Main, 1993. p. 139.

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determinadas imagens de mundo e determinadas tradições. As esma­gadoras evidências da fragmentação de sociedades multiculturais e da confusão lingüística babilônica em meio a uma sociedade mundial mais que complexa parecem compelir-nos a concepções balísticas de linguagem e a concepções contextualísticas de imagens de mundo que soam céticas em face de tantas reivindicações universalistas, sejam elas de natureza cognitiva ou normativa. O debate sobre a realidade, rami­ficado e aberto até há pouco tempo, por certo também tem conse­qüências para os conceitos de bom e justo com os quais operamos ao investigar as condições de uma "política do reconhecimento". Mas a sugestão de Taylor, em si mesma, remete-se a outra coisa; ela está embasada no plano de referências do direito e da política.

(g) Com isso, a questão sobre o "direito" ou os "direitos" de mino­rias ofendidas e maltratadas ganha um sentido jurídico. Decisões polí­ticas servem-se da forma de regulamentação do direito positivo para tornarem-se efetivos em sociedades complexas. Ante o medium do di­reito, porém, deparamos uma estrutura artificial com a qual se relacio­nam certas decisões normativas prévias. O direito moderno é formal porque se embasa na premissa de que tudo o que não seja explicita­mente proibido é permitido. Ele é individualista porque faz da pessoa em particular o portador de direitos subjetivos. É um direito coercivo porque sanciona de maneira estatal e estende-se apenas ao comporta­mento legal ou conforme a normas - ele pode, por exemplo, tornar livres as religiões, mas não pode prescrever nenhuma consciência moral. É um direito positivo porque retrograda às decisões- modificáveis­de um legislador político, e é, finalmente, um direito escrito por via pro­cedimenta~ já que legitimado mediante um procedimento democrático. É bem verdade que o direito positivo só exige comportamentos legais, no entanto, ele precisa ser legitima: embora dê margem aos motivos da obediência jurídica, deve ser constituído de maneira que também possa ser cumprido a qualquer momento por seus destinatários, pelo simples respeito à lei. Uma ordem jurídica é legítima quando assegura por igual a autonomia de todos os cidadãos. E os cidadãos só são autônomos quando os destinatários do direito podem ao mesmo tempo entender­se a si mesmos como autores do direito. E tais autores só são livres en­quanto participantes de processos legislativos regrados de tal maneira e cumpridos sob tais formas de comunicação que todos possam supor que regras firmadas desse modo mereçam concordância geral e moti-

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vada pela razão. Do ponto de vista normativo, não há Estado de direito sem democracia. Por outro lado, como o próprio processo democrático precisa ser institucionalizado juridicamente, o princípio da soberania dos povos exige, ao inverso, o respeito a direitos fundamentais sem os quais simplesmente não pode haver um direito legítimo: em primeira linha o direito a liberdades de ação subjetivas iguais, que por sua vez pressupõe uma defesa jurídica individual e abrangente.

Tão logo tratamos de um problema como problema jurídico, tra­zemos imediatamente à baila um conceito de direito moderno que nos obriga- ao menos por razões conceituais- a operar com a arquite­tônica do Estado de direito, ela mesma muito rica em pressupostos. Isso também traz conseqüências para o tratamento do problema da igualação jurídica e do igual reconhecimento de grupos culturalmente definidos, ou seja, de coletividades que se distinguem de outras- seja pela tradição, forma de vida, proveniência étnica etc. - e cujos inte­grantes realmente querem distinguir-se das demais coletividades, em virtude da manutenção e desenvolvimento de sua própria identidade.

A impregnação ética do Estado de direito

Sob uma visão da teoria do direito, o multiculturalismo suscita em primeira linha a questão sobre a neutralidade ética da ordem jurídica e da política. Denomino éticas, nesse contexto, todas as questões que se referem a concepções do bem viver ou da vida não-malograda. Ques­tões éticas não se deixam julgar sob o ponto de vista "moral" que se pergunta se algo é "igualmente bom para todos"; sobre o fundamento de valorações intensas, pode-se avaliar bem melhor o julgamento im­parcial dessas questões com base na autocompreensão e no projeto de vida perspectivo de grupos em particular, ou seja, com base no que seja "bom para nós': mas a partir da visão do todo manifestada por esses grupos. Gramaticalmente, o que está inscrito nas questões éticas é a refe­rência à primeira pessoa, e com isso a remissão à identidade (de um indivíduo ou) de um grupo. Com base no exemplo da disputa consti­tucional canadense, pretendo abordar a exigência liberal da neutralida­de ética do direito, inicialmente em vista da autocompreensão ético­política de uma nação composta por cidadãos que integram um Estado.

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A neutralidade do direito - e do procedimento democrático de privação do direito - é ocasionalmente entendida como se questões políticas de natureza ética tivessem de ser afastadas da agenda polí­tica por meio de "gag rules" [ordens de silêncio] e suprimidas das dis­cussões por serem inacessíveis a uma regulamentação jurídica impar­cial. Com isso, não se deve permitir ao Estado (no sentido do liberalis­mo 1) que ele persiga quaisquer outros fins coletivos a não ser garan­tir a liberdade individual ou o bem-estar e segurança pessoal de seus cidadãos. Ao contrário, o modelo alternativo (no sentido do liberalis­mo 2) espera do Estado que ele em geral garanta, sim, esses direitos fundamentais, mas que além disso também se empenhe em favor da sobrevivência e fomento de uma "determinada nação, cultura ou reli­gião, ou então de um número limitado de nações, culturas e religiões': Também na opinião de Michael Walzer trata-se aí de um modelo ftm­damental que permite aos cidadãos se decidirem, sob certas circuns­tâncias, pela precedência dos direitos individuais. Com isso, Walzer partilha as premissas de que é perfeitamente possível haver colisões entre duas orientações normativas básicas e de que, nesses casos, ape­nas o liberalismo 2 permite chegar a uma decisão favorável à relativa precedência de fins e identidades coletivos e à devida consideração por eles. Assim, a teoria dos direitos afirma de fato uma precedência absoluta dos direitos em relação aos bens comuns, de modo que, como mostra Dworkin, argumentos sobre a demarcação de objetivos só po­dem "bater" reinvindicações subjetivas de direitos se estas últimas pu­derem ser fundamentadas à luz de direitos precedentes14• Isso, porém, ainda não basta para dar sustentação à concepção comunitarista par­tilhada por Taylor e Walzer, segundo a qual o sistema dos direitos igno­raria reivindicações de defesa em prol de formas culturais de vida e identidades coletivas, agiria com indiferença em face delas, e careceria, portanto, de correção.

Com base no exemplo das políticas feministas de igualdade de direitos, demonstramos o que geralmente acaba valendo: que a confi­guração democrática do sistema de direitos acata não apenas demar­cações políticas de objetivos em geral, mas também fins coletivos que se articulam em lutas por reconhecimento. Pois diferentemente do

14. Cf. R. Dworkin, Bürge"echte ernstgenommen, Frankfurt am Main, 1984. pp. l58ss.

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que se dá com normas morais, que regulamentam de forma geral as interações possíveis entre sujeitos capazes de agir e falar, as normas jurídicas referem-se a contexto interacionais de uma sociedade con­creta. Normas jurídicas remontam a decisões de um legislador local; estendem-se a uma coletividade socialmente delimitada de integran­tes do Estado, no interior de um território estatal geograficamente de­terminado; e levam decisões políticas - efetivas para a própria socie­dade estatal organizada que as toma- a integrar-se em programas coletivamente vinculativos, no âmbito dessa área de validação clara­mente circunscrita. Por certo, a consideração de fins coletivos não pode dissolver a estrutura do direito, não pode destruir a forma jurídica como tal, e com isso suprassumir a diferenciação entre direito e política. Mas faz parte da natureza concreta de matérias carentes de regulamenta­ção que a normatização das vias de relacionamento no medium do direito- diversamente do que ocorre na moral-venha abrir-se para as demarcações de objetivos pela vontade política de uma sociedade. Por isso, toda ordem jurídica é também expressão de uma forma de vida em particular, e não apenas o espelhamento do teor universal dos direitos fundamentais. Por certo, é preciso poder entender as decisões do legislador político como efetivação do sistema de direitos, e suas políticas como configuração desse mesmo sistema; mas quanto mais concreto for o talhe da matéria, tanto mais também se expressará, na aceitabilidade de uma regulamentação jurídica correspondente, a autocompreensão de uma coletividade e de sua forma de vida (bem como a compensação entre interesses divergentes de grupos diversos, e a opção bem informada entre fins e meios alternativos). Isso se revela no espectro amplo das razões que desempenham um papel na forma­ção racional da opinião e da vontade do legislador político: ao lado de ponderações morais, considerações pragmáticas e dos resultados de negociações justas e honestas, também as razões éticas desempenham um papel nos aconselhamentos e justificações de decisões políticas.

A medida que a formação política da opinião e da vontade dos cidadãos orienta-se pela idéia da efetivação de direitos, ela certamen­te não pode ser equiparada a um auto-entendimento ético-político, como bem sugerem os comunitaristas15; mas o processo da efetivação de direitos está justamente envolvido em contextos que exigem dis-

15. Cf. R. Beiner, Politicai Judgement, Chicago, 1983. p. 138.

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cursos de auto-entendimento como importante elemento da política - discussões sobre uma concepção comum do que seja bom e sobre qual a forma de vida desejada e reconhecida como autêntica. Eis aí controvérsias nas quais os participantes ganham, por exemplo, um maior nível de consciência sobre de que forma pretendem compreen­der-se como cidadãos de determinada república, habitantes de deter­minada região, herdeiros de determinada cultura, sobre que tradições pretendem perpetuar ou interromper, sobre a maneira como preten­dem lidar com seu destino histórico, com a natureza, uns com os ou­tros etc. E é natural que a escolha da língua oficial ou a decisão sobre o currículo das escolas públicas também seja concernente à autocom­preensão ética de uma nação. Já que questões ético-políticas são um componente inevitável da política, e já que as respectivas regulamen­tações dão expressão à identidade coletiva da nação de cidadãos do estado, é muito plausível que a partir delas se desencadeiem batalhas culturais nas quais minorias desprezadas passem a defender-se con­tra a cultura majoritária e insensível. O elemento propulsor dessas batalhas não é a neutralidade ética da ordem jurídica estatal, mas sim a inevitável impregnação ética de cada comunidade jurídica e de cada processo democrático de efetivação dos direitos fundamentais. Disso dão testemunho, por exemplo, as garantias institucionais de que usu­fruem as igrejas cristãs em Estados como a República Federal da Ale­manha - apesar da liberdade religiosa -, ou então a recentemente discutida garantia de status diferenciado que a Constituição alemã concede à família, diversamente do que ocorre com outras parcerias similares ao casamento.

Nesse contexto, é de nosso interesse que decisões ético-políticas como essas, consideradas tanto de um ponto de vista empírico quanto normativo, dependam de uma composição contingente da nação vin­culada a um Estado. A exclusão social da população de um Estado re­sulta de circunstâncias históricas que são externas ao sistema dos di­reitos e aos princípios do Estado de direito. É ela que decide sobre o conjunto básico de pessoas que convivem em um único território e que estão vinculadas por meio de uma única Constituição, ou seja, vinculadas por uma decisão de patriarcas fundadores, no sentido de regulamentar legitimamente seu próprio convívio através dos meios do direito positivo; na condição de gerações subseqüentes, essas pes­soas concordaram implicitamente (ou até mesmo explicitamente, no

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caso dos cidadãos imigrados) cóm dar continuidade a um projeto cons­titucional já preexistente. As pessoas a partir das quais em determina­do momento se forma uma nação vinculada a um Estado, no entanto, também corporificam a um só tempo as formas culturais de vida em que se formou sua própria identidade cultural - mesmo que nesse meio tempo elas já tenham se afastado das tradições de sua origem. As pessoas, ou melhor, as estruturas de personalidade formam como que junções dos fios de uma rede ágrafa de culturas e tradições, de conca­tenações vitais e experienciais intersubjetivamente partilhadas. E esse contexto é também o horizonte dentro do qual os cidadãos do Estado, queiram eles ou não, desenvolvem seus discursos de auto-entendimento ético-político. Quando se altera o conjunto básico de cidadãos, tam­bém se altera esse horiwnte, de tal modo que se desenvolvem outros discursos sobre as mesmas questões e se almejam outros fins. As mi­norias, ao menos intuitivamente, têm consciência dessa circunstância; ela constitui um importante motivo para a reivindicação de um Esta­do próprio, ou mesmo para a exigência do reconhecimento enquanto "distinctive society': tal como revelou o projeto constitucional de Meech Lake, que a propósito não teve êxito. Caso a minoria francófona se constituísse enquanto comunidade jurídica própria, em importantes questões ético-políticas ela iria, pela mesma via democrática, formar outras maiorias e chegar a regulamentações diferentes daquelas a que os canadenses chegaram até hoje, em seu conjunto.

Como mostra a história da formação das nações16, com novas fron­teiras para o Estado certamente também surgem outras minorias na­cionais; e o problema não desaparece, a não ser à custa de "purificação étnica"- o que é injustificável do ponto de vista político-moral. Com base no exemplo dos curdos, que vivem dispersos em cinco Estados diferentes, ou da Bósnia-Herzegovina, em que os grupos étnicos lu­tam impiedosamente entre si, pode-se demonstrar claramente a con­dição cindida do "direito" quando voltado à autodeterminação nacio­nal. Por um lado, com o passo que se dá rumo à autonomia enquanto Estado próprio, a coletividade que se entende como comunidade do­tada de identidade própria conquista um novo patamar de reconheci­mento, o qual lhe é negado em um estágio anterior à consolidação polí­tica, seja na condição de comunidade lingüística e de ascendência co-

16. Cf. P. Alter, Nationalismus, Frankfurt am Main, 1985.

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mum, seja na condição de "nação cultural" dispersa ou reunida em comunidade. A necessidade de reconhecimento como nação dotada de Estado intensifica-se sobretudo em tempos de crise, quando a popu­lação- tal como ocorreu após a dissolução do império soviético- se apega a características ágrafas de uma identidade coletiva, a qual se re­nova de maneira regressiva. Esse amparo promete compensar, ainda que de maneira controversa, os medos do futuro e as inseguranças so­ciais para os quais há razões de sobra. Por outro lado, a independência nacional freqüentemente só pode ser alcançada por meio de guerras civis, novas repressões, ou então através de conseqüências problemá­ticas que perpetuam os conflitos e contrariam o que se prenunciava.

A situação no Canadá é muito diversa. Naquele país procura-se de modo razoável uma solução federalista capaz de manter intacto o Estado como um todo, mas que também seja capaz de assegurar a au­tonomia cultural de uma de suas partes, através da descentralização das competências estatais17• Com isso, em certos campos políticos modificam-se os conjuntos básicos de cidadãos envolvidos no proces­so democrático, mas permanecem inalterados os princípios desse mesmo processo. Pois a teoria dos direitos não proíbe de maneira al­guma que os cidadãos do Estado democrático de direito, no âmbito de sua ordem estatal conjunta, validem uma concepção do que seja bom, advenha ela da própria origem cultural, ou de um consenso alcançado em discursos de natureza política; entretanto, essa mesma teoria proíbe sim, no interior do Estado, que se privilegie uma forma de vida em detrimento de outra. Em construções estatais federais isso vale tanto para o plano federal como para o plano estadual. Se não estou enga­nado, no Canadá a disputa não ocorre em torno desse princípio da igualdade de direitos, mas sim em torno do tipo e da amplitude das competências estatais que se devam transferir à província do Québec.

Coexistência eqüitativa versus preservação da espécie

O caminho da federalização obviamente só se oferece como solu­ção quando os integrantes de diferentes grupos étnicos e universos cul-

17. Redigi esse texto no inicio de 1993.

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turais de vida estão mais ou menos de acordo com a separação territorial entre eles. Em muitas sociedades multiculturais, como os Estados Uni­dos, não é esse o caso; e será menos ainda para países em que a compo­sição étnica da população vem se modificando (como na Alemanha) sob a pressão de fluxos imigratórios em nível mundial. Também um Québec que se tornasse culturalmente autónomo acabaria por encon­trar-se na mesma situação e simplesmente trocaria uma cultura majo­ritária inglesa por outra, francesa. Suponhamos que em sociedades mul­ticulturais como essas, no contexto de uma cultura liberal e com base em associações voluntárias, subsista uma opinião pública eficiente, que funcione com estruturas de comunicação não simplesmente herdadas, mas que possibilitem e fomentem discursos de auto-entendimento. Nesse caso, o processo democrático de efetivação de direitos subjetivos iguais também pode estender-se ao asseguramento da coexistência eqüitativa de diferentes grupos étnicos e de suas formas culturais de vida. Para isso não é preciso haver qualquer fundamentação especial, nem tampouco uma proposição básica concorrente. Pois se é possível garantir a integridade da pessoa do direito em particular, de um ponto de vista normativo, isso não pode ocorrer sem a defesa dos contextos vitais e experienciais partilhados intersubjetivamente, nos quais a pes­soa foi socializada e nos quais se formou sua identidade. A identidade do indivíduo está entretecida com identidades coletivas e só pode esta­bilizar-se em uma rede cultural que está tão longe de poder ser adqui­rida como propriedade privada quanto a própria língua materna. Por isso, embora o indivíduo continue sendo o portador dos respectivos "direitos de pertencer culturalmente': no sentido de W. Kymlicka 18, ainda resultam disso, em virtude da dialética das igualdades jurídica e factual, amplas garantias de status e direitos à autonomia administrativa, bene­fícios de infra-estrutura, subvenções etc. Culturas autóctones que es­tejam ameaçadas podem fazer valer em defesa própria certas razões mo­rais peculiares, advindas da história de um país dominado nesse meio tempo pela cultura majoritária. Argumentos semelhantes em favor de uma "discriminação ao inverso" podem ser usados por culturas longa­mente oprimidas e renegadas, como as de antigos escravos.

Obrigações como essas, e outras semelhantes, resultam de rei­vindicações juridicas; elas não resultam em hipótese alguma de uma

18. W. Kymlicka, Liberalism, Communityand Culture, Oxford, 1989.

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apreciação valorativa geral da respectiva cultura. A política do reco­nhecimento de Taylor estaria assentada sobre um alicerce muito fraco, caso dependesse de uma "suposição de valor idêntido" em relação às culturas e à sua respectiva colaboração com a civilização mundial. O direito à igualdade de respeito que cada um pode reivindicar também nos contextos vitais formadores da própria identidade nada tem a ver com a suposta excelência de sua cultura de origem, ou seja, com um desempenho que ocasione um agrado generalizado. É o que acentua Susan Wolf ao afirmar: "ao menos um grande dano perpetuado pelo não-reconhecimento tem pouco a ver com a questão sobre a impor­tância geral que possam ter para a humanidade os seres humanos e a cultura aos quais se nega o reconhecimento. E a necessidade de repa­rar esse dano não se deve à suposição- ou à aceitação da suposi­ção-- de que uma determinada cultura tem um valor especial para as pessoas que não pertencem a ela" 19•

Em tal medida, a coexistência eqüitativa de diferentes grupos ét­nicos e de suas formas de vida culturais não pode ser assegurada por um tipo de direitos coletivos que necessariamente estaria além dos limites de uma teoria do direito talhada para atender a pessoas indivi­duais. Mesmo que se acatassem tais direitos coletivos no Estado de­mocrático de direito, eles seriam não apenas desnecessários, mas tam­bém questionáveis do ponto de vista normativo. Pois a defesa de for­mas de vida e tradições geradoras de identidade deve servir, em últi­ma instância, ao reconhecimento de seus membros; ela não tem de forma alguma o sentido de uma preservação administrativa das es­pécies. O ponto de vista ecológico da conservação das espécies não pode ser transportado às culturas. Normalmente, as tradições cultu­rais e as formas de vida que aí se articulam reproduzem-se ao conven­cer do valor de si mesmas os que as assumem e as internalizam em suas estruturas de personalidade; ou seja, elas se reproduzem ao moti­var os indivíduos a uma apropriação e continuação produtivas de si mesmas. O caminho do direito estatal nada pode senão possibilitar essa conquista hermenêutica da reprodução cultural de universos vi­tais. Pois uma garantia de sobrevivência iria justamente privar os inte­grantes da liberdade de dizer sim ou não, hoje tão necessária à apro­priação e manutenção de uma herança cultural. Sob as condições de

19. Ch. Taylor et alii., 1993, p. 84.

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uma cultura que se tornou reflexiva, só conseguem se manter as tradi­ções e formas de vida que vinculem seus integrantes, e isso por mais que fiquem expostas à provação crítica por parte deles, e por mais que dêem às novas gerações a opção de aprender com as outras tradições, ou mesmo converter-se a elas e migrar, portanto, para outras para­gens. Isso vale até mesmo para seitas relativamente fechadas como os amish na Pensilvânia20• Mesmo que considerássemos sensato o obje­tivo de colocar as culturas sob um regime de preservação das espécies, as condições hermenêuticas para uma reprodução promissora seriam inconciliáveis com esse objetivo- "to maintain and cherish distinct­ness, not just now but forever".

Para isso não basta evocar as muitas subculturas e universos vi­tais que floresceram na sociedade burguesa precoce da Era Moderna européia, estratificada em associações de ofício, ou então as formas de vida dos assalariados que se seguiram a eles, ora pagos por dia de tra­balho, ora integrantes das massas urbanas proletárias e desenraizadas que caracterizaram a primeira fase da industrialização. Todos eles cer­tamente foram abarcados e esmagados com violência pelo processo de modernização; mas não foram todos, em absoluto, que encontra­ram um mestre protetor ou se viram defendidos convictamente por seus aliados contra as alternativas desse novo tempo. Formas de vida que, do ponto de vista cultural, foram suficientemente fortes e atrati­vas para estimular a vontade a se auto-afirmar (foi o que se deu prova­velmente com a cultura urbana e burguesa do século XIX) só logra­ram manter-se vivas, em alguns de seus traços, graças a uma força de autotransformação. Mesmo uma cultura majoritária que não se vê ameaçada só conserva sua vitalidade através de um revisionismo ir­restrito, do esboço de alternativas ao que existe até hoje ou da integra­ção de impulsos alheios - até o ponto de romper com algumas de suas próprias tradições. Isso vale em especial para as culturas de imigra­ção, as quais, pela pressão assimiladora das novas circunstâncias, vêem­se desafiadas a um isolamento étnico relutante e à revivificação de ele­mentos tradicionais, mas estabelecem logo a seguir uma forma de vida igualmente distanciada da assimilação e da origem tradicionae'.

20. Cf. a decisão da Suprema Corte no caso Wisconsin versus Yoder, 406 U. S. 205 (1972).

21. Cf. D. Cohn-Bendit, Th. Schmid, Heimat Babylon, Hamburgo, 1992, pp. 316ss.

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Em sociedades multiculturais, a coexistência eqüitativa das for­mas de vida significa para cada cidadão uma chance segura de crescer sem perturbações em seu universo cultural de origem, e de também poder criar seus filhos nesse mesmo universo; ou seja, significa a chance de poder confrontar-se com sua cultura de origem - como com qualquer outra-, dar-lhe continuidade ou transformá-la, ou ainda a chance de distanciar-se com indiferença de seus imperativos, ou mesmo romper com ela, em uma atitude autocrítica, para viver a par­tir daí com a marca deixada por uma ruptura consciente com a tra­dição ou então com uma identidade cindida. A mudança acelerada das sociedades modernas manda pelos ares todas as formas estacio­nárias de vida. As culturas só sobrevivem se tiram da crítica e da cisão a força para uma autotransformação. Garantias jurídicas só podem se apoiar sobre o fato de que cada indivíduo, em seu meio cultural, detém a possibilidade de regenerar essa força. E essa força, por sua vez, não nasce apenas do isolamento em face do estrangeiro e de pes­soas estrangeiras, mas nasce também - e pelo menos em igual me­dida - do intercâmbio com eles.

Na modernidade, formas rígidas de vida tornam-se vítimas da entropia. Movimentos fundamentalistas podem ser entendidos como a tentativa irónica de, com meios restaurativos, conferir ultra-estabili­dade ao próprio mundo vital. A ironia consiste na autocompreensão errónea por parte de um tradicionalismo que surge na esteira da mo­dernização social e apenas imita uma substancialidade já decaída. Como reação a um impulso modernizador triunfante, o fundamenta­lismo representa um movimento de renovação plenamente moderno. O nacionalismo também pode tornar-se um fundamentalismo, mas não pode ser confundido com ele. O nacionalismo da Revolução Fran­cesa aliou-se às proposições básicas universalistas do Estado de direi­to; naquele tempo, nacionalismo e republicanismo eram como irmãos gêmeos. No entanto, as sociedades em processo de mudança radical não são as únicas a se ver expostas a esse fenômeno; também as conso­lidadas democracias do Ocidente são cortejadas por movimentos fun­damentalistas. Todas as religiões mundiais geraram seu próprio funda­mentalismo, mas nem todas os movimentos organizados em seitas apresentam traços desse tipo.

O caso Rushdie vem lembrar que o fundamentalismo que conduz a uma práxis de intolerância é inconciliável com o Estado de direito.

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Essa práxis apóia-se sobre interpretações religiosas ou histórico-filosó­ficas do mundo que reivindicam exclusividade para uma forma privi­legiada de vida. Falta a tais concepções a consciência da falibilidade de sua reivindicação de validação e o respeito em face do "ônus da razão" (John Rawls). É natural que interpretações globais do mundo e convic­ções religiosas não se vinculem a um falibilismo dessa natureza, que hoje acompanha o saber hipotético das ciências empíricas. Mas visões de mundo fundamentalistas são dogmáticas em um outro sentido: elas não concedem nenhum espaço à reflexão sobre sua relação com ima­gens de mundo alheias, nem mesmo com imagens de mundo com as quais partilham o mesmo universo discursivo, e contra cujas reivin­dicações de validação podem impor-se sem dificuldade, apenas com base em fundamentos racionais. Visões de mundo fundamentalistas não dão nenhuma chance a "reasonable disagreement"22•

Em face disso, as forças subjetivadas de fé do mundo moderno são marcadas por um posicionamento reflexivo que não permite ha­ver um único modus vivendi- juridicamente imponível sob condições da liberdade religiosa. As imagens de mundo não-fundamentalistas, que Rawls caracterizi3 como "not unreasonable comprehensive doc­trines': permitem muito mais- no espírito da tolerância propugnada por Lessing - uma disputa civilizada entre diversas convicções, na qual um partido pode reconhecer os demais como parceiros na busca de verdades autênticas, sem com isso renunciar à própria reivindi­cação de validação. Em sociedades multiculturais, a constituição jurí­dico-estatal só pode tolerar formas de vida que se articulem no medium de tradições não-fundamentalistas, já que a coexistência eqüitativa dessas formas de vida exige o reconhecimento recíproco das diversas condições culturais de concernência ao grupo: também é preciso reco­nhecer cada pessoa como membro de uma comunidade integrada em torno de outra concepção diversa do que seja o bem, segundo cada caso em particular. A integração ética de grupos e subculturas com cada uma das identidades coletivas próprias precisa ser desacoplada do plano de uma integração política abstrata, que apreende os cida­dãos do Estado de maneira eqüitativa.

22. J. Habermas, Erliiuterungen zur Diskursethik, Frankfurt am Main, 1992. pp. 204-208.

23. J. Rawls, "Der Gedanke eines übergreifenden Konsenses': ln: Die Idee des Politischen Liberalismus, Frankfurt am Main, 1992. pp. 293-332.

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A integração dos cidadãos do Estado assegura lealdade em face de uma cultura política comum. Essa cultura política está enraizada em uma interpretação dos princípios constitucionais assumidos e cum­pridos por cada nação estatal (a partir do contexto histórico de expe­riências próprio a essa mesma cultura), o que indica que tais princí­pios não podem ser eticamente neutros. Antes talvez se devesse falar de um horizonte interpretativo comum, no interior do qual se discute publicamente, e por ensejos imediatos, a autocompreensão dos cidadãos de uma república. A controvérsia dos historiadores que teve lugar na Alemanha em 1986/1987 é um bom exemplo disso24• Mas sempre se discute sobre a melhor interpretação dos mesmos direitos e princípios fundamentais. Eles constituem o sólido ponto de referência para cada patriotismo constitucional que situe o sistema dos direitos no contex­to histórico de uma comunidade jurídica. É com motivos e atitudes de consciência dos cidadãos que tais direitos e princípios precisam con­solidar uma ligação duradoura; pois sem uma ancoragem motivacio­nal como essa, eles não poderiam tornar-se a força propulsora de uma associação entre pessoas livres e iguais. Isso explica por que também está eticamente impregnada a cultura política em comum, na qual os cidadãos do Estado se reconhecem como membros de sua república.

Ao mesmo tempo, o teor ético do patriotismo constitucional não pode restringir a neutralidade da ordem jurídica em face das comuni­dades eticamente integradas em nível subpolítico; mais que isso, ele tem de aguçar a sensibilidade para a pluralidade diferencial e a integri­dade das diversas formas de vida coexistentes de uma sociedade multi­cultural. É decisiva a manutenção da diferença entre os dois planos de integração. No momento em que esses dois planos coincidem, a cultura majoritária usurpa privilégios estatais à custa da eqüidade em relação a outras formas de vida culturais, e ofende seu anseio por reconheci­mento recíproco. A neutralidade do direito em face das diferenciações éticas no interior do Estado pode ser explicada pelo fato de que, em sociedades complexas, não se pode mais manter coesa a totalidade dos cidadãos através de um consenso substancial acerca dos valores, mas tão-somente através de um consenso quanto ao procedimento relativo a ações jurígenas legítimas e ao exercício de poder. Os cidadãos poli­ticamente integrados partilham a convicção motivada por via racional

24. Cf. }. Habermas, Eine Art Schadensabwicklung, Frankfurt am Main, 1987.

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de que o desencadeamento de liberdades comunicativas em meio à opi­nião pública de caráter político, o procedimento democrático da solu­ção de conflitos e a canalização jurídico-estatal da dominação funda­mentam uma perspectiva de banimento do poder ilegítimo e de utili­zação do poder administrativo em favor do interesse eqüitativo de to­dos. O universalismo dos princípios jurídicos reflete-se, com certeza, em um consenso procedimental que certamente precisa estar circuns­crito por um patriotismo constitucional- por assim dizer-, no con­texto de uma respectiva cultura política historicamente determinada.

Imigração, cidadania e identidade nacional

Os juristas têm a vantagem de discutir questões normativas com vistas a casos sobre os quais ainda se vai deliberar; eles pensam orien­tados pela aplicação prática. Os filósofos eximem-se dessa pressão decisionista; como contemporâneos de noções clássicas que subsis­tem há mais de dois mil anos, não têm qualquer constangimento por entender-se como participantes do diálogo perpétuo. Tanto mais fas­cinante, nesse sentido, o fato de alguém como Charles Taylor empre­ender a tentativa de apreender sua própria época sob a forma de pen­samentos, além de desenvolver discernimentos filosóficos e procurar torná-los férteis para a questões políticas mais prementes na ordem do dia. Seu ensaio, da mesma forma, é um exemplo tão raro quanto brilhante nesse sentido, embora não trilhe (ou melhor: porque não trilha) o caminho tão em voga de uma "ética aplicada':

Na República Federal da Alemanha-bem como na União Euro­péia em geral- há outro tema na ordem do dia, desde as reviravoltas na Europa Central e Oriental: a imigração. Um colega holandês, de­pois de proceder a uma apresentação abrangente do problema, chegou à seguinte prognose: "Western European countries ... will do their utmost to prevent immigration from third countries. To this end they will grant work permits to persons who have skills of immediate relevance to the society in fairly exceptional cases only ( soccer players, software specialists from the US, scholars from India etc.). They will combine a very restrictive entry policy with policies aimed at dealing more quickly and effectively with requests for asylum, and with a

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practice of deporting without delay those whose request has been denied ... The conclusion is, that they will individually and jointly use ali means at their disposal tostem the tide"25• Essa descrição corres­ponde exatamente ao resultado das negociações sobre a questão do asilo político, ocorridas entre situação e oposição, em 1993, na Alema­nha. E não há dúvida de que essa política encontra respaldo junto à grande maioria da população. Nos dias de hoje, a hostilidade contra estrangeiros é amplamente difundida nos demais países da Unidade Européia. Ela tem características fortemente diversas nos vários países em particular; mas o posicionamento dos alemães não se distingue muito do que assumem os franceses e ingleses26• O exemplo de Taylor pode encorajar-nos a procurar uma resposta para essa questão, (tam­bém) do ponto de vista filosófico: justifica-se essa política de isola­mento contra imigrantes? Gostaria inicialmente de discutir a pergunta in abstracto, para então dedicar-me à questão do debate alemão sobre asilo político nos anos de 1992/1993, esclarecer o cenário histórico em que se deu e depois caracterizar a alternativa que se deveria explicar em um debate sobre a autocompreensão ético-política da República Federal da Alemanha ampliada, o qual não se deu até hoje, ao menos não abertamente e em público.

Embora determinadas características formais distingam o direi­to moderno da moral racional pós-tradicional, o sistema de direitos e os princípios do Estado de direito, em razão de seu teor universalista, estão em consonância com essa moral. Ao mesmo tempo, como já vimos, ordens jurídicas são "eticamente impregnadas" na mesma me­dida em que nelas se refletem a vontade política e a forma de vida de uma comunidade jurídica concreta. Um bom exemplo disso são os Estados Unidos, cuja cultura política está marcada por uma tradição constitucional bicentenária. Mas enquanto o legislador político orien­tar-se segundo proposições básicas do direito estatal e, dessa maneira, segundo a idéia da efetivação de direitos fundamentais, o ethos juri­dicamente ordenado de uma nação que se organize sob a forma de Estado não poderá entrar em contradição com os direitos dos cida-

25. D. J. van de Kaa, "European Migration at the End of History", European Re­view, vol. l, jan. 1993, p. 94.

26. Cf. E. Wiegand, "Auslãnderfeindlichkeit in der Festung Europa. Einstellungen zu Fremden im europãischen Vergleich". ln: Informationsdienst Soziale Indikatoren (ZUMA), n. 9, jan. 1993, p. 1-4.

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dãos. Por isso, o teor ético de uma integração política que unifique todos os cidadãos precisa ser "neutro" em face das diferenças que haja no interior do Estado entre comunidades ético-culturais que se inte­gram cada qual em torno de uma respectiva concepção própria do que seja o bem. Não obstante o desacoplamento desses dois planos de integração, uma nação de cidadãos reunidos em um mesmo Estado só poderá manter vivas as instituições da liberdade quando desenvolver uma determinada medida de lealdade em face do próprio Estado, leal­dade que não seja necessário impor juridicamente.

É essa autocompreensão ético-política da nação que se vê afetada pela imigração; pois a afluência de imigrantes altera a composição da população também sob um ponto de vista ético-cultural. Isso ex­plica a questão quanto aos limites do anseio por imigração: ele não esbarra justamente no direito de uma coletividade política a manter intata sua forma de vida político-cultural? E o direito à autodetermina­ção- sob a premissa de que a ordem geral do Estado, conformada de maneira autónoma, está eticamente impregnada- não inclui o di­reito à auto-afirmação da identidade de uma nação? E isso também diante de imigrantes, que poderiam alterar a índole amadurecida ao longo da história de uma forma de vida político-cultural?

Da perspectiva da sociedade que acolhe os imigrantes, o proble­ma da imigração suscita a pergunta acerca das condições legítimas de entrada. Negligenciando os graus intermediários do ingresso, pode­mos centrar a pergunta sobre um de seus aspectos extremos: o ato de naturalização. É com ele que o Estado controla a ampliação da coleti­vidade, definida justamente através dos direitos à cidadania. Sob que condições cabe ao Estado negar a cidadania aos que tornam válida uma pretensão de naturalização? Sem levar em conta as medidas de precaução usuais (contra a criminalidade, por exemplo), em nosso contexto é especialmente relevante a pergunta sobre em que medida um Estado de direito democrático, em defesa da integridade da forma de vida de seus cidadãos, pode exigir do imigrante que ele se assimile. No plano abstrativo das considerações filosóficas podemos distinguir dois níveis de assimilação:

(a) o da concordância com os princípios da constituição no inte­rior do espaço de atuação interpretativo que se determina em dado momento por meio da autocompreensão ético-política dos cidadãos e pela cultura política do país; e isso significa, portanto, o assimilar-se

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a determinada maneira pela qual se institucionaliza a autonomia dos cidadãos na sociedade que acolhe, bem como à maneira como se pra­tica nessa mesma sociedade o "uso público da razão" (Rawls);

(b) o nível seguinte de uma disposição à aculturação, ou seja, não apenas a adequar-se externamente, mas a compenetrar-se amplamente do modo de viver, das práticas e costumes da cultura local; isso signi­fica uma assimilação que tem efeitos sobre o plano da integração éti­co-cultural e que, com isso, toca a identidade coletiva da cultura de origem dos imigrantes muito mais profundamente do que a socializa­ção política exigida em (a).

Os resultados da política de imigração praticada até bem recen­temente nos Estados Unidos permitem uma interpretação liberal que elucida a expectativa de assimilação limitada à socialização política27•

Um exemplo da segunda alternativa é a fase da política prussiana em relação à Polônia, sob Bismarck, que mesmo oscilante esteve orienta­da para a germanização daquele país28•

O Estado de direito democrático que leva a sério o desacoplamen­to dos dois planos de integração só pode exigir dos imigrantes a socia­lização política no sentido expresso em (a)- e, de maneira pragmá­tica, esperar o mesmo da segunda geração. Dessa maneira, ele pode garantir a identidade da república, a qual deve permanecer igualmente intocada pela imigração, haja vista estar firmada sobre os prindpios constitucionais ancorados na cultura política, e não nas orientações éti­cas de base próprias a uma forma cultural predominante no país. De acordo com isso, só é preciso esperar dos imigrantes que eles se dis­ponham a arraigar-se na cultura política de sua nova pátria, sem que por isso tenham de renunciar à forma de vida cultural de sua origem. O direito à autodeterminação democrática certamente contém em si o direito dos cidadãos a insistir no caráter inclusivo de sua própria cultura de origem; isso protege a sociedade contra o perigo da seg­mentação - contra a exclusão de subculturas estrangeiras ou a dis­solução separatista em diversas subculturas sem quaisquer vínculos. A integração política, como vimos, de fato não se estende a culturas

27. Cf. M. Walzer, "What does it mean to be an American", Social Research, vol. 57, outono de 1999, p. 591-614, em que se constata que a concepção com unitarista não faz jus à complexa composição de uma sociedade multicultural (p. 613).

28. Cf. R. Brubaker, Citizenship and Nationhood in France and Germany, Cam­bridge, Mass., 1992, pp. 128ss.

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imigratórias fundamentalistas. Mas ela não justifica a assimilação coagida, em prol da auto-afirmação de uma forma de vida cultural predominante no país29•

Dessa alternativa estatal-jurídica decorre que a identidade cole­tiva, firmada de maneira legítima na seqüência das ondas i migratórias, a longo prazo jamais fica imune a mudanças. Pelo fato de não se po­der coagir os imigrantes a abandonar suas próprias tradições, tam­bém se amplia, de acordo com a nova forma de vida que se estabe­lece, o horizonte no qual os cidadãos interpretam os princípios cons­titucionais que têm em comum. Sucede a isso uma interferência do mecanismo segundo o qual se altera o contexto a que se refere a auto­compreensão ético-política da nação como um todo, tão logo se mo­difique a composição cultural do conjunto de cidadãos ati vos: "People live in communities with bonds and bounds, but these may be of different kinds. ln a liberal society, the bonds and bounds should be compatible with liberal principies. Open immigration would change the character of the community, but it would not leave the community without any character30".

Por ora, é o que basta dizer sobre as condições que um Estado democrático de direito pode impor para a aceitação de imigrantes. Quem, no entanto, realmente tem direito à imigração?

Há boas razões morais para uma reivindicação de direito indivi­dual a asilo político (no sentido do art. 16 da Lei Fundamental, que deve ser interpretado com remissão à defesa da dignidade humana garantida no art. I 0 e ao direito à garantia de defesa legal, firmada no art. 19). Sobre isso não é necessário manifestar-me. Importante, sim, é a definição de refugiado. Segundo a Convenção sobre Refu­giados, de Genebra, tem direito a asilo todo aquele que foge de paí­ses "em que sua vida ou sua liberdade pudesse estar ameaçada por causa de sua raça, religião, nacionalidade, por pertencer a determi­nado grupo social ou por causa de sua convicção política". À luz das experiências mais recentes, porém, essa definição precisa ser ampliada de modo a incluir a defesa de mulheres contra estupros em massa. Além disso, não apresenta problemas a reivindicação por parte de

29. Cf. Cohn-Bendit; Schmid, op. cit., cap. 8. 30. J. H. Carens, ''Aliensand Citizens", ReviewofPolitics, v. 49, 1987, p. 271; quan­

to a isso, cf. J. Habermas, "Staatsbürgerschaft und nationale Identitãt". ln: Faktizitüt und Geltung, ed. cit., pp. 632-660.

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refugiados de regiões em guerra civil, no sentido de obter garantia de asilo temporário. Mas desde a descoberta da América, e tanto mais desde o crescimento explosivo da imigração em todo o mundo, no século XIX, a grande massa de pessoas dispostas a imigrar tem se cons­tituído de trabalhadores imigrantes e de fugitivos da pobreza, que ten­cionam escapar de uma existência miserável em sua terra natal. Hoje se dá o mesmo. É contra essa imigração das regiões de pobreza do Leste e do Sul que o chauvinismo europeu de bem-estar social trata de se precaver.

Sob o ponto de vista moral, não podemos abordar esse problema a partir da perspectiva dos habitantes de sociedades abastadas e pací­ficas; também é preciso assumir a perspectiva dos que, em continen­tes estrangeiros, buscam sua salvação, isto é, uma existência com dig­nidade humana- e não proteção contra perseguição política. Sobre­tudo na situação de hoje, quando o anseio por imigração supera enor­memente a disposição ao acolhimento, coloca-se a pergunta se, para além da postulação moral de integração, subsiste também um direito legítimo à integração.

Em favor da postulação moral, é possível apresentar boas razões. Normalmente, as pessoas não abandonam a terra natal a não ser em meio a grandes dificuldades; para documentar sua necessidade de au­xílio via de regra basta o próprio fato de terem fugido. Uma obrigação moral de proporcionar auxílio resulta especialmente das crescentes interdependências em uma sociedade mundial que cresceu tanto, com o mercado capitalista mundial e a comunicação eletrônica de massa, que as Nações Unidas acabaram assumindo algo próximo a uma res­ponsabilidade política total pelo asseguramento da vida neste planeta, como bem demonstrou o exemplo da Somália, nestes últimos tem­pos. Obrigações específicas para o Primeiro Mundo, além disso, resul­tam da história da colonização e do desenraizamento de culturas re­gionais com o evento da modernização capitalista. Além disso, pode­se mencionar que os europeus no período entre 1800 e 1960 partici­param de forma desproporcional (com cerca de 80%) dos movimen­tos migratórios intercontinentais. E tiraram proveito disso: em compa­ração com outros migrantes e em relação aos compatriotas não emi­grados, melhoraram suas condições de vida. Ao mesmo tempo, esse êxodo ocorrido durante o século XIX e início do século XX foi tão decisivo para a melhora da situação econômica nos países de origem

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dos imigrantes, quanto a imigração em direção inversa, que ocorreu rumo à Europa no tempo da reconstrução, após a Segunda Guerra Mundial31 • A Europa, tanto de uma forma quanto de outra, foi bene­ficiária desses fluxos migratórios.

Essas e outras razões semelhantes certamente ainda não bastam para justificar a garantia de um direito individual à imigração que seja legítimo e que possa ser cobrado por ação judicial; contudo, elas provavelmente justificam o comprometimento moral com uma polí­tica liberal de imigração que abra a própria sociedade para imigran­tes e oriente o fluxo imigratório na medida em que existam capa­cidades disponíveis. O slogan defensivo "O barco está lotado", presen­te na discussão sobre políticas de asilo na Alemanha no início dos anos 1990, permite entrever a falta de disposição a assumir também a perspectiva do outro lado- por exemplo da" boat people" que procura­va fugir do terror na Indochina em canoas que ameaçavam soçobrar. Certamente ainda não foram atingidos os limites da onerosidade nas sociedades européias, que encolhem do ponto de vista demográfico e que hoje como ontem dependem da imigração, por razões económicas. Da fundamentação moral de uma política de imigração liberal resulta,

31. Cf. P. C. Emmer, "Intercontinental Migration", in European Review, vol. 1, jan. 1993, pp. 67-74: ''After 1800 the dramatic increase in the economic growth of Western Europe could only be maintained as an 'escape hatch'. The escape of 61 million Europeans after 1800 allowed the European economies to create such a mix of the factors of production as to allow for record economic growth and to avoid a situation in which economic growth was absorbed by an increase in population. After the Second World War, Europeans also benefitted from intercontinental migration since the colo­nial empires forced many colonial subjects to migrate to the metropolis. ln this parti­cular period there was no danger of overpopulation ... Many of the colonial migrants coming to Europe had been well trained and they arrived at exactly the time when skilled labour was ata premium in rebuilding Europe's economy" ["A partir de 1800, o dramático incremento do crescimento económico da Europa ocidental só poderia ser mantido como 'aquecimento evasivo: A evasão de 61 milhões de europeus depois de 1800 permitiu às economias européias criar uma mescla dos fatores de produção que permitisse um recorde de crescimento económico e evitar a situação que fizesse o cres­cimento económico ser absorvido pelo aumento populacional. Depois da Segunda Guerra Mundial, os europeus também se beneficiaram da migração intercontinental, visto que os impérios coloniais forçaram muitos súditos coloniais a migrar para as metrópoles. Nesse período particular, não havia risco de superpopulação ... A maioria dos migrantes coloniais que foram para a Europa foram bem treinados e chegaram no exato momento em que o trabalho especializado era mais necessário na reconstrução da economia européia"] (pp. 72s.).

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além disso, a obrigação de não limitar os contingentes de imigração às carências econâmicas do país que acolhe os imigrantes, mas sim de limitá-los segundo critérios aceitáveis a partir da visão de todos os envolvidos.

A política para a concessão de asilo na Alemanha unificada

Tendo essas proposições fundamentais como ponto de partida, não se pode justificar normativamente o acordo sobre as políticas de asilo na Alemanha em vigor desde a primavera de 1993, selado entre o governo cristão-democrata e o Partido Social-Democrata (PSD). Sem poder dedicar-me aqui aos detalhes, menciono os três principais erros aí presentes e as premissas que lhes subjazem:

(a) A regulamentação prevista restringe-se ao asilo político, isto é, a medidas contra o "abuso" do direito a asilo. Com isso ignora-se que a República Federal da Alemanha precisa de uma política de imi­gração que também abra outras opções jurídicas para os imigrantes. A definição errânea do problema da imigração, tal como ocorreu, acarreta muitas conseqüências. Quem trata separadamente as ques­tões do asilo político e as da imigração decorrente da pobreza trata na verdade de declarar implicitamente sua intenção de se desven­cilhar da obrigação moral da Europa ante os fugitivos das regiões do mundo acometidas pela miséria. Em vez disso, aceita estrategica­mente e de maneira tácita o ânus de uma imigração ilegal, que se pos­sa a todo momento instrumentalizar para fins políticos como um "mau uso do asilo".

(b) A emenda parlamentar da Lei Fundamental, por meio de um artigo 16a, antevista no acordo entre os partidos a que se chegou em 15 de janeiro de 1993, destrói o "teor essencial" do direito individual legítimo ao asilo político: segundo ela os fugitivos procedentes de um assim chamado "terceiro Estado seguro" podem ser deportados sem interposição de recurso. Com isso se desvia o ânus da imigração à Europa Oriental, aos países vizinhos da Alemanha, como a Polânia, a República Tcheca, a Eslováquia, a Hungria e a Áustria; a países, por­tanto, que na atual situação praticamente não estão preparados para

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um tratamento juridicamente irreparável desse problema. Igualmen­te problemática, além disso, é a restrição da garantia de defesa jurídica para fugitivos de países que, a partir do ponto de vista da Alemanha, passam a ser definidos como "isentos de perseguição"32•

(c) Em vez de tornar mais simples o processo de aquisição da nacionalidade alemã para os estrangeiros já assentados na Alemanha, especialmente para aqueles "trabalhadores-hóspedes" recrutados em outros tempos, o acordo sobre o asilo recusa mudanças no direito à naturalização. Aos estrangeiros já estabelecidos no país recusa-se a concessão de dupla cidadania, embora houvesse razões muito com­preensíveis para que ela lhes coubesse de maneira preferencial; nem sequer seus filhos nascidos na Alemanha adquirem os direitos decida­dania sem restrições. E até os estrangeiros dispostos a renunciar à ci­dadania de que já dispõem precisam ser residentes na Alemanha há mais de quinze anos para se naturalizar. Por outro lado, os assim cha­mados "alemães por nacionalidade", sobretudo poloneses e russos que podem comprovar uma ascendência alemã, dispõem de direito cons­titucionalmente expresso a se naturalizar. Com base nesse funda­mento, em 1992 foram acolhidos na Alemanha 220.000 novos cidadãos de origem alemã provenientes do Leste Europeu, que se somaram a 500.000 outros solicitantes de asilo (entre os quais 130.000 provenientes das regiões de conflito civil da ex-Iugoslávia).

( d) A política alemã para concessão de asilo baseia-se sobre apre­missa sempre reiterada de que a República Federal da Alemanha não é um país de imigração. Isso contraria não somente o que se vê nas ruas e metrôs em nossas grandes cidades - Frankfurt, por exemplo, conta hoje com 26% de estrangeiros em sua população-, mas tam­bém os fatos históricos mais remotos. É bem verdade que desde o início do século XIX emigraram, só para os Estados Unidos, cerca de

32. Em 14 de maio de 1996, com uma fundamentação escandalosa, do ponto de vista do direito constitucional, o Segundo Senado da Corte Constitucional Federal declarou conformes à Constituição tanto a "regulamentação de terceiros Estados", pre­vista na nova versão do direito fundamental ao asilo, quanto a regulamentação sobre a definição de "Estados de origem seguros". Com isso, um direito fundamental é so­brepujado por imperativos funcionais que exigem regime de urgéncia. Heribert Prantl (no Süddeutschen Zeitung de 15-16 de maio de 1996) afirma o seguinte: "O regime de urgência é mais importante para a Corte Constitucional do que o direito ao asilo, mais importante que a dignidade humana, mais importante que o princípio do procedi­mento justo e honesto."

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8 milhões de alemães. Mas ao longo do século passado também ocor­reram grandes movimentos de imigração. Até a Primeira Guerra Mun­dial haviam ingressado 1.200.000 imigrantes no país, para trabalhar; a Segunda Guerra Mundial deixou como legado 12.000.000 de "displaced persons"- sobretudo pessoas sob o regime de trabalhos forçados, que haviam sido deportadas da Polónia e da União Soviética. Na trilha da política nacional-socialista para o trabalho estrangeiro, e à revelia das altas taxas de desemprego no próprio país, teve início em 1955 o re­crutamento sistemático de trabalhadores do sexo masculino, solteiros e de baixa remuneração, provenientes de países estrangeiros do Sul e Sudeste da Europa, o que perdurou até 1973. Hoje, as famílias e des­cendentes dos "trabalhadores-hóspedes" que não retornaram a seus países de origem vivem a situação paradoxal de serem imigrantes sem perspectivas claras de imigração, de serem alemães com passaporte estrangeiro33• Eles perfazem uma massa de 8,2% de estrangeiros que, segundo dados de 1990, viviam na Alemanha. E o que torna ainda mais difícil compreender essa resistência à plena integração dos estrangei­ros, sem os quais não teria sido possível o crescimento económico que houve na Alemanha (comparável apenas ao do Japão), é o fato de que a antiga República Federal da Alemanha, anterior à unificação, havia integrado até aquele momento cerca de 15 milhões de fugitivos, emi­grados e estrangeiros alemães ou descendentes de alemães, isto é, tam­bém "cidadãos novos": "If a foreign population of about 4.8 million is added, nearly one third of the West-German population has resulted from immigration movements since World War 11"34•

Se à revelia de todas essas evidências é possível sustentar politica­mente junto à opinião pública a afirmação de que "não somos um país de imigração", isso trai uma mentalidade arraigada bem mais fundo - e também a necessidade de uma dolorosa mudança da autocom­preensão nacional dos alemães. Não é por acaso que as decisões sobre naturalização sejam tomadas segundo o princípio da ascendência e não, como em outros países, segundo o princípio territorial. Para en­tender as deficiências descritas nos pontos (a) até (d) quanto ao trata­mento do problema da imigração na Alemanha, é preciso ter como

33. Cf. K. J. Bade, "Jmmigration and Integration in Germany since 1945", Euro­pean Review, v. I, 1993, pp. 75-79.

34. Idem, ibidem, p. 77.

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pano de fundo a autocompreensão dos alemães enquanto nação de concidadãos centrada na cultura e na língua. No caso da França, é fran­cês quem nasce na França e tem os direitos de um cidadão francês no âmbito do Estado; no caso da Alemanha, ainda se faziam distinções refinadas entre "alemães", ou seja, cidadãos de ascendência alemã no âmbito do Estado, "alemães do Império", ou seja, cidadãos de outra ascendência, no âmbito do Estado, e "alemães por nacionalidade"­os descendentes de alemães no exterior.

Ao passo que a consciência nacional da França pôde se desenvol­ver no âmbito de um Estado territorial, na Alemanha ela se vinculou primeiramente à idéia de uma "nação cultural", de inspiração român­tica e cultivada pela burguesia letrada. Essa idéia representa uma uni­dade imaginária que se viu obrigada, na época, a buscar sustentação em traços comuns como a língua, a tradição e a ascendência, a fim de poder ultrapassar a realidade política vigente, ou seja, a divisão em dezenas de pequenos Estados. Ainda mais significativo é que a cons­ciência nacional francesa pôde se desenvolver pari passu com a impo­sição de direitos democráticos para os cidadãos e em luta contra a so­berania do próprio rei, ao passo que o nacionalismo alemão surgiu de maneira independente da luta por direitos democráticos de cidadania e muito tempo antes da imposição de um Estado nacional alemão "pe­queno" (ou seja, sem participação austríaca), vinda de cima e motiva­da pela luta contra Napoleão, ou seja, contra um inimigo externo. Por ter nascido de uma "luta por libertação" como essa, a consciência na­cional na Alemanha pôde associar-se ao pathos de um caráter único e peculiar da cultura e ascendência étnica alemã - um particularismo que marcou de forma duradoura a autocompreensão desse povo.

Após 1945, depois do choque causado pelo extermínio em massa do nacional-socialismo e a ruptura com a civilização que isso repre­sentara, a República Federal da Alemanha havia se distanciado dessa "consciência peculiar': A isso se somaram a perda da soberania e a posição periférica em um mundo bipolarizado. A dissolução da União Soviética e a reunificação alteraram profundamente essa constelação. Por isso, as reações ao radicalismo de direita, novamente reaceso, e nesse contexto também o debate hipócrita sobre a questão do asilo, acabam por suscitar a seguinte pergunta: a República Federal da Ale­manha ampliada vai dar prosseguimento ao caminho da civilização política ou se renova a velha "consciência peculiar" sob uma forma

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nova? Essa questão é precária porque um processo de unificação esta­tal apropriador e vindo de cima, imposto com diversos instrumentos administrativos, certamente traçou um itinerário cheio de percalços. Ainda está por acontecer, até hoje, o aclaramento urgente e necessário da autocompreensão ético-política dos cidadãos de dois Estados com destinos históricos tão divergentes. O caminho do ingresso de novos estados na Federação (subdivisões da antiga República Democrática da Alemanha, RDA)- duvidoso do ponto de vista político-constitu­cional- impediu até hoje que se realizasse um debate constitucional; e o debate ocasional que veio substituí-lo, sobre a sede da capital do país, Bonn ou Berlim, foi conduzido sem grande clareza de posições. Nesse ínterim, os cidadãos da ex-ROA, humilhados, em muitos senti­dos, e privados no campo político de seus porta-vozes e de uma opi­nião pública própria, têm agora de lutar com outros problemas: em vez de participações claramente articuladas no debate, o que vem à tona são ressentimentos cozidos a fogo brando.

Todo recalque produz seus sintomas. Um desafio após o outro -da Guerra do Golfo até a participação das Forças Militares alemãs fora da OTAN, passando por Maastricht, a guerra civil na Iugoslávia, a questão do asilo e o radicalismo de direita-, tudo isso provoca perplexidade na opinião pública e em um governo inerte. A constela­ção das potências, hoje modificada, e uma situação diversa na polí­tica interna certamente exigem respostas novas; a questão, apenas, é saber sob que tipo de consciência a República Federal da Alemanha cumprirá essa adaptação necessária diante de um quadro em que se revelam como modelo de ação as decisões ad hoc e as mudanças sub­cutâneas de humor.

Historiadores que publicaram livros escritos às pressas, intitu­lados, por exemplo, Por um retorno à história ou Medo do poder, ofere­cem-nos uma "despedida da velha República Federal': à qual já deram as costas; isso desmascara a visão da história bem-sucedida da demo­cracia alemã do Pós-guerra como um "caminho peculiar" que se tri­lhou. Na velha República Federal teria se corporificado a anormali­dade imposta a uma nação vencida e dividida; agora, após a recon­quista de sua grandeza e soberania nacionais, ela precisaria ser condu­zida para longe de seu utopismo já esquecido de poder e reconvocada ao caminho prefigurado e demarcado por Bismarck, de uma potência autoconfiante e preponderante no centro da Europa. A comemoração

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em torno da cesura de 1989 esconde atrás de si o anseio por normali­zação (reiteradamente rechaçado) dos que não quiseram admitir a cesura anterior, de 194535. Essas pessoas se defendem contra uma al­ternativa que- embora não leve necessariamente, e por um motivo qualquer, a outras opções em curto prazo- faz surgir, isso sim, uma outra perspectiva para a questão. Segundo essa leitura, a orientação ocidental da antiga República Federal da Alemanha não corresponde a uma decisão de política externa, prudente e episódica, e de forma alguma a uma decisão estritamente política, mas sim a uma ruptura intelectual bastante profunda com as tradições especificamente ale­mãs que marcaram o Reino guilhermino e que fomentaram a deca­dência da República de Weimar. Essa orientação do país traçou o iti­nerário de uma mudança de mentalidade que- após a revolta estu­dantil de 1968, sob as excelentes condições de uma sociedade de bem­estar social existentes na época- alcançou agora camadas mais ex­tensas da população e possibilitou pela primeira vez um enraizamento da democracia e do Estado de direito em solo alemão. Hoje se trata de adaptar o papel político da República Federal da Alemanha a novas realidades, sem interromper sob o peso dos problemas económicos e sociais da reunificação o processo de civilização política que vinha avançando até 1989 e sem sacrificar as conquistas normativas de uma autocompreensão nacional fundamentada na noção da cidadania no âmbito de um Estado, e não mais em velhas noções étnicas.

35. Cf. o capítulo que intitula também o volume em J. Habermas, Die Normalitiit einer Berliner Republik, Frankfurt am Main, 1995.

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9 Três modelos normativos de democracia*

Com certo exagero no que diz respeito à tipificação ideal, irei referir-me na seqüência às compreensões "liberal" e "re­publicanà' de política- expressões que hoje marcam frentes opostas no debate d~sencadeado nos Estados Unidos pelos assim chamados corllunitaristas. Referindo-me a F. Michel­man, descreverei em primeiro lugar os dois modelos de demo­cracia (polêmicos, quando contrapostos), sob o ponto de vista dos conceitos de "cidadão do Estado" e "direito': e segundo a natureza do processo político de formação da vontade. Na segunda parte, com base na crítica ao peso ético excessivo que se impõe ao modelo republicano, desenvolverei então uma terceira concepção, procedimentalista, que gostaria de denominar "política deliberativa".

A diferença decisiva reside na compreensão do papel que cabe ao processo democrático. Na concepção "liberal': esse processo cumpre a tarefa de programar o Estado para

* Tradução: Paulo Astor Soethe.

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Bolaxa
Sublinhado
Capítulo 9 - Três Modelos Normativos de Democracia
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que se volte ao interesse da sociedade: imagina-se o Estado como apa­rato da administração pública, e a sociedade como sistema de circula­ção de pessoas em particular e do trabalho social dessas pessoas, es­truturada segundo leis de mercado. A política, sob essa perspectiva, e no sentido de formação política da vontade dos cidadãos, tem a fun­ção de congregar e impor interesses sociais em particular mediante um aparato estatal já especializado no uso administrativo do poder político para fins coletivos.

Segundo a concepção "republicana", a política não se confunde com essa função mediadora; mais do que isso, ela é constitutiva do processo de coletivização social como um todo. Concebe-se a polí­tica como forma de reflexão sobre um contexto de vida ético. Ela cons­titui o medi um em que os integrantes de comunidades solidárias sur­gidas de forma natural se conscientizam de sua interdependência mútua e, como cidadãos, dão forma e prosseguimento às relações preexistentes de reconhecimento mútuo, transformando-as de forma voluntária e consciente em uma associação de jurisconsortes livres e iguais. Com isso, a arquitetônica liberal do Estado e da sociedade so­fre uma mudança importante. Ao lado da instância hierárquica regu­ladora do poder soberano estatal e da instância reguladora descen­tralizada do mercado, ou seja, ao lado do poder administrativo e dos interesses próprios, surge também a solidariedade como terceira fonte de integração social.

Esse estabelecimento da vontade política horizontal, voltada ao entendimento mútuo ou ao consenso almejado por via comunicativa, deve gozar até mesmo de primazia, se considerado do ponto de vista tanto genético quanto normativo. Para a práxis de autodeterminação por parte dos cidadãos no âmbito do Estado, aceita -se uma base social autónoma que independa da administração pública e da mobilidade socioeconômica privada, e que impeça a comunicação política de ser tragada pelo Estado e assimilada pela estrutura de mercado. Na con­cepção republicana, confere-se significado estratégico tanto à opinião pública de caráter político quanto à sociedade civil, como seu susten­táculo. Ambos devem conferir força integrativa e autonomia à práxis de entendimento mútuo entre os cidadãos do Estado1• Ao desacopla-

l. Cf. H. Arendt, Oberdie Revolution, München, 1965 [ed. br.: Da revolução, São Paulo, Ática, 1995]; idem, Macht und Gewalt, München, 1970.

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mento da comunicação política em relação à sociedade económica corresponde uma retroalimentação do poder administrativo a partir do poder comunicativo decorrente do processo de formação da von­tade e opinião políticas.

Dos dois enfoques concorrentes resultam diversas conseqüências. (a) Em primeiro lugar diferenciam-se as concepções de cidadão do

Estado. Segundo a concepção liberal, determina-se o status dos cida­dãos conforme a medida dos direitos individuais de que eles dispõem em face do Estado e dos demais cidadãos. Como portadores de direi­tos subjetivos, os cidadãos poderão contar com a defesa do Estado desde que defendam os próprios interesses nos limites impostos pelas leis - e isso se refere igualmente à defesa contra intervenções estatais que excedam ressalva interventiva prevista em lei. Direitos subjetivos são direitos negativos que garantem um espaço de ação alternativo em cujos limites as pessoas do direito se vêem livres de coações exter­nas. Direitos políticos têm a mesma estrutura: eles oferecem aos cida­dãos a possibilidade de conferir validação a seus interesses particu­lares, de maneira que esses possam ser agregados a outros interesses privados (por meio de votações, formação de corporações parlamen­tares e composições de governos) e afinal transformados em uma von­tade política que exerça influência sobre a administração. Dessa ma­neira, os cidadãos, como membros do Estado, podem controlar se o poder estatal está sendo exercido em favor do interesse dos cidadãos na própria sociedade2•

2. Cf. F. I. Michelman, "Politicai Truth and the Rute of Law", Tel Aviv Univ. Stu­dies in Law, n. 8, 1988, p. 283: "The politicai society envisioned by bumper-sticker republicans is the society of priva te right bearers, an association whose first principie is the protection of lives,liberties and estates, of its individual members. ln that society, the state is justified by the protection it gives to those prepolitical interests; the purpose of the constitution is to ensure that the state apparatus, the government, provides such protection for the people at large rather than serves the special interests of the governors or their patrons; the function of citizenship is to operate the constitution and thereby motivate the governors to act according to that protective purpose; and the value to you of your politicai franchise - your right to vote and speak, to have your views heard and counted- is the handle it gives you on influencing the system so that it will adequately heed and protect your particular, pre-political rights and other interests". ["A sociedade política que os adesivos republicanos esboçam é a sociedade dos porta­dores de direitos privados, uma associação cujo primeiro princípio é a proteção das vidas, liberdades e propriedades de seus membros individuais. Nessa sociedade, o es­tado é justificado pela proteção que dá aos interesses pré-políticos; o propósito da

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De acordo com a concepção republicana, o status dos cidadãos não é determinado segundo o modelo das liberdades negativas, que eles podem reivindicar como pessoas em particular. Os direitos decida­dania, direitos de participação e comunicação política são, em pri­meira linha, direitos positivos. Eles não garantem liberdade em rela­ção à coação externa, mas sim a participação em uma práxis comum, por meio de cujo exercício os cidadãos só então se tornam o que tencio­nam ser - sujeitos politicamente responsáveis de uma comunidade de pessoas livres e iguais3• Em tal medida, o processo político serve apenas ao controle da ação estatal por meio de cidadãos que, ao exerce­rem seus direitos e as liberdades que antecedem a própria política, tratam de adquirir uma autonomia já preexistente. O processo polí­tico tampouco desempenha uma função mediadora entre Estado e sociedade, já que o poder estatal democrático não é em hipótese algu­ma uma força originária. A força origina-se, isso sim, do poder gerado comunicativamente em meio à práxis de autodeterminação dos cida­dãos do Estado e legitima-se pelo fato de defender essa mesma práxis através da institucionalização da liberdade pública 4• A justificação exis-

constituição é assegurar que o aparato estatal, o governo, proveja proteção para o povo, sem servir a interesses privados dos governantes ou de seus patrões; a função da cida­dania é praticar a constituição e, portanto, motivar os governantes a agirem segundo esse objetivo de proteção; e o valor do direito político de cada um - direito a voto e expressão, direito de ter a própria opinião ouvida e levada em conta- é o suporte que ele dá ao indivíduo, para que ele influencie o sistema a dar atenção e proteção aos interesses pré-políticos particulares e a outros interesses"].

3. Sobre a liberdade positiva versus a negativa, cf. Ch. Taylor, "Was ist menschliches Handeln?". ln: Negative Freiheit?, Frankfurt am Main, 1988, pp. 9ss.

4. Cf. F. I. Michelman, 1988, p. 284: "ln civic constitutional vision, politicai society is primarly the society not of right-bearers but of citizens, an association whose first principie is the creation and provision of a public realm within which a people, together, argue and reason about the right terms of social coexistence, terms that they will set together and which they understand as their common good ... Hence the state is justified by its purpose of establishing and ordering the public sphere within which persons can achieve freedom in the sense of self-government by the exercise of reason in public dialogue". ("Na visão cívica constitucional, a sociedade política é primariamente aso­ciedade não dos portadores de direitos, mas dos cidadãos, uma associação cujo princí­pio primeiro é a criação e provisão de um âmbito público dentro do qual uma popula­ção, em conjunto, discuta e raciocine sobre os termos do direito à coexistência social, termos que serão definidos em conjunto e entendidos como bem comum ... A partir disso o estado é justificado por seu propósito de estabelecer e ordenar a esfera pública dentro da qual as pessoas podem alcançar a liberdade no sentido de autogoverno pelo exercício da razão no diálogo público"].

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tendal do Estado não reside primeiramente na defesa dos mesmos direitos subjetivos, mas sim na garantia de um processo inclusivo de formação da opinião e da vontade, em que cidadãos livres e iguais chegam ao acordo mútuo quanto a quais devem ser os objetivos e normas que correspondam ao interesse comum. Com isso, exige-se do cidadão republicano mais que a orientação segundo seus respecti­vos interesses próprios.

(b) Na polêmica contra o conceito clássico da pessoa do direito como portadora de direitos subjetivos revela -se a controvérsia em tor­no do conceito de direito em si mesmo. Segundo a concepção liberal, o sentido de uma ordem jurídica consiste em que ela possa constatar em cada caso individual quais são os direitos cabíveis a que indiví­duos; em uma concepção republicana esses direitos subjetivos se de­vem a uma ordem jurídica objetiva, que possibilite e garanta a integri­dade de um convívio eqüitativo, autônomo e fundamentado sobre o respeito mútuo. Em um dos casos a ordem jurídica constrói-se a par­tir de direitos subjetivos, no outro caso concede-se um primado ao teor jurídico objetivo desses mesmos direitos.

Esses conceitos dicotômicos certamente não atingem o teor in­tersubjetivo dos direitos, que exigem a consideração recíproca de di­reitos e deveres, em proporções simétricas de reconhecimento. Na ver­dade, o projeto republicano vai ao encontro de um conceito de direito que atribui pesos iguais de um lado à integridade do indivíduo e suas liberdades subjetivas, e de outro lado à integridade da comunidade em que os indivíduos podem se reconhecer uns aos outros como seus membros e enquanto indivíduos. Esse projeto vincula a legitimidade das leis ao procedimento democrático de sua gênese, e preserva assim uma coesão interna entre a práxis de autodeterminação do povo e do domínio impessoal das leis: "For republicans rights ultimatly are nothing but determinations of the prevailing politicai will, while for liberais some rights are always grounded in a 'higher law' of trans­political reason or revelation ... ln a republican view, a community's objective, the common good substancially consists in the success of its politicai endeaver to define, establish, effectuate and sustain the set of rights (less tendentiously laws) best suited to the conditions and mo­res of that community, whereas in a contrasting liberal view the higher law rights provide the transcendental structures and the curbs on power required so that pluralistic pursuit of diverse and conflicting interests

TR~S MODELOS NORMATNOS DE DEMOCRACIA 273

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may proceed as satisfactorily as possible"5• ["Para os republicanos os direitos nada são, em última instância, senão determinações da vonta­de política prevalecente; para os liberais, por sua vez, alguns direitos estão sempre embasados em um 'direito supremo' da razão ou revela­ção transpolíticas ... Em uma visão republicana, um objetivo da comu­nidade, o bem comum, consiste substancialmente no sucesso de seu esforço político por definir, estabelecer, tornar efetivo e manter vigente o conjunto de direitos (ou leis, para ser menos tendencioso) mais ade­quados às condições e costumes dessa comunidade; por outro lado, em uma visão liberal contrastante, a lei jurídica maior proporciona as es­truturas transcendentais e as limitações de poder necessárias para que o esforço pluralista por cumprir interesses diversos e contlitivos possa continuar ocorrendo de forma tão satisfatória quanto possível".]

O direito ao voto, interpretado como liberdade positiva, torna-se paradigma dos direitos em geral, não apenas pelo fato de ser constitu­tivo para a autodeterminação política, mas porque nele fica claro como a inclusão em uma comunidade de cidadãos dotados de direitos iguais está associada ao direito individual a contribuir individualmente e de forma autónoma e a assumir posicionamentos próprios: "The claim is, that we ali take an interest in each other's enfranchisement because (I) our choice lies betwenn hanging together and hanging separately; (II) hanging together depends on reciprocai assurance to ali ofhaving one's vital interests heeded by the others; and (III) in the deeply pluralized conditions of contemporary American society, such assurances are attainable .... only by maintaining at least the semblance of a politics in which everyone is conceded a voice"6• Essa estrutura que se pode iden­tificar com base na interpretação dos direitos à comunicação e à parti­cipação política distribui-se entre todos os direitos ao longo do proces­so legislativo que os constitui. Também a atribuição de poder no âmbi­to do direito privado para que se persigam fins privados e livremente escolhidos obriga concomitantemente a que se respeitem os limites da ação estratégica acordados segundo o interesse de todos.

(c) As diferentes conceituações do papel do cidadão e do direito são expressão de um dissenso de raízes mais profundas sobre a natu-

5. F. I. Michelman, "Conceptions of Democracy in American Constitutional Argument: Voting Rights': Florida Law Review, n. 41, 1989, pp. 446s.

6. F. I. Michelman, ibidem, p. 484.

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reza do processo político. Segundo a concepção liberal, a política é es­sencialmente uma luta por posições que permitam dispor do poder administrativo. O processo de formação da vontade e da opinião polí­tica, tanto em meio à opinião pública como no parlamento, é deter­minado pela concorrência entre agentes coletivos agindo estrategica­mente e pela manutenção ou conquista de posições de poder. O êxito nesse processo é medido segundo a concordância dos cidadãos em relação a pessoas e programas, o que se quantifica segundo números de votos. Ao votar, os eleitores expressam suas preferências. As deci­sões que tomam nas eleições têm a mesma estrutura que os atos eletivos de participantes do mercado voltados à conquista de êxito. São os elei­tores que licenciam o acesso a posições de poder pelas quais os parti­dos políticos lutam, em uma mesma atitude que se orienta pela busca de sucesso. Um mesmo modelo de ação estratégica corresponde igual­mente ao input dos votos e ao output do poder.

Segundo a concepção republicana, a formação de opinião e von­tade política em meio à opinião pública e no parlamento não obedece às estruturas de processos de mercado, mas às renitentes estruturas de uma comunicação pública orientada ao entendimento mútuo. Para a política no sentido de uma práxis de autodeterminação por parte de cidadãos do Estado, o paradigma não é o mercado, mas sim a inter­locução. Segundo essa visão, há uma diferença estrutural entre o po­der comunicativo, que advém da comunicação política na forma de opiniões majoritárias estabelecidas por via discursiva, e o poder admi­nistrativo de que dispõe o aparato estatal. Também os partidos que lutam pelo acesso a posições de poder no Estado têm de se adequar ao estilo e à renitência dos discursos políticos: "Deliberation ... refers to a certain attitude toward social cooperation, namely, that of openness to persuasion by reasons referring to the claims of others as well as one's own. The delibera tive medi um is a good faith exchange of views - including participant's reports of their own understanding of their respective vital interests- ... in which a vote, if any vote is taken, repre­sents a pooling of judgements"7• Portanto, o embate de opiniões ocor­rido na arena política tem força legitimadora não apenas no sentido de uma autorização para que se ocupem posições de poder; mais que isso, o discurso político ocorrido continuamente também apresenta

7. F. I. Michelman, Pornography, 1989, p. 293.

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força vinculativa diante desse tipo de exercício de dominação política. O poder administrativo só pode ser aplicado com base em políticas e no limite das leis que nascem do processo democrático.

Por ora, é o que basta dizer sobre a comparação entre os dois modelos de democracia que hoje dominam a discussão entre os assim chamados comunitaristas e os "liberais'~ sobretudo nos Estados Uni­dos. O modelo republicano tem vantagens e desvantagens. Vejo como vantagem o fato de ele se firmar no sentido radicalmente democrático de uma auto-organização da sociedade pelos cidadãos em acordo mútuo por via comunicativa e não remeter os fins coletivos tão-so­mente a um "deal" [uma negociação] entre interesses particulares opos­tos. Como desvantagem, entendo o fato de ele ser bastante idealista e tornar o processo democrático dependente das virtudes de cidadãos voltados ao bem comum. Pois a política não se constitui apenas - e nem sequer em primeira linha- de questões relativas ao acordo mú­tuo de caráter ético. O erro reside em uma condução estritamente ética dos discursos poUticos.

Por certo, entre os elementos que formam a política são muito importantes os discursos de auto-entendimento mútuo em que os envolvidos procuram obter clareza quanto à maneira como eles mes­mos se entendem enquanto integrantes de uma determinada nação, membros de certa municipalidade ou Estado, habitantes de uma re­gião etc., ou ainda quanto às tradições a que dão continuidade, à ma­neira como se tratam entre si e como tratam minorias ou grupos mar­ginalizados, quanto ao tipo de sociedade em que querem viver. Mas sob as condições do pluralismo cultural e social também é freqüente haver, por detrás de objetivos politicamente relevantes, interesses e orientações de valor que de forma alguma são constitutivos para a identidade da coletividade em geral, ou seja, para o todo de uma for­ma de vida partilhada intersubjetivamente. Esses interesses e orienta­ções de valor que permanecem em conflito no interior de uma mesma coletividade sem qualquer perspectiva de consenso precisam ser com­pensados; para isso não bastam os discursos éticos - mesmo que os resultados dessa compensação (alcançada com recursos não-discur­sivas) sofram a restrição de não poder ferir os valores fundamentais

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de uma cultura partilhados por seus integrantes. A compensação de interesses realiza-se sob a forma do estabelecimento de um acordo entre partidos que se apóiam sobre potencialidades de poder e de san­ções. Negociações desse tipo certamente pressupõem uma disposição à cooperação, ou seja, a vontade de obter resultados mediante a ob­servância de regras do jogo que sejam aceitáveis para todos os parti­dos, mesmo que por razões diversas. Contudo, o estabelecimento do acordo não ocorre sob as formas de um discurso racional, neutrali­zador do poder e capaz de excluir toda ação estratégica. Na verdade, a justiça e honestidade dos acordos se medem pelos pressupostos e pro­cedimentos que precisam, eles mesmos, de uma justificação racional e até mesmo normativa sob o ponto de vista da justiça. Diversamente do que se dá com questões éticas, as questões de justiça não estão rela­cionadas desde a origem a uma coletividade em particular. O direito firmado politicamente, caso se pretenda legítimo, precisa ao menos estar em consonância com princípios morais que reivindiquem vali­dação geral, para além de uma comunidade jurídica concreta.

O conceito de uma política deliberativa só ganha referência em­pírica quando fazemos jus à diversidade das formas comunicativas na qual se constitui uma vontade comum, não apenas por um auto-enten­dimento mútuo de caráter ético, mas também pela busca de equilíbrio entre interesses divergentes e do estabelecimento de acordos, da che­cagem da coerência jurídica, de uma escolha de instrumentos racional e voltada a um fim específico e por meio, enfim, de uma fundamenta­ção moral. Assim, os dois tipos de político que Michelman contrapõe em um exercício de tipificação ideal podem impregnar-se um do ou­tro e complementar-se. A política dialógica e a instrumental, quando as respectivas formas de comunicação estão suficientemente institucio­nalizadas, podem entrecruzar-se no medium das deliberações. Tudo depende, portanto, das condições de comunicação e procedimento que conferem força legitimadora à formação institucionalizada da opinião e da vontade. O terceiro modelo de democracia que me permito suge­rir baseia-se nas condições de comunicação sob as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais, justamente por cumprir-se, em todo seu alcance, de modo deliberativo.

Quando se faz do conceito procedimental da política delibera­tiva o cerne normativamente consistente da teoria sobre a democracia, resultam daí diferenças tanto em relação à concepção republicana do

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Estado como uma comunidade ética, quanto em relação à concep­ção liberal do Estado como defensor de uma sociedade econômica. Ao comparar os três modelos, tomo como ponto de partida a dimen­são da política que nos ocupou até o momento: a formação demo­crática da opinião e da vontade que resulta em eleições gerais e de­cisões parlamentares.

Segundo a concepção liberal, esse processo apenas tem resulta­dos sob a forma de arranjos de interesses. As regras de formação de acordos desse tipo - às quais cabe assegurar a justiça e honestidade dos resultados através de direitos iguais e universais ao voto e da com­posição representativa das corporações parlamentares, suas leis or­gânicas etc.- são fundamentadas a partir de princípios constitucio­nais liberais. Segundo a concepção republicana, por outro lado, a for­mação democrática da vontade cumpre-se sob a forma de um auto­entendimento ético; nesse caso, a deliberação pode se apoiar quanto ao conteúdo em um consenso a que os cidadãos chegam por via cul­tural e que se renova na rememoração ritualizada de um ato republi­cano de fundação. A teoria do discurso acolhe elementos de ambos os lados e os integra no conceito de um procedimento ideal para o aconselhamento e tomada de decisões. Esse procedimento democrático cria uma coesão interna entre negociações, discursos de auto-entendi­mento e discursos sobre a justiça, além de fundamentar a suposição de que sob tais condições se almejam resultados ora racionais, ora justos e honestos. Com isso, a razão prática desloca-se dos direitos univer­sais do homem ou da eticidade concreta de uma determinada comuni­dade e restringe-se a regras discursivas e formas argumentativas que extraem seu teor normativo da base validativa da ação que se orienta ao estabelecimento de um acordo mútuo, isto é, da estrutura da comu­nicação lingüística8•

Com essas descrições estruturais do processo democrático fica traçado o itinerário para se chegar a uma conceituação normativa de Estado e de sociedade. O pressuposto para isso é haver simplesmente uma administração pública do tipo que se desenvolveu no início da Era Moderna em conjunto com o sistema estatal europeu e que se desenvolveu sob um entrecruzamento funcional com o sistema eco-

8. Cf. J. Habermas, "Volkssouverãnitãt ais Verfahren': ln: J. Habermas, 1990, pp. 600-631.

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nómico capitalista. Segundo a concepção republicana a formação po­lítica da opinião e vontade dos cidadãos forma o medium sobre o qual a sociedade se constitui como um todo firmado politicamente. A sociedade centra-se no Estado; pois na práxis de autodetermina­ção política dos cidadãos a coletividade torna-se consciente de si mesma como um todo e age efetivamente sobre si mesma através da vontade coletiva dos cidadãos. Democracia é sinónimo de auto-orga­nização política da sociedade. Resulta daí uma compreensão de política polemicamente direcionada contra o Estado. Dos escritos políticos de Hannah Arendt é possível depreender a rota de colisão pela qual se di­reciona a argumentação republicana: apontada contra o privatismo burguês de uma população despolitizada e contra a busca de legiti­mação por parte de partidos estatizados, a opinião pública de cunho político deve revitalizar-se a ponto de um conjunto de cidadãos rege­nerados, nas diversas formas de uma auto-administração descentra­lizada, ser capaz de se (re)apossar do poder estatal burocraticamente autónomo.

Segundo a concepção liberal, não há como eliminar essa sepa­ração entre o aparato estatal e a sociedade, mas apenas superar a dis­tância entre ambos pela via do processo democrático. As débeis co­notações normativas de uma equilibração regrada do poder e dos interesses certamente carecem de uma complementação estatal e ju­rídica. A formação democrática da vontade de cidadãos interessados em si mesmos, entendida de forma minimalista, constitui não mais que um elemento no interior de uma constituição que tem por tarefa disciplinar o poder estatal por meio de precauções normativas (como direitos fundamentais, divisão em poderes e vinculação da adminis­tração à lei) e ainda impulsioná-lo à devida consideração dos diver­sos interesses e orientações de valores na sociedade. Essa compreen­são de política centrada no Estado pode prescindir da assunção irrea­lista de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir. Ela não se orienta pelo input de uma formação política e racional da von­tade, mas sim pelo output de um balanço positivo ao se avaliar as conquistas da atividade estatal. A rota de colisão dessa argumentação tem seu alvo no potencial perturbador de um poder estatal que im­peça a circulação social autónoma das pessoas em particular. O cen­tro do modelo liberal não é a autodeterminação democrática de ci­dadãos deliberantes, mas sim a normatização jurídico-estatal de uma

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sociedade económica cuja tarefa é garantir um bem comum enten­dido de forma a política, pela satisfação das expectativas de felicidade de cidadãos produtivamente ativos.

A teoria do discurso, que obriga ao processo democrático com conotações mais fortemente normativas do que o modelo liberal, mas menos fortemente normativas do que o modelo republicano, assume por sua vez elementos de ambas as partes e os combina de uma ma­neira nova. Em consonância com o republicanismo, ele reserva uma posição central para o processo político de formação da opinião e da vontade, sem no entanto entender a constituição jurídico-estatal como algo secundário; mais que isso, a teoria do discurso concebe os direi­tos fundamentais e princípios do Estado de direito como uma respos­ta conseqüente à pergunta sobre como institucionalizar as exigentes condições de comunicação do procedimento democrático. A teoria do discurso não torna a efetivação de uma política deliberativa de­pendente de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir, mas sim da institucionalização dos procedimentos que lhe digam res­peito. Ela não opera por muito tempo com o conceito de um todo social centrado no Estado e que se imagina em linhas gerais como um sujeito acional orientado por seu objetivo. Tampouco situa o todo em um sistema de normas constitucionais que inconscientemente regram o equilíbrio do poder e de interesses diversos de acordo com o mode­lo de funcionamento do mercado. Ela se despede de todas as figuras de pensamento que sugiram atribuir a práxis de autodeterminação. dos cidadãos a um sujeito social totalizante, ou que sugiram referir o domínio anónimo das leis a sujeitos individuais concorrentes entre si. Na primeira possibilidade o conjunto de cidadãos é abordado como um agente coletivo que reflete o todo e age em seu favor; na segunda, os agentes individuais funcionam como variáveis dependentes em meio a processos de poder que se cumprem cegamente, já que para além de atos eletivos individuais não poderia haver quaisquer deci­sões coletivas cumpridas de forma consciente (a não ser em um senti­do meramente metafórico).

Em face disso, a teoria do discurso conta com a intersubjetivida­de mais avançada presente em processos de entendimento mútuo que se cumprem, por um lado, na forma institucionalizada de aconselha­mentos em corporações parlamentares, bem como, por outro lado, na rede de comunicação formada pela opinião pública de cunho político.

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Essas comunicações sem sujeito, internas e externas às corporações politicas e programadas para tomar decisões, formam arenas nas quais pode ocorrer a formação mais ou menos racional da opinião e da von­tade acerca de temas relevantes para o todo social e sobre matérias carentes de regulamentação. A formação de opinião que se dá de ma­neira informal desemboca em decisões eletivas institucionalizadas e em resoluções legislativas pelas quais o poder criado por via comuni­cativa é transformado em poder administrativamente aplicável. Como no modelo liberal, respeita-se o limite entre Estado e sociedade; aqui, porém, a sociedade civil, como fundamento social das opiniões públi­cas autônomas, distingue-se tanto dos sistemas econômicos de ação quanto da administração pública. Dessa compreensão democrática, resulta por via normativa a exigência de um deslocamento dos pesos que se aplicam a cada um dos elementos na relação entre os três recur­sos a partir dos quais as sociedades modernas satisfazem sua carência de integração e direcionamento, a saber: o dinheiro, o poder adminis­trativo e a solidariedade. As implicações normativas são evidentes: o poder socialmente integrativo da solidariedade, que não se pode mais tirar apenas das fontes da ação comunicativa, precisa desdobrar-se so­bre opiniões públicas autônomas e amplamente espraiadas, e sobre procedimentos institucionalizados por via jurídico-estatal para a for­mação democrática da opinião e da vontade; além disso, ele precisa também ser capaz de afirmar-se e contrapor-se aos dois outros pode­res, ou seja, ao dinheiro e ao poder administrativo.

Essa concepção tem conseqüências para a compreensão de legi­timação e soberania popular. Segundo a concepção liberal, a forma­ção democrática da vontade tem exclusivamente a função de legitimar o exercício do poder político. Resultados de eleições equivalem a uma licença para a tomada do poder governamental, ao passo que o gover­no tem de justificar o uso desse poder perante a opinião pública e o parlamento. Segundo a concepção republicana, a formação democrá­tica da vontade tem a função essencialmente mais forte de constituir a sociedade enquanto uma coletividade politica e de manter viva a cada eleição a lembrança desse ato fundador. O governo não é apenas in­vestido de poder para o exercício de um mandato sem maiores víncu-

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los, por meio de uma eleição entre grupos de liderança concorrentes; ao contrário, ele está comprometido também programaticamente com a execução de determinadas políticas. Sendo mais uma comissão do que um órgão estatal, ele é parte de uma comunidade política que se administra a si própria, e não o topo de um poder estatal separado. Com a teoria do discurso, novamente entra em cena outra noção: pro­cedimento e pressupostos comunicacionais da formação democrá­tica da opinião e da vontade funcionam como importantes escoadouros da racionalização discursiva das decisões de um governo e adminis­tração vinculados ao direito e à lei. Racionalização significa mais que mera legitimação, mas menos que a própria ação de constituir o poder. O poder administrativamente disponível modifica seu estado de mero agregado desde que seja retroalimentado por uma formação demo­crática da opinião e da vontade que não apenas exerça posteriormente o controle do exercício do poder político, mas que também o programe, de uma maneira ou de outra. A despeito disso, o poder político só pode "agir". Ele é um sistema parcial especializado em decisões cole­tivamente vinculativas, ao passo que as estruturas comunicativas da opinião pública compõem uma rede amplamente disseminada de sensores que reagem à pressão das situações problemáticas no todo social e que simulam opiniões influentes. A opinião pública transfor­mada em poder comunicativo segundo procedimentos democráticos não pode "dominar': mas apenas direcionar o uso do poder adminis­trativo para determinados canais.

O conceito de soberania popular deve-se à apropriação republi­cana e à revalorização da noção de soberania surgida no início da Era Moderna e inicialmente associada aos déspotas que governavam de modo absolutista. O Estado, que monopoliza os meios da aplicação legítima da força, é concebido como um concentrado de poder, capaz de prevalecer sobre todas os demais poderes do mundo. Rousseau transpôs essa figura de pensamento (proposta inicialmente por Bodin) à vontade do povo unificado, mesclada à idéia clássica do autodomí­nio de indivíduos livres e iguais e suprassumida no conceito moderno de autonomia. Apesar dessa sublimação normativa, o conceito de so­berania permaneceu ligado à noção de uma corporificação sua no povo (presente inclusive de forma física, no início). Segundo a concepção republicana, o povo (ao menos potencialmente presente) é portador de uma soberania que por princípio não se pode delegar: não é admis-

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sível que, em sua qualidade de soberano, o povo se deixe representar. O poder constituinte funda-se na práxis autodeterminativa de seus cidadãos, não de seus representantes. A isso o liberalismo contrapõe a concepção mais realista de que no Estado de direito democrático o poder estatal que nasce do povo só é exercido "em eleições e votações e por meio de organismos legislativos específicos, organismos do poder executivo e da jurisdição" (é o que se lê, por exemplo, no art. 20, § 2° da Constituição da República Federal da Alemanha).

Essas duas concepções certamente oferecem uma alternativa en­tre aquelas premissas muito questionáveis de um projeto de Estado e de sociedade que toma como ponto de partida o todo e suas partes­muito embora o todo seja formado ou por um conjunto soberano de cidadãos ou por uma constituição. Ao conceito de discurso na demo­cracia, por outro lado, corresponde a imagem de uma sociedade des­centralizada, que na verdade diferencia e autonomiza com a opinião pública um cenário propício à constatação, identificação e tratamen­to de problemas pertinentes à sociedade como um todo. Quando se sacrifica a formação de conceito ligada à filosofia do sujeito, a sobe­rania não precisa se concentrar no povo de forma concretista, nem exilar-se na anonimidade de competências atribuídas pelo direito constitucional. O si-mesmo da comunidade jurídica que se organiza desaparece em formas de comunicação isentas de sujeitos, as quais regulam o fluxo da formação discursiva da opinião e da vontade de modo que seus resultados falíveis guardem para si a suposição dera­cionalidade. Com isso, a intuição vinculada à idéia de soberania po­pular não é desmentida, mas interpretada de maneira intersubjeti­vista. Uma soberania popular, mesmo que se tenha tornado anôni­ma, só se abriga no processo democrático e na implementação jurí­dica de seus pressupostos comunicacionais, bastante exigentes por sinal, caso tenha por finalidade conferir validação a si mesma enquanto poder gerado por via comunicativa. Sendo mais exato, essa validação provém das interações entre a formação da vontade institucionaliza­da de maneira jurídico-estatal e as opiniões públicas culturalmente mobilizadas, que de sua parte encontram uma base nas associações de uma sociedade civil igualmente distante do Estado e da economia.

De fato, a autocompreensão normativa da política deliberativa exige para a comunidade jurídica um modo de coletivização social; esse mesmo modo de coletivização social, porém, não se estende ao todo

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da sociedade em que se aloja o sistema político constituído de maneira jurídico-estatal. Também em sua autocompreensão, a política delibe­rativa continua sendo elemento constitutivo de uma sociedade com­plexa que no todo se exime de assumir um ponto de vista normativo como o da teoria do direito. Nesse sentido, a leitura da democracia feita segundo a teoria do discurso vincula-se a uma abordagem distan­ciada, própria às ciências sociais, e para a qual o sistema político não é nem o topo nem o centro da sociedade, nem muito menos o modelo que determina sua marca estrutural, mas sim um sistema de ação ao lado de outros. Como a política consiste em uma espécie de lastro reserva na solução de problemas que ameacem a integração, ela certa­mente tem de poder se comunicar pelo medium do direito com todos os demais campos de ação legitimamente ordenados, seja qual for a maneira como eles se estruturem ou direcionem. Se o sistema polí­tico, no entanto, depende de outros desempenhos do sistema- como o desempenho fiscal do sistema económico, por exemplo -, isso não se dá em um sentido meramente trivial; ao contrário, a política deli­berativa, realizada ou em conformidade com os procedimentos con­vencionais da formação institucionalizada da opinião e da vontade, ou informalmente, nas redes da opinião pública, mantém uma rela­ção interna com os contextos de um universo de vida cooperativo e racionalizado. Justamente os processos comunicativos de cunho polí­tico que passam pelo filtro deliberativo dependem de recursos do uni­verso vital- da cultura política libertadora, de uma socialização po­lítica esclarecida e sobretudo das iniciativas de associações formado­ras de opinião -,recursos que se formam de maneira espontânea ou que, em todo caso, só podem ser atingidos com grande dificuldade, caso o caminho escolhido para se tentar alcançá-los seja o do direcio­namento político.

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10 Sobre a coesão interna entre Estado de direito e democracia*

Embora no meio acadêmico seja freqüente mencionar direito e política de um só fôlego; ao mesmo tempo acos­tumamo-nos a abordar o direito, o Estado de direito e a de­mocracia como objetos pertencentes a disciplinas diversas: a jurisprudência trata do direito, a ciência política trata da democracia; uma delas trata do Estado de direito sob pon­tos de vista normativos, e a outra, sob pontos de vista em­píricos. A divisão científica do trabalho não cessa de valer nem mesmo quando os juristas se ocupam ora do direito e do Estado de direito, ora da formação da vontade no Estado constitucional democrático; nem quando os cientistas so­ciais se ocupam, como sociólogos do direito, do direito e do Estado de direito, e, como cientistas políticos, do processo democrático. Estado de direito e democracia apresentam­se para nós como objetos totalmente diversos. Há boas ra.., zões para isso. Como todo domínio político é exercido sob a forma do direito, também ai existem ordens jurídicas em que o poder político ainda não foi domesticado sob a for­ma do Estado de direito. E da mesma forma há Estados de

• Tradução: Paulo Astor Soethe.

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direito em que o poder governamental ainda não foi democratizado. Em suma, há ordens jurídicas estatais sem instituições próprias a um Estado de direito, e há Estados de direito sem constituições democrá­ticas. Essas razões empíricas para um tratamento acadêmico dos dois objetos marcado pela divisão do trabalho, porém, não significam de modo algum que possa haver do ponto de vista normativo um Estado de direito sem democracia.

A seguir, pretendo abordar a relação interna entre Estado de di­reito e democracia sob vários aspectos. Essa relação resulta do próprio conceito moderno de direito (I), bem como da circunstância de que hoje o direito positivo não pode mais obter sua legitimidade recorren­do a um direito superior (II). O direito moderno legitima-se a partir da autonomia garantida de maneira uniforme a todo cidadão, sendo que a autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente (III). Essa concatenação conceituai também passa a ter validade na dialética entre as igualdades jurídica e factual, suscitada pelo paradigma jurí­dico socioestatal em face da compreensão liberal do direito e que hoje compele a uma autocompreensão procedimentalista do Estado demo­crático de direito (IV). Para concluir, explicarei o paradigma jurídico procedimentalista a partir do exemplo da política feminista pela igual­dade de direitos (V).

o Qualidades formais do direito moderno

Desde Locke, Rousseau e Kant, não apenas na filosofia, mas tam­bém pouco a pouco na realidade constitucional das sociedades oci­dentais, firmou-se um conceito de direito do qual se espera que preste contas tanto à positividade quanto ao caráter do direito coercivo como assegurador da liberdade. Se as normas sustentadas por meio de amea­ças de sanções estatais remontam a decisões modificáveis de um legis­lador político, essa circunstância enreda-se à exigência de legitimação de que esse tipo de direito escrito seja capaz de assegurar eqüita­tivamente a autonomia de todas as pessoas do direito; e para que se atenda essa exigência, o procedimento democrático legislativo deve ser suficiente. Dessa maneira cria-se uma relação conceituai entre o caráter coercivo e a modificabilidade do direito positivo, por um lado,

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e um modo de estabelecimento do direito capaz de gerar legitimida­de, por outro. Por isso, de um ponto de vista normativo subsiste não apenas uma relação historicamente casual entre a teoria do direito e a teoria da democracia, mas sim uma relação conceituai ou interna.

À primeira vista isso parece um truque filosófico. Na realidade, porém, essa relação interna está profundamente alicerçada nas pres­suposições de nossa práxis jurídica cotidiana. Pois no modo de vali­dação do direito a facticidade da imposição do direito por via estatal enlaça-se com a força legitimadora de um procedimento instituidor do direito, o qual, de acordo com sua pretensão, é racional, justa­mente por fundamentar a liberdade. Isso se revela na peculiar aro­bivalência com que o direito vai de encontro a seus destinatários e deles espera obediência. Pois ele os deixa livres, seja para considerar as normas apenas como uma restrição efetiva de seu espaço de ação e portar-se estrategicamente em face das conseqüências previsíveis de uma possível violação das regras, seja para querer cumprir as leis em uma atitude performativa- e isso por respeito a resultados de uma formação comum da vontade que demandam legitimidade para si. Kant, com o conceito de legalidade, já destacava a ligação entre esses dois momentos sem os quais não se pode exigir qualquer obediência legal: normas jurídicas têm de ser tais que possam ser consideradas a um só tempo, e sob cada um dos diferentes aspectos, como leis coerci­vas e como leis da liberdade. Esse duplo aspecto integra nossa com­preensão do direito moderno: consideramos a validade de uma norma jurídica como um equivalente da explicação para o fato de o Estado garantir ao mesmo tempo a efetiva imposição jurídica e a institui­ção legítima do direito - ou seja, garantir de um lado a legalidade do procedimento no sentido de uma observância média das normas que em caso de necessidade pode ser até mesmo impingida através de sanções, e, de outro lado, a legitimidade das regras em si, da qual se espera que possibilite a todo momento um cumprimento das nor­mas por respeito à lei.

Com isso, surge de imediato a pergunta sobre como afinal se deve fundamentar a legitimidade de regras que podem ser alteradas pelo legislador a qualquer momento. Normas constitucionais tam­bém são modificáveis; e até mesmo as normas básicas que a própria Constituição declara imodificáveis compartem com o direito positi­vo a sina de poderem deixar de vigorar, por exemplo se ocorrer uma

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mudança de regime. Enquanto se pôde recorrer ao direito natural fundamentado na religião ou na metafísica, pôde-se também repre­sar por meio da moral o turbilhão da temporalidade que atraía o di­reito positivo para dentro de si. O direito positivo temporalizado -no sentido de uma hierarquia de leis- deveria permanecer subordi­nado ao direito moral eternamente válido e receber dele suas orienta­ções permanentes. Mas mesmo que não se leve em conta o esfacela­mento havido nas sociedades pluralistas tanto de imagens de mundo integrativas desse tipo, quanto de éticas coletivamente vinculativas, ocorre que o direito moderno, em razão de seu caráter formal, exi­me-se em todo caso de qualquer ingerência direta que advenha de uma consciência moral remanescente e pós-tradicional.

Sobre a relação complementar entre direito positivo e moral autónoma

Direitos subjetivos com os quais se constroem ordens jurídicas modernas têm o sentido de desobrigar pessoas do direito em relação a mandamentos morais, e isso de forma muito bem delineada. Com a introdução de direitos subjetivos que garantem aos agentes espaço para agir de acordo com suas próprias preferências, o direito mo­derno como um todo faz valer o princípio de que se permite tudo que não seja explicitamente proibido. Ao passo que na moral subsis­te desde sua origem uma simetria entre direitos e deveres, as obriga­ções jurídicas, enquanto conseqüência de atribuições de direitos, re­sultam somente da restrição legal de liberdades subjetivas. Essa atri­buição conceituai básica de privilégio aos direitos em relação aos deveres explica-se a partir dos conceitos modernos da pessoa do di­reito e da comunidade jurídica. O universo moral sem limites no es­paço social e no tempo histórico estende-se por sobre todas as pes­soas naturais em sua complexidade biográfica, e a própria moral se estende até a defesa da integridade de pessoas plenamente indivi­duadas. Em face disso, uma comunidade jurídica respectivamente situada no tempo e no espaço protege a integridade de seus inte­grantes exatamente na mesma medida em que esses últimos assu­mem o status artificialmente criado de portadores de direitos subjeti-

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vos. Por isso subsiste entre direito e moral uma relação que é mais de complementaridade do que de subordinação.

O mesmo vale em uma visão extensional. As matérias juridica­mente carentes de regulamentação são ao mesmo tempo mais restri­tas e mais abrangentes do que os assuntos moralmente relevantes: são mais restritas, porque só o comportamento exterior da regulamen­tação jurídica é acessível, ou seja, apenas o seu comportamento coer­cível; e são mais abrangentes, porque o direito- como meio de organi­zação do domínio político - não se refere apenas à regulamentação de conflitos de ação interpessoais, mas também ao cumprimento de programas políticos e demarcações políticas de objetivos. Eis por que as regulamentações jurídicas tangenciam nâo apenas questões morais em sentido estrito, mas também questões pragmáticas e éticas, bem como o estabelecimento de acordos entre interesses conflitantes. Di­versa da reivindicação normativa de validação dos mandamentos mo­rais, que é claramente delimitada, a reivindicação de legitimidade das normas jurídicas apóia-se sobre vários tipos de razões. A práxis legis­lativa justificadora depende de uma rede ramificada de discursos e negociações - e não apenas de discursos morais.

A noção própria ao direito natural de uma hierarquia de direitos com padrões distintos de dignidade leva a extravios. Pode-se entender o direito de uma maneira muito mais adequada do que como um com­plemento funcional da moral. Pois o direito positivamente válido, le­gitimamente firmado e cobrável através de ação judicial pode tirar das pessoas que agem e julgam moralmente o peso das grandes exigências cognitivas, motivacionais e organizacionais que uma moral ajustada segundo a consciência subjetiva acaba impondo a elas. O direito pode compensar as fraquezas de uma moral exigente que, se bem analisa­das suas conseqüências empíricas, não proporciona senão resultados cognitivamente indefinidos e motivacionalmente pouco seguros. É claro que isso não libera o legislador e a justiça da preocupação com que o direito permaneça em consonância com a moral. Mas regula­mentações jurídicas são concretas demais para poderem legitimar-se apenas pelo fato de não contrariarem princípios morais. Mas se o di­reito positivo não pode obter sua legitimidade de um direito moral superior, de onde então ele poderá obtê-la?

Assim como a moral, também o direito deve defender eqüita­tivamente a autonomia de todos os envolvidos e atingidos. Ora, o di-

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rei to também deve comprovar sua legitimidade a partir desse mesmo aspecto do asseguramento da liberdade. Interessante, porém, é que a positividade do direito obriga a uma decomposição peculiar da auto­nomia, para a qual não há contrapartida no lado da moral. A autode­terminação moral em sentido kantiano é um conceito unitário à me­dida que exige de cada indivíduo in propria persona que siga as nor­mas que ele próprio estabelece para si, após um juízo imparcial pró­prio - ou almejado em conjunto com todos as outras pessoas. Com isso, no entanto, a obrigatoriedade das normas jurídicas remonta não apenas a processos da formação de opinião e vontade, mas sim a deci­sões coletivamente vinculativas, por instâncias que estabelecem e apli­cam o direito. Resulta daí de maneira conceitualmente necessária uma partilha de papéis entre autores que firmam (e enunciam) o direito, bem como entre destinatários que estão submetidos ao direito vigente. A autonomia, que no campo da moral é monolítica, por assim dizer, surge no campo do direito apenas sob a dupla forma da autonomia pública e privada.

Ora, esses dois momentos precisam ser mediados de tal maneira que uma autonomia não prejudique a outra. As liberdades de ação individuais do sujeito privado e a autonomia pública do cidadão liga­do ao Estado possibilitam-se reciprocamente. É a serviço dessa con­vicção que se põe a idéia de que as pessoas do direito só podem ser autónomas à medida que lhes seja permitido, no exercício de seus di­reitos civis, compreender-se como autores dos direitos aos quais de­vem prestar obediência, e justamente deles.

GD Sobre a mediação

entre soberania popular e direitos humanos

Assim, não causa espanto que as teorias do direito racional te­nham dado uma dupla resposta às questões de legitimação: por um lado, pela alusão ao princípio da soberania popular, e por outro lado, pela referência ao domínio das leis garantido pelos direitos humanos. O princípio da soberania popular expressa-se nos direitos à comu­nicação e participação que asseguram a autonomia pública dos cida­dãos do Estado; e o domínio das leis, nos direitos fundamentais dás-

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sicos que garantem a autonomia privada dos membros da sociedade civil. O direito legitima-se dessa maneira como um meio para o asse­guramento equânime da autonomia pública e privada. Ainda assim, a filosofia política não logrou de forma séria dirimir a tensão entre so­berania popular e direitos humanos, entre a "liberdade dos antigos" e a "liberdade dos modernos". A autonomia política dos cidadãos deve tomar corpo na auto-organização de uma comunidade que atribui a si mesma suas leis, por meio da vontade soberana do povo. A autono­mia privada dos cidadãos, por outro lado, deve afigurar-se nos direi­tos fundamentais que garantem o domínio anônimo das leis. Quando é esse o caminho traçado, então uma das idéias só pode ser validada à custa da outra. E a eqüiprimordialidade de ambas, intuitivamente elucidativa, não segue adiante.

O republicanismo, que remonta a Aristóteles e ao humanismo político da Renascença, sempre deu primazia à autonomia pública dos cidadãos do Estado, em comparação com as liberdades das pessoas em particular que antecedem a política. O liberalismo, que remonta a Locke, conjurou o perigo das maiorias tirânicas e postulou uma pri­mazia dos direitos humanos. Em um dos casos, a legitimidade dos direitos humanos se deveria ao resultado de um auto-entendimento ético e de uma autodeterminação soberana de uma coletividade polí­tica; no outro caso, os direitos humanos, já em sua origem, constitui­riam barreiras que vedariam à vontade do povo quaisquer ataques a esferas de liberdade subjetivas e intocáveis. Embora Rousseau e Kant tenham empreendido esforços com o objetivo de pensar tanto a von­tade soberana quanto a razão prática sob o conceito da autonomia da pessoa do direito, a tal ponto que no pensamento de ambos a sobe­rania popular e os direitos humanos se interpretam mutuamente, ne­nhum deles logrou fazer jus à eqüiprimordialidade de ambas as idéias. Rousseau sugere uma leitura mais republicana, Kant, uma leitura mais liberal. Eles ignoram a intuição que haviam pretendido trazer para junto do conceito: a idéia dos direitos humanos, que se enuncia no direito em relação a liberdades de ação subjetivas e iguais, não pode nem simplesmente impingir-se ao legislador soberano como uma bar­reira externa, nem se deixar instrumentalizar como requisito funcional para os fins desse mesmo legislador.

Para que essa intuição ganhe expressão correta, recomenda-se considerar o procedimento democrático a partir de pontos de vista

SOBRE A COESAO INTERNA ENTRE ESTADO DE DIREITO E DEMOCRACIA 291

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da teoria do discurso: sob as condições do pluralismo social e de visões de mundo, é o processo democrático que confere força legi­timadora ao processo de criação do direito. Partirei aqui, sem discu­ti-la em detalhes, da seguinte proposição fundamental: regulamen­tações que podem requerer legitimidade são justamente as que po­dem contar com a concordância de possivelmente todos os envolvi­dos enquanto participantes em discursos racionais. Se são discursos e negociações- cuja justeza e honestidade encontram fundamento em procedimentos discursivamente embasados- o que constitui o espaço em que se pode formar uma vontade política racional, então a suposição de racionalidade que deve embasar o processo demo­crático tem necessariamente de se apoiar em um arranjo comunica­tivo muito engenhoso: tudo depende das condições sob as quais se podem institucionalizar juridicamente as formas de comunicação necessárias para a criação legítima do direito. A almejada coesão in­terna entre direitos humanos e soberania popular consiste assim em que a exigência de institucionalização jurídica de uma prática civil do uso público das liberdades comunicativas seja cumprida justa­mente por meio dos direitos humanos. Direitos humanos que possi­bilitam o exercício da soberania popular não se podem impingir de fora, como uma restrição.

Essa reflexão evidentemente só elucida os direitos políticos do cidadão, isto é, os direitos de comunicação e participação que asse­guram o exercício da autonomia política, não os direitos humanos clássicos que garantem a autonomia privada dos cidadãos. Em pri­meira linha, pensamos aqui no direito fundamental à maior quanti­dade possível de liberdades de ação subjetivas iguais, mas também nos direitos fundamentais que constituem não apenas o status de quem dispõe de determinada nacionalidade, mas também a ampla proteção jurídica individual. Esses direitos, aos quais cabe garantir a cada um o esforço por alcançar os objetivos de sua vida privada em igualdade de chances, têm um valor intrínseco, ou eles ao menos não se diluem no valor instrumental de si mesmos em prol da forma­ção democrática da vontade. Para fazer jus à intuição de eqüiprimor­dialidade entre os direitos clássicos de liberdade e os direitos polí­ticos do cidadão será necessário, a seguir, tornar mais precisa nossa tese de que os direitos humanos possibilitam a práxis de autodeter­minação dos cidadãos.

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Sobre a relação entre autonomia privada e pública

Os direitos humanos podem até mesmo ser bem fundamentados de um ponto de vista moral; não pode ocorrer, no entanto, que um soberano seja investido deles de forma paternalista. A idéia da auto­nomia jurídica dos cidadãos exige, isso sim, que os destinatários do direito possam ao mesmo tempo ver-se como seus autores. E se o le­gislador constitucional democrático simplesmente encontrasse os di­reitos humanos como fatos morais previamente dados, para então positivá-los e nada mais, isso estaria em contradição com essa idéia. Não há como ignorar, por outro lado, que não cabe mais aos cidadãos a livre escolha do medium em que eles mesmos podem tornar efetiva sua autonomia, no papel de co-legisladores. No processo legislativo os cidadãos só podem tomar parte na condição de sujeitos do direito; não podem mais decidir, para tanto, sobre a linguagem de que se devem servir. A idéia democrática da autolegislação não tem opção senão validar-se a si mesma no medium do direito.

Contudo, quando se trata de decidir se cabe ou não institucio­nalizar sob a forma de direitos políticos do cidadão os pressupostos da comunicação com base nos quais os cidadãos julgam se é legítimo o direito que eles mesmos firmam à luz do princípio discursivo, aí então o código jurídico precisa estar como tal à disposição. Para a instituição desse código, entretanto, é necessário criar o status das pessoas do di­reito que pertençam, enquanto portadores de direitos subjetivos, a uma associação voluntária de jurisconsortes e que efetivamente façam valer por meios judiciais suas respectivas reivindicações jurídicas. Não há direito algum sem a autonomia privada de pessoas do direito. Portan­to, sem os direitos fundamentais que asseguram a autonomia privada dos cidadãos, não haveria tampouco um medi um para a instituciona­lização jurídica das condições sob as quais eles mesmos podem fazer uso da autonomia pública ao desempenharem seu papel de cidadãos do Estado. Dessa maneira, a autonomia privada e a pública pressu­põem-se mutuamente, sem que os direitos humanos possam reivindi­car um primado sobre a soberania popular, nem essa sobre aquele.

A intuição expressa-se, por um lado, no fato de que os cidadãos só podem fazer um uso adequado de sua autonomia pública quando

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são independentes o bastante, em razão de uma autonomia privada que esteja equanimemente assegurada; mas também no fato de que só poderão chegar a uma regulamentação capaz de gerar consenso, se fizerem uso adequado de sua autonomia política enquanto cidadãos do Estado.

Essa coesão interna entre Estado de direito e democracia foi su­ficientemente encoberta pela concorrência dos paradigmas jurídicos dominantes até hoje. O paradigma jurídico liberal conta com uma sociedade econômica que se institucionaliza por meio do direito pri­vado - em especial por via de direitos à propriedade e liberdades de contratação- e que se coloca à mercê da ação espontânea de meca­nismos de mercado. Essa "sociedade de direito privado" é feita sob medida em relação à autonomia dos sujeitos do direito, que, no papel de integrantes do mercado, procuram realizar de forma mais ou me­nos racional os próprios projetas de vida. Vincula-se a isso a expec­tativa normativa de que se possa alcançar a justiça social pela garan­tia de um status jurídico negativo como esse, ou seja, pela delimi­tação de esferas de liberdade individuais. O modelo do Estado social desenvolveu-se a partir de uma crítica consistente a essa suposição. A contestação que se faz é evidente: se a liberdade do "poder ter e poder adquirir" deve garantir justiça social, então é preciso haver uma igual­dade do "poder juridicamente". Com a crescente desigualdade das posições de poder econômico, patrimônios e condições sociais, po­rém, desestabilizaram-se sempre mais os pressupostos factuais capa­zes de proporcionar que o uso das competências jurídicas distribuídas por igual ocorresse sob uma efetiva igualdade de chances. Se o teor normativo da igualdade de direitos jamais chegou a se converter no inverso de si mesmo, não deixou de ser necessário, por um lado, espe­cificar o conteúdo das normas vigentes do direito privado, nem, por outro lado, introduzir direitos fundamentais de cunho social que embasassem as reivindicações de uma distribuição mais justa da ri­queza produzida em sociedade e de uma defesa mais efetiva contra os perigos produzidos socialmente.

Nesse meio tempo, a materialização do direito, por sua vez, tam­bém ocasionou as conseqüências secundárias e indesejadas de um pa­ternalismo socioestatal. Evidentemente, a almejada equiparação de si­tuações de vida e posições de poder não pode levar a um tipo de in­tervenções "normalizadoras" que acabem por limitar o espaço de

294 A INCLUSÃO DO OUTRO

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atuação de seus prováveis beneficiários, no que se refere à concepção autônoma dos projetas de vida de cada um deles. Nos desdobramen­tos posteriores da dialética entre liberdade jurídica e factual, reve­lou-se que os dois paradigmas do direito estão igualmente compro­metidos com a imagem produtivista de uma sociedade econômica capitalista e industrial, cujo funcionamento deve ser tal que a expec­tativa de justiça social possa ser satisfeita pelo esforço particular, as­segurado e autônomo por concretizar as concepções de bem-viver próprias a cada um. As duas partes só discordam quanto a se poder garantir a autonomia privada diretamente mediante direitos de liber­dade, ou a se dever assegurar o surgimento da autonomia privada mediante outorga de reivindicações de benefícios sociais. Em ambos os casos, todavia, perde-se de vista a coesão interna entre autonomia privada e pública.

O exemplo das políticas feministas de equiparação

Para encerrar, gostaria de demonstrar, a partir das políticas fe­ministas de equiparação, que a política do direito oscila desampara­damente entre os dois paradigmas originais, e que isso perdurará en­quanto ela continuar limitada ao asseguramento da autonomia priva­da, e enquanto se continuar ofuscando a coesão interna entre os direi­tos subjetivos de pessoas em particular e a autonomia pública dos ci­dadãos do Estado, participantes da criação do direito. Pois os sujeitos particulares do direito só podem chegar ao gozo de liberdades subjeti­vas, se eles mesmos, no exercício conjunto de sua autonomia de cida­dãos ligados ao Estado, tiverem clareza quanto aos interesses e parâ­metros justos e puserem-se de acordo quanto a aspectos relevantes sob os quais se deve tratar com igualdade o que é igual, e com desigualda­de o que é desigual.

Inicialmente, a política liberal teve por objetivo suprimir o aco­plamento existente entre a conquista de status e a identidade de gêne­ro, para então garantir à mulher (sem que se exigisse dela quaisquer méritos prévios) igualdade de chances na concorrência por postos de trabalho, prestígio social, diplomas, poder político etc. Assim que se logrou impor ao menos em parte a equiparação formal, apenas se evi-

SOBRE A COESÃO INTERNA ENTRE ESTADO DE DIREITO E DEMOCRACIA 295

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denciou de forma tão mais drástica o tratamento desigual que de fato se destina às mulheres. Em face disso, a política socioestatal, sobre­tudo o direito trabalhista, social e da família, reagiu com regulamen­tações especiais, referentes, por exemplo, à gravidez e maternidade, ou ainda a ónus sociais em casos de divórcio. Desde então, não ape­nas as exigências não atendidas tornaram-se objeto da crítica femi­nista, mas também as conseqüências ambivalentes dos programas socioestatais implementados com êxito- por exemplo, o maior risco de desemprego, ocasionado por essas compensações legais, a presen­ça excessiva de mulheres nas faixas salariais mais baixas, o problemá­tico "bem-estar da criança': a crescente feminização da pobreza em geral etc. Sob uma visão jurídica, há uma razão para essa discrimina­ção criada reflexivamente nas classificações amplamente generali­zadoras aplicadas a situações desfavorecedoras e grupos de pessoas desfavorecidas. Pois essas classificações "erróneas" levam a interven­ções "normalizadoras" na maneira de conduzir a vida, as quais permi­tem que a almejada compensação de danos acabe se convertendo em nova discriminação, ou seja, garantia de liberdade converte-se em pri­vação de liberdade. Nos campos jurídicos concernentes ao feminis­mo o paternalismo socioestatal assume um sentido literal: o legislativo e a jurisdição orientam-se segundo modelos de interpretação tradi­cionais e contribuem com o fortalecimento dos estereótipos de iden­tidade de gênero já vigentes.

A classificação dos papéis sexuais e das diferenças vinculadas aos sexos concerne a camadas elementares da autocompreensão cultural de uma sociedade. Só hoje o feminismo radical toma consciência do caráter falível, merecedor de revisões e fundamentalmente contro­verso dessa autocompreensão. Tem razão sua insistência quanto a que determinados enfoques da questão devam ser aclarados em meio à opinião pública de cunho político, mais precisamente em controvér­sias públicas sobre a interpretação adequada de carências e critérios, a começar pelos enfoques sob os quais as diferenças entre experiên­cias e situações de vida (de determinados grupos) de homens e mu­lheres tornam-se relevantes para que o uso de liberdades de ação sub­jetivas possa ocorrer em igualdade de chances. Assim, a partir dessa luta pela igualdade de condições para as mulheres, é possível demons­trar de maneira particularmente clara a mudança urgente da com­preensão paradigmática do direito.

296 A INCWSAO DO OUTRO

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Em lugar da controvérsia sobre ser melhor assegurar a autono­mia das pessoas do direito por meio de liberdades subjetivas para ha­ver concorrência entre indivíduos em particular, ou então mediante reivindicações de benefícios outorgadas a clientes da burocracia de um Estado de bem-estar social, surge agora uma concepção jurídica procedimentalista, segundo a qual o processo democrático precisa as­segurar ao mesmo tempo a autonomia privada e a pública: os direitos subjetivos, cuja tarefa é garantir às mulheres um delineamento autó­nomo e privado para suas próprias vidas, não podem ser formulados de modo adequado sem que os próprios envolvidos articulem e funda­mentem os aspectos considerados relevantes para o tratamento igual ou desigual em casos típicos. Só se pode assegurar a autonomia privada de cidadãos em igualdade de direito quando isso se dá em conjunto com a intensificação de sua autonomia civil no âmbito do Estado.

SOBRE A COESÃO INTERNA ENTRE ESTADO DE DIREITO E DEMOCRACIA 297

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Apêndice a Facticidade e validação* RÉPLICA ÀS COMUNICAÇÕES EM UM SIMPÓSIO DA CARDOZO LAW SCHOOL

Todo autor está em dívida com seus leitores; isso vale de forma especial para um autor exigente, que apresenta uma investigação abrangente e complexa e que encontra para ela a atenção crítica de colegas extraordinários- em uma uni­versidade norte-americana, e antes mesmo da publicação do livro em língua alemã. Dos comentários cuidadosos pude tirar um grande proveito. Essa afirmação poderá ser verifi­cada com base em minha resposta, com a qual também gos­taria de expressar meus agradecimentos.

Restrinjo-me aqui a sete complexos temáticos. Em pri­meiro lugar, gostaria de me posicionar metacriticamente quanto à alojação do ''justo" nas concepções do que seja bom. R. F. Bernstein e F.l. Michelman guarnecem seu contextua­lismo moderado com ênfases diversas - um deles a partir da visão de um pragmatismo de cunho aristotélico, o outro, a partir da visão de uma teoria republicana do direito (I). Thomas A. McCarthy intensifica essa controvérsia (de mui­to perto, por assim dizer) e direciona-a para a questão sobre a adequação do modelo discursivo, e da suposição de uma

• Tradução: Paulo Astor Soethe.

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resposta correta a cada caso, aos conflitos de valores típicos das socie­dades multiculturais (II). Michel Rosenfeld, com a visão do jurista, dá continuidade à discussão acerca da primazia do procedimento sobre um comum acordo substancial de fundo, e sugere por fim uma alternativa que vem a ser desenvolvida por A.]. Jacobson sob a forma de uma con­cepção dinâmica do direito (III). Bill Regh, com sua interessante per­gunta sobre a relação entre discurso e decisão, dá ensejo à passagem para questões mais essenciais sobre a construção teórica. Michael Power aborda o papel das idealizações, ao passo que J. Lenoble me defronta com contestações ligadas à crítica da razão, concernentes à abordagem de uma teoria da ação comunicativa em seu todo (IV). Assim como Lenoble, também David Rasmussen, Robert Alexy e Gunther Teubner dão-me ocasião para abordar uma vez mais a lógica dos discursos de aplicação prática (V). Ulrich Preu6 e Günther Falkenberg discutem sob diversos aspectos a relação entre autonomia privada e pública, ao passo que Dick Howard e Gabriel Motzkin dedicam-se ao teor político de minha teoria do direito (VI). Por fim, posiciono-me diante de restri­ções feitas no âmbito da sociologia do direito, por Mark Gould a partir de uma visão parsoniana de esquerda, e por Niklas Luhmann a partir da teoria dos sistemas (VII).

o O bom e o justo

( 1) Meu amigo Dick Bernstein é um dos conhecedores mais exa­tos de meus trabalhos. Com grande sensibilidade hermenêutica, ele acompanha e interpreta 1 minhas publicações - e as situa de forma elucidativa no contexto da discussão contemporânei. Há mais de duas décadas, aproxima-nos uma controvérsia filosófica que deixou mar­cas em meus textos. Desde nossa primeira conversa no campus de Haverford, Bernstein pressiona-me com bons argumentos sobre uma "destranscendentalização" da herança kantiana- sendo que na época

I. Cf. a cuidadosa Introdução a R. J. Bernstein (org.), Habermas and Modernity, Oxford, 1985. pp. 1-32; cf. tb. R. J. Bernstein, The Restructuring of Social and Politicai Theory, NewYork-London, 1976. cap. IV.

2. Cf. R. J. Bernstein, Beyond Objectivism and Relativism, Philadelphia, 1983; idem, The New Constellation, Cambridge, 1991.

300 A INCLUSÃO DO OUTRO

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eu nem mesmo conhecia esse termo. No espírito hegeliano do prag­matismo, ele insiste em tentar solucionar contradições renitentes. Dis­tinções não têm valor per se, precisam de comprovação baseada nos problemas que pretendemos resolver com a ajuda delas mesmas. Com Peirce, ele pergunta: What is the difference that makes a difference? [O que é a diferença que faz diferença?] 3 O mesmo se repete agora, com uma impaciência que cresce a olhos vistos. Ele se volta (a) contra a pretensão de neutralidade de um procedimentalismo que na verdade depende de determinado ethos democrático, e (b) contra a distinção entre questionamentos morais e éticos, que a seu ver é abstrata e vazia e passa ao largo dos problemas reais.

Sobre (a): Na concepção de Bernstein, determinados procedi­mentos e pressupostos comunicacionais só devem ser capazes de fun­damentar a suposição de resultados racionais da formação democrá­tica da opinião e da vontade (resultados racionais porque bem infor­mados e imparciais), se o ânimo dos cidadãos aí envolvidos tiver ori­gem em um "ethos democrático"; eles precisam estar motivados por virtudes civis, mesmo que essas orientações generalizadas de valor não decidam previamente sobre normas em particular. Em uma lei­tura atenuada, essa tese não representa restrição alguma a minha con­cepção, segundo a qual o sistema político constituído pelo Estado de direito não gira em torno de si mesmo, mas permanece dependente de uma "cultura política libertária" e de uma "população acostumada à liberdade" (ou seja, permanece dependente de "iniciativas de asso­ciações formadoras de opinião" e dos respectivos modelos de socia­lização): "a política deliberativa (mantém) ... uma coesão interna com os contextos de um mundo vital transigente e, de sua parte, racionali­zado"4. Quando se acresce a isso o que afirmo na Teoria da ação comu­nicativa sobre a racionalização dos mundos vitais, então se pode en­tender essa "transigência" no sentido de uma "eticidade pós-conven­cional''5 ou de um ethos democrático.

3. Ainda que ocasionalmente sua generosidade hermenêutica o leve a apagar diferenciações que se deveriam levar em conta, cf. R. J. Bernstein, "What is the Difference that Makes a Difference?" Gadamer, Habermas e Rorty. ln: Philosophical Profiles, Philadelphia, 1986. pp. 21-57.

4. J. Habermas, Faktizitiit und Geltung, Frankfurt am Main, 1992, p. 366. S. A. Wellmer, "Bedingungen einer demokratischen Kultur". ln: M. Brumlick;

H. Brunkhorst ( orgs. ), Gemeinschaft und Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1993, pp. 173-196.

APÍ:NDICE A FACTICIDADE E VALIDAÇÁO 301

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É por razões sistemáticas que entendo haver a exigência de uma alojação "constitucional-patriótica" do processo democrático, se a po­demos chamar assim. O que explica tal exigência é a circunstância se­gundo a qual os direitos políticos fundamentais também assumem a forma de direitos subjetivos-públicos e podem ser interpretados, por­tanto, como liberdades subjetivas de ação. Em ordens jurídicas mo­dernas cabe aos cidadãos do Estado decidir livremente sobre como fazer uso de seus direitos de comunicação e participação. Pode-se su­gerir aos cidadãos que se orientem segundo o bem comum, mas não se pode transformar tal orientação em obrigação jurídica. Não obs­tante, ela é necessária em certo grau, já que a atividade legislativa de­mocrática só pode legitimar-se a partir do processo de acordo mútuo ocorrido entre os cidadãos do Estado quanto às regras do convívio entre eles. O paradoxo do surgimento da legitimidade a partir da lega­lidade, portanto, só se dissipa quando a cultura política dos cidadãos os predispõe a não insistir em assumir uma postura de integrantes do mercado interessados em si mesmos e voltados ao sucesso, mas sim a também fazer um uso de suas liberdades que se volta ao acordo mú­tuo, no sentido kantiano de um "uso público da razão".

É esse "também" que distingue a leitura atenuada de uma outra, rígida- clássico-republicana-, favorecida por Bernstein. Pois se ele acentua sua tese até torná-la uma contestação, chega a isso justamente por depositar, em última instância, toda a carga legitimadora do direi­to positivo sobre a virtude dos cidadãos que se uniram entre si. Em face disso, a explicação apresentada pela teoria do discurso para o pro­cesso democrático desonera os cidadãos da imputação rousseauniana de virtude, com um argumento estruturalista. Ainda é preciso, somente, cobrar em detalhes a orientação voltada ao bem comum, à medida que a razão prática se retrai, deslocando-se das cabeças e corações de agentes coletivos ou individuais para os procedimentos e formas de comunicação da formação política da opinião e da vontade, e à medi­da que se transfere do plano individual das motivações e discernimen­tos éticos, alocando-se no plano social da aquisição e processamento de informações. A isso corresponde uma certa intelectualização. Pois os processos decisórios e de aconselhamento precisam ser instaurados de tal maneira que os discursos e negociações funcionem como filtros e deixem passar somente os temas e contribuições que devam "con­tar" para a tomada de decisão. Para combater melhor o falso realismo

302 A INCLUSAO DO OUTRO

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que antecipadamente tacha de "idealista" o sentido da autodetermi­nação democrática, cabe substituir já no plano das explicações nor­mativas a imputação de virtude por uma outra, de racionalidade.

Assim, contradigo a tradição republicana apenas à medida que o ânus de comprovação da eficiência da razão prática se desloca da mentalidade dos cidadãos para as formas deliberativas da política. No entanto, esse procedimentalismo não significa, como pensa Bernstein, uma neutralização normativa da práxis de autodeterminação dos cidadãos. Mesmo que com toda certeza os procedimentos e proces­sos não se sustentem a si mesmos, mas tenham de estar alojados em uma cultura política favorável à liberdade, a expectativa normativa de criação legítima do direito vincula-se sim ao arranjo comunica­tivo, e não à competência dos agentes envolvidos. Mas esse modo de criação do direito, ao qual cabe assegurar a todos igual autonomia, mantém para si um forte teor normativo. O procedimento democrático fundamenta uma suposição de racionalidade, no sentido que acena com resultados neutros, isto é, imparciais: a racionalidade procedi­mental deve garantir justiça no sentido da regulamentação imparcial de questões práticas.

Sobre (b): Outra restrição feita por Bernstein não se refere tan­to à concepção procedimentalista como tal, mas muito mais à com­preensão de justiça política ligada a ela. Pois na razão prática corpora­lizada em procedimentos e processos está inscrita a referência a uma justiça (entendida tanto em sentido moral quanto jurídico) que apon­ta para além do ethos concreto de determinada comunidade ou da interpretação de mundo articulada em determinada tradição ou for­ma de vida. Para tornar isso claro, distingo entre questões morais da justiça e questões éticas do auto-entendimento. Em um dos casos abor­damos um problema sob o ponto de vista que se pergunta sobre qual a regulamentação mais adequada ao interesse equânime de todos os atingidos (sobre "o que é bom em igual medida para todos"); no ou­tro caso, ponderamos as alternativas de ação a partir da perspectiva de indivíduos ou de coletividades que querem se assegurar de sua identidade, bem como saber que vida devem levar, à luz do que são e do que gostariam de ser (ou seja, querem saber "o que é bom para mim, ou para nós, no todo e a longo prazo"). Aos dois questionamen­tos equivalem pontos de vista diferentes. Ao passo que na pergunta sobre o "bem viver" inscreve-se a perspectiva de uma interpretação do

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mundo ou de um si-mesmo a partir de uma primeira pessoa do sin­gular ou do plural, as questões sobre justiça só podem ser respondidas sob uma consideração equânime das perspectivas de interpretação de mundo ou de si mesmo de todos os envolvidos, e de forma imparcial (o que explica a exigência de Mead quanto a "assumir uma perspec­tiva de maneira ideal"). Bernstein não contesta a distinção analítica como tal; mais que isso, afirma que hipostasio essa distinção e que não faço um uso sensato dela (e que portanto sucumbo ao "myth of the framework").

Em primeiro lugar, preciso desfazer um mal-entendido. Ques­tões do auto-entendimento dependem do contexto, mas em um sen­tido diferente do que ocorre com as questões morais; e isso porque cada uma delas se propõe no âmbito do horizonte de uma história de vida pessoal ou de uma forma de vida intersubjetivamente partilhada, e porque só se pode respondê-las de forma sensata com referência a esse contexto presente de antemão. Por outro lado, também nos dis­cursos éticos é natural que precisemos assumir um posicionamento reflexivo capaz de resistir à pressão dos interesses e imperativos acionais imediatos, de interromper na medida do possível o cumprimento in­gênuo do fluxo da vida e de distanciarmo-nos do próprio contexto de vida. Só que esse distanciamento de toda a rede de nossos processos de formação não pode (e nem precisa) ir tão a fundo como o que prati­camos na reflexão moral; nela, o que fazemos é assumir um posicio­namento hipotético em face das reivindicações de validação de nor­mas em particular que se tornaram problemáticas. Justamente o prag­matismo vem ensinar que não é o fiat de uma dúvida posta no papel que nos torna capazes de trazer para o lado objetivo nem nossa iden­tidade nem tampouco nosso universo de vida como um todo.

Polêmica, apenas, é a pergunta sobre se podemos propor e res­ponder questões morais tão-somente no interior do horizonte de nos­sas respectivas autocompreensão e compreensão de mundo eticamente articuladas e portanto particulares, ou se, à medida que consideramos algo sob um ponto de vista moral, procuramos ampliar esse horizonte de interpretação, e de forma tão radical que ele se "funde" aos hori­zontes de outras pessoas, para dizermos como Gadamer. Em vista dessa questão da precedência do justo sobre o bom, Bernstein não é plena­mente unívoco: "If I take my own life history as a Jew or an Ameri­can ... I certainly do not restrict myself to questions concerning my

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fellow Jews, Americans etc. I want to understand my responsabilities and obligations to those who are not members of the identified groups': Em primeiro lugar, isso já não corresponde a muito mais que dizer que nós nos propomos questões sobre a justiça enquanto pessoas com determinada autocompreensão e compreensão de mundo, e que enten­demos tais questões a partir desse horizonte. Entretanto, não é nada trivial perguntar se podemos responder satisfatoriamente à questão, no interior desse dado horizonte. Isso não se faz necessário e nem mes­mo possível se o que pretendo é obter clareza sobre minha identidade como judeu ou protestante, norte-americano ou alemão. Mas em ques­tões que dizem respeito a nossas obrigações morais como alemães dian­te de fugitivos bósnios ou de sem-teto na própria Alemanha, bem como em questões jurídicas, tais como a regulamentação de situações ur­gentes que começam a surgir ("violência doméstica", por exemplo), então sim está em jogo a legitimidade de expectativas e reivindicações que nos impomos não somente como participantes da situação espe­cífica, mas também como alheios a ela, para além de grandes distâncias geográficas ou históricas, culturais ou sociais. Aí não se trata mais do que é "bom" para nós como membros de uma coletividade ( caracteri­zada por um ethos próprio), mas sim do que é "correto" para todos, seja para todos os membros do universo de sujeitos capazes de agir ou fazer uso da linguagem, seja para todos os cônjuges de uma comuni­dade jurídica (seja ela local ou até mesmo global, conforme o caso). Ao julgar essas questões de justiça, procuramos uma solução impar­cial, em relação à qual todos os participantes (e atingidos) não tives­sem saída senão manifestar sua concordância, depois de muito ponde­rar sobre ela, no contexto de um diálogo isento de coerções e mantido sob condições simétricas de reconhecimento recíproco.

Em face dessa questão, há hoje três posições. Enquanto cada con­ceito de justiça (a) permanecer indissoluvelmente impregnado de uma respectiva concepção do bem, então também nós, ao julgarmos ques­tões de justiça, permaneceremos confinados no horizonte dado de nossa autocompreensão e compreensão de mundo. Assim, só poderá haver concordância entre partidos de origem diversa ou segundo o modelo da assimilação dos parâmetros deles pelos nossos (Rorty), ou então segundo o modelo da conversão, ou seja, da abnegação de nos­sos parâmetros em favor dos deles (Maclntyre). Ao contrário, (b) assim que consideramos uma maioria de imagens de mundo "modernas':

APf.NDICE A FACTICIDADE E VALIDAÇÃO 305

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capazes de se relacionar de maneira tolerante por causa do potencial universalista que apresentam desde sua origem, podemos contar, em questões da justiça política, com um consenso abrangente (Rawls). Já que- segundo o modelo da liberdade religiosa- pressupõe-se aqui certa ampliação de horizontes (das religiões mundiais e visões de mundo que nesse ínterim terão se tornado reflexivas), resulta disso uma concordância racionalmente motivada, ainda que isso se dê ape­nas mediante o fato de que soluções básicas idênticas (reconstruídas por Rawls em Uma teoria da justiça) sejam aceitas por razões diver­sas, caso a caso. Finalmente, a teoria do discurso (c) introduz adis­tinção entre questões éticas e morais de maneira que a lógica das ques­tões relativas à justiça passe a exigir a dinâmica de uma ampliação progressiva do horizonte, e afirma nesse sentido uma precedência do que é justo em relação ao que é bom. A partir do horizonte de sua respectiva autocompreensão e compreensão de mundo, as diversas partes referem-se a um ponto de vista moral pretensamente parti­lhado, que induz a uma descentralização sempre crescente das diver­sas perspectivas, sob as condições simétricas do discurso (e do apren­der-um-com-o-outro). G. H. Mead falou, nesse contexto, do "appeal to an ever wider community" ["desejo de uma comunidade sempre mais ampla"].

O fato de a distinção entre questões morais e éticas "fazer dife­rença" no campo da justiça política, e não estar simplesmente "cor­rendo em ponto morto", fica claro quando se consideram as discus­sões ocorridas hoje no âmbito do "multiculturalismo"6, bem como os esforços de paz ante os conflitos étnicos na Europa Oriental e Meridio­nal- ou ainda o exemplo da Conferência de Direitos Humanos de Viena, em que representantes asiáticos e africanos discutiram com re­presentantes das sociedades ocidentais a interpretação dos direitos fundamentais (ou ao menos tidos como fundamentais).

(2) Não é casual o fato de Frank Michelman estar entre os três ou quatro autores contemporâneos que citei com mais freqüência: foi de seus escritos que mais aprendi sobre política deliberativa, e foi através dessa leitura que me vi encorajado a aplicar a concepção de discurso ao direito e à criação do direito- à "jurigênese': como ele mesmo di-

6. Cf. ). Habermas, "Luta por reconhecimento no Estado democrático de direito", cf. supra pp. 229-267.

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ria. Nesse sentido, há uma grande concordância entre nossas posições, e ela se explica a partir de uma dependência (que não é simétrica, em absoluto). Em uma briga familiar as diferenças freqüentemente são tão mínimas que só se tornam visíveis quando são exageradas. Em minha apresentação, orientada por intenções mais sistemáticas do que hermenêuticas, é possível que eu tenha culpa de uma dessas exagera­ções. Pois não sei ao certo se as objeções de Michelman, tal como ocorre no caso de Bernstein, remetem -se a uma diferença filosófica de opinião, ou, mais que isso, a uma diferença no ângulo de visão concernente às respectivas disciplinas. Minhas reservas referem-se tão-somente a um conceito "dialógico" de política deliberativa que, por meio de uma opo­sição idealizadora ante à política "instrumental': exclui a grande massa das negociações, ou seja, a compensação de interesses com base no estabelecimento de acordos.

Para Michelman, trata-se da apreensão exata de um conceito de eticidade pós-convencional, ao qual cabe a tarefa de formar um con­texto formador de motivos propício à percepção adequada dos di­reitos de cidadania. Certamente, uma cultura política "transigente" nasce do contexto de uma respectiva história nacional; mas o que ela faz valer para uma cultura política "liberal", que gera e funda em so­ciedades pluralistas uma consciência civil partilhada, para além de todas as diferenças, é a remissão aos princípios da constituição, uni­versalistas e prenunciadores da igualdade de direitos. Os Estados cons­titucionais surgem naturalmente em grande quantidade e não se dis­tinguem entre si apenas no que concerne às suas ordens institucio­nais, mas sim na letra de seus atestados de fundação: "Constitutional law is institutional stuff from the word go': Contudo, o que faz que tais Estados sejam Estados democráticos de direito é a implementação de direitos fundamentais; e em face disso todos os intérpretes argumen­tam que esses direitos contêm um teor universalista de significado -por mais que se vejam polemizados a partir de horizontes de interpre­tação diversos: "But to say that originary discourse of legislative jus­tification must always proceed on ground that is already ethical is not to deny that they must always proceed within a horizon of universalist morality, sub specie aeternitatis':

O que Michelman afirma sobre a vinculação do jurista constitu­cional, e mesmo do juiz, a uma tradição jurídica eticamente impreg­nada não contradiz tal coisa. Ele exemplifica essa circunstância com o

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exemplo de que os tribunais nos Estados Unidos e no Canadá tratam de maneira diversa a nova situação de "hate speech". A partir das duas interpretações dessa diferença propostas por Michelman para que se opte por uma delas, eu gostaria de construir ainda uma terceira, que me parece adequada a um caso como esse: "The sarne (universal) prin­cipie of equalliberties for all, resting on somewhat different variants of discourses of originary constitutional justification, prevails in both countries, which have somewhat different cultural, and ethical histories. The doctrinal differences we observe are secondary applicational variants reflecting (what is probably) a combination of differing legal traditions and different social facts at the moment':

A neutralização de conflitos de valor e a "acedência de diferenças"

Thomas McCarthy é um caso de sorte para mim: na maioria das vezes, tenho a impressão de que ele entende meus textos melhor que eu mesmo. Ainda que exercendo todo tipo de crítica7, ele salvaguarda o que nesse ínterim passei a conhecer e reconhecer como nossa posi­ção em comum e defende-a contra objeções (especialmente por parte de Foucault, Rorty e dos desconstrutivistas8). Ele o faz, a propósito, com tanta perspicácia que fico inquieto ao ser contestado de forma enfática por ele, tal como acontece no ensaio9 que ora tenho diante de mim. É sabido que há duas décadas ele trata de validar restrições her­menêuticas contra pretensões fortes e sistemáticas de reconstrução racional (especialmente quando elas estão vinculadas a suposições

7. Th. A. McCarthy chamou-me muito cedo a atenção para problemas de cons­trução que atingem a estruturação da teoria como um todo. Cf. Th. A. McCarthy, The Critica/ Theory of fürgen Habermas, Cambridge, Mass., 1978; cf. tb. o anexo à edição alemã em livro de bolso: Kritik der Versti:indigungsverhi:iltnisse, Frankfurt am Main, 1989, pp. 501-616; cf. ainda, do mesmo autor, "Komplexitãt und Demokratie- die Versu­chungen der Systemtheorie". ln: A. Honneth; H. Joas (orgs.), Kommunikatives Han­de/n, Frankfurt am Main, 1986, pp. 177-215.

8. Cf. finalmente: O. Hoy; Th. A. McCarthy, Critica/ Theory. Oxford, 1994. 9. Em estágio inicial, sua crítica já estava desenvolvida em: Th. A. McCarthy,

"Praktischer Diskurs über das Verhãltnis von Moral und Politik". ln: Ideale und Illusionen, Frankfurt am Main, 1993, pp. 303-331.

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ligadas à teoria evolucionista); portanto, o alvo de suas contestações (de coloração mais pragmática, hoje em dia) não me impressiona tan­to quanto seu clímax antiuniversalista. McCarthy, de modo seme­lhante a Bernstein, insiste em um cruzamento dialético entre o bom e o justo: "The justice issue of what is 'equally good for ali' is not, strictly speaking, superordinate to 'self-understanding of the kind of society we want to live in': they are two independent aspects of the sarne pro­blem, namely 'which norms citizens want to adopt to regulate their life together"'. Tal como em Bernstein e Michelman, reafirma-se que os pontos de vista analiticamente distinguíveis "não se podem distin­guir na prática':

McCarthy parte da importante observação de que nas sociedades modernas surge um descompasso entre, de um lado, as diferenças ra­pidamente crescentes que os cidadãos constatam em suas interações cotidianas e, de outro, as exigências impostas a esses mesmos cidadãos por um sistema jurídico igualitário, a saber: a exigência de que igno­rem essas diferenças constatadas de maneira sempre mais penetrante. O espectro de diferenças que precisam ser trabalhadas pelos indiví­duos no plano de simples interações cresce na dimensão temporal, social e objetiva. A intervalos sempre menores, em contatos sempre mais fugazes, precisamos nos entender com pessoas sempre mais es­tranhas (marcadas por origens socioculturais muito diversas) sobre problemas sempre mais numerosos e específicos (o que se agrava ain­da mais com o inevitável crédito de confiança que se atribui de ante­mão aos especialistas no assunto em questão) 10• A individualização dos estilos de vida e sobretudo a composição eticamente heterogênea das sociedades multiculturais só fazem comprovar de maneira tanto mais drástica essas exigências de abstração, já que os estilos e formas de vida que colidem entre si são totalidades constitutivas de identidade, as quais recorrem a estruturas de personalidade em seu todo, e que portanto desencadeiam conflitos de valor "existenciais': McCarthy aborda os conflitos entre orientações decisivas de valores porque, diferentemen­te de oposições de interesses, tais conflitos não podem ser compensa­dos por meio de acordos quanto à distribuição de indenizações reco­nhecidas segundo sua natureza.

I O. Cf. Claus Offe, "Modem Barbarity: A Micro State ofNature?" Constellations, 2, 1996, pp. 354-377.

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Por causa de seu caráter coletivo, não é com os recursos do direi­to privado que se pode assegurar per se a coexistência de formas de vida em igualdade de direitos; pois direitos subjetivos asseguram li­berdades que se prestam de modo imediato a proteger o empenho por se cumprir de maneira autônoma cada um dos planos individuais de vida. O paradigma liberal ainda contava com certo isolamento dos indivíduos; quando se tratasse de concretizar cada uma das respectivas concepções do que fosse bom, caberia a cada indivíduo manter dis­tância dos outros, de forma que ninguém precisasse enviesar-se pelos caminhos alheios e portanto "perturbar" os demais. Em sociedades multiculturais e altamente individualizadas, no entanto, a tendência é de um encolhimento sempre mais complexo dos "recortes" no espaço social e no tempo histórico que possam ser ocupados por indivíduos diversos e por integrantes de subculturas diferentes, e que possam ser como que "privatizados" por eles. A pessoa do direito abstrata, tal como concebida pela dogmática clássica do direito, precisa ser substituída hoje por uma concepção intersubjetiva; a identidade do indivíduo está enredada com identidades coletivas. Como também as pessoas do di­reito só se individualizam por meio da coletivização social, não se pode garantir sua integridade sem a defesa dos contextos de vida e de ex­periência partilhados subjetivamente, nos quais tenham sido forma­das suas identidades pessoais e nos quais elas possam estabilizar essas mesmas identidades, caso a caso 11 •

Gostaria de (1) abordar duas máximas da neutralização de con­flitos de valores no âmbito do Estado de direito, (2) tratar de diversos detalhes que me parecem importantes para o esclarecimento da con­trovérsia, ( 3) discutir a alternativa sugerida por McCarthy e ( 4) propor uma reflexão indagativa sobre o ponto realmente problemático- qual seja a premissa da "única resposta correta".

(I) O Estado democrático de direito conta apenas com um re­pertório limitado de recursos para a regulamentação de conflitos de valores que resultam das inevitáveis interações entre (integrantes de) formas de vida coexistentes, muito embora "alheias" umas para as outras, de um modo existencialmente dissonante. (Assim como McCarthy, restringirei minha reflexão a esse tipo de conflito causado por via "multicultural':) Em nosso contexto, interessam sobretudo dois

II. Cf. J. Habermas, "Luta por reconhecimento': supra, pp. 248ss.

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recursos de neutralização normativa das diferenças: (a) a garantia da coexistência em igualdade de direitos e (b) o asseguramento da legi­timação mediante procedimentos.

Para (a), torna-se essencial distinguir entre questões de justiça e questões concernentes ao bem viver. Isso pode ser ilustrado a partir de situações como a eutanásia e o aborto, por exemplo. Imaginemos que se tenha chegado à conclusão - em discussões públicas conduzidas de modo suficientemente discursivo (o que não estou afirmando em relação aos exemplos mencionados, mas apenas supondo, em prol da argumentação) - que não se pode chegar a uma versão neutra dessa situação polêmica, no que diz respeito à visão de mundo, já que as descrições concorrentes da matéria que se pretende regulamentar estão entrelaçadas com a autocompreensão de diversas confissões, comuni­dades interpretativas, subculturas etc., articulada de maneira religiosa ou com base em determinada visão de mundo. Assim, estaria posto um conflito de valor que não poderia ser resolvido nem por via dis­cursiva nem através de acordo. Em uma sociedade pluralista consti­tuída sob a forma de um Estado de direito, evidentemente não se po­deria regrar uma situação eticamente controversa como essa, ao menos não por meio da descrição eticamente marcada- a partir da visão do universo dos jurisconsortes - de uma autocompreensão particular (mesmo que se tratasse da autocompreensão da cultura majoritária). Mais que isso, é preciso buscar uma regulamentação neutra (tal como no caso da sentença proferida pela Corte Constitucional Federal alemã, que determinou a retirada de crucifixos das salas de aula no estado da Baviera, fortemente marcado pela tradição cristã), ou seja, uma regu­lamentação capaz de encontrar, no plano mais abstrato da coexistên­cia de diversas comunidades eticamente integradas, o reconhecimento racionalmente motivado de todas as partes envolvidas no conflito e que convivem em igualdade de direitos. Para essa mudança do plano da abstração é necessária uma mudança de perspectiva. Os envolvidos precisam deixar de lado a pergunta sobre que regulamentação é "me­lhor para nós" a partir da respectiva visão que consideram "nossa"; em vez disso, precisam checar, sob o ponto de vista moral, que regulamen­tação "é igualmente boa para todos" em vista da reivindicação prio­ritária da coexistência sob igualdade de direitos.

Quando se fala da dificuldade que McCarthy vincula a essa abs­tração, trata-se aí, na verdade, de uma restrição. A mudança de pers-

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pectiva deve possibilitar uma regulamentação moralmente aceitável, ou seja, aceitável pelas mesmas razões e que não apresenta solução para o conflito de valor. Ora, tal regulamentação ainda não correspon­de à distribuição simétrica dos encargos decorrentes que terão de ser assumidos a partir de uma opção estratégica. Em vista do objetivo de uma coexistência sob igualdade de direitos, ela é "igualmente boa para todos", mas nem sempre em vista de toda e qualquer conseqüência. Não se pode excluir uma distribuição desigual dos "rigores" que uma solução justa acarrete para a autocompreensão ética de uma ou outra das partes envolvidas; mais que isso, é antes mesmo provável que tal coisa aconteça. Pois em geral a abstração trabalha em favor de uma regulamentação relativamente "liberal" (que a mim pessoalmente, por exemplo, pareceria bastante insuportável no caso da eutanásia). Por outro lado, a expectativa normativa associada a isso, de que em todo caso se tolere um comportamento eticamente condenável de integran­tes de um outro grupo (a partir de "nossa" visão), implica ao menos em parte uma ofensa a nossa integridade; a "nós" continua se permi­tindo recriminar eticamente a práxis de outras pessoas, mesmo que a ela se tenha garantido o aval jurídico. O que se exige juridicamente de nós é a tolerância em face de práticas que consideramos eticamente extraviadas a partir de "nossa" perspectiva.

Eis o preço a pagar pela convivência nos limites de uma comu­nidade jurídica igualitária, na qual diversos grupos de origem cultu­ral e étnica distintas precisam relacionar-se uns com os outros. É ne­cessário haver tolerância, caso se pretenda que permaneça intacto o fundamento do respeito recíproco das pessoas do direito uma pelas outras. O preço por "suportar" diferenças éticas desse tipo também é juridicamente exigível, desde que se assegure o direito a uma coexis­tência de diferentes formas de vida. Pois um direito como esse, "abs­trato" de uma perspectiva ética, constitui o ponto de referência para uma regulamentação que, por se poder aceitá-la pelas mesmas ra­zões em face do objetivo comum a todos, prescinde da única alterna­tiva existente, qual seja: o acordo a que se chega nos conflitos deva­lor que não admitem acordo, e que é essencialmente mais doloroso, por ameaçar integridades.

Sobre b ): Por certo isso só vale sob o pressuposto de que se trate efetivamente de uma circunstância ética que como tal e de maneira imediata não seja acessível a uma solução moral passível de consenso.

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Supõe-se que se deva ter chegado a essa constatação por debates con­duzidos de maneria suficientemente discursiva. Esse embate preli­minar assumirá um caráter renitente sobretudo se a mudança em dire­ção de um plano de abstração mais elevado propiciar soluções que tenham por conseqüência exigências de tolerância diferentes umas das outras. Mesmo quando se pode alcançar um consenso com base em um ponto de referência mais abstrato- o da coexistência de comu­nidades que vivem em igualdade de direitos e intactas em suas respec­tivas identidades -, tal como supomos aqui, mesmo assim não se terá chegado a uma conquista muito maior do que uma base sobre a qual se possa resolver o conflito a fundo. Também no plano das con­trovérsias morais, é só muito raramente que de fato se pode chegar a um comum acordo. Segundo ensina a experiência, é bastante freqüente que até mesmo questões de justiça claramente definidas mantenham seu caráter controverso, sobretudo em uma sociedade constituída de maneira heterogênea. Na fenomenologia de controvérsias duradouras, nada muda nem mesmo quando os envolvidos, em conjunto, tomam como ponto de partida (ou apenas supõem, de comum acordo) a exis­tência de uma única resposta correta para questões morais, desde que formuladas de maneira suficientemente precisa. Por isso McCarthy insiste em perguntar se a premissa de uma única resposta correta não acaba sendo um engano (ainda que talvez essa premissa, da perspec­tiva dos participantes, continue sendo elucidativa). Da perspectiva do observador, no entanto, constatamos que não se pode chegar (ou só muito raramente) a uma unidade quanto a questões políticas polêmi­cas, no que se refere a seu caráter normativo. Por que razão, em face de um dissenso contínuo, os participantes do processo democrático ainda deveriam orientar-se por um objetivo tão questionável quanto o de um comum acordo a princípio possível?

Uma resposta a essa questão central pode dar-se em dois pas­sos diferentes. Pois é preciso explicar duas coisas: por que é neces­sária a premissa da resposta correta única? E como, em último caso, ela pode ser conciliada com a evidência do dissenso permanente, que prepondera?

A melhor forma de responder à primeira pergunta é fazê-la a contrario. Se tomamos o Estado constitucional por uma ordem legí­tima, que por sua vez torna possível haver uma legislação legítima (bem como processos de criação do direito legítimos em geral), e se

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entendemos "legitimidade" em um sentido não-empirista12, então supomos a possibilidade de um acordo mútuo não-violento quanto a questões políticas. Pois nesse sentido amplo só se pode ver o "acor­do mútuo" como alternativa à imposição de um interesse mais forte (imposição sustentada sobre uma simples prática costumeira, uma coerção, uma influência, engodo ou sedução premeditados), caso os envolvidos- de maneira mediata ou imediata- aceitem por von­tade própria os resultados de um debate político (ou então possam aceitá-los sob condições adequadas). Esse sentido amplo de acordo mútuo contempla convenções que se firmam ora pela livre expres­são da vontade dos parceiros de negociação ou contrato (expressão que também pode ser voluntariamente pressuposta), ora segundo re­gras livremente aceitas para se chegar a acertos (regras reconhecidas como legítimas ou então como justas e honestas); e ele contempla também formações de consenso e resoluções fundamentadas que se apóiem sobre o reconhecimento racionalmente motivado de fatos, normas, valores e respectivas pretensões de validação, bem como de procedimentos de formação discursiva da opinião e da vontade (in­clusive decisões sustentadas em argumentação). O que qualifica tal acordo mútuo como alternativa ao "uso da força" é o fato de os parti­cipantes, em última instância, abandonarem-se à força geradora de laços comunitários, a qual emana do discernimento atestado por via comunicativa e da liberdade de expressão da vontade assegurada ins­titucionalmente (ou então de uma combinação entre "razão" e "von­tade livre'~ regulada por procedimentos). Não seria possível que os participantes se abandonassem a essa base comum, não fosse o fato de todos os cidadãos, pelas mesmas boas razões, poderem tomar como ponto de partida tanto a constituição, que instaura uma rede de pro­cessos legitimadores para se chegar ao acordo mútuo, quanto a supo­sição de racionalidade, que se vincula, ela mesma, a esses processos e instituições.

Isso tudo também permite fazer uma leitura republicana da pre­missa de "uma única resposta correta". As boas razões pelas quais os cidadãos confiam na legitimidade da constituição e na força legitima­dora do processo democrático poderiam estar amparados por um ethos político internalizado de maneira imediata, e com isso essas mesmas

12. Habermas, 1992, pp. 351-358.

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razões poderiam perder sua força de convencimento quando se tra­tasse de exercê-la para além da própria comunidade política. Essa lei­tura, no entanto, não permite a McCarthy trilhar caminho algum, já que ele exclui das sociedades multiculturais um consenso de valores "nato"; mais que isso, também espera por conflitos endêmicos deva­lores, de modo que no fim das contas tem de se ver a controvérsia acerca da autocompreensão ético-política de uma nação em seu todo como insolúvel, por uma questão de princípio. Minha argumentação, em face de McCarthy, afirma de início tantas coisas, que sob suas pró­prias premissas ele acaba não podendo explicar de que maneira é pos­sível haver legitimidade democrática, afinal.

Quando questões de justiça não podem transcender a autocom­preensão ética de formas de vida concorrentes, nem tampouco agir sobre os conflitos de valor existencialmente relevantes em meio a to­das as questões políticas controversas, então se chega, afinal de contas, a uma compreensão de política semelhante à de Carl Schmitt. Quan­do conflitos políticos, por serem essencialmente de natureza ética, não permitem como tais que se espere uma mediação racionalmente moti­vada, então os cidadãos têm de tomar como ponto de partida que a política, em seu todo, e de forma irremediável, é uma esfera do dissenso, pelo qual se deve esperar de maneira racional. Pois qualquer solução acabaria significando que os cidadãos também podem assumir outra perspectiva (a perspectiva da justiça, por exemplo), a partir da qual pudessem ultrapassar a perspectiva de envolvidos, de partícipes ime­diatos dos conflitos de valores. Enquanto não se admitir tal coisa, não se pode chegar a uma resposta sobre como caberia solucionar as con­trovérsias políticas dominadas por identidades hostis e perpassadas de conflitos de valor irresolúveis por via racional, senão pela imposi­ção ou, na melhor das hipóteses, por procedimentos conciliativos im­postos (e internalizados, ao longo do tempo). Isso exige uma descri­ção empirista dos processos de legitimação, com os quais, porém, McCarthy não se dá por satisfeito.

Se nós, como participantes de discursos políticos, não pudésse­mos convencer outras pessoas, nem aprender com elas, a política deli­berativa perderia seu sentido - e o Estado democrático de direito, o fundamento de sua legitimação. Se os envolvidos- certamente dota­dos da consciência falibilista de poder errar a todo momento- tam­pouco tomassem como ponto de partida que os problemas políticos e

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jurídicos controversos podem ter para si uma solução "correta", então a disputa política abrandaria seu caráter deliberativo e degeneraria a ponto de se tornar uma luta exclusivamente estratégica pelo poder. Sem estar orientados para o objetivo de uma solução de problemas passível de comprovação baseada em fundamentos, os participantes não saberiam de modo algum o que procurar. Por outro lado, como envolvidos não podemos ignorar ingenuamente as evidências empíri­cas. McCarthy tem razão ao insistir no seguinte: o que sabemos sobre o dissenso contínuo a partir de uma perspectiva de observadores pre­cisa vir a integrar-se ao que apenas supomos, na condição de pessoas voltadas ao acordo mútuo e envolvidas em aconselhamentos e discus­sões políticas. Ao menos, uma coisa não pode contradizer a outra. Em coisas práticas, apesar do dissenso permanente, é preciso que se deci­da; mas as decisões devem ser tomadas de tal modo que elas possam valer como sendo legítimas.

Essa exigência, que pode parecer paradoxal em um primeiro momento, satisfaz a "legitimação por meio de procedimentos", que se começa a discutir. Até aqui, estivemos atentos a que uma formação discursiva da opinião e da vontade precisa conferir legitimidade ao direito escrito. Igualmente interessante, no entanto, é o avesso da ques­tão: o fato de que o próprio processo de legitimação carece de insti­tucionalização jurídica. Pois eis aí o que mune os discursos (e negocia­ções) políticos das qualidades formais do direito. Afinal, é qualidade específica do direito poder coagir de maneira legítima. Graças a essa peculiaridade, e pelas vias de sua institucionalização jurídica, é que se podem introduzir coerções decisórias nos processos de aconselha­mento democrático (as quais se demonstram necessárias a partir da perspectiva do observador), sem que com isso se imponham danos à força legitimadora que, segundo a perspectiva de seus participantes, inere aos discursos. Tentei demonstrar, em outra ocasião, de que ma­neira os processos de aconselhamento e decisão podem ser juridica­mente institucionalizados (e alojados em comunicações públicas in­formais), de modo a fundamentar uma pretensão de racionalidade dos resultados almejados, em conformidade com determinados pro­cedimentos. Em um sentido bastante complexo, fala-se aqui do "proce­der" do "processo democrático': Este último, com aconselhamentos (e negociações) juridicamente institucionalizados, direciona o desenrolar de uma formação de opinião de caráter mais espontâneo (possibili-

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tada por vias jurídicas) em meio ao conjunto dos membros da socie­dade, e combina, por sua vez, os resultados daí decorrentes a procedi­mentos decisórios juridicamente obrigatórios.

Entre os procedimentos decisórios, a regra de maioria (qualifica­da, de acordo com certas exigências) é particularmente importante, porque a "racionalidade procedimental" que se atribui a ela (associada ao caráter discursivo dos aconselhamentos precedentes) confere força legitimadora às decisões de maioria. Decisões democráticas de maio­ria tratam de criar cesuras em um processo argumentativo (tempo­rariamente) interrompido sob risco de se tomar uma decisão e cujos resultados podem ser aceitos como base para uma práxis obrigatória, também pela minoria derrotada nas votações. Pois a aceitação factual não significa que a minoria tivesse de aceitar o conteúdo dos resulta­dos como sendo racional, ou seja, que ela tivesse de modificar suas con­vicções. O que ela pode fazer, no entanto, é aceitar por certo tempo a opinião da maioria como orientação obrigatória para sua ação, desde que o processo democrático lhe reserve a possibilidade de dar conti­nuidade à discussão interrompida, ou então retomá-la, bem como a possibilidade de mudar a situação da maioria em virtude de argumen­tos (supostamente) melhores. A regra da maioria deve sua força legi­timadora a uma racionalidade procedimental "incompleta" mas "pura': no sentido de Rawls13• Ela é incompleta porque o processo democrá­tico está instituído de tal maneira que dá direito a supor resultados racionais, sem poder garantir a correção dos resultados (o que ocorre, por exemplo, em um procedimento perfeito ligado a um caso em par­ticular). Por outro lado, trata-se de um caso de justiça procedimental pura, porque no processo democrático não se pode dispor de quais­quer critérios de correção independentes do procedimento e porque a correção das decisões depende tão-somente do cumprimento factual do procedimento. (Isso não chega a interferir na distinção subseqüente entre a justificação "direta" ou conteudística do procedimento em si mesmo, de um lado, e a justificação "indireta" das decisões individuais por meio da correta utilização dos procedimentos, de outro.)

(2) Parte da controvérsia com McCarthy, se não estou enganado, baseia-se em mal-entendidos. Eles dizem respeito sobretudo a três ques-

13. Cf. J. Rawls, Eine Theorie der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1975. pp. I 06ss. [ ed. br.: Uma teoria da justiça, São Paulo, Martins Fontes, 32000 ].

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tões em particular: (a) a distinção entre um plano omniestatal e um plano intra-estatal da integração ética; (b) o conceito da identidade coletiva, que deve ser entendido como processual; e (c) a impregna­ção ética da ordem jurídica estatal.

Sobre (a): Nos limites de um Estado nacional, temos de dis­tinguir (pelo menos dois) planos juridicamente relevantes da inte­gração ética. Os conflitos de valor que abordamos até o momento surgem da coexistência de diversas comunidades confessionais e in­terpretativas, subculturas e formas de vida no interior de uma nação de cidadãos ligados a um Estado (as quais, segundo queremos supor, não estão separadas territorialmente). Com freqüência, esses confli­tos intra-estatais são suscitados pelo fato de que o ethosde uma cultu­ra majoritária, preponderante por razões históricas, domina as re­lações jurídicas e impede, com isso, um tratamento igualitário (dos membros) das coletividades que se encontram integradas eticamente a esse plano subpolítico - o que se dá de maneira dissonante para as diferentes coletividades entre si. Em seu papel de cidadãos de uma mesma nação organizada como Estado, porém, os integrantes de diversas subculturas, em casos de conflito, vêem-se obrigados a pres­tar contas à norma prioritária da coexistência em igualdade de di­reitos, mantida por meio de regulamentações abstratas. Como se de­monstrou, no entanto, para se conquistar regulamentações desse tipo, que asseguram a integridade defensável de cada um em suas corpora­ções culturais peculiares e formadoras da identidade, é preciso pagar o preço sociopsicológico bastante amargo das exigências de tolerância. Em face de tais considerações, é preciso ter em conta que o plano da integração ético-política da coletividade estatal em si mesma distin­gue-se disso tudo.

Nesse último plano está o que se chamou nos Estados Unidos de "civil religion"- um "patriotismo constitucional" que vincula todos os cidadãos do Estado, não importando suas diferentes marcas cultu­rais ou origens étnicas. Trata-se aí de uma grandeza meta jurídica; pois esse patriotismo constitucional baseia-se na interpretação das reco­nhecidas proposições fundamentais da constituição, que são univer­salistas, segundo seu teor, e provêm do contexto da respectiva história e tradição nacional. Pois dos cidadãos só se pode esperar uma lealdade constitucional não coagida juridicamente e assentada em motivos e estados de consciência moral, se esses mesmos cidadãos forem capa-

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zes de conceber, a partir dos próprios contextos históricos, o Estado democrático de direito como uma conquista sua. Tal patriotismo cons­titucional só está livre de laivos ideológicos quando os dois planos da integração ética-a omniestatal e a intra-estatal- puderem ser man­tidas separadas. Normalmente é preciso lutar em favor desse desaco­plamento e opor-se com isso à cultura majoritária. Só então surge um fundamento motivacional propicio às exigências de tolerância resul­tantes das diferenças sustentadas por via jurídica entre as comunida­des eticamente integradas no interior de uma mesma nação14•

Sobre (b): McCarthy lembra a dessemelhança estrutural entre a autocompreensão intersubjetivamente partilhada por uma comu­nidade e a identidade entre as pessoas em particular. Eu mesmo sem­pre adverti 15 quanto ao risco de conceber a identidade coletiva de uma comunidade de cidadãos segundo o modelo da identidade subje­tiva. Mais que isso, as duas comportam-se de maneira complementar uma em relação à outra. E um sujeito amplo ("a unified we") com cer­teza não surge assim da integração ética dos cidadãos de uma coletivi­dade política. Mas os integrantes de um Estado também não são ape­nas membros de uma organização; mais que isso, eles partilham uma forma de vida política que se articula em uma respectiva autocom­preensão. Integrantes de uma coletividade sabem intuitivamente ante que perspectivas e em que situações eles dizem "nós"- e sabem tam­bém quando esperar dos outros esse mesmo "dizer nós". No entanto, em uma sociedade pós-tradicional, pluralista no que diz respeito a diversas visões de mundo e (tanto mais nesse caso) multi cultural, a questão sobre como "nós" queremos compreender-nos enquanto ci­dadãos de uma determinada república mostra-se polêmica, além de ser proposta de maneira explícita e a partir de ensejos diversos. E os discursos de auto-entendimento continuam em curso, mesmo em contextos cambiantes.

14. Mutatis mutandis isso também se aplica à neutralidade de uma autocompre­ensão civil que se exige de todos em face de outras diferenças (de gênero, de classe social, de idade etc.). As diferenças de situação de vida, sobretudo as que se fundamen­tam em questões sexuais ou socioeconômicas, vinculam-se cumulativamente com as distinções culturais e étnicas.

IS. Isso já estava presente em meu discurso sobre Hegel, de 1974, por ocasião da pergunta: "Kõnnen komplexe Gesellschaften eine vernünftige Identitát ausbilden?" [As sociedades complexas podem estabelecer uma identidade racional?], in: J. Habermas, Zur Rekonstruktion des Historischen Materialismus, Frankfurt am Main, 1976, pp. 92-126.

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Nossa identidade não é apenas algo que assumimos, mas tam­bém um projeto de nós mesmos. Não podemos escolher nossas pró­prias tradições: alguns têm os patriarcas fundadores e uma tradição constitucional bicentenária nas costas, por mais que essa tradição possa merecer críticas; outros, a Revolução Francesa; e outros, alemães como eu, a assim chamada "Guerra de Libertação" contra Napoleão, a malo­grada Revolução de 1848, o Império guilhermino, a República de Weimar, que fracassou, o nacional-socialismo e os crimes em massa cometidos nessa época, a guinada de 1989, e assim por diante. Mas depende de nós escolher as tradições a que queremos dar continuida­de ou não16• A isso corresponde um conceito processual de identidade coletiva. A identidade de uma nação de cidadãos ligados a um Estado não é nada estática; de qualquer maneira, ela se projeta hoje em dia nos parâmetros delimitados pelo respectivo espectro da disputa pública em torno da melhor interpretação da constituição, e em torno de uma autocompreensão autêntica das tradições constitutivas da coletivi­dade política. Enquanto princípios constitucionais vigentes continua­rem formando o foco comum desses discursos de auto-entendimento talhados segundo as formas de vida da nação como um todo, as inter­pretações concorrentes também continuarão se sobrepondo de ma­neira suficiente para assegurar- "for the time being"- uma concor­dância capaz de sustentar a integração ético-política dos cidadãos, mes­mo que de maneira difusa. Em todo caso, as discussões sobre temas específicos que concernem à forma de vida histórica comum a uma nação em seu todo vêm se cumprindo mesmo em face desse cenário algo oscilante. Uma questão político-ética de tipo mais trivial, por exemplo, diz respeito à prontidão de uma população a correr riscos maiores ou menores quando se trata de ponderar o grau de segurança referente à tecnologia pesada, em comparação aos encargos econômi­cos daí decorrentes.

Sobre (c): Entretanto McCarthy tem razão ao mostrar-se cético diante de minha tentativa (corrigida no Posfácio da 4a edição do livro) de ordenar aspectos pragmáticos, éticos e morais a determinadas clas­ses de matérias legislativas. Via de regra, as questões políticas são tão complexas que têm de ser discutidas sob todos esses aspectos ao mesmo

16. Cf. J. Habermas, "Grenzen des Neohistorismus". ln: Die nachholende Revolu­tion, Frankfurt am Main, 1990, pp. 149-156.

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tempo - os quais se podem separar tão bem de um ponto de vista analítico17• McCarthy no entanto tira conseqüências erradas quando reflete sobre a circunstância de toda ordem jurídica nacional, localiza­da no tempo e no espaço, que se vê "impregnada" pela autocompreen­são ética de uma forma de vida política. Pois a impregnação ética do direito não aniquila de modo algum os teores universalistas do direito.

Se diferentes constituições nacionais representam tantas diferen­tes leituras dos mesmos direitos fundamentais- os quais são passíveis de reconstrução teórica -, e se diferentes ordens jurídicas positivas implementam os mesmos direitos fundamentais em formas de vida tão numerosas, então a identidade do sentido desses direitos- e a univer­salidade de seu teor- não precisa se diluir no espectro dessas diversas interpretações. Embora o direito positivo vigente sempre tenha um campo de aplicação estatal limitado (e mesmo um direito internacional que se imponha mundialmente continua sendo provinciano ante o universo), essas ordens jurídicas, mesmo assim, não poderiam reivin­dicar legitimidade alguma, se, de uma maneira racionalmente acei­tável, não estivessem em consonância com princípios morais. A preten­são de universalidade do sistema jurídico que está vinculada aos di­reitos humanos ganha em atualidade especialmente nos casos em que as crescentes interdependências do Mundo Único trazem à ordem do dia a disputa em torno da seletividade das diferentes leituras culturais. Essa querela interpretativa só faz sentido sob a premissa de que cabe encontrar uma leitura correta, capaz de esgotar de forma satisfatória o teor universalista desses direitos no contexto contemporâneo.

Tampouco no âmbito de uma ordem jurídica nacional, uma dis­tinção entre aspectos da justiça e do auto-entendimento não opera no sentido de um cruzamento dialético que nos deixa para trás, com uma disputa insolúvel entre concepções de justiça que dependem dores­pectivo contexto. O teor universalista dos direitos fundamentais não está restrito pela impregnação ética da ordem jurídica estatal; o que ocorre, sim, é que ele perpassa os contextos de coloração nacional. Eis a única razão para que a neutralização jurídica dos conflitos de valor, que ademais deixaria a coletividade política em frangalhos, exija que se privilegie o aspecto da justiça. Do ponto de vista normativo, as ques-

17. Cf. }. Habermas, Posfácio. ln: Faktizitiit und Geltung, Frankfurt am Main, 1994, p. 667, nota 3.

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tões de justiça também têm primazia por uma outra razão: há con­cepções do que seja bom que sancionam relações internas autoritá­rias. Na Alemanha, por exemplo, é preciso não somente firmar os di­reitos de jovens turcas por oposição à vontade de seus pais, os quais evocam prerrogativas de sua cultura de origem para tentar impor-lhes padrões de comportamento, mas também direitos individuais em ge­ral, por oposição a pretensões coletivas nascidas de uma autocom­preensão nacional. Não creio, por exemplo, que nos dias de hoje os Estados ainda possam manter a obrigatoriedade universal do serviço militar, ou seja, que possam exigir de determinados grupos (do sexo masculino) em uma faixa etária específica que ponham suas vidas à disposição, em prol da pátria. Concordo com a seguinte afirmação de McCarthy: "Legitima te law is at once a realization of universal rights and an expression of particular self-understandings and forms of life. A concrete law must be both at once." Mas a frase que segue, "Hence its acceptability or legitimacy can be thematized under both aspects: the right and the good", só está correta mediante a seguinte restrição: no caso de conflito, argumentos de justiça são trunfos dworkianos, os quais tratam de extirpar e afastar as ponderações feitas a partir de uma perspectiva interna de uma forma de vida que coexista em igualdade de condições com outras subculturas.

(3) Na questão central sobre a possibilidade de fundamentar a precedência do que é justo em relação ao que é bom, McCarthy não é totalmente unívoco. A partir da visão ético-existencial de um projeto de vida pessoal, "justiça" está entre os valores que podem ser ponde­rados em relação a valores diversos, até mesmo precedentes, inclusive quando já se tem claro que a práxis que se privilegia deve satisfazer os parâmetros da justiça. Contudo, as questões de justiça no sistema de referências do convívio de uma sociedade multicultural no âmbito de um Estado de direito afirmam uma precedência incondicionada. Por um lado, McCarthy admite tal coisa; insiste, por outro lado, em que também aqui não se podem separar "em última instância" as ques­tões de justiça das questões ético-políticas. Ele repete sua asserção ante­rior: "We cannot agree on what is just without achieving some measure of agreement on what is good 18 ". Isso é correto, mas não deixa de ser trivial enquanto "a certa medida de concordância" referir-se apenas à

18. McCarthy, Ideais and Illusions, Cambridge (Mass.), 1991, p. 192.

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exigência funcional de uma sobreposição suficiente das formas de vida subculturais. Toda formação estatal, caso não deva esfacelar-se em seus vários segmentos, justamente depende também da força integrativa de uma cultura política em comum. Essa é uma asserção sociológica. Enquanto asserção filosófica, a frase permite duas interpretações. Ou todas as noções de justiça- no sentido de Taylor e Maclntyre 19 - são dependentes, por razões conceituais, do contexto das concepções es­peciais do que seja bom (não poderei me dedicar mais detalhadamen­te a essa interpretação20); e com isso só se poderá chegar a um único fundamento ético em comum sobre o conceito de justiça. Ou então se afirma que todas as elucidações de um conceito universalista de justi­ça tido em comum têm inevitavelmente que tomar como ponto de partida o horizonte de uma concepção própria do que seja bom, caso a caso; mas então a crítica mútua às diferentes leituras de "justiça" pode continuar se apoiando na premissa de que o conceito geral de justiça, intuitivamente oscilante, pode se desenvolver em seu teor uni­versalista a partir da disputa discursiva e por princípio de maneira de­pendente em relação ao contexto.

McCarthy, em todo caso, considera insuficiente a explicação dada pela teoria do discurso para as práticas concernentes ao Estado de di­reito e alude à alternativa de um convívio sem violência baseado no reconhecimento de "reasonable agreements": "Members may be said 'rationally' to accept outcomes with which they substantively disagree only in an attenuated, indirect sense: they abide by the rules they accept as fair even when things don't go their way". Essa alternativa, porém, parece levar ao tipo de legitimidade procedimental sugerida; tal legiti­midade deve garantir uma neutralização dos dissensos racionalmente esperáveis, os quais, em sociedades pluralistas, são inevitáveis entre os padrões valorativos de diferentes comunidades, integradas cada qual em torno de concepções próprias do que seja bom. Apenas a frase sub­seqüente permite reconhecer a diferença em relação à explicação dada pela ética do discurso: "Rational acceptance does not here have the cognitive sense of succumbing to the force of the better argument." Em lugar da expectativa de um acordo mútuo que por princípio é possí-

19. Cf. minha crítica in: J. Habermas, Erliiuterungen zur Diskursethik, Frankfurt am Main, 1991, pp. 176-184 e 209-218.

20. Cf., porém, L. Wingert, Gemeinsinn und Moral, Frankfurt am Main, 1993.

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vel, devem surgir a tolerância, o respeito mútuo, o amparo etc. Segun­do suponho, o fato de McCarthy não tornar ainda mais precisa essa alternativa tem sua explicação em uma certa falta de clareza quanto às condições cognitivas a serem preenchidas para que se possa exigir to­lerância de maneira racional.

Pois só podemos chegar a um consenso sobre a tolerância mútua de formas de vida e visões de mundo que signifiquem umas para as outras um desafio existencial, quando temos uma base constituída de convicções em comum em favor desse "agree to disagree". Ora, segun­do as suposições de McCarthy faltam nas questões de justiça convicções éticas em comum e até mesmo uma base em comum. Quando, porém, não consideramos possível a conquista racional de um consenso, nem mesmo nesse plano mais abstrato, então só resta o recurso às práticas costumeiras, à imposição forçada de interesses e à adequação involun­tária (compliance). Isso pode bastar para o equilíbrio precário de uma trégua, para um modus vivendi provisório, mas não para um recurso à tolerância, fundamentado por via normativa. De fato, sociedades com­plexas dependem cada vez mais da tolerância almejada por McCarthy, a qual não se pode impor juridicamente; ou seja, dependem sempre mais da prontidão a suportar diferenças existencialmente significati­vas e da prontidão a cooperar com integrantes de formas de vida disso­nantes; ao mesmo tempo, no entanto, essa exigência é tomada cada vez mais, de um ponto de vista subjetivo, como uma exigência imper­tinente. A tolerância, a partir da visão do observador sociológico, passa a ser vista como recurso sempre mais escasso. Por isso, a exigência de tolerância carece de justificação normativa- e isso em proporção cres­cente. Essa justificação, por sua vez, precisa atender à reivindicação de que a coexistência das formas de vida protegidas em sua integri­dade sejam também regulamentadas de maneira justa e honesta, ou seja, de acordo com regras que possam ser aceitas por todas as partes, de maneira racional.

( 4) O processo democrático só promete uma racionalidade pro­cedimental "imperfeita" mas "pura': sob a premissa de que em princí­pio os participantes considerem possível haver justamente uma res­posta correta também para as questões de justiça. Em tal medida sub­siste uma analogia em relação à disputa sobre questões factuais, a qual não levaríamos adiante com recursos argumentativos, caso não to­mássemos como ponto de partida que, em princípio, podemos nos

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convencer da verdade ou falsidade de um enunciado. O fato de "nos considerarmos capazes da verdade", em uma atitude performativa, naturalmente não significa que precisaríamos despertar fortes expec­tativas de atingir o consenso- ou que deixaríamos de poder nos en­ganar a qualquer momento. No sistema da ciência, a contradição e o dissenso estão afinal institucionalizados a serviço da busca coopera ti­va da verdade. Por outro lado, também não se pode extrapolar a ana­logia. Quando não levamos em conta as diferenças entre reivindica­ções de validação assertóricas e normativas, então incorremos em in­terpretações intelectualistas equivocadas acerca do que a razão prática é capaz de fazer. McCarthy tem razão ao perguntar: "Is the search for truth about 'the' objective world an appropriate analogue of the search for justice in 'our' social world?" A pergunta é inquietante em face da premissa de "uma única resposta correta".

Depois de manter discussões com Friedrich Kambartel sobre o intuicionismo na matemática, gostaria de atenuar minha tese quanto a isso, que defendi até aqui de maneira severa. O princípio de bivalência aplica-se bem a enunciados empiricamente substanciosos sobre algo que está no mundo objetivo. Ao considerar o universo dos objetos sim­bólicos criados por nós, porém, como suponho agora, temos de contar com uma classe de enunciados que hic et nunc não são nem falsos nem verdadeiros e sobre os quais só podemos decidir quando logramos cons­truir um procedimento justificativo (tal como na matemática se constrói um procedimento comprobatório). Considerando-se a constituição ontológica do mundo social, que (como disse Marx, ao retomar Vico) nós mesmos ocasionamos, ainda que não de modo voluntário e cons­ciente, é mesmo plausível que a relação entre construção e descoberta (assumida para o conhecimento do mundo objetivo) seja posta a cargo da fantasia abdutiva. Em face de problemas difíceis temos de deixar que as construções certas nos "ocorram".

É natural que eu não queira equiparar o direito e a moral com o campo objetal das relações e objetos produzidos matematicamente. Com referência a seu sentido de validação, os dois tipos de enunciado estão até mesmo muito distantes um do outro. Algo semelhante a uma "verdade analítica" (caso devesse haver algo assim, à revelia de Quine) não se presta à elucidação de "çorreção moral" ou "legitimidade". Além disso, direito e moral referem-se à regulamentação de relações inter­pessoais entre agentes por assim dizer enraizados no mundo objetivo

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e que têm aí, até certo ponto, um fundamentum in re. Por outro lado, as ordens modernas do direito "escrito" são, de maneira semelhante, criadas e construídas artificialmente, tal como o intuicionismo supõe em relação aos objetos da geometria e da aritmética. Portanto, tam­bém não é totalmente despropositado contar nesse universo com per­guntas para as quais não haja uma resposta claramente única, enquanto a "construção" não "lograr êxito" para os envolvidos. Em face da regu­lamentação normativa de interações, talvez não devêssemos contar a priori com a validação do princípio da bivalência. Pode ser que no caso em particular não falte acuidade argumentativa, mas talvez cria­tividade. Mesmo assim, nesse campo pantanoso, em que é preciso to­mar decisões em prazos determinados, não podemos esperar indefi­nidamente por idéias construtivas que nos ocorram de repente. Se es­tiver correta nossa suposição, diante de tais situações normativamente insolúveis apenas operaríamos com a premissa (genericamente vá­lida) da "resposta correta única': assim como se fosse uma aposta ades­coberto em favor do futuro. Porém, jamais poderemos abandonar essa premissa, caso não queiramos que o processo democrático, ao perder sua racionalidade procedimental inerente, perca também sua força legitimadora. Sob as condições de um pensamento pós-metafísico, porém, não vejo qualquer alternativa a isso.

Forma e conteúdo: o cerne "dogmático" do procedimentalismo

(I) Michel Rosenfeld pretendeu demonstrar que o paradigma pro­cedimentalista desenvolvido por mim não é "procedimentalista" em sentido "genuíno", mas apenas em sentido "derivado". Para ser mais exato: "Derivative Proceduralism is not genuine proceduralism but rather substantive theory in procedural garb". Em face de tal teoria, que não admite suas próprias pressuposições substanciais, Rosenfeld defende um pluralismo que seja "abrangente': por ser substancial em seu teor, e que difira do tipo liberal de pluralismo, por não se remeter à neutralidade de um método para eliminar conflitos. Gostaria de de­volver a reprimenda a Michel Rosenfeld: Comprehensive pluralism is not substantive theory but rather proceduralism in substantivist garb.

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Para constatar em que ponto a controvérsia vai além do jogo de pa­lavras, gostaria em primeiro lugar de comentar (a) o conceito de "pro­cedimento" e (b) dedicar-me à problemática da igualdade de conteú­do jurídico.

(a) Rosenfeld menciona a teoria hobbesiana do contrato social como exemplo de um procedimentalismo genuíno, porque ela justi­fica as regras do convívio social por meio de uma convenção entre to­dos os envolvidos, firmada em conformidade com procedimentos. A ela contrapõe a teoria de Locke, como exemplo de um procedimenta­lismo "derivado", porque aí o direito natural à propriedade seria um preceito substancial para o contrato social. Em oposição a Hobbes, Rosenfeld defende a esclarecedora tese de que não seria possível haver legitimação de uma ordem jurídica apenas com base em uma justiça procedimental: "Proceduralism may ( only) be acceptable in the context of contestable substantive norms." A tese é correta para um conceito estrito de procedimento. De fato, o que subjaz ao fechamento do con­trato social hobbesiano (segundo o modelo do contrato burguês de direito privado) é tão-somente a declaração formal da vontade dos en­volvidos. Essa figura jurídica deveria garantir a justeza procedimental tanto "perfeita" quanto "pura':

Rosenfeld, no entanto, ainda pretende aplicar sua tese a outros procedimentos jurídicos; por exemplo, aos procedimentos processuais judiciais ou conformes à juridicidade que assegurem uma justeza pro­cedimental pura e independente de preceitos substanciais, ainda que imperfeita. Como exemplo, ele toma a audiência de um cliente diante de um tribunal social ou de um comitê de administração que decidem sobre reivindicações sociais de rendimento. Em tais casos, embora o curso regular do procedimento assegure o respeito pela dignidade humana do cliente, preceitua-se ao próprio procedimento uma nor­ma social conteudística que se considera justa ou injusta independen­temente do procedimento. Quando se avança com esse mesmo exem­plo, no entanto, acaba-se por deparar com o procedimento democrá­tico do legislador político, que precisará ter decidido anteriormente sobre essa norma. E aí se chega à questão polêmica: de onde afinal é que as normas jurídicas obtêm sua legitimidade, quer regulem com­portamentos, quer criem competências, quer fixem procedimentos (da legislação, da justiça, da administração -e da vinculação dos pode­res um ao outro)? Elas a obtêm a partir de razões substanciais ou de

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procedimentos? A resposta quanto ao papel que a distinção forma/ conteúdo reserva para si no paradigma juridico procedimentalista de­pende da compreensão desse processo que gera legitimidade.

No início de minha reconstrução do sentido de uma ordem ju­rídica legítima situa-se a decisão de um grupo (aleatório) de pessoas que a partir de então querem regular seu convívio com recursos do direito positivo, e que dão início, portanto, a uma práxis em comum, com a qual possam levar a cabo essa intenção. O sentido performativo dessa práxis geradora de constituições consiste assim em revelar e de­cidir em comum quais são os direitos que (sob a premissa já mencio­nada) cabe aos envolvidos reconhecer de maneira recíproca. Portanto, preceituam-se duas coisas à práxis geradora de constituições: o direito positivo como medi um de regulamentações vinculativas, bem como o princípio discursivo como instrução para os aconselhamentos ou de­cisões racionais. Uma combinação e imbricamento desses dois elemen­tos formais tem de bastar para a instauração de processos de criação e aplicação do direito legítimo. Pois sob as condições do pensamento pós-metafísico não se pode contar com um consenso que continue a avançar e seja conteudístico, nesse sentido. A restrição a pressupostos formais, nesse sentido, é como que talhada para as condições especifi­camente modernas de um pluralismo de visões de mundo, formas culturais de vida, posições de interesse etc. Naturalmente, ela não sig­nifica que uma práxis geradora de constituições desse tipo esteja isenta de quaisquer teores normativos. Ao contrário, no sentido performativo dessa práxis, que simplesmente se desdobra no sistema dos direitos e nos princípios do Estado de direito, já se encontra, como cerne dog­mático, a idéia (rousseauniana e kantiana) da autolegislação de juris­consortes livres e iguais, associados voluntariamente. Essa idéia não é apenas formal; na verdade, como ela pode ser totalmente desenvol­vida sob as formas de uma práxis geradora de constituições que em seus detalhes não está conteudisticamente determinada (e em formas de uma práxis da configuração de um sistema de direitos insaciáveis, determinada tão-somente por normas constitucionais), subsiste a su­posição bem fundamentada de que ela é neutra no que concerne a visões de mundo, desde que as auto-interpretações e as interpretações de mundo sejam não-fundamentalistas, isto é (no sentido das "not unreasonable comprehensive doctrines" de Rawls), desde que elas se­jam compatíveis com as condições do pensamento pós-metafísico.

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Essa distinção forma/conteúdo refere-se inicialmente apenas à provável neutralidade de princípios jurídicos em face de conteúdos concernentes a visões de mundo específicas. Sua natureza formal reve­la-se em tal medida no modus procedimental próprio à legitimação da criação e imposição do direito, sobretudo na formação da vontade e da opinião política (centrada no processo legislativo) e na jurisdição. As duas coisas são processos regulados por "procedimentos" em sentido amplo. Esse conceito complexo de procedimento, como foi dito, é nor­mativo e não é neutro; e também é "formal': ou neutro no que concer­ne ao conteúdo, somente quando tomado em um sentido que carece de maiores explicações. (Nas explicações gerais a seguir não poderei entrar em detalhes quanto às importantes diferenças entre os proce­dimentos legislativos, judiciais e administrativos.)

Nesses casos trata-se de procedimentos sociais decisórios21 , que vinculam a tomada de decisão ao resultado de aconselhamentos, à medida que acoplam discursos a procedimentos deliberativos. Os pro­cessos de formação da opinião e da vontade estão institucionalizados em seu todo, bem como em sua estrutura e decurso. Nesse complexo entrecruzam-se três tipos de procedimento. O cerne é constituído por discursos nos quais os argumentos são intercambiados a fim de responder a questões empíricas e práticas, ou seja, a fim de resolver problemas. Esses processos argumentativos obedecem a procedimen­tos puramente cognitivos. Os convencimentos almejados de maneira argumentativa formam assim o fundamento de decisões que por sua vez estão reguladas por procedimentos deliberativos (via de regra a resolução de maioria). E os dois processos, aconselhamento e delibe­ração, são finalmente institucionalizados por procedimentos do di­reito. Os procedimentos jurídicos regulam, entre outras coisas, a com­posição de corporações (via de regra através de eleição ou delega­ção), a distribuição de papéis entre os participantes (p. ex. em proce­dimentos judiciais), a especificação dos conteúdos (temas e contri­buições admissíveis), os passos da análise (p. ex. de questões de fato e de direito), os fundamentos da informação (trabalhos periciais, mé­todos de investigação etc.), bem como a pontuação dos transcursos de tempo (leituras reiteradas, prazos de decisão etc.). Em suma, os

21. Sobre o que segue, cf. B. Peters, Rationalitiit, Recht und Gesellschaft, Frank­furtam Main, 199l,Cap. VII.

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procedimentos do direito devem cuidar de que ocorra a instituição vinculativa de processos de aconselhamento discursivas e de proces­sos decisórios justos e honestos.

Discursos que, de acordo com as respectivas proposições de ques­tões, obedecem a uma lógica própria (e estão aliados no meio parla­mentar a procedimentos justos e honestos para firmar acertos, isto é, procedimentos discursivamente fundados) formam o centro nervoso desses processos multiplamente entrecruzados, a ponto de caber a eles o encargo da legitimação. Processos argumentativos, porém, como já se mencionou, são suficientes apenas para condições de uma racionalida­de procedimental imperfeita, e isso na medida em que eles se cumpram sob formas de comunicação e segundo regras que incrementem uma "busca cooperativa da verdade': A institucionalização (de uma rede) de discursos (e negociações) tem de se orientar em primeira linha de a cor­do com o objetivo de cumprir da maneira mais ampla possível os pres­supostos pragmáticos comuns de argumentos em geral (acesso univer­sal, participação sob igualdade de direitos e igualdade de chances para todas as contribuições, orientação dos participantes em direção ao en­tendimento mútuo e incoerção estrutural). A instituição dos discursos, portanto, deve assegurar tanto quanto possível, sob as restrições tempo­rais, sociais e objetivas dos respectivos processos decisórios, o livre trân­sito de sugestões, temas e contribuições, informações e razões, de ma­neira que possa entrar em ação a força racionalmente motivadora do melhor argumento (da contribuição convincente ao tema relevante).

Aqui parece ter origem o velamento da substância por meio da forma, do qual Rosenfeld se queixa. Pois pode-se duvidar, como fez Bernhard Peters22 , de que seja possível descrever a práxis argumenta­tiva como um procedimento imperfeito mas "puro': que fundamente a suposição de resultados racionais. Pois não são afinal as razões subs­tanciais que decidem sobre o resultado correto, em vez do "procedi­mento" de um intercâmbio de argumentos regido por regras? Não há, para o julgamento de um resultado alcançado em conformidade com o procedimento, razões que independem do próprio procedimento, de modo que sequer se poderia falar em uma legitimação procedi­mental? A resposta a isso depende do sentido em que consideramos as questões práticas como "capazes de conter verdade".

22. Peters, 1991, pp. 253ss. e 258ss.

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A partir da visão de posições não-cognitivistas, em todo caso, espera-se da argumentação em direito e moral que ela sugira discerni­mento onde não pode haver discernimento, mas apenas preferências e posicionamentos, emoções e decisões. Igualmente insatisfatório é um realismo moral que conta com fatos valorativos reconhecíveis ou com direitos naturais, com uma ordem normativa que subsista inde­pendentemente de nossas construções. A teoria da correspondência da verdade já de saída é implausível para enunciados descritivos; para a correção de enunciados normativos não podemos supor de modo algum uma correspondência com algo dado. Contudo, se não pode­mos questionar neles uma pretensão cognitiva, resta conceber "corre­ção" como aceitabilidade racional sob certas condições idealizadas. Consideramos válidos os enunciados normativos para os quais rei­vindicamos a possibilidade de que sejam fundamentados por via ar­gumentativa. Essa formulação, entretanto, ainda é ambígua porque esse "fundamentar" apóia-se tanto na práxis de fundamentação quan­to no respectivo fundamento. Que "procedimentalismo" seria esse, caso se pudesse criticar, à luz de razões substancias em particular, o resultado de uma práxis fundamentadora cumprida de maneira correta? Eis aí a pergunta de Bernhard Peters.

Em face da falibilidade fundamental de nosso saber não basta nenhum desses dois elementos, nem forma, nem substância, toma­dos por si mesmos. Por um lado, uma estrutura da práxis fundamen­tadora, aceita em um contexto restritivo e ainda tão propícia, só pode tornar provável na melhor das hipóteses que o intercâmbio de argu­mentos se cumpra com base em todas as informações e razões rele­vantes e disponíveis em dado momento, bem como no âmbito do respectivo vocabulário (ou sistema descritivo) mais fértil possível. Por outro lado, não há quaisquer evidências ou critérios de valoração que precedam a argumentação, isto é, que não possam ser eles mesmos problematizados e que não precisem, por sua vez, ser validados por uma concordância que se almeja discursivamente e que está racional­mente motivada, sob condições discursivas. Por não haver, em ques­tões práticas, evidências "últimas" nem argumentos "acaçapantes", temos de recorrer a processos argumentativos, como procedimentos, a fim de explicar por que nos atrevemos a assumir e resolver reivindica­ções de validação "que transcendam", isto é, que apontem para além do respectivo contexto em particular.

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Procedimentos e razões, forma e conteúdo estão de tal modo imbricados, que nos convencemos de poder defender com boas ra­zões os enunciados que consideramos válidos, e de poder defendê-los à revelia de todas e quaisquer objeções- sejam elas levantadas quando e por quem for. Nesse recurso prévio ao enfraquecimento de possivel­mente "todas" as objeções, como eu gostaria de dizer referindo-me a A. Wellmer e L. Wingert, reside uma idealização que permite diferenciar entre "validade" e "aceitabilidade racional" do enunciado, sem subtra­ir à validade a referência epistêmica de um "valer para nós". Isso ex­plica a ambivalência peculiar sobre a qual Peters apóia sua dúvida. Estão aí, por um lado, as razões substanciais que nos convencem da correção de um resultado; mas sua solidez só se pode comprovar, por outro lado, em processos de argumentação efetivamente conduzidos, ou seja, na defesa contra cada objeção factualmente posta.

Isso vale em geral para o discurso como procedimento. Os acon­selhamentos ocorridos no Estado democrático de direito, institucio­nalizados e atrelados a prazos de decisão e procedimentos de vota­ção, de qualquer modo não garantem resultados válidos, mas ape­nas fundamentam a suposição de sua racionalidade; com isso, eles asseguram para os cidadãos a "aceitabilidade racional" das decisões tomadas em conformidade com os procedimentos. Em face de um procedimento como esse, legitimamente reconhecido, ainda se pode fazer valer a diferença entre um resultado "válido" e um resultado "racionalmente aceitável" (no âmbito institucional dado) -seja por meio da restrição opinativa por parte de uma minoria que simples­mente se agrega procedimentalmente a resoluções irreprocháveis, seja por meio do protesto simbólico de quem pratica desobediência civil e então, depois de esgotadas todas as possibilidades formais de revisão, apela à maioria por meio da violação de uma regra, na ten­tativa de que se retome o procedimento em um assunto de signifi­cação fundamental.

(b) Mesmo que aceite um procedimentalismo nesse sentido, Rosenfeld não tem de se dar por vencido. Pois para questões de justiça ele rejeita reivindicações de validação que transcendam o contexto es­pecífico: "Justice beyond law (that is beyond a particular legar order, J. H a bermas) cannot achieve complete impartiality ... to the extent that it must ... rely on a vision of the good that has intracommunal roots, thus favoring the members ofthe relevant intracommunal group over

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the remaining legal subjects". Segundo essa visão, ordens jurídicas modernas, até mesmo por razões conceituais, não devem nem mesmo poder cumprir sua promessa de assegurar a autonomia privada e pública a cada um. A dialética entre liberdade jurídica e factual, se­gundo o pensamento de Rosenfeld, teria necessariamente de conduzir a soluções unilaterais, que, de acordo com o contexto, produzem igualdade demais, à custa de diferenças que são reprimidas; ou então igualdade de menos, à custa de diferenças que são exploradas. Fa­zendo uso de uma geringonça pós-estruturalista, Rosenfeld afirma que o próprio princípio do tratamento sob condições de igualdade não permitiria corretivo algum, nem contra aquele tipo de nivela­mento de diferenças, nem contra este tipo de desigualdade ilegítima. Segundo sua visão, a idéia dos direitos iguais para todos deve mesmo enredar-se em um vaivém sem saída, oscilando entre a diferença re­primida e o tratamento igual dissimulado. Não considero elucidativo nem o argumento conceituai, nem o exemplo com que se tenta com­prová-lo historicamente.

Rosenfeld pensa que os direitos liberais de igualdade, que se im­puseram no passado contra as desigualdades corporativas sob o slogan "Ali men are created equal': também podem servir como parâmetro para a cobrança de direitos sociais por meio de ação judicial; contudo, quando se tem um contexto modificado, como o da descolonização (ou da luta de minorias étnicas contra uma cultura majoritária), aí então se revela que o mesmo princípio do tratamento igual, que em outro tempo serviu à emancipação, agora justifica a coação à assimi­lação e com isso à repressão de diferenças legítimas: "The master treats the slave as inferior because heis different, whereas the colonizer offers the colonized equal treatment provided that the latter give up his own language, culture and religion ... Accordingly, in a master­slave setting, equality as identity is a weapon ofliberation whereas in a colonizer-colonized setting, it is a weapon of domination': Com esse exemplo, Rosenfeld pretende demonstrar que princípios de justiça com formulações idênticas modificam seu sentido no âmbito de diferen­tes concepções do bem, e em tal medida não se sustentam por si mes­mos. O exemplo demonstra, porém, que o que subjaz à crítica contra a falta de tratamento jurídico igual sob as relações de dominação feu­dal e à crítica contra a equiparação social insuficiente sob as condi­ções de um capitalismo liberal é, na verdade, exatamente o mesmo ponto

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de vista normativo que subjaz à crítica contra a falta de respeito por diferenças culturais sob uma coação imperialista à assimilação.

Em todos esses casos, trata-se da postulação de que se trate o que é igual de maneira igual, e o que é desigual de maneira desigual. Os direitos iguais que se cobram referem-se, no primeiro caso, a com­petências; no segundo caso, a benefícios sociais cuja tarefa é possibi­litar, sob igualdade de chances, o uso de competências já asseguradas; e no terceiro caso trata-se das duas coisas- mas não com referência precípua a uma compensação de interesses ou de poder que não possa mais ser alcançada com o auxílio (de classes reconhecidas) de indeni­zações sociais (tais como dinheiro, tempo livre, formação escolar etc.), e sim com referência à independência nacional ou autonomia cul­tural, ou, no caso do multiculturalismo, com referência à coexistên­cia de diversos grupos culturais, étnicos ou religiosos sob igualdade de direitos. Trata-se o tempo todo de uma reivindicação de garantia da integridade das pessoas do direito, às quais se garantem liberdades iguais no sentido de uma igualdade de conteúdo jurídico entendido de maneira não-seletiva. Pois essas liberdades devem ser asseguradas para os cidadãos de maneira não apenas formal, mas efetiva; ou seja: sob as condições sociais e culturais do surgimento de sua autonomia privada e pública.

Com postulados feministas de equiparação não é diferente, em princípio. Rosenfeld esboça (para fins do argumento) duas formas de vida concorrentes, especificamente vinculadas ao gênero, e cujos registras de valor colidem um com o outro de modo inconciliável­de um lado, com realce da intimidade, vínculo, amparo e sacrifício, de outro lado, com realce da distância, concorrência, orientação segun­do os desempenhos apresentados etc. Ora, tão logo se tratasse da re­gulamentação de situações de interesse e conflitos de valor indivi­duais, essa oposição monolítica e estilizada de duas "visões" do bem viver iria dissolver-se, de um modo ou de outro, em diversas concor­rências entre grupos de homens e mulheres, estabelecidas sob outras disposições; além disso seria preciso considerar, em diferentes áreas da vida, os demais imperativos funcionais. Da perspectiva do para­digma jurídico procedimentalista, tais conflitos podem ser bem re­solvidos, mas apenas se o poder de definição para experiências e si­tuações especificamente ligadas a cada gênero não forem deixadas por mais tempo a cargo de especialistas ou mandatários. Os próprios

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envolvidos precisam lutar em fóruns públicos pelo reconhecimento das interpretações reprimidas ou marginalizadas sobre suas carências, a fim de que novas situações factuais sejam reconhecidas como rele­vantes ou carentes de regulamentação e de que se negociem critérios sob os quais se possa tratar com igualdade o que é igual e com desi­gualdade o que é desigual. Sem o princípio do tratamento em condi­ções de igualdade, porém, transformado a fortiori em fundamento, não haveria base de sustentação para qualquer crítica ou reinvin­dicação de revisão dos critérios antigos.

Por fim Rosenfeld dedica-se novamente a precisar o "desafio fe­minista": cabe agora pôr em questão o medium do direito e a estrutura dos próprios direitos, com a postulação de que "se deve substituir a hierarquia dos direitos por uma rede de relações interpessoais': Enquan­to subjazer a essa postulação apenas a crítica a uma leitura possessivo­individualista de "direitos" longamente em voga, o que ela faz- e com boas razões - é conferir validação a um conceito intersubjetivista de direito (em consonância, a propósito, com Martha Minow ou Frank Michelman). Direitos, desde sua origem, são relacionais, porque fun­dam ou consolidam as relações de reconhecimento simétrico. Também os direitos privados, que a situação um contra os outros pode tornar válidos em situações de conflito, têm origem em uma ordem jurídica que exige de todos o reconhecimento recíproco de cada um enquanto pes­soa do direito livre e igual, e isso de modo a garantir o mesmo respeito a cada um; em tal medida, essa ordem jurídica só pode ser legítima se tiver sua origem em uma práxis comum de autodeterminação civil.

Se, no entanto, a crítica se volta contra o conceito dos direitos como tal, a discussão se transfere para um outro plano. A contra parte vê-se obrigada a sugerir ou uma alternativa ao direito, é o que faz Marx, ou então conceitos alternativos de direito. Não tenho qualquer dificuldade com questionamentos desse tipo, já que eu mesmo não sugiro qualquer fundamentação normativa para a condição jurídica como tal. Só se pode iniciar uma discussão sensata quando as alter­nativas estão colocadas de maneira suficientemente precisa. Conten­to-me com uma explicação funcional quanto a por que devermos pri­vilegiar ordens do direito positivo (ou, na linguagem do direito racio­nal clássico: por que devermos assumir a "condição de sociedade"). A princípio, não vejo um equivalente funcional para esse tipo de esta­bilização de expectativas de comportamento (mediante direitos sub-

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jetivos distribuídos por igual). A esperança romântica- em um sen­tido não-pejorativo- do jovem Marx em relação a uma "morte pau­latina" do direito praticamente não se cumprirá em sociedades com­plexas como as nossas.

A alternativa que o próprio Rosenfeld sugere na conclusão de seu trabalho, ao assumir a noção de um "universalismo reiterativo': ainda se move no âmbito conceituai básico de uma teoria dos direitos. Da alusão vaga a uma "concepção dinâmica dos direitos" não se pode ex­trair muito mais que o anseio de uma concepção alternativa de direito.

(2) Essa alternativa torna-se ainda mais clara em Arthur J. Jacob­son23. Primeiramente, ele contrapõe à teoria dos direitos uma teoria dos deveres. A isso, se bem entendo, subjaz uma teologia política que - tal como a de Leo Strauss ou a de Carl Schmitt, ainda que com conseqüências muito distintas - lamenta o direito moderno como expressão da decadência de uma autoridade divina vinculadora. De fato, é somente com Hobbes, em conjunto com um conceito positi­vista do direito, que se valida pela primeira vez o principio moderno de que tudo que não seja probido é permitido. Com isso, dilui-se a precedência moral dos deveres em relação aos direitos, estes últimos resultantes das obrigações de outras pessoas, em prol de uma priori­dade de direitos que garantem espaço a liberdades subjetivas - ou a esferas privadas da liberdade de ação. Em ordens jurídicas modernas os deveres resultam tão-somente da limitação recíproca de tais liber­dades, sob leis gerais. A isso Jacobson contrapõe um direito divino concebido de maneira aristotélica (ou tomista?), que só conhece de­veres; tal direito obriga seus destinatários, no comportamento deles, a imitar a pessoa de um "comandante ideal" ou perfeito ("ideal legal commander"). Ele entende o "common law': por fim, como uma me­diação dialética entre aqueles dois tipos de ordem jurídica: "Common law breaks the correlation of rights with duties in both directions in order to produce a succession of correlations, according to the principie that law is just the application of law in single cases. Here dynamism flows from the incessant activities of legal persons to assemble, then disassemble, then reassemble correlations':

23. Por conta dos muitos mal-entendidos, seria muito desgastante abordar aqui a crítica a minha recepção do direito: se sou um "positivista», Jacobson é um "adepto do direito natural':

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Ao passo que o direito moderno deve saciar a carência de reconhe­cimento- entendida claramente como narcisista- e o direito divi­no deve saciar o empenho da pessoa por aperfeiçoamento, e dado, no entanto, que ambos em sua aplicação atual não têm êxito nesse objeti­vo, o "common law" fracassa, por assim dizer, em alto nível. Eis aí o início de um motivo central dos Criticai Law Studies. A clarividência quanto ao fracasso essencial de toda justiça divina na terra exige dos destinatários que aceitem a indeterminação do direito em um sentido radical. Juízes e clientes são permanentemente tentados a firmar o di­reito, à medida que tratam decisões individuais como precedentes. Contudo- é assim que entendo Jacobson- no espirita do "common law" só podemos fazer jus à individualidade de cada novo caso quan­do suportamos o fato de que a identidade falsamente suposta do direi­to dilui-se no fluxo de decisões que não há como antecipar: "Law is just the application of law to single cases': Surge assim a imagem de uma lei inapreensível que impera na atribulação das respectivas deci­sões: "The legal manifold in Common Law is constantly in motion ... (It) lacks a stable ground, because it both unfolds and enfolds it's ordering principie in each application". Essa construção criptoteoló­gica, se bem entendo, corresponde à tentativa de renovar com recur­sos do desconstrutivismo a noção da Escola Histórica Alemã de um direito "vivo" que nasce do "espírito do povo" .

Devo confessar que esse conceito alternativo de direito, mesmo que se pudesse apreendê-lo de forma mais exata, parece-me implausível tanto por razões normativas quanto por razões funcionais e históri­cas. Normativamente, porque na prática isso ocasiona a retração da legitimação do direito por um legislador democrático, em benefício da jurisdição de um sistema judiciário que surge como legislador pa­ralelo. Além disso, vai se duvidar da possibilidade de uso de um direi­to que, imerso na aura de uma "indeterminação" santificada (em vez de ser percebida como deficiência), já renuncia em princípio à antecipa­bilidade de decisões caso a caso - e, desse modo, à sua função de es­tabilizar expectativas de comportamento. Por fim, e isso justamente no direito privado, observamos uma impressionante convergência dos desenvolvimentos jurídicos em todas as sociedades ocidentais, de tal modo que hoje o Common Law, de um ponto de vista comparativo, pode cada vez menos reivindicar para si uma posição peculiar em face das codificações européias continentais.

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Problemas da construção teórica

( 1) Devo a Bill Rehg uma das análises mais perspicazes e um dos aperfeiçoamentos mais produtivos da ética do discurso. Como já re­vela o título de seu livro Insight and Solidarity, Rehg está insatisfeito com um certo intelectualismo desse enfoque; ele está convencido de que a práxis argumentativa em seu conjunto só leva a discernimentos quando os participantes podem amparar-se em relações solidárias exercitadas de antemão. Por um lado, eles só estarão suficientemente motivados a se deixar envolver em um entendimento mútuo discursi­vo e sinuoso se, de comum acordo, considerarem a "cooperação racio­nal" como um "bem" que se deve priorizar em relação a outras formas de interação; o que está subjacente à decisão entre a alternativa da con­cordância racional e uma confrontação violenta (mesmo que subli­mada, de uma ou de outra forma) é, na verdade, uma preferência que se embasa de maneira muito mais confiável em orientações de valor comuns, ao menos em comparação com o embasamento fundado em quaisquer interesses particulares. Por outro lado, segundo o pensa­mento de Rehg, o enfoque da ética do discurso só poderá se livrar dos últimos restos da filosofia subjetiva quando o cumprimento inevita­velmente incompleto dos pressupostos pragmáticos da argumentação que ultrapassam contextos temporais e espaciais for compensado pela "confiança" dos participantes na regulação de um processo de comu­nicação supra-subjetivo, que avança independentemente desses mes­mos participantes e se amplia para além do grupo em sua composição atual: "If rational consensus is cooperative even to the degree of requiring a decentered 'cooperative insight', then it would seem that something like trust must inhabit the heart of rational conviction"24.

Rehg postula que se deposite uma confiança antecipada em procedi­mentos que escolhemos quando, sem atitudes derrotistas, pretendemos conciliar pressupostos comunicacionais muito exigentes, surgidos sob a pressão de decisões iminentes, com restrições empíricas de discursos localizados que se devem cumprir aqui e agora. Ele pensa que a lealdade diante de procedimentos que abreviam ou tornam coeso o processo

24. W. Rehg, Insight and Solidarity. Berkeley, 1994. p. 23 7.

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argumentativo deveria basear-se sobre uma confiança peirceana na prontidão cooperativa e integridade da comunidade mais abrangente (the wider community).

Rehg, ao retomar agora o tema da carência de complementação do momento de discernimento por meio de um momento de con­fiança preexistente e de vinculação ética, volta o olhar à relação entre discurso e decisão que se estabelece na formação democrática da opi­nião e da vontade. Com a institucionalização jurídica dos aconselha­mentos, aguça-se o problema quanto a como justificar as restrições às quais os discursos ficam submetidos com o evento da própria institu­cionalização. Em seu papel negativo de limitações, os procedimentos jurídicos apenas desvelam os inevitáveis desvios em relação a um ideal que se supunha. Rehg então presume que o direito, como o medium pelo qual se implementam os procedimentos decisórios limitadores do discurso, dá uma contribuição própria, e independente do discur­so, à legitimação do processo como um todo.

De fato, com o cumprimento da "função própria" que lhe cabe, ou seja, estabilizar as expectativas de comportamento e garantir com isso uma "segurança jurídica': como costumamos dizer, o direito dis­põe de uma força de legitimação inerente à forma jurídica. O "míni­mo de ética" que se aloja na legalidade como tal deve-se, além disso, à estrutura de direitos subjetivos cobráveis por via judicial, os quais ga­rantem para a liberdade de ação espaços que, por vias moralmente inatacáveis, ficam isentos de qualquer moralização. Esses momentos, no entanto, são apenas tangenciados por Rehg; interessa-lhe sobretu­do a seguinte pergunta: cabe atribuir a força legitimadora do processo democrático somente ao caráter discursivo dos aconselhamentos, ou também à forma jurídica delineadora, que integra o discurso a proces­sos decisórios? Ao se falar sobre a justificação procedimental "do" di­reito, o direito surge aqui apenas no genitivus objectivus ou também no genitivus subjectivus? A contribuição dada pelo medium "direito" en­quanto tal à força legitimadora do processo democrático consiste em que ele acopla a processos decisórios - por meio de procedimentos (procedimentos jurídicos, em sentido estrito)- a "busca cooperativa da verdade': atribuindo a ela nova função, qual seja atuar na prepara­ção discursiva de decisões. É sobre essa circunstância que Rehg apóia sua tese: os procedimentos que de início apenas criam um vínculo in­terno entre discurso e decisão não obtêm sua força legitimadora a partir

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da fonte cognitiva de discursos em que se justificam os procedimen­tos, mas sim a partir de uma fonte volitiva precedente a todos os dis­cursos, qual seja a da inclusão de todos os atingidos no procedimento.

Isso não chega a me convencer totalmente. Com certeza, a parti­cipação inclusiva em procedimentos cumpre duas funções diferentes: por um lado, a participação abrangente no discurso deve assegurar um espectro o mais amplo possível de contribuições; por outro lado, uma participação justa e honesta no processo decisório deve assegu­rar que se transfiram às decisões, da forma mais confiável possível, os resultados obtidos em aconselhamentos. Dessa maneira, no processo democrático os "votos" significam duas coisas: juízos e decisões. Mas disso não resulta que a participação inclusiva no processo decisório seja regulamentado sob um ponto de vista da justeza e honestidade que não se deva ao julgamento imparcial, mas genuinamente ao cará­ter vinculativo de tais procedimentos. Rehg afirma justamente isso: ''An adequate elaboration of equal opportunity in decision-making should refer, not just to influence on outcome, but also to an idea of solidaristic indusion built on equal respect of each citizen ... Habermas risks neglecting the intrinsic procedural fairness in law and its potential contribution to solidarity and compliance".

Essa qualidade intrínseca de justiça dos procedimentos deci­sórios é explicada por Rehg a partir do procedimento de sorteio, que em muitos casos é visto como justo e honesto, embora não esteja li­gado a justificações objetivas e possua, portanto, um caráter pura­mente decisionista. Mas e não se tem de justificar a justeza e honesti­dade do procedimento com referência à situação de uso? É só em con­textos determinados que um procedimento casual se qualifica como um procedimento justo e honesto: por exemplo no caso de jogos de azar que asseguram aos participantes chances iguais de vitória, ou então no caso hobbesiano da anarquia insuportável, onde qualquer decisão é melhor que nenhuma, ou ainda em casos da distribuição justa de bens de estoque remanescente que, sendo indivisíveis, só podem ser consumidos individualmente etc. De fato há razões muito boas para que decisões políticas sejam tomadas democraticamente e não apenas sorteadas.

Rehg tem em vista um fenômeno importante. O direito, em com­paração com a moral, tem um caráter artificial, de modo que nós mais construímos uma ordem jurídica do que a descobrimos. Mesmo que

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o direito deva estar em consonância com a moral, ele se estende a cer­tas matérias que precisam ser regulamentadas tanto sob pontos de vista éticos e pragmáticos, isto é, no horizonte de fins dados e de uma for­ma de vida internalizada e aceita, quanto com base em acordos, isto é, com base na compensação entre posições de interesse dadas. Com isso, acabam ingressando no direito determinados fins e orientações de valor, carências e preferências, aos quais a moral se mantém fechada. O direito tem de se tornar "positivo" porque nele se espelha o substrato volitivo factual de uma sociedade; ele carece de uma "ação criativa", porque momentos de acordo mútuo se entrecruzam com outros, da demarcação de objetivos e de convenções. Diferentemente da moral, portanto, o surgimento do direito pode ser entendido de maneira con­tratualista- o que não está correto, mas tampouco totalmente errado. O peso assumido por formas de vida e interesses existentes já eviden­cia, por si só, a importância que adquire o momento volitivo de deci­são no processo da ação jurígena, se comparado ao momento cogniti­vo da formação de juízo e de opinião; e essa importância só tende a aumentar com a necessidade prática de uma institucionalização vin­culativa dos processos consultivos. Pelas duas razões, a legitimidade da ação jurígena exige uma regulamentação justa e honesta das reso­luções- e não somente a instauração de discursos que fundamentem a suposição de correção dos juízos. Contudo, as regulamentações que se estabeleçam para tanto carecem, também elas, de justificação em toda sua extensão, desde a constituição até as ordenações sociais. É pelo fato de que isso acontece em discursos de fundamentação que não consigo ver na "justeza e honestidade" das regras de decisão ne­nhuma qualidade que independa do discurso, que seja intrínseca e inerente a procedimentos jurídicos em geral e como tais.

A participação em procedimentos decisórios, que é eqüitativa em princípio, fica prejulgada de certa maneira pela circunstância de o Estado democrático de direito ser uma construção surgida da prá­xis geradora de constituições. Diferentemente de uma moral válida para todos os sujeitos capazes de agir e comunicar-se lingüistica­mente, cada projeto constitucional repousa sobre a resolução de um grupo de pessoas que é histórico (e, do ponto de vista normativo, cons­tituído casualmente). Não se pode decidir pela moral (ao menos não por uma postura de vida mais ou menos moral). Mas pelo direito, por causa de seu caráter artificial, é preciso necessariamente resolver-se.

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Essa resolução na origem já implica o reconhecimento recíproco de pessoas livres e iguais, e com isso a obrigação assumida em prol da in­clusão, que Rehg, por meio do conceito de solidariedade, pretende introduzir enquanto fonte de legitimidade que independe do discurso. Faz parte do sentido performativo de uma práxis geradora de cons­tituições o fato de que um grupo situado no tempo e no espaço esteja resolvido a constituir-se como associação voluntária de jurisconsortes. Como essa resolução tem por conteúdo regulamentar de maneira legí­tima o convívio através de recursos do direito positivo (do direito ca­rente de fundamentação, portanto), os momentos que Rehg dissocia - discurso e decisão - estão unidos desde o início.

(2) Michael Power também entende o autor melhor do que este a si mesmo; de qualquer modo, ele constrói ligações sistemáticas entre "conhecimento e interesse", de um lado, e "facticidade e validação", de outro, das quais eu não tinha consciência. Nesses paralelos sur­preendentes talvez ele apenas subestime a mudança de perspectiva ligada ao fato de eu ter migrado de um questionamento epistemoló­gico para a pergunta lingüístico-pragmática acerca das condições ne­cessárias do acordo mútuo possível. Com isso, a tentativa de uma reconstrução do saber utilitário de sujeitos que falam e agem de ma­neira competente certamente passou para o primeiro plano, em re­lação à auto-reflexão de processos de formação. E quero duvidar de que isso leve a um enfraquecimento da energia crítica, e menos ainda ao "fim da Teoria Crítica"25• Muito embora eu mesmo fosse identifi­car de maneira diversa as linhas de uma transformação lingüística da arquitetônica teórica kantiana, e sobretudo interpretar diferente­mente a dissolução lingüístico-pragmática de seu conceito de razão como faculdade de idéias formadoras de mundo, é preciso dizer que Power analisa de maneira elucidativa o papel de idealizações e o sen­tido hermenêutico profundo de argumentos atenuadamente trans­cendentais. Power, porém, com sua análise do conceito de "pressu­postos contrafactuais", e em geral do "vocabulário do como se", toca um ponto nevrálgico de todo meu empreendimento teórico. Aqui ainda há muito que fazer.

25. De uma "conversão': por exemplo, fala Ottfried Hõffe, "Abenddãmmerung oder Morgendãmmerung? Zu )ürgen Habermas' Diskurstheorie des demokratischen Rechtsstaats", Rechtshistorisches Journal, n. 12, 1994, pp. 57-88.

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Uma restrição mais forte tenho a fazer contra o destaque confe­rido por Power à "situação ideal de fala". E isso não apenas porque já vamos tendo pressupostos contrafactuais no trato comunicativo co­tidiano à medida que os envolvidos supõem significados idênticos para as expressões lingüísticas utilizadas, fazem reivindicações deva­lidação transcendentes, atribuem reciprocamente imputabilidades uns aos outros etc. Percebo como mais perturbador o fato de que a ex­pressão da situação ideal de fala (expressão que introduzi certa vez, há décadas, como abreviatura do conjunto de pressupostos argumen­tativos gerais) sugira agora um estado final almejável- no sentido de uma idéia reguladora. Contudo, esse estado entrópico de uma con­cordância definitiva, que tornaria supérflua qualquer outra comuni­cação, não pode apresentar-se como um fim sensato, porque nele te­riam de se evidenciar todos os paradoxos (de uma linguagem última, de uma interpretação definitiva, de um saber irrevidável etc.). Em vez disso, segundo aprendi com a crítica de Albrecht Wellmer26, em rela­ção à solução discursiva de uma reivindicação de validação (ou seja, em relação à solução da reivindicação de que se cumpram as condi­ções de validade de um enunciado) é preciso concebê-la como pro­cesso metacrítico do enfraquecimento contínuo de restrições. Com isso pretendo explicar, com a teoria do discurso, o que Hilary Putnam, a partir de um ponto de vista centrado sobre as relações epistemoló­gicas, chama de "aceitabilidade racional sob condições ideais': ou o que Crispin Wright, seguindo as reflexões de Michael Dummett, deno­mina "superafirmabilidade" (superassertibility)27• Essas análises si­tuam-se no contexto de uma discussão sobre teorias de verdade, tão acalorada como em outros tempos.

Esse traço de uma idealização de condições de afirmabilidade res­ponde à necessidade de distinguir "verdade" ou "validade" em geral, por um lado, de aceitabilidade racional, por outro; depois que se dis­pensou a noção de correspondência, tal necessidade resulta da triva­lência da "validação de algo para nós': tomada de maneira epistêmica. Com certeza não estou estipulando apenas um conceito de discurso normativamente substancioso; mais que isso, afirmo poder compro-

26. Mais recentemente: A. Wellmer, "Wahrheit, Kontingenz, Moderne". ln: Endspiele. pp. 157-177.

27. C. Wright, Truth and Objedivity, Cambridge (Mass.), 1992, Cap. 2.

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var pela via de uma análise de pressuposições que cada um que parti­cipa com seriedade de uma argumentação inevitavelmente se envolve em pressupostos comunicacionais de teor contrafactual. Para tanto, deixo-me guiar pela seguinte intuição: em toda argumentação os en­volvidos supõem condições de comunicação que (a) previnem uma ruptura racionalmente imotivada da controvérsia; (b) asseguram tan­to a liberdade da escolha de temas como a consideração de todas as informações e razões disponíveis, seja pelo acesso irrestrito à deli­beração, sob igualdade de direitos, seja pela participação simétrica nessa mesma deliberação, sob igualdade de chances; e (c) excluem toda coerção que atue a partir de fora sobre o processo de acordo mútuo, ou que surja a partir dele mesmo, salvo a coerção do "argumento me­lhor", e neutralizam com isso todos os motivos, salvo o da busca coo­perativa da verdade. Se os participantes não supusessem tal coisa, não poderiam tomar como ponto de partida o fato de poderem se conven­cer, uns aos outros, do que quer que fosse. Os pressupostos de argu­mentação mencionados não seriam "condenáveis" nesse sentido, não mais que cada um que se visse obrigado a incorrer em autocontradição performativa ao negar, no cumprimento de uma argumentação, o teor proposicional dessa mesma argumentação que houvesse sido expli­citado28. Essas idealizações não significam nenhum recurso prévio a um estado final ideal, mas apenas iluminam a diferença entre a acei­tação racional de uma reivindicação de validação em um dado con­texto e a validade de um enunciado que tivesse que se comprovar em todos os contextos possíveis.

Power percebe muito bem que essas idealizações, nascidas elas mesmas da facticidade social da práxis cotidiana, não logram salvar nenhum universalismo abstrato, mas devem apenas fundamentar uma "transcendência de dentro" a partir dos respectivos contextos concernentes ao mundo da vida: "We can only'make sense' of certain practices on the basis of assuming an operative role for deeply em­bedded fictional norms. These fictions are foundations from within, without any heavy-weight metaphysical support". Isso vale não ape­nas para a práxis argumentativa, ainda que para ela sirva de uma

28. Cf. K.-0. Apel, "Falibilismus, Konsenstheorie der Wahrheit und Letzt­begründung". ln: Forum für Philosophie (org.), Philosophie und Begründung, Frank­furtam Main, 1987, pp. 116-211.

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maneira excelente. Depois de uma destranscendentalização da razão kantiana, a tensão entre o inteligível e o empírico recolheu-se, ela mesma, aos fatos sociais.

(3) Também a contribuição de Jacques Lenoble, retoricamente muito proficua em seu resgate da discussão pregressa, teve como alvo os fundamentos da teoria discursiva do direito. Essa contribuição é complexa demais para que eu possa dedicar-me detalhadamente às restrições que ela propõe. No conjunto, tenho a impressão de que Le­noble quis trazer as concepções de linguagem formal-pragmática e desconstrutivista a um denominador comum, e com isso conciliar coisas inconciliáveis. Por um lado, ele quer se manter apegado à pro­posição fundamental da teoria formal-pragmática do significado, se­gundo a qual entendemos uma expressão lingüística se sabemos como devemos usá-la para, com seu auxilio, chegar a um acordo mútuo com alguém sobre alguma coisa no mundo; por outro lado, apesar dessa concatenação interna entre significado e validação, ele insiste em uma impossibilidade de decisão, por principio, quanto ao êxito ilocucionário de toda tentativa de acordo mútuo: aos participantes da comunicação não cabe poder constatar se um aceita ou não como válida a oferta de ato da fala do outro. Em primeiro lugar, (a) tratarei de refutar essa tese, central para tudo que se diz a seguir, para então (b) defender a distin­ção entre uma postura orientada pelo acordo mútuo e outra, orienta­da pelo êxito, bem como a distinção entre fins ilocucionários e perlo­cucionários. Concluirei (c) com uma observação sobre a ontologia probabilística de Lenoble29•

(a) É sensato distinguir entre os seguintes casos: A propõe uma afirmação 'p', com a qual ele pretende fundamentar o enunciado 'p', que é ou verdadeiro ou falso; ou A manifesta a suposição 'que p', e portanto tem razões para 'p', sem no entanto já assumir a pretensão de poder defender 'p' contra quem quer que seja; ou A manifesta 'p' em um atitude hipotética, e portanto deixa momentaneamente aber­ta a questão da verdade ou falsidade de seu enunciado; ou A manifesta 'p' como um enunciado distinguível (matemático) em sentido estrito, sendo que ele (em casos raros) pode provar sua impossibilidade de

29. Sobre o que segue, cf. J. Habermas, "Sprechakt-theoretische Erlãuterungen zum Begriff der kommunikativen Rationalitãt': Zeitschrift for philosophische Forschung, n.SO, 1996,pp.65-91.

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decisão. O primeiro caso é evidentemente a base da qual se alimen­tam parasitariamente todos os demais casos; pois mesmo a impos­sibilidade de decisão tem de se posicionar em face da alternativa ver­dadeiro/falso. A afirmação de um enunciado que pode ser verdadeiro ou falso, correto ou incorreto é sem dúvida a regra na práxis comuni­cativa diária.

Como unidade elementar de tal enunciação pode-se tomar e a na­lisar a oferta de ato de fala de um falante A, em conjunto com a postu­ra de sim/não de um ouvinte B. Essa análise se fará da perspectiva de uma segunda pessoa; os dois objetivos do falante, quais sejam expres­sar-se de maneira compreensível e chegar a um acordo mútuo com alguém sobre alguma coisa, são definidos a partir da visão de um ou­vinte ao qual cabe entender e aceitar como válido o que se diz, embo­ra ele possa a todo momento dizer "não". O ponto de referência do compreender são as condições para um acordo mútuo possível. Mas es­sas condições só se cumprem se o ouvinte aceita a reivindicação de validação apresentada pelo falante em favor de seu enunciado. A base do acordo mútuo, portanto, é o reconhecimento intersubjetivo de uma reivindicação de validação que pode ser criticada por parte do ouvinte, e a cuja solução discursiva -obrigatória, conforme o caso -o fa­lante dá garantia- merecedora de credibilidade em maior ou menor grau, à primeira vista. Naturalmente, essa garantia pode se revelar insuficiente; mas em face de um amplo consenso de fundo acerca de certezas concernentes ao mundo da vida, não é raro que mesmo ga­rantias frágeis sirvam como base para uma aceitação capaz de criar obrigações relevantes para as conseqüências da ação. O que parece ser racionalmente aceitável para o ouvinte ainda não precisa ser válido de imediato; o agir comunicativo do dia-a-dia passa pela aceitação de reivindicações de validação que parecem ser suficientemente racionais aos destinatários em um dado contexto, mas não pela validade de atos de fala que, mediante uma análise mais cuidadosa, comprovam ser racionalmente aceitáveis.

Lenoble contesta o enfoque dessa análise (que está apenas suge­rida aqui) e o faz com a afirmação de que o falante jamais poderia decidir se sua oferta de ato de fala é aceita com seriedade ou não: em princípio, não seria possível decidir sobre o êxito ilocucionário. Por exemplo, um falante não poderia saber se um ouvinte que concorda com uma afirmação ou cumpre uma ordem de fato crê no enunciado

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afirmado ou se duvida dele, nem poderia saber se ele pratica a ação ordenada em cumprimento à ordem ou por razões totalmente diver­sas. Com isso, Lenoble parte claramente de uma compreensão da co­municação lingüística vinculada a uma filosofia do sujeito, segundo a qual a comunicação não se dá no medium das expressões simbólicas publicamente acessíveis, mas sim entre espíritos mutuamente intrans­parentes. Lenoble parece não perceber que a restrição intencionalista torna-se insensata depois de uma reviravolta lingüística cumprida de maneira conseqüente. Com o posicionamento afirmativo em relação a uma asserção ou uma ordem, o ouvinte cria um fato social, que se pode testar publicamente e que independe do que ele pense em parti­cular; com o seguimento da interação ficará igualmente evidente, por via pública, se o destinatário viola ou não as obrigações que ele assu­miu (ou seja, respeitar a circunstância, aceita como verdadeira, de que se deve cumprir a ação ordenada, seja por que motivos for). Algo se­melhante se dá com o exemplo seguinte de uma promessa que o falan­te cumpre por outras razões que não as que ele declarou. O ato de prometer cria uma relação social nova, qual seja a obrigatoriedade em face de uma pessoa; e se essa promessa foi concebida com sinceridade, isso só se mostrará no seguimento da interação por meio da tentativa séria de cumpri-la. A seriedade da intenção do falante pertence aos pressupostos do uso da linguagem orientada pelo acordo mútuo, mas tal como pode ocorrer com todas as pressuposições também esta pode se revelar falsa. Em ações de fala constatativas e regulativas ela perma­nece implícita, e só assume destaque temático em ações de fala expres­sivas, por exemplo em confissões (com as quais um falante torna ex­pressa uma vivência cujo acesso se lhe dá de maneira privilegiada). A reivindicação de veracidade que se põe desse modo também só pode ser testada indiretamente "com o seguimento da interação", ou seja, em sua continuidade que se revele consistente, mas não de maneira imediata, em um discurso.

Derrida, em sua controvérsia com Searle, arrolou outros exem­plos, e mais plausíveis, à primeira vista, para comprovar a impossi­bilidade de decisão dos êxitos comunicativos. Tais exemplos são tira­dos do campo da dicção ficcional, bem como do uso metafórico ou irónico da linguagem: o atar que ao gritar "fogo!" pretende prevenir o público quando de fato há um incêndio no teatro não será tomado a sério sob certas circunstâncias, nem mesmo quando acrescentar, de

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cima do palco: "Estou falando sério"30• Com esses exemplos especiais pode-se ilustrar a situação geral de que não basta para o êxito comu­nicativo de um falante que o ouvinte entenda o significado literal do que se diz. O entrecruzamento entre saber lingüístico e saber sobre o mundo também se estende ao fato de que falantes competentes só entendem corretamente uma declaração quando sabem como enun­ciar uma sentença - compreensível em sentido literal- de maneira adequada à situação; pois é somente com base em tal entendimento dos sinais de fundo das situações típicas de aplicação que o ouvinte poderá inferir em casos atípicos qual a intenção do falante e qual o significado "adaptado" ou irânico da declaração, conforme o caso.

Com essa estratégia de análise não quero de maneira alguma ne­gar o que há de ocasional, fugaz e difuso nas comunicações do dia-a­dia, nas quais só se podem realizar de maneria transitória as possibili­dades de acordo mútuo- por meio da dissonância polifônica de decla­rações imprecisas, fragmentárias, polissêmicas carentes de interpreta­ção e mal-entendidas. Mas o ponto de partida da análise é constituído pelo factum de que sobre esse medium opaco os inúmeros planos contin­gentes de ação acabam por enredar-se em um tecido de interações mais ou menos isentas de conflitos. Toda análise de enfoque transcendental pretende ilustrar as condições de possibilidade de um factum que ela mesma pressupõe. Kant partiu do factum da física newtoniana e pro­pôs-se a pergunta sobre como a experiência objetiva é possível, afinal. A pragmática formal substituiu essa pergunta epistemológica básica pela pergunta concernente à filosofia da linguagem: como é possível algo como o entendimento mútuo intersubjetivo? Com isso, ela parte do factum ligado ao mundo da vida, e não menos surpreendente, de uma integração social que se concretiza de maneira não-violenta e por meio de processos de acordo mútuo (na maioria das vezes implícitos). Por­tanto, o fato de que o acordo mútuo seja bem-sucedido é pressuposto em uma análise cuja tarefa é explicar como esse mesmo acordo mútuo é possível. Contrariamente à dúvida de Lenoble, penso poder apegar-me tanto mais a esse pressuposto quanto mais se pode medir inequívoca-

30. Albrecht Wellmer, em conjunto com Davidson, trata do exemplo sob o pon­to de vista que interessa aqui: "Autonomie der Bedeutung und Principie of Charity aus sprachpragmatischer Sicht" ( 1994). Desse manuscrito inédito também aproveito adis­tinção entre o conhecimento do significado literal de uma sentença e o saber acerca da adequação situacional de sua aplicação.

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mente para os envolvidos o êxito de tentativas de acordo mútuo segundo o "sim" ou o "não" manifestado em público pelos que são interpelados.

(b) Partindo da presumida impossibilidade de decisão sobre os êxitos comunicativos, Lenoble chega a conclusões sobre a impossibili­dade de distinção entre o uso da linguagem orientado para o acordo mútuo e o uso da linguagem orientado pelo êxito, por um lado, e en­tre objetivos ilocucionários e objetivos perlocucionários, por outro lado. Determinante para essas distinções é o papel da segunda pessoa, que não pode ser ignorada se a compreensão de uma expressão lin­güística não for assimilada à formação de hipóteses de um observador (como acontece em Quine e Davidson) ou se a comunicação em uma língua natural não for atribuída à influenciação direta de agentes que se observam um ao outro (como em Grice ou Luhmann) e que tencio­nam, em relação às suas próprias intenções, "dar a conhecê-las" aos outros. A atitude em face de uma segunda pessoa com a qual eu gosta­ria de chegar a um acordo mútuo sobre alguma coisa em uma língua que ambos dominamos é intuitivamente fácil de distinguir quando comparada à atitude de uma primeira pessoa em face de uma terceira pessoa (observada) à qual quero dar a entender uma opinião ou in­tenção próprias, à medida que lhe ofereço a melhor ocasião para tirar as conclusões certas com base no comportamento que manifesto de maneira prudentemente calculada.

Como ilustração disso servem as situações de uma mudança involuntária de atitude - como ocorre quando o médico em uma clínica psiquiátrica percebe durante uma conversa que eu não o pro­curo, digamos assim, como colega, mas sim como paciente - e ele então passa a voltar seu olhar para mim de um modo inquiridor, a fim de decodificar o que digo como sintoma de um não-dito. A "alie­nação" específica que se instaura em tais situações explica-se pela mudança involuntária de posição do destinatário que, sob o olhar obje­tivador de quem observa, se sente transferido do papel de segunda pessoa para o papel de um oponente que está sendo observado. De alguém com quem se estava falando ele se transforma em alguém de quem se pode falar. Foucault investigou de modo marcante a manei­ra como esse olhar clínico se cristaliza até se transformar no cerne do sistema manicomial; Goffman desenvolveu a fenomenologia desse olhar com base em cenas inofensivas do dia-a-dia. Essas experiên­cias têm sua base inocente em uma linguagem coloquial em que está

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inscrito o sistema dos pronomes pessoais, e portanto os pronomes não apenas de primeira e terceira, mas também de segunda pessoa.

Um falante só consegue alcançar seu objetivo ao assumir uma atitude diante de segundas pessoas, justamente porque a medida para o êxito ilocucionário é dada pela aprovação concedida a uma reivin­dicação de validação que possa ser contestada pelo destinatário. Pois a aprovação ou a contradição em relação a um enunciado manifesto só são possíveis (com base em uma compreensão comum do que foi dito) a partir da perspectiva de uma pessoa envolvida. Isso se evidencia no status do comum acordo ou do dissenso, onde aprovação ou contra­dição têm seu ponto de chegada: é o caráter intersubjetivo de ambas que as leva a se distinguir da concordância ou discordância interpes­soal de opiniões (que se podem constatar a partir da perspectiva do observador). Uma opinião objetivamente em concordância com outras opiniões, cada um pode ter a sua só para si; mas a um consenso só se chega junto com outras pessoas, sendo que essa condição comum pró­pria ao empreendimento funda-se sobre o fato de que falantes e ouvin­tes tomam parte do mesmo sistema de perspectivas do tipo "eu-você" entrecruzadas e reciprocamente intercambiáveis.

Ao contrário, denominamos perlocucionários os efeitos exerci­dos sobre o destinatário através de ações de fala, quer estejam ligados internamente ao significado do que se diz (tal como no cumprimento de uma ordem), quer dependam de contextos casuais (como no es­panto causado por uma notícia) ou decorram de enganos (como no caso da manipulação). Efeitos perlocucionários são ocasionados pela ação efetiva intencional ou desintencional sobre um destinatário, sem ação cooperativa da parte dele: os efeitos acontecem com ele. O falante que busca atingir objetivos perlocucionários, orienta-se de acordo com as conseqüências de sua enunciação, as quais ele não pode prognos­ticar de maneira correta quando calcula os efeitos de sua própria inter­venção junto ao mundo a partir da perspectiva do observador. Por dependerem da tomada de posição de uma segunda pessoa que o faça por estar racionalmente motivada, não se podem calcular os êxitos ilocucionários dessa maneira. Atos de fala especificamente ligados à desavença, como ameaças, ofensas, maldições etc. podem ser enten­didos como "perlocuções': isto é, como enunciações cujo significado estandardizado não se firma pelo próprio ato ilocucionário utiliza­do como veículo, mas sim por meio do efeito perlocucionário que se

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pretende alcançar com eles. Para a obtenção desses efeitos, em geral não é necessário contar com a linguagem em um sentido essencial: com freqüência, ações não-verbais são equivalentes funcionais de um uso da linguagem que é per se orientado não pelo acordo mútuo, mas pelas conseqüências de si mesmo.

Assim, práticas essencialmente dependentes da linguagem- pelo fato de a coordenação da ação dar-se peloo acordo mútuo de partici­pantes orientados de modo performativo - podem ser diferenciadas de interações estratégicas; estas últimas cumprem-se segundo o modelo das influências recíprocas de agentes que estejam orientados apenas de acordo com as conseqüências das decisões tomadas segundo suas pró­prias preferências, e que, a partir do posicionamento de um observador preocupado em objetivar, não podem recorrer à força imaginativa de a tos ilocucionários, que é racionalmente motivadora. Com base em sen­timentos morais, pode-se testar com facilidade se essa distinção entre um agir orientado pelo acordo mútuo e um agir orientado pelo êxito é ou não um artefato teórico. Diante da violação de uma norma por par­te de um outro, só podemos nos sentir lesados, ficar irados com isso, ou então podemos ficar nós mesmos com a consciência pesada, quando supomos um consenso normativo e partimos de que nos comporta­mos de maneira "correta" uns em relação aos outros, assumindo o po­sicionamento performativo de agentes atuantes que almejam o acordo mútuo, ou seja, de forma que o comportamento necessariamente tam­bém se justifique à luz desse consenso. Sabemos muito bem quando é que respeitamos uma norma porque a reconhecemos como válida ou vinculativa, e quando é que apenas agimos em consonância com ela porque pretendemos evitar as conseqüências de um comportamento desencaminhado. Em um dos casos agimos por razões independentes do agente e sobre as quais chegamos (implicitamente) a um acordo mútuo com outras pessoas (ou sobre os quais cremos poder chegar a um acordo); no outro caso, agimos por razões relativas ao agente e que só contam quando tomadas em relação aos objetivos e preferências próprios. Os conceitos (não apenas kantianos) de direito e de valida­ção do direito baseiam -se sobre tais diferenciações. Por isso não vejo de que maneira Lenoble possa analisar o comportamento legal e as ordens legítimas sem fazer uso de distinções como essa ou equivalentes.

(c) Lenoble gostaria de desconstruir as distinções conceituais básicas cuja plausibilidade intuitiva procurei trazer à memória por-

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que supõe que essa concepção ainda esteja presa à imagem de mundo do determinismo clássico. Ele mesmo, de maneira semelhante a Jacob­san, parece estar impressionado com especulações cosmológicas que se deixam inspirar - a uma distância própria - pela pesquisa sobre o caos. Em todo caso, Lenoble situa a possibilidade precípua de dis­tinção de êxitos comunicativos e a dinâmica do acaso do evento lin­güístico no âmbito de uma ontologia probabilística. O acontecimento do mundo, apreensível assim apenas de maneira estatística, deve cor­responder mais ao modelo laplaceano do jogador de dados do que ao crítico kantiano, que pondera razões entre si, em vez de simplesmente contar os pontos resultantes de um lance de dados. A suspeita é evi­dente: a razão comunicativa postula ordem demais em meio à verti­gem de significantes. Sobre isso, uma breve reflexão.

Da mesma forma que se pode conceber a reviravolta mentalista na filosofia moderna como resposta a uma nova experiência contin­gente, isto é, à experiência de uma natureza que se tornara contingente a olhos vistos, também a reviravolta lingüística procura dar conta da irrupção de um novo tipo de contingências históricas que somente adquirem relevância filosófica após o surgimento da consciência histó­rica, no século XVIII. Doravante, a consciência destranscendentaliza­da do sujeito cognoscente tem que ser situada nas formas de vida his­tóricas e corporificada na linguagem e na práxis. Com isso, a espanta­neidade da consciência que concerne a imagens de mundo migra para a função da linguagem cuja tarefa é proporcionar a abertura de mundo. A questão em torno da qual gira o debate da racionalidade resume-se basicamente ao seguinte: os sujeitos que agem comunicativamente são capturados pelo sobe-e-desce das interpretações de mundo, discursos e jogos de linguagem de cada época? Isto é, eles ficam conforme a von­tade do destino entregues ao pré-entendimento ontológico que torna possíveis os processos de aprendizado no interior do mundo? Ou os resultados desses processos de aprendizado também podem rever o próprio saber lingüístico que interpreta o mundo, retrospectivamen­te? Se queremos fazer jus ao factum transcendental da aprendizagem, então é provável que tenhamos que contar com a segunda alternativa - e com uma razão comunicativa que deixa de prejulgar quaisquer conteúdos. Essa razão que passa a ser apenas procedimental opera com reivindicações de validação que transcendem o contexto específico e com suposições de mundo pragmáticas. Mas a suposição de um mundo

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objetivo único tem apenas o significado formal de um sistema de re­ferências ontologicamente neutro. Ela deixa de afirmar que nós pode­mos fazer referência às mesmas entidades- novamente reconhecíveis -quando procedemos a descrições que se alteram31 •

Sobre a lógica dos discursos jurldicos

Lenoble compartilha uma crítica ao conceito da razão comuni­cativa e a suposições básicas da teoria da ação comunicativa porque entende que a "indeterminação" do direito e da práxis decisória jurí­dica são apenas um reflexo da "impossibilidade de decisão" que deve inerir à comunicação lingüística como tal. Não está claro para mim de que maneira o direito deveria continuar cumprindo sua função de es­tabilizar as expectativas de comportamento, se tanto os clientes quan­to os especialistas devessem duvidar de que o direito vigente determi­nasse de maneira suficiente e ex ante quais são os procedimentos e pontos de vista normativos segundo os quais se deveriam intepretar e decidir os casos futuros. A segurança jurídica, que certamente não se deve absolutizar, mas que representa uma contribuição imanente ao direito em favor da legitimidade da ordem jurídica, exige uma certa medida de previsibilidade. Temas que Lenoble aborda nesse contexto voltam a aparecer em outros autores. David Rasmussen defende a her­menêutica jurídica (I), Robert Alex:y defende sua versão da teoria do discurso (2) e Gunther Teubner, uma nova formulação do antigo pro­blema da colisão (3).

( 1) David Rasmussen trata minha análise da jurisdição e da apro­priação da hermenêutica jurídica por parte da teoria do discurso, as­sumindo o ponto de vista de um filósofo que acompanhou a discus­são alemã de Husserl e Heidegger, passando por Gadamer até chegar a Apel. Ele conduz suas observações metacríticas à seguinte tese: "'Habermas' argument claims too much for a theory of rationality. At the sarne time, while buying in to a form of philosophy of language, it claims to little for language': Pois sobre o pano de fundo do debate entre hermenêutica e fenomenologia transcendental, a investigação

31. Cf. C. Lafont, Sprache und Welterschlieflung, Frankfurt am Main, 1994.

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formal-pragmática dos pressupostos gerais da comunicação parecem constituir para Rasmussen- apesar da virada lingüística- ore­gresso a um ponto anterior ao início da destranscendentalização da consciência pura. Ele situa o erro na suposição de que ainda se pode­ria preservar o estilo transcendental da argumentação, mesmo depois da reviravolta lingüística - em vez de se abandonar totalmente a he­rança transcendental de uma tensão entre facticidade e validação e renunciar, com a hermenêutica, a todas as idealizações.

Espanta-me que Rasmussen negue taxativamente a pergunta for­mulada de maneira retórica: "Does interpretation require idealiza­tion?" Pois Gadamer e Davidson demonstraram, cada um à sua ma­neira, que a interpretação de expressões lingüísticas (e de composições simbolicamente pré-estruturadas em geral) exige muito provavelmen­te um princípio de clemência. Temos de supor nos agentes imputabi­lidade, e em suas enunciações, racionalidade - é exatamente isso que exige a teoria do agir comunicativo32• Essas idealizações são esti­madas apenas com fins metodológicos; porém elas têm um fundamen­tum in re, ou seja, nas suposições de racionalidade da própria práxis de uma busca do acordo mútuo.

Eu mesmo sempre enfatizei que não se pode estabelecer de ma­neira falaciosa uma relação entre a práxis discursiva e o procedimento de formação democrática da opinião e da vontade. Além do mais, uma compreensão da jurisdição a partir da teoria do discurso não leva de modo algum à exigência de uma "democratização" dos tribunais. O que resulta do alojamento (apenas postulado) da justiça em uma comu­nidade de intérpretes constitucionais que seja aberta e crítica em face da justiça são muito mais as exigências jurídico-políticas, e apenas no que concerne ao solapamento da divisão funcional em poderes, que já se mencionou acima: quanto mais a justiça recicla o direito, tanto mais energicamente é preciso conclamá-la a justificar-se, não apenas diante de uma opinião pública formada por especialistas, mas sim para fora, perante o fórum dos cidadãos.

(2) A tese de doutorado de Alexy33, por sua vez, encorajou-me a também estender ao direito e ao Estado constitucional a teoria do dis-

32. Cf. Habermas, 1981, vol. l, pp. 152-195. 33. Cf. R. Alexy, Theorie der juristischen Argumentation, 2. ed. (com um posfácio

interessante), Frankfurt am Main, 1991.

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curso que desenvolvi para a moral. Sua "teoria dos direitos fundamen­tais", além disso, ajudou-me na compreensão da dialética entre igual­dade jurídica e factual34 • De outra parte, ele sugere aí uma interpre­tação de normas jurídicas que foi criticada por Klaus Günther e por mim35• Segundo essa interpretação, a compreensão deontológica de normas deve permitir que se chegue a uma compreensão equivalen­te de conteúdos de valor correspondentes. Alexy vê muito bem a dife­rença entre os dois modos de observação: "O que prima facie parece ser o melhor no modelo de valores é o que se deve cumprir prima facie no modelo de princípios; e o que é definitivamente o melhor no mo­delo de valores é o que se deve cumprir em definitivo no modelo de princípios. Portanto, princípios e valores diferem apenas devido a seu caráter deontológico, por um lado, e a seu caráter axiológico, por ou­tro"36. Mas a disputa gira em torno do "apenas": "No direito, trata-se apenas do que se deve cumprir. Isso depõe a favor do modelo de prin­cípios. Por outro lado, na argumentação jurídica não se tem qualquer dificuldade quando se toma o modelo de valores como ponto de par­tida, ao invés do modelo de princípios"37. Alexy desenvolvera essa tese sob a forma de um modelo de otimização ou ponderação (que incluía análises de custo-benefício).

Ele desenvolve essa posição com mais um argumento. A dife­renciação rígida entre pontos de vista deontológicos e axiológicos não serviria para as normas jurídicas, as quais, por regulamentarem ma­térias relativamente concretas, têm de ser justificadas tanto em face dos objetivos políticos e valores éticos quanto sob os pontos de vista morais. Alexy antecipa minha resposta de que na fundamentação de normas jurídicas sempre se trata (em sentido dworkiniano) apenas de uma precedência relativa dos argumentos de princípio em relação aos argumentos de demarcação de objetivos; senão a forma jurídica (e a validação das normas jurídicas enquanto deveres) necessariamente sofreria danos, já que desde sua origem o direito partilha com a moral a tarefa de resolver conflitos interpessoais, mas sem servir em pri-

34. Cf. R. Alexy, Baden-Baden, 1985; nesse meio tempo foi publicado: R. Alexy, Begriff und Geltung des Rechts, Freiburg!München, 1992.

35. Cf. K. Günther, Der Sinn für Angemessenheit, Frankfurt am Main, 1988, pp. 268-276; Habermas, 1992, pp. 309ss.

36. Alexy, 1985, p. 133. 37. Idem, ibidem.

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meira linha à efetivação de fins coletivos- tal como acontece com as políticas38• Alexy não se dá por satisfeito com essa réplica. Pois ao tratar do caráter deontológico (e portanto incondicionado) da vali­dação do dever- caráter que eu gostaria de ver preservado nas nor­mas jurídicas-, ele o entende no sentido de uma validação univer­sal, que inclua todos os sujeitos capazes de agir e de utilizar a lingua­gem; com isso, ele torna as coisas fáceis para si: normas jurídicas ape­nas vinculam uma comunidade histórica de pessoas, limitada no tem­po e no espaço, e portanto não podem ser "deontológicas" naquele sentido estrito.

Quanto a isso deve-se dizer que a expressão "deontológico" re­fere-se em primeiro lugar apenas a um caráter obrigatório codifica­do de maneira binária. Normas são ou válidas ou inválidas, enquan­to valores concorrem pela primazia em relação a outros valores e precisam ser situados caso a caso em uma ordem transitiva. O código de uma diferenciação análoga à verdade entre mandamentos "cer­tos" e "errados" e a respectiva incondicionalidade de sua reivindica­ção normativa de validação permanecem intocados pela restrição do campo de validação a uma comunidade jurídica particular. No inte­rior de um campo de validação como esse, o direito se apresenta dian­te de seus destinatários, assim como antes, munido de uma reivindi­cação de validação que exclui uma pesagem dos direitos segundo o modelo da ponderação de "bens jurídicos" precedentes ou menos importantes. A maneira de avaliar nossos valores e a maneira de de­cidir o que "é bom para nós" e o que "há de melhor" caso a caso, tudo isso se altera de um dia para o outro. Tão logo passássemos a consi­derar o princípio da igualdade jurídica meramente como um bem entre outros, os direitos individuais poderiam ser sacrificados caso a caso em favor de fins coletivos; no caso de uma colisão, deixaria de ocorrer o "recuo" de um direito em relação a outros, sem que ele tivesse que perder com isso sua validade.

É evidente que se trata aqui de algo mais que um mero embate por palavras; mostra-o a maneira como entendemos o princípio da proporcionalidade, que orienta a jurisdição nos casos de colisão. Dado que os direitos desempenham no discurso jurídico o papel de razões ponderáveis entre si, Alexy vê nisso a confirmação de sua concepção,

38. Cf. Habermas, 1992, pp. 516ss.

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segundo a qual se podem tratar os princípios como valores. Afinal, real­mente pode haver boas razões para um enunciado em maior ou me­nor número, ao passo que a proposição em si mesma ou é verdadeira ou é falsa. Supomos a "verdade" como qualidade "imperdível" dos enunciados, mesmo que possamos avaliá-los com base em razões que conforme o caso justificam que os consideremos verdadeiros. A dife­rença entre o modelo de princípios e o de valores evidencia-se no fato de que é apenas em um caso único que se mantém o ponto de referên­cia de uma reivindicação à validade "incondicionada" ou codificada de forma binária: as proposições normativas gerais empregadas (entre outras) pelo tribunal para a justificação de uma sentença (singular) valem aqui como razões cuja tarefa é autorizar-nos a considerar corre­ta a decisão que se dê ao caso. Se por outro lado, as normas justificadoras forem entendidas como valores que se trazem ad hoc para dentro de uma ordem transitiva por uma eventualidade qualquer, então a sen­tença resulta de uma ponderação de bens. Logo, a sentença é ela mes­ma uma sentença de valor e reflete de maneira mais ou menos ade­quada uma forma de vida que se articula no âmbito de uma ordem concreta de valores; por outro lado, no entanto, ela deixa de estar refe­rida à alternativa entre a verdade e a falsidade da decisão tomada. Com tal assimilação de mandamentos que se aproximam a sentenças de valor, surge a legitimação para um espaço de mensuração subjetiva. Mas enunciados normativos e enunciados avaliativos comportam-se de maneira gramaticalmente distinta. A discreta assimilação de enuncia­dos de um tipo por enunciados do outro tipo priva o direito de sua reivindicação de validação de dever claramente talhada, e que caberia resolver discursivamente. Com essa reivindicação, desaparece também a tranqüilizadora coação à justificação: o direito positivo devia ficar submetido a ela pela simples razão de estar protegido por sanções e por lhe ser permitido interferir sensivelmente nos direitos à liberdade de pessoas que viessem a se comportar de maneira transgressiva.

Algo semelhante vale para a assimilação de discursos de aplicação e de fundamentação39• Alexy vê bem as diferenças na lógica do ques-

39. Não posso dedicar-me aqui à respectiva discussão entre Alexy e Günther: K. Günther, "Criticai Remarks on Robert Alexy's 'Special case Thesis"', Ratio ]uris, vol. 6, 1993, pp. 143-156; R. Alexy. "Justification and Application of Norms",loc. cit., pp. 157-170.

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tionamento, que em um dos casos visa à justificação de proposições normativas gerais à luz das conseqüências para casos exemplares pre­visíveis, e que no outro caso visa à justificação de sentenças singulares à luz de normas que se pressupõe serem válidas. Mas ele não logra esclarecer determinados fenômenos, tais como as diferenças do arran­jo comunicativo entre legislação e jurisdição, por exemplo. Pois essas diferenças, de maneira lógico-argumentativa, resultam dos princípios de generalização e de adequação, que são diretivos em discursos de fun­damentação e aplicação. Nos discursos de fundamentação, por exem­plo, em que não pode haver pessoas sem envolvimento, deixaria de existir o papel de um terceiro imparcial, que a propósito determina a estrutura do discurso judicial. Quando incluímos a distinção entre dois tipos de discurso, desaparece o fundamento racional em favor de uma divisão funcional de poderes, que se justifica a partir das diversas pos­sibilidades de recurso a tipos determinados de razões. As razões com as quais o legislador político tiver fundamentado as normas já decidi­das (ou as quais ele poderia ter mobilizado racionalmente para tal fim) simplesmente não estarão à disposição da justiça e da administração quando se for aplicar ou implementar essas mesmas normas. Isso as­sume um sentido crítico sempre que a justiça e a administração têm de tomar decisões que contribuam para a formação continuada do di­reito, ou sempre que têm que assumir tarefas legislativas veladas -tendo de se expor, dessa maneira, a outras coerções legislativas que não as previstas na divisão tradicional de poderes. (Daí decorre, por exem­plo, do ponto de vista jurídico-político, a exigência de que haja fóruns que se posicionem criticamente em face da justiça, bem como formas de participação administrativa, funções de ombudsman etc.)

( 3) A crítica de Gunther Teubner visa ao que é essencial. Primeiro, ele saúda a diferenciação dos aconselhamentos em discursos e negocia­ções (bem como a diferenciação dos discursos segundo diversas formas da argumentação- pragmática, ética, mural e jurídica). Quando, po­rém, em face do pluralismo de discursos, não se leva em consideração o fechamento semântico de cada um deles e a indiferença de uns em rela­ção aos outros (como se dá com Lyotard, por exemplo), surge logo na seqüência o problema que interessa a Teubner. Pois no caso da colisão é preciso preocupar-se com a conciliabilidade dos diferentes discursos: "After the move to pluridiscursivity, the success of Habermas' theory depends on a plausible solution to the collision of discourses': Precisa-

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mos de procedimentos - Teubner fala de "rational metaprocedures for interdiscursivity"- de acordo com os quais possamos decidir que matérias entre que aspectos devem ser regulamentadas em primeiro lugar, ou então qual dos diferentes aspectos deve ter precedência entre os que tratam de uma e mesma matéria. Teubner coloca-me diante da alternativa de escolher entre a heterarquia de discursos em igualdade de direitos e a hierarquização sob a liderança de um superdiscurso; e ele imagina que eu atribua à teoria do discurso o papel de um superdiscurso como esse. Mas as coisas não são bem assim.

É certo que a elucidação de questionamentos pragmáticos, éticos e morais, bem como a análise das regras argumentativas e dos tipos dis­cursivas correspondentes são tarefas filosóficas, em primeira linha; mas a filosofia desenvolve um discurso entre muitos outros e explica até mesmo por que não pode haver metadiscursos. Sob uma ótica socioló­gica, é por isso que os filósofos dispõem tanto quanto outros cientis­tas de tão pouco privilégio em assuntos públicos. Em todo caso, eles podem se deixar questionar como especialistas sobre as respectivas matérias, ou então intrometer-se enquanto intelectuais, mesmo sem ser chamados; mas não podem pretender para si mesmos, de modo algum, o papel institucional de um árbitro.

Minhas reflexões ligadas à teoria do discurso encaminham-se para a auto-seletividade dos questionamentos: a lógica dos respectivos dis­cursos também delineia transições racionais de um discurso para ou­tro. A reflexão a seguir serve apenas como uma ilustração disso. À me­dida que na articulação e ponderação de políticas seja relevante a esco­lha de recursos e estratégias racional-finalistas (com base em informa­ções empíricas) é preciso já terem sido dadas preferências suficiente­mente claras e capazes de proporcionar o consenso. Se as próprias pre­ferências são controvertidas, porque nelas se chocam interesses opos­tos, então é preciso encontrar os ajustes adequados ao procedimento (e é nos discursos morais que cabe decidir sobre a justeza e honestidade dos procedimentos). No entanto, se, em vez de haver pouca clareza em relação às preferências, realmente ocorrer que elas sejam controversas, então cabe aos envolvidos, em discursos éticos, chegar a acordos mú­tuos sobre sua forma de vida e identidade coletiva, a fim de que eles garantam para si mesmos orientações comuns de valor. Se em vez de conflitos de interesse carentes de ajustes houver conflitos 4e valor inso­lúveis, aí as partes precisam abandonar o plano em que se encontram

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para alcançar posições únicas, sob um ponto de vista moral acerca das regras de convívio; e embora esse ponto de vista moral seja mais abstra­to, ele terá sido suposto em comum e atenderá eqüitativamente os inte­resses de todos. Este é apenas um modelo de relações interdiscursivas, e a seu lado há muitos outros modelos possíveis. O que importa aqui, apenas, é que as transições não se fixem em um superdiscurso; elas decorrem muito mais da lógica do questionamento de um discurso em particular, e têm como resultado que se privilegie o que seja bom em face do que seja propositado, e o que seja justo em face do que seja bom. No caso de uma colisão, as razões morais "fisgam" as razões éticas, e as razões éticas, as pragmáticas; e isso porque o respectivo questionamen­to, tão logo se torne problemático em seus próprios pressupostos, trata ele mesmo de indicar a direção em que lhe cabe transgredir de maneira racional. O fato de que os ajustes precisem estar em consonância com os valores éticos básicos devidamente reconhecidos, e de que estes, por sua vez, precisem estar em consonância com princípios morais válidos, é resultado da lógica dos questionamentos e das concatenações interdiscursivas que eles mesmos regulam.

Com certeza, essa "auto-seletividade" da proposição de questões só pode funcionar enquanto a seleção dos questionamentos e a escolha de aspectos sob os quais se deve tratar uma matéria controversa não forem, elas mesmas, controversas. Uma "colisão discursiva" ocorre, po­rém, quando os envolvidos não logram decidir em conjunto, por exem­plo, se o caso em questão é um conflito de interesses passível de solu­ção por um acerto, ou se é um conflito de valores, para o qual não se pode ter uma solução como essa; ou então se a questão no caso espe­cífico é de ordem moral ou de ordem ética; ou ainda se a matéria de que se trata carece de uma regulamentação política ou se ela é juridi­camente regulamentável etc. Já que não há metadiscursos para pro­blemas de segunda ordem como esses, também aqui tem-se de recor­rer a procedimentos juridicamente institucionalizados; pois esses só correspondem a uma pré-seleção à medida que tudo que se vai nego­ciar tenha de ser negociado na linguagem do direito e de acordo com pontos de vista jurídicos (desde que uma das partes envolvidas o queira). Os procedimentos jurídicos devem sua competência reguladora, no caso das colisões discursivas, ao fato de o código do direito ser inespe­cífico demais para ter sensibilidade em face da "lógica dos questiona­mentos". Não há procedimento jurídico que classifique as matérias se-

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gundo o tipo de questionamento. E embora isso seja útil do ponto de vista procedimental, já que assim as decisões se estabelecem em qual­quer caso, mesmo que na ocorrência de colisões discursivas, a situação toda acaba sendo insatisfatória do ponto de vista substancial, já que dessa maneira não se pode excluir que se chegue a ajustes sobre valores conflitantes, nem que se decidam questões éticas sob o ponto de vista moral, nem que assuntos privados se politizem ou que se tomem os campos da ação e se ordenem juridicamente etc. Por outro lado, só é possível deparar com esses "erros de classificação" pela circunstância segundo a qual os procedimentos jurídicos tanto possibilitam quanto mantêm intactas as argumentações, ou seja, desencadeiam discursos sem intervir na lógica interna deles. É na medida em que isso dá certo que a auto-seletividade dos questionamentos passa a funcionar40•

Isso não significa de modo algum, no entanto, que o discurso ju­rídico deva ser utilizado como superdiscurso. Quem propõe tal coisa é Teubner; e para tanto ele se apóia em duas suposições problemáticas: (a) os diversos discursos de que o discurso jurídico se apropria caso a caso são incomensuráveis entre si, e (b) o papel específico do discurso jurídico consiste em trazer os demais discursos a um denominador comum, para dessa maneira torná-los compatíveis uns com os outros.

Sobre (a): Teubner, para explicar o que entende por incomensu­rabilidade (em um sentido ainda juridicamente inespecífico), toma como exemplo o direito privado internacional. Isso já teria de dar conta, desde o início, do problema da criação de regras para as coli­sões que surgissem nos casos individuais entre as ordens jurídicas que diferissem nacionalmente. Segundo essas "regras de colisão" decide­se caso a caso se cabe usar o direito privado próprio ou estrangeiro; mas essas metarregras, por sua vez, são formadas a partir da perspec­tiva do respectivo direito próprio. Por isso, quando se dá a aplicação das diferenças entre o direito privado próprio ou estrangeiro, diferen­ças que são respectivamente constatadas a partir da perspectiva pró­pria, ocorre que o problema de partida apenas se reproduz em um nível de reflexão mais elevado: "ln vain do discourse collisions search for one central meta-discourse. There is only a plurality of decentralized

40. Cf. ]. Habermas, "Vom pragmatischen, ethischen und moralischen Gebrauch der praktischen Vernunft': ln: Erliiuterungen zur Dískursethík. Frankfurt am Main, 1990, pp.117s.

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meta-discourses that reformula te collisions in their own idiosyncratic language': Mediante essa descrição - wietholteriana - os direitos privados internacionais, que só podem concretizar o singular"do" direi­to privado internacional no plural das muitas ordens jurídicas nacio­nais, servem como exemplo da problemática geral do "acordo mútuo" entre discursos que constituem mundos estranhos uns para os outros. Embora esses discursos não sejam semanticamente fechados, no sen­tido de serem incompreensíveis uns para os outros, eles são regidos por racionalidades e conceitualidades básicas diferentes e inconciliáveis entre si, de modo que o que é falso ou de menor importância em um universo pode ser correto ou prioritário em outro.

Essa incomensurabilidade é de tipo semelhante ao do conflito intraestatal entre as comunidades integradas em torno das respectivas concepções do que seja bom, e que por exemplo descrevem o "aborto" de perspectivas distintas, de modo que a identidade do fato como tal se torna difusa em decorrência da falta de uma perspectiva valorativa co­mum. Se isso for assim, porém, cria-se para Teubner uma conseqüência desagradável: com sua concepção de incomensurabilidade, ele tacita­mente coloca o discurso ético em situação privilegiada em relação a to­dos os outros tipos de discurso. Isso contradiz a premissa da igualdade de importância entre todos os discursos, da qual deve resultar uma ine­vitável assimetria do "acordo mútuo" entre eles. Voltarei em breve a isso.

De fato a assimetria que Teubner explica com base nas regras de colisão do direito privado internacional é o produto contra-intuitivo de uma demarcação de itinerário teórica ainda presa à tradição da fi­losofia da consciência. Quando se parte de sistemas ou discursos que constituem o próprio mundo segundo premissas próprias qual fossem um sujeito transcendental, então só se pode conceber o "acordo mútuo" com base na observação recíproca de forma intencionalista e de tal maneira que um "enseje" ao outro o desenvolvimento das respectivas operações. Essa estratégia teórica é contra-intuitiva porque ignora a circunstância- e o discernimento hermenêutico básico- de que nin­guém pode chegar com um outro a um acordo mútuo sobre o que quer que seja se não dominar o sistema dos pronomes pessoais que podem transformar-se uns nos outros, e se não souber como produzir uma simetria entre as perspectivas intercambiáveis da primeira e da segunda pessoas, no âmbito de uma interação que se possa observar a partir da perspectiva de uma terceira pessoa.

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No mais, o direito privado internacional só pode servir de exem­plo para isso enquanto um direito desencadear inevitavelmente os pró­prios conflitos com outros direitos sob premissas próprias, tal como ocorre nas ordens jurídicas nacionais de Estados soberanos. Mas so­mente no período entre 1648 e 1914 os Estados foram "soberanos" no sentido de não estarem submetidos a uma convenção de direitos humanos internacionalmente obrigatória, nem de haverem positivado direitos humanos nas próprias constituições. Pois tão logo seja esse o caso, o teor universalista dos direitos humanos acaba se impondo so­bre todas as regulamentações concretas, passando pela legislação do direito privado. A pressão bilateral de um sistema de direitos huma­nos e fundamentais exercida efetivamente tanto de dentro quanto de fora, e que passou a ser efetiva nesse meio tempo, certamente não exclui a disputa intercultural em torno da interpretação desses direi­tos. Mas o discurso sobre os direitos humanos, por sua vez, é infor­mativo para as contendas jurídicas disputadas diante de cortes inter­nacionais e que são decididas de uma maneira ou de outra. Ao menos é possível conceber sem contradições uma condição cosmopolita fu­tura, o que demonstra que o exemplo das regras de colisão não com­prova de modo algum a inarredabilidade das assimetrias que ocor­rem no direito privado internacional.

Sobre (b): Na concepção de Teubner, o papel do superdiscurso deve caber ao direito, porque é o direito que se comporta em face de todos os outros discursos sob a consciência de que eles constituem mundos incomensuráveis uns para os outros e de que eles, por causa de suas relações assimétricas, têm de se tornar reciprocamente "in­justos". O medium do direito compensa essa "injustiça" à medida que se apropria à sua maneira de todos os discursos que encontra no uni­verso social que o circunda, tornando-os compatíveis uns com os ou­tros. Segundo essa concepção, portanto, o direito está especializado na compatibilização do que é inconciliável, em sentido gramatical; natu­ralmente, é apenas sob premissas próprias que ele tem sucesso nessa tarefa, já que também o discurso jurídico, apesar de tudo, deve apre­sentar a qualidade da incomensurabilidade: "Justice can be realized to the degree as a concrete legal discourse is simultaneously able, externally, to incorporate the rationalities of other discourses and, internally, to observe its own requirements oflegal consistency". O que caracteriza o discurso jurídico e sua "lógica própria" não é apenas a

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coerência normativa, ou seja, a ligação de cada um dos novos casos à rede das decisões tomadas até então, mas sim um questionamento específico: como se pode tratar com igualdade o que é igual e com desigualdade o que é desigual (how to treat new cases alike/not alike). Isso significa, ao mesmo tempo, uma assimilação das racionalidades apropriadas de novos universos discursivas ao próprio padrão de tra­tamento igual. O direito é "senhor" sobre igualdade e desigualdade. Esse padrão é subjacente à "comparação" da "justiça compensativa" em face de discursos incomensuráveis e que portanto só podem se com­portar de forma "injusta" em relação uns aos outros (no sentido herme­nêutico-estetizante de "injusto': segundo Derrida e Lyotard). Com esse nivelamento assimilativo Teubner explica também a "impudência" e o "ecleticismo" de uma jurisdição que segue descaradamente a palavra de ordem da "ponderação de bens"- "be it balancing between prin­cipies, between values, or even between interests".

Mesmo que aceitássemos a descrição de incomensurabilidade e "injustiça" segundo Teubner (de um tipo desconstrutivista, mais ele­vado), a concepção do direito como um "superdiscurso" não poderia ser convincente por duas razões (pelo menos). Por um lado, o princí­pio do tratamento igual não serve como uma característica própria do direito, já que a moral à maneira dela também ajuda esse mesmo prin­cípio a obter validação. Direito e moral obedecem ao mesmo princí­pio discursivo e seguem a mesma lógica de discursos de aplicação e fundamentação. O que diferencia o direito da moral não é o questio­namento abstrato sobre como se devem regulamentar os conflitos in­terpessoais segundo o interesse eqüânime de todos, nem tampouco as regras de argumentação da universalização e adequação. O que há de específico nele não reside no discurso, mas sim na conformidade jurí­dica de normas- discursivamente fundamentadas e aplicadas- que são firmadas politicamente, interpretadasvinculativamente e impostas sob a ameaça de sanções estatais. Ligados à forma jurídica estão tam­bém a diferenciação e autonomização de discursos de fundamentação e aplicação, a coerção específica na direção de uma exatificação das regras, da coerência de sua concatenação e da consistência do decidir. Essas qualidades do código jurídico exigem uma "tradução" dos argu­mentos pragmáticos, éticos e morais, assim como dos resultados de negociações que ingressam no sistema jurídico por meio de aconse­lhamentos e resoluções do legislador político e aos quais a justiça pode

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se referir ao fundamentar suas sentenças. Por outro lado, isso não li­bera, sob hipótese alguma, a práxis decisória do juiz de que ela precise considerar o sentido deontológico da validação das normas jurídicas. Se a justiça realmente pudesse mover-se livremente no âmbito de uma ordem de valores flexível, como afirma Teubner, e se dependesse de reduzir princípios e demarcações de objetivos, normas e valores ao denominador comum dos "bens jurídicos" e ainda "ponderá-los" uns em relação aos outros, então os discursos jurídicos assumiriam na ver­dade o papel de discursos paternalistas e substituintes de um auto­entendimento ético-político, do qual os cidadãos estariam sendo priva­dos. É certo que a práxis dos tribunais superiores oferece exemplos do privilégio tácito que se dá a uma ética dos valores em relação ao direi­to e à moral, mas uma conseqüência como essa provavelmente já não vem ao encontro do sentido de Teubner.

Sobre o teor político do paradigma procedimental

( 1) Sou grato a Ulrich K. PreuB por traçar os contornos do pano de fundo sobre o qual se desenrola uma tradição especificamente ale­mã do pensamento jurídico, de modo que só agora se evidencia nele o ponto alto de uma ligação entre o direito e o poder comunicativo. Com certeza faz parte da tradição liberal em geral definir o Estado de direi­to com base no antagonismo entre um direito que preserva liberdades individuais e um poder político que concretiza fins coletivos; nesse contexto, remete-se esse "poder estatal" a uma origem "bárbara", au­tóctone e intocada pelo direito: à capacidade de dominação física41 •

Mas nas sociedades politicamente civilizadas do Ocidente esse anta­gonismo não foi acentuado até chegar ao ponto de uma luta entre princípios opostos; ao contrário, ele sempre foi apreendido como uma oposição que caberia balancear no Estado de direito. Na Alemanha, ao contrário, o que se teve diante dos olhos foi uma concorrência insolú­vel entre a integração política pelo direito, de um lado, ou então pelo poder político, de outro. Aqui a discussão entre especialistas do direito

41. Cf., p. ex., Ch. Larmore, "Di e Wurzeln radikaler Demokratie': Deutsche Zeitung für Philosophie, 41, 1993.

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público liberais e conservadores inflamou-se a partir da questão sobre em que medida se deveria submeter o poder monárquico a um disci­plinamento jurídico. A "substância" do Estado corporificada no exér­cito, na polícia e na burocracia, que alguns temiam e outros feste­javam, manteve a tal ponto a aura de um poder essencialmente irra­cional e superior a todo o restante, que mesmo a esquerda jamais lo­grou conceber a democracia de outra forma senão como uma sobera­nia principesca invertida, transferida da cabeça do monarca para os pés do povo. Por isso a democracia continuou sendo, mesmo para seus defensores, um projeto estatista.

Sobre esse pano de fundo entende-se a idéia de Marx de uma "morte paulatina do Estado"- uma radicalização do saint-simonismo herdado de Friedrich Engels, segundo o qual a dominação "política" de pessoas sobre pessoas se deveria transformar na administração "ra­cional" das coisas. Essa idéia fascinou-me desde o início. Pois através de Carl Schmitt e seus discípulos essa tradição de uma glorificação do "elemento político" do poder estatal teve continuidade para além do fim do regime nacional-socialista, no qual, a propósito, essa glorificação teve seu ponto culminanté2•

Assim como PreuB, também eu devo estímulos importantes à antitradição dos "juristas controversos"43, de raiz marxista, em espe­cial a Hermann Heller, Franz Neumann, Otto Kirchheimer e Wolfgang Abendroth. Evidentemente, na direção oposta os especialistas do di­reito público desenvolveram a idéia que PreuB tem razão em destacar: eles deram seqüência à "suprassunção" democrática da substância de dominação presente no poder estatal, sobretudo sob o ponto de vista de crítica ao capitalismo e favorável a uma reestruturação da organi­zação socioeconômica da desigualdade. De minha parte, no entanto, desenvolvi a noção de uma "racionalização" do exercício do poder administrativo (de forma imanente, em um primeiro momento) pela via de uma reconstrução do teor normativo peculiar ao direito e ao Estado democrático de direito. É isso- e não a proximidade a mestres que, de quando em quando, fazem alguém esquecer o que aprendeu

42. Cf. minha recensão sobre as teses de doutoramento de R. Koselleck e H. Kesting do ano de 1960: J. Habermas, Kultur und Kritik, Frankfurt am Main, 1973, pp. 355-364.

43. Cf. Kritische Justiz (org.), Streitbare Juristen. Eine andere Tradition, Baden­Baden, 1988.

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com eles- que pode explicar a razão de eu não ter tratado expressa­mente dessas fontes44 • Todavia, ao olhar retrospectivamente vejo uma deficiência, sim, no fato de eu não haver investigado em pormenor as tendências que hoje fazem do processo democrático o instrumento de uma dominação de maiorias que trata de excluir minorias fortes. Pos­sivelmente, a constelação hoje modificada, em que as estruturas de classe foram dissolvidas pela segmentação mais acentuada de popula­ções tornadas supérfluas e pelo desleixamento da infra-estrutura de bairros e regiões inteiras, também precisasse ter conseqüências no plano normativo - sob a forma de direitos a veto e direitos minoritários e sob a forma de instâncias advocatícias para os que se vêem compe­lidos cada vez mais para fora dos espaços públicos estabelecidos e que têm chances cada vez menores de melhorar sua situação com as pró­prias forças, ou então de fazer valer sua voz. A tendência à destruição do Estado social e o surgimento de uma subclasse nas sociedades in­dustriais desenvolvidas carece de uma análise acurada também sob o ponto de vista normativo do recurso efetivo, e sob igualdade de chances, aos direitos de participação política.

Com PreuB, gostaria de insistir na idéia de que nem no paradig­ma jurídico liberal, nem no paradigma jurídico socioestatal se leva a sério ou se esclarece a coesão interna entre direito e poder político. Somente um conceito de poder que acabe com a falsa alternativa entre direito e poder político pode chegar a isso; o poder que nasce do uso público das liberdades comunicativas dos cidadãos do Estado irma­na-se à criação legítima do direito.

Por fim, PreuB propõe questões com as quais já me ocupei em outros momentos45 • Em muitos casos, as coisas se dão de tal maneira que as matérias que cabe regulamentar juridicamente também têm que ser discutidas ao mesmo tempo sob pontos de vista pragmáticos, éti­cos e morais. Contudo, o aspecto da justiça reivindica primazia sobre os outros aspectos. Caso queira ser legítimo, o direito politicamente

44. Pontos de contato foram oferecidos pelas reflexões de Jürgen Seifert sobre a "constituição como fórum", dedicadas de forma nada casual à memória de A. R. L. Gurland: do mesmo autor, cf. "Haus oder Forum. Wertsystem oder offene Verfassung". ln: J. Habermas, Stichworte zur 'Geistigen Situation der Zeit', Frankfurt am Main,1979. pp. 321-339; lá também se encontra bibliografia complementar. Cf. nesse ínterim J. P. Müller, Demokratische Gerechtigkeit, München, 1993.

45. Cf. Posfácio à 4. ed. de Faktizitat und Geltung.

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firmado por escrito e concernente a uma comunidade jurídica con­creta tem de estar em consonância com proposições morais básicas. Entendo a complexa reivindicação de validação das normas jurídi­cas, por um lado, como a pretensão de considerar os interesses par­ciais estrategicamente firmados de uma maneira compatível com o bem comum; e, por outro lado, como a pretensão de fazer valer prin­cípios de justiça no âmbito do horizonte de uma forma de vida espe­cífica, marcada por constelações valorativas determinadas. A gera­ção de poder comunicativo e de direito legítimo torna necessário que os cidadãos não recorram a seus direitos democráticos exclusivamente como se eles fossem liberdades subjetivas, ou seja, a partir de interesses próprios, mas sim enquanto autorizações legítimas a um emprego público das liberdades comunicativas, ou seja, a um emprego delas orientado pelo bem comum. De outra parte, há boas razões para que os cidadãos não sejam juridicamente coagidos a isso. Por isso é ne­cessária a habituação a instituições da liberdade no âmbito de uma cultura política liberal - e necessária no sentido de uma exigência funcional. Por se ter de evitar uma doutrinação política, não se deve entretanto transpor irrestritamente a pergunta empírica pelas condi­ções de uma socialização política favorável a uma exigência normati­va por valores e virtudes políticas. PreuB mesmo, em outro contexto, fez alusão a que não se pode ter grandes pretensões quando se exi­gem virtudes públicas.

Isso também pode ser motivo para a sugestão de transmutar os conflitos de valores, que não se podem resolver como se fossem con­flitos éticos, em conflitos de interesse passíveis de acerto. Não consi­dero que isso se justifique do ponto de vista normativo, porque a redefinição de valores sob a forma de interesses pode resultar em uma danificação das identidades. "Valorações intensas" subjazem aos ideais sob cuja luz se articulam um projeto de vida existencial ou um jeito de viver cultural. A força relativa dos valores varia; em alguns casos questões de segurança ou saúde são mais importantes que questões de justiça distributiva ou de educação; em outros casos, dá-se o in­verso. Mas relações de valores como essas só podem ser alteradas atra­vés de discursos de auto-entendimento, e não por meio do estabeleci­mento de acertos. Negociações só são sensatas quando as reivindica­ções ou interesses concorrentes referem-se aos mesmos bens ou a bens comparáveis. Em negociações, as partes têm, desde o início, de che-

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gar a uma posição comum sobre as dimensões do que seja relevante -como no caso dos primary goods de Rawls (ou seja, bens coletivos socialmente reconhecidos e partilháveis, tais como salários, tempo livre, segurança social e indenizações sociais monetárias em geral). À medida que o estabelecimento de acertos estender-se sobre o próprio sistema de referência dos bens, então se terá que fixar a fortiori quais as relevâncias inegociáveis- isto é, quais são os "valores fundamen­tais" constitutivos da identidade dos participantes e constitutivos, portanto, da autocompreensão deles. A confusão entre valores funda­mentais e interesses é um erro categorial que acarreta muitas conse­qüências. Amor ou respeito não podem ser trocados por dinheiro no plano político, tampouco se pode trocar a língua materna ou a con­fissão religiosa por postos de trabalho. O que interfere nas definições de identidade não é passível de acerto. Golpes desse tipo, a propósito, corresponderiam a um atentado contra a dignidade humana e se­riam inadmissíveis, até mesmo por razões jurídicas.

(2) A política social do Estado constitui o ponto mais central do Estado social e da compreensão socioestatal do direito. Desde que os direitos fundamentais sociais estão garantidos sob a forma de segu­ros obrigatórios e vinculados aos salários contra os riscos do mundo do trabalho (tais como doença, acidente, invalidez, desemprego e idade- ainda que sob a negligência, até hoje, dos encargos do tra­balho doméstico e da educação dos filhos, especificamente ligados à questão de gênero) uma prevenção burocrática da existência ocu­pou o lugar das obrigações tradicionais de amparo. Com essa trans­formação, não se firmou a consciência do pertencer a uma comuni­dade cuja consistência se deve não apenas a relações jurídicas abs­tratas, mas à solidariedade, de maneira imediata. Entre clientes iso­lados que fazem valer reivindicações de benefícios ante burocracias estatais de bem-estar, não foi possível regenerar as relações de soli­dariedade já decaídas. Günter Frankenberg interessa-se pela face nor­mativa desse processo; ele crê que a forma correta de implementa­ção deve ser precedida de uma correta compreensão normativa dos direitos sociais. Daí advém a pergunta: "Why care?"

Frankenberg considera insuficiente a fundamentação relativa dos direitos fundamentais sociais (defendida também por mim), segundo a qual cabe a estes últimos assegurar (entre outras coisas) as condi­ções de vida necessárias a que se faça uso, sob igualdade de chances,

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dos direitos privados à liberdade e dos direitos políticos à cidadania - cuja fundamentação é absoluta. Essa estratégia de fundamentação que confere prioridade ao asseguramento da autonomia privada e pú­blica, volta-se contra os efeitos de um paternalismo do Estado de bem­estar. Os cidadãos precisam ser capazes de fazer uso efetivo de seus direitos em favor de uma conformação autônoma da própria vida; por isso, para que cheguem à constatação de suas competências for­malmente asseguradas, eles têm que se pôr nesse lugar através de um serviço estatal, conforme o caso. Frankenberg apresenta duas restri­ções contra essa concepção, uma boa e uma não tão boa.

O princípio "ajuda para a auto-ajuda" só é satisfatório no que diz respeito às pessoas que ou estão de posse plena de suas forças ou um dia alcançarão o status de maioridade (como as crianças), ou às pes­soas que podem recuperar suas forças e competências (como ocorre com doentes ou, de outra maneira, com pessoas preteridas ou cujo desenvolvimento mental fica abaixo da média). Diferente disso é adis­ponibilidade de ajudar pessoas desamparadas e débeis, ou o amparo a pessoas que sofrem sem possibilidade de cura. Evidentemente, essa assistência tem um valor intrínseco e não se confunde com a função que desempenha em favor da produção ou restauração de autonomia. Esse impulso moral elucidativo, que aponta para obrigações positivas, certamente não pode ser traduzido de maneira imediata em um plano político onde é necessário haver uma "divisão moral do trabalho", até mesmo por razões organizacionais46• Normalmente, um sentimento de solidariedade baseado na cultura política irá expressar-se no apoio a políticas e programas de ajuda correspondentes.

Frankenberg dá outra direção ao argumento ao propor a tese de que a referência às condições de surgimento da autonomia pri­vada e pública conduziria a uma concepção unilateral dos direitos sociais. Estes correriam o perigo de degenerar até se tornarem ins­trumentos de restauração da força de trabalho ou da qualificação da participação civil. Apenas quando os direitos sociais forem fun­damentados de modo absoluto, ou seja, como partes elementares dos direitos à condição de membro de uma comunidade é que se conserva a sensibilidade para relações solidárias entre "partícipes": "Instead of underprivileging social rights as 'implied' or 'relative' ...

46. Cf. H. Shue, "Mediating Duties': Ethics 98, jul. 1988, pp. 678-704.

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it seems more plausible to argue for social rights as self-incurred obligations to limit one's autonomy in arder to realize it in society". Frankenberg, se o entendo bem, em face dos conceitos dicotomiza­dores de autonomia privada e pública, gostaria de levar em conta algo como uma autonomia social de cada indivíduo que se deveria efetivar em comunidade. A isso subjaz a intuição de que a leitura possessivo­individualista de direitos subjetivos deve ser suplantada em favor de uma compreensão solidarista. Disso advém a conseqüência comuni­tarista de que um reavivamento da substância ética da coletividade pode atuar opositivamente às tendências desintegradoras do sistema jurídico. Frankenberg responde à pergunta "Why care?" com um apelo por mais "civic virtue", mais "communal spirit" e um "sense of soli­darity" mais acentuado.

Considero essa concepção não apenas irrealista, mas também problemática, porque atribui uma força integradora muito pequena ao direito -como único medi um pelo qual se poderia assegurar uma "solidariedade com estranhos" em sociedades complexas- e um po­tencial universalista muito grande aos vínculos pré-políticos de co­munidades informais. Talvez ainda se espelhe nessas atribuições de importância a herança do primeiro socialismo, que com face de Jano olhava ao mesmo tempo para frente, em direção a um futuro emanci­pado, e para trás, em direção a um passado idealizado, querendo suprassumir as forças sociointegrativas das comunidades solidárias corporativas, familiares e de vizinhança já exauridas, transformá-las e resgatá-las sob as condições modificadas de uma sociedade industrial. Seja como for, Frankenberg crê que não se pode em primeira linha compreender os direitos sociais sob o ponto de vista moral de uma viabilização equânime da autonomia privada e pública. O verdadeiro problema consistiria em como poder mobilizar uma consciência de solidariedade que tornasse aceitável, nos limites de uma comunidade eticamente integrada, a restrição da própria autonomia em benefício de outros partícipes.

A essa concepção de um jogo das liberdades privadas em que to­dos os saldos ficam zerados subjaz, porém, uma oposição antidialética entre autonomia privada e pública. Se, ao contrário se toma como ponto de partida um enfoque intersubjetivista, segundo o qual os di­reitos derivam do fato de se pertencer a uma associação de juriscon­sortes livres e iguais e segundo o qual esses mesmos direitos conquis-

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tam legitimidade somente com base no reconhecimento recíproco das mesmas liberdades, então a solidariedade evocada por Frankenberg, e já conhecida das relações concretas de reconhecimento da interação simples, preserva para o próprio direito uma força estruturadora. Sob uma forma abstrata, a solidariedade continua sendo um recurso social de que a autodeterminação democrática dos cidadãos precisa se ali­mentar, caso deva surgir daí um direito legítimo. Só são legítimas as regulamentações que tratam com igualdade o que é igual e com desi­gualdade o que é desigual, ou seja, as que também asseguram liberda­des subjetivas de modo efetivo; e só se devem esperar regulamenta­ções legítimas como essas quando os cidadãos fazem uso de suas li­berdades comunicativas em comum, de maneira que todas as vozes tenham chances iguais de ser ouvidas. Assim, o recurso efetivo às au­tonomias privada e pública, que se pressupõem mutuamente, é ao mesmo tempo uma condição para que os direitos civis sejam adequa­damente interpretados e garantidos, além de utilizados de maneira cada vez mais abrangente em seu teor universalista. Pelo fato de que a reprodução do direito, considerada normativamente, sempre signifi­ca a efetivação de uma associação de jurisconsortes livres e iguais, à qual todos os partícipes estão vinculados no respeito eqüânime de uns pelos outros, não surge nenhuma lacuna no processo circular da viabilização e asseguramento recíprocos da autonomia privada e pú­blica, ao menos não para uma autonomia social que devesse ser pre­enchida pela solidariedade dos partícipes de maneira diversa da que aliás já resulta do status próprio ao cidadão de um Estado.

(3) Filosofias do direito, ainda que não sejam escritas para o aqui e agora, também dispõem de um teor político e diagnóstico para a época em que surgem, à medida que espelham até certo ponto o contexto que lhes é próprio. É notório que a força de explosão política da filosofia do direito hegeliana instigou diversas gerações a reagi­rem com passionalidade. Apesar das indicações lisonjeiras de Dick Howard, é evidente que meu texto não ocasiona nenhuma compara­ção com Hegel, nesse sentido. De qualquer modo, os diagnósticos po­líticos de Dick Howard e Gabriel Motzkin são motivo de alegria para mim. Pois freqüentemente deparo com reações diferentes.

Com certeza um acontecimento da história universal como o colapso do Império Soviético obriga qualquer um a repensar sua posição política; faz muito tempo, no entanto, que defendo um refor-

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mismo radical47• Apesar de todas as mudanças de minha posição teó­rica48, vinculo à teoria do discurso do direito um sentido radicalmen­te democrático. Tal intenção é reconhecida pela análise que Howard faz da importância que o mundo da vida e a sociedade civil assumem nessa teoria e por sua busca da herança revolucionária que ele acaba por encontrar na cultura política das liberdades comunicativas aí desencadeadas. Igualmente correta parece-me ser a descrição feita por Motzkin da constelação política a que reajo. Ele apreende com exa­tidão a situação interna da República Federal da Alemanha amplia­da, mesmo que talvez se devesse falar de um "extremismo de centro", mais do que de um "extremismo de direita": "The demise of the left hab liberated the right from its servitude to the center: no longer does it need liberalism as the best defence for antiliberalism ... The criticai enterprise. . . is not one of dismantling the power structure and re­placing it by another, but rather one of buttressing the existing power structure against the threat looming from the right, whether the po­liticai, the economic or the religious right':

Comentários sociológicos: mal-entendidos e estímulos

Quando retornei a uma faculdade de filosofia após doze anos de trabalho de pesquisa em um instituto de ciências sociais, chamou-me mais a atenção do que antes o fato de que às vezes os filósofos, com base em suas competências próprias, se acreditam capazes de emitir juízos sobre fatos empíricos sem sequer ter tomado conhecimento da complexa bibliografia especializada sobre o assunto. Essa atitude de mandarim levou-me a fazer uma observação mordaz, que agora é ci­tada por Mark Gould, só que voltada contra mim mesmo49• Mas não são apenas os filósofos que lidam de maneira pré-científica com o co­nhecimento empírico; há também sociólogos que preparam toda uma

47. Cf. }. Habermas, "Nachholende Revolution und linker Revisionsbedarf". In: Die nachholende Revolution, Frankfurt am Main, 1990, pp. 170-204.

48. Tentei dar conta disso pela última vez em 1990, no Prefácio à nova edição de Strukturwandels der Offentlichkeit.

49. Cf. }. Habermas, "Treffen Hegels Einwãnde gegen Kant auch auf die Diskurs­ethik zu?': In: }. Habermas, 1990, p. 30.

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filosofia sem abdicar da perspectiva metodológica da própria área de especialidade - isto é, que aparecem como filósofos em pele de cor­deiro sociológica. Nisso, raramente pode se manisfestar originalidade, como ocorreu sem dúvida alguma com Niklas Luhmann; em outros casos, manifesta-se antes uma certa ingenuidade.

( l) Se por um lado Mark Gould arrisca-se muito pouco a sair de sua morada parsoniana, ao mesmo tempo ele se atreve a emitir tantos juízos, que sua competência na área específica (que tenho em alta conta já não é de hoje) acaba se ligando às vezes a uma insensibilidade her­menêutica assustadora. Em todo caso, ele compreende tão pouco a postura pluralista de minha teoria (enfatizada já desde o Prefácio) que chega a confundir quase tudo.

Quando não se pretende estar restrito a reflexões normativas sobre uma teoria da justiça, ou à análise de conceitos fundamentais decisivos, ou a considerações jurídicas sobre a metodologia da prá­xis decisória judiciária (o que também é legítimo, com certeza), en­tão não se pode construir uma filosofia do direito fechada em si mesma, como ainda se fazia nos tempos de Hegel. Por isso procedi de modo a desenvolver primeiro o questionamento geral- da rela­ção entre facticidade e validação- com base na teoria do agir comu­nicativo, para depois explicar a função sociointegrativa do direito, à luz dessa teoria. Foi então que confrontei a perspectiva normativa da tradição jurídica racional à objetivação do direito empreendida pelas ciências sociais, a fim de dar outra importância metodológica a essa análise filosófica no âmbito de uma teoria social que procedesse reconstrutivamente, sem deixar de satisfazer exigências descritivas, e que assumisse seu enfoque a partir de uma "perspectiva dupla". Isso, no entanto, não significa de modo algum um apagamento de diferenças na reconstrução do direito empreendida a partir da pers­pectiva interna do sistema jurídico, que procurei levar a cabo nos capítulos III a VI. Essa reconstrução racional dos direitos, dos prin­cípios do Estado de direito, da práxis decisória judiciária e de sua relação com o poder legislativo o que mais faz é preservar a auto­suficiência de uma teoria do direito normativamente orientada. A comparação entre direito e moral exige até mesmo reflexões de teo­ria moral, ou seja, reflexões filosóficas em sentido mais estrito, da mesma forma que a investigação dos discursos jurídicos de aplica­ção exige reflexões de metodologia jurídica. Só os dois capítulos se-

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guintes cumprirão a mudança de perspectiva em direção a uma teo­ria da democracia no âmbito das ciências sociais.

Essas análises particularmente centradas no processo de legiti­mação não servem ao objetivo de uma sociologia do direito e dos sis­temas políticos constituídos em conformidade com o Estado de di­reito. Mais que isso, cabe ao modelo de um ciclo político do poder (desenvolvido nessas análises) tornar plausível que a autocompreen­são normativa das ordens jurídicas modernas (apreendida de forma reconstrutiva) apóia-se sobre uma base real, bem como demonstrar de que maneira essa autocompreensão se encaixa na realidade de sociedades altamente complexas. Pois o resultado dessas análises50

-e eis o que importou para mim nos excursos sociológicos- ofe­rece o gabarito com o qual se pode julgar o teor do paradigma jurí­dico procedimentalista que concerne às ciências sociais, conforme in­troduzido no último capítulo. Assim como se dá com os paradigmas liberal e do Estado de bem-estar social, também subjaz a esse terceiro paradigma determinada interpretação da sociedade como um todo a partir da visão do sistema jurídico. Para isso certamente foi necessário um retorno à perspectiva performativa interna do sistema jurídico e de seus integrantes. À medida que a teoria estabelece em seu todo uma relação com a práxis, ela visa, segundo declaro na conclusão do livro, a uma mudança da pré-compreensão falível, em cujo horizonte não apenas os especialistas em direito, mas também os cidadãos e seus políticos participam do processo de interpretação constitucio­nal e da efetivação do sistema de direitos, mediante uma estratégia de divisão do trabalho.

Essa concepção democrática da relação entre teoria e práxis é ignorada por Gould, porque ele mesmo parte da noção instrumental de uma Aufkliirung sociológica da justiça como agência de reforma social. Ele exige uma "jurisprudence rooted in social science", caben­do à sociologia o papel de uma autoridade que ensina a agir: "Suggest­ing that courts implement equitable standards rests on a preliminary theory of social development that attempts to discover an immanent progression from within our liberal legal structure': Gould não com­preende que apresento uma filosofia do direito com a qual defendo uma compreensão paradigmática do direito modificada- e não uma

50. Cf. Habermas, 1992, pp. 464-467.

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teoria social que, ao mobilizar o ativismo judiciário, deva contribuir para mudar a sociedade, especialmente suas relações de produção.

Considero ainda mais provocativo que ele não acompanhe a já mencionada mudança de perspectiva metodológica e que portanto deixe recair sobre si mesmo a confusão de planos analíticos de que vem acusar-me. Do contrário ele não cairia na tentação de tirar con­clusões sobre meu conceito de ação a partir de determinações da "si­tuação ideal de fala"- um conceito que só teve um lugar para si na teoria da verdade. É por essa via ilustre que ele chega ao diagnóstico de que eu confundiria normas com valores, valores com posições de interesse e uma orientação segundo valores com preferências; ou ain­da pior: eu operaria com um conceito atomístico e empirista do agir social, não faria distinção entre limitações factuais da situação acional e outras situações, normativas, teria uma compreensão utilitarista das obrigações morais, e assim por diante. Isso tudo são artefatos de uma leitura precavida. As únicas diferenças sérias nesse plano dos concei­tos básicos resultam do fato de eu não partilhar a compreensão não­cognitivista da moral e da vinculação a valores tal como defendida por Parsons, e portanto não excluir "valores morais" da esfera do "ra­cional': Gould contenta-se com asseverar: "I believe that there is an irreducible, non-rational component of moral principies." Em outro momento ele também "crê" que os valores do "individualismo insti­tucionalizado" deveriam encontrar acesso ao sistema jurídico. Não se trata aqui de questões de fé, e sim de argumentação filosófica.

As longas digressões sobre o princípio da proporcionalidade e do "excesso" na justiça do direito privado vêm bem ao encontro do desen­volvimento que descrevi remetendo-me à expressão "materialização do direito", de origem weberiana. No entanto, essas digressões nada têm a oferecer à crítica do procedimentalismo, nem de um ponto de vista (a) imanente, com referência à norma procedimental jurídica da liberdade contratual; nem muito menos (b) na transposição a proce­dimentos de argumentação juridicamente institucionalizados. Nem mesmo (c) na distinção entre "equity" e "equality" consigo encontrar um ponto de vista novo.

Sobre (a): A liberdade contratual, de acordo com a compreen­são liberal, deveria pôr à disposição das relações entre as pessoas do direito privadas um procedimento que garantisse justiça procedi­mental "pura": enquanto as partes cumprissem as prescrições formais,

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o resultado deveria ser considerado correto ou "justo': Com a cres­cente desigualdade das posições econômicas de poder, fortuna e proventos, foi se tornando cada vez mais pronunciado o caráter fic­tício de uma "livre declaração da vontade" - advinda de situações sociais e em correlação com a liberdade de fechamento de contratos. Daí se explicam as correções socioestatais empreendidas em relação ao direito dos contratos, em cujo contexto a máxima interpretativa da jurisdição (unconscionability) destacada por Gould conquistou, também ela, seu significado atual. Entretanto, Gould interpreta erro­neamente tal evolução ao tentar demonstrar, com base nessa máxi­ma, de que maneira os "valores" materiais da justiça social ingressam no direito formal e de que maneira eles põem em questão uma con­cepção jurídica procedimental, em termos gerais. A partir da mate­rialização do direito dos contratos, o que mais se evidencia é que com a alteração dos contextos sociais verificados determinadas condições fáticas de uma aplicação indiscriminadora do procedimento passa­ram a fazer parte da consciência pública. No paradigma jurídico libe­ral, a expectativa de justiça associada à liberdade contratual generali­zada também havia sido dependente, ao menos de maneira implícita, do cumprimento dessas mesmas condições. Eis por que se podem entender as correções socioestatais como uma efetivação do mesmo prindpio de distribuição eqüitativa de liberdades de ação subjetivas, princípio que também estivera subjacente à compreensão liberal do direito. No princípio da separação entre forma e conteúdo (se é que a norma procedimental precisa mudar nessa direção) também não muda o fato de que uma aplicação indiscriminadora deva se tornar possível em um contexto social modificado.

Sobre (b): Mesmo que a interpretação de Gould procedesse, não se poderiam deduzir daí quaisquer objeções a minha compreensão "procedimentalista" do direito. Pois o tipo de procedimento consul­tivo e decisório juridicamente institucionalizado sobre o qual este pa­radigma se apóia difere em todos os aspectos essenciais da figura do contrato. Diversamente de uma norma procedimental jurídica da li­berdade contratual, talhada apenas ao gosto da liberdade de arbítrio e cuja tarefa é assegurar a justiça procedimental pura, o que se dá aqui é o entrecruzamento de processos de acordo mútuo com outros, de convenções, bem como a ocorrência de "procedimentos" jurídicos e discursivos tais, que com eles só se garanta a justiça procedimental

AP~NDICE A FACTICIDADE E VALIDAÇAO 377

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"incompleta': No mais, as condições de comunicação, que nada fa­zem senão assegurar o livre trânsito de informações e razões "dispo­níveis", além de possibilitar com isso soluções de problemas e proces­sos de aprendizagem, continuam dependendo do envio de contri­buições substanciais; elas não podem mais gerá-las por si só. Gould tem razão em observar que o princípio de se dever tratar com igual­dade o que é igual e com desigualdade o que é desigual irá permane­cer vazio enquanto não tivermos critérios adequados de compara­ção. Isso porém não é um argumento contrário, mas sim favorável a uma concepção que vê no asseguramento de liberdades de ação sub­jetivas iguais algo dependente da clareza que os envolvidos possam ter em relação a uma interpretação adequada das carências em ques­tão e em relação aos pontos de vista relevantes na comparação das situações típicas de vida; e que o façam assumindo seu papel decida­dãos do Estado, ou seja, fazendo um uso público de suas liberdades comunicativas, para então chegar a uma postura comum em face des­sas questões, segundo procedimentos democráticos. Tudo isso, caso queiramos evitar o paternalismo, não pode ser abandonado apenas às decisões de uma justiça única (mesmo que a atuação dela se orien­te segundo o Estado social). Essa concatenação interna (e recíproca) entre autonomia privada e pública, quando a entendemos correta­mente, não é de forma alguma trivial, mas constitui, sim, o âmago normativo do paradigma procedimentalista.

Sobre (c): Gould pretendeu distinguir entre "equality': no sentido da igualdade abstrata de direitos, e "equity': no sentido de uma igual­dade da aplicação dos direitos referida a casos concretos. Essa questão terminológica não teria maior interesse caso não estivesse vinculada à critica ao "formalismo" de uma concepção de direito "liberal" (em sen­tido pejorativo). Segundo a concepção de Gould, a teoria do discurso de aplicação (que devo a Klaus Günther) está condenada a permane­cer presa a uma concepção abstrata de igualdade de direitos ( equality) e a não conseguir cumprir a idéia da igualdade de conteúdos jurídicos (equity), já que ela separa drasticamente a fundamentação e a aplica­ção das normas: "The meaning of a principie can only be determinated in the light of its consequences and thus its 'justifiability' and 'appropria­teness' are always intermingled". Em face disso, Günther remeteu ao papel lógico-argumentativo diverso que os casos concretos assumem em discursos de fundamentação e discursos de aplicação.

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Em discursos de fundamentação eles servem como exemplos pa­dronizados hipoteticamente ponderados, com base nos quais são si­muladas as possíveis conseqüências de um seguimento geral das nor­mas; no discurso de aplicação são os casos sérios faticamente ocorri­dos que se submetem à decisão, mediante a consideração de sua concreção plena. Ao passo que lá se põe à prova uma possibilidade de generalização de uma práxis, consideradas as conseqüências que pos­sam ser exemplificadas com base em casos individuais típicos e previ­síveis, o que se dá aqui é uma explicação sobre a norma que, dentre todas as normas válidas, seja adequada a todas as características de um caso conflituoso que ocorreu de fato. Com "equity" Gould enten­de justamente esse tratamento eqüânime, concreto e talhado de acor­do com a peculiaridade de uma situação dada. Contudo, o que o tra­tamento jurídico eqüânime justamente não pode fazer é referir-se de maneira exclusiva à complexa constelação dos que estão envolvidos de forma imediata. Como membros do universo de jurisconsortes com direitos iguais, estes últimos podem recorrer a que se os trate com igual­dade; e essa referência a "todas as outras" normas assegura o conjunto das normas fundamentadas que a comunidade jurídica constitui, ou seja, as normas prima facie válidas. Por sua vez, essas regras só de­sempenharão um papel constitutivo à medida que forem reconhecidas a fortiori como sendo válidas, justamente em um momento anterior à ocorrência dos casos atuais; ou seja, elas precisam "subsistir" antes de serem aplicadas a conflitos que estejam ocorrendo. Essa relação tam­bém se espelha nas formas de comunicação dos respectivos processos consultivos ou decisórios - sejam eles legislativos ou judiciários. No que respeita à fundamentação, todos os envolvidos (ainda que de forma indireta, na maioria das vezes) devem participar de maneira equâ­nime (isto é, sem privilégio ou discriminação); a aplicação das normas aceitas como fundamentadas, por sua vez, é feita no caso em particular com base na visão de um terceiro, que é imparcial, e que atua como representante de todos, ainda que os envolvidos no conflito sejam "ouvidos" sobre sua visão controversa do caso.

Gould parece não ver o problema central que precisa ser resolvido nesses discursos: a solução de colisões normativas, ou seja, a decisão racional entre candidatos prima facieválidos, que concorrem pela "ade­quação" a um caso dado, por assim dizer. Mais que isso, Gould tem em vista uma situação específica, que também tem sua importância: casos

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de tratamento social desigual que só podem ser resolvidos quando fo­rem modificadas as relações de trabalho, formas de organização, estru­turas familiares etc. implicitamente discriminadoras. Mas em geral isso só é possível com a implementação de novos programas legais; esses casos, portanto, dizem respeito em primeira linha ao legislador políti­co e não à justiça. A canalização de propósitos de reforma para a socie­dade por meio de tribunais superiores ativistas e esclarecidos no que diz respeito às ciências sociais alça a práxis da Suprema Corte norte­americana durante o New Deal à condição de um caso normal; ao lon­go do tempo, porém, essa práxis conduziria a um paternalismo judiciá­rio inconciliável com os princípios do Estado democrático de direito.

(2) Até aqui, minha réplica segue as regras usuais do jogo argu­mentativo cientifico, ou ao menos tenta agir dessa maneira: depara com objeções, e na seqüência da reconstrução dessas objeções apresenta suas respostas. Luhman, o verdadeiro filósofo, pratica outro estilo de refle­xão: ele trata de perscrutar o todo com alguns comentários- cautelo­sos só na aparência. Aqui se trata da apreciação artesanal do alcance e sustentabilidade de um empreendimento, para além da vontade de es­tar certo. De qualquer maneira, cada um de nós trilha seu caminho, e é preciso ver onde se vai e quão longe se chega. No mais, tenho a sensa­ção de que Luhmann- ao longo de uma discussão duradoura, com a qual sempre aprendi- ainda não agiu com um grau tão alto de pron­tidão hermenêutica, nem jamais deu tanto espaço ao principio da ne­gligência. Já que permanecer aberto e seguir adiante é próprio às dis­cussões, deposito minha confiança nas continuações e limito-me aqui a uns poucos comentários sobre algumas das observações.

Quod omnes tangit ... 51 - uma bela reminiscência, mas que não é bem correta como se apresenta, já que a questão da participação inclu­siva de todos os jurisconsortes no procedimento não se coloca nem em relação a assuntos de herança, nem mesmo em desavenças jurídicas, mas apenas com referência à legislação nacional de um Estado demo­crático. Aqui ela é garantida pelos demais direitos de comunicação e participação, entre outros pelo direito geral a eleições. No discurso de aplicação institucionalizado sob a forma de tribunal, que de um modo já conhecido limita a participação, assegura-se a referência à suposta

51. O texto de Luhmann foi publicado em alemão com esse título em: Rechts­historisches ]ourna~ 12, 1993, pp. 36-56.

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"concordância de todos" pelo fato de se ter de usar um direito vigente. A validação dessas normas depende do procedimento democrático de um poder legislativo apoiado sobre discursos de fundamentação e cu­jas resoluções via de regra dizem respeito "a todos': Com isso não pre­tendo de maneira alguma "externalizar" um problema de jurisdição na "direção da democracia política': mas simplesmente trato do problema de legitimação situando-o onde ele deve estar, de acordo com a auto­compreensão das democracias ligadas ao Estado de direito. Na Alema­nha, foi com essa concepção que o positivismo democrático da lei con­seguiu se impor na República de Weimar (Kelsens entre outros, e ape­nas de maneira póstuma), opondo-se a uma tradição jurídica marcada pela monarquia constitucional. Mas isso provavelmente é apenas parte do capítulo jurídico no livro da "nação adiada".

É natural que toda essa escaramuça não chega sequer a tocar na questão verdadeira, e levada muito a sério, sobre a maneira pela qual o sistema de instituições pode lidar afinal com as idealizações inevitá­veis, já instaladas no agir comunicativo; ou seja, com idealizações que por elas mesmas já criam fatos sociais. Luhmann, como era de espe­rar, põe o dedo na ferida de uma operação de destranscendentalização que se volta à oposição kantiana entre o inteligível e o empírico, veladamente ontológica, para então diluí-la em meio aos excedentes de uma transcendência intramundana, desveladamente idealizadores. Em seguida Luhman se afasta, deixando-nos nas mãos uma relação tensa entre facticidade e validação. O que lhe interessa é sobretudo o caráter das reivindicações de validação universal que tratam de supe­rar o tempo (embora elas mesmas estejam historicamente situadas); ou seja, interessa-lhe o sentido momentaneamente inverso dos acrés­cimos de imputabilidade invariante e de uma identidade das signifi­cações lexicais e sintáticas empreendidos ao longo do tempo. Ele é de opinião que essas idealizações "paralisam o tempo" e sugere em vez delas descrições que "diluam temporalmente" as idealizações. "Todas as identidades (e enfatizo: todas!) são criadas por meio da avaliação seletiva de complexos de eventos já decorridos e continuamente recons­truídas em sua seletividade. É preciso não apenas pressupô-las, mas também produzi-las." Mas o que é a descrição correta?

Surpreendentemente, Luhmann, que do contrário reflete sobre tudo, deixa de refletir sobre determinada classe de premissas: deduzir a tensão entre facticidade e validação pendendo para o lado da factidade

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de seqüências observáveis(!) de acontecimentos construídos no tem­po e no espaço só é trivial na aparência. Somente o nominalismo que subjaz a essa formação conceituai voltará o olhar ao que há de peculiar no tempo e na contingência; a partir do que é peculiar tem-se que ex­plicar o geral como uma construção igualmente fugaz, já que nesse universo teórico todas as distinções visam ao que é peculiar. Luhmann pergunta pela unidade entre facticidade e validação e supõe a priori que ela se produz por uma operação que de sua parte (a partir de ou­tras perspectivas sistêmicas) pode ser observada como algo que de­corre no tempo. Essa estratégia conceituai nominalista trai uma deci­são que em Luhmann- assim como em Davidson ou Derrida-atua enquanto cúmplice, como uma decisão prévia não-tematizada. Ao con­trário do que pensa Luhmann, a teoria dos sistemas não deixou para trás, em hipótese alguma, as alternativas conceituais realistas-nomi­nalistas que nasceram da dissolução do paradigma ontológico. Pois esse processo de dissolução teve continuidade com a irrupção de impulsos contingenciais subseqüentes: do nominalismo medieval, passando pelo empirismo clássico, até alcançar um segundo empirismo, historica­mente aplicado, e que hoje se manifesta sob muitos disfarces, mas sem­pre com a mesma operação de singularização. Esse nominalismo recen­tíssimo é uma resposta à irrupção do pensamento histórico, que se ini­cia no século XVIII, quando se dilui não apenas a natureza observada no fluxo contingente dos acontecimentos, mas também a cultura no rumor das ocorrências comunicativas ou na vertigem dos significantes -cultura que, embora elucidada a partir da perspectiva do partici­pante, vê-se reduzida a uma segunda natureza, por meio do estranha­mento. O fato de as filosofias surgidas sob a égide da pós-modernida­de se abandonarem de maneira inconsdenteao turbilhão das figuras de pensamento nominalistas integra claramente o delineamento das mar­cas de uma modernidade que sempre deveu suas conquistas de liber­dade, como ainda agora, ao pathos antiplatônico.

Essa característica, porém, de reduzir o geral ao particular ali­mentou-se cada vez de um pressuposto paradoxal próprio ao que é geral. Isso tem início no século XIII (o mais tardar), com o apego in­consistente dos nominalistas a uma determinidade de coisas singula­res que são-em-si. Se a subdivisão conceituai do mundo em gêneros e espécies deve ser uma obra subjetiva empreendida pelo espírito hu­mano, que opera com signos, a fim de elaborar suas impressões a par-

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tir de coisas individuais e chegar a um saber sobre as coisas, o trabalho abstrativo não pode simplesmente ocorrer de maneira arbitrária, mas tem de conservar para si um fundamentum in re, de modo que as com­parações feitas pelo sujeito partam de critérios que se mantenham em relação com as próprias coisas. Essa inconsistência deu motivo à in­vestigação epistemológica da atividade construtiva de um intelecto que não continuasse sendo imitativo por muito tempo, mas sim que pro­cedesse de maneira inquisitiva e que fizesse perguntas à natureza ao se aproximar dela- eis aí a situação de partida do empirismo e da filo­sofia transcendental. Da reviravolta lingüística provinda dessa revira­volta mentalista, no momento em que ela se vinculou à filosofia trans­cendental, surgiu então um empirismo inteligente, ligado a universos semânticos, e que continua não dando conta da natureza paradoxal de sua tentativa nominalista de singularizar também as generalidades simbólicas. Quando Luhmann enfatiza que "todas as identidades ... são criadas", ele faz uso de uma generalização que só se pode reduzir inteiramente à ocorrência do processo de generalização caso se exija do sistema de referências (da ciência ou da pessoa) uma autoconsti­tuição de generalidades que só pode ser descrita de maneira parado­xal. Antes, porém, que se faça dessa miséria uma virtude, em uma ati­tude triunfante, talvez a lembrança histórico-filosófica possa levar as pessoas a fazer uma pausa e ponderar o preço do a priori nominalista em comparação com um enfoque alternativo.

Quando alguém se livra da obsessão por uma objetivação exclu­sivamente observadora e se envolve com a perspectiva interna de uma abordagem compreensiva em face dos mundos simbolicamente es­truturados, ao qual quem teoriza necessariamente pertence de uma maneira pré-teorética, aí sim é que se pode escapar desapaixonada­mente da ascendência nominalista. Dessa posição é que se vê que as relações entre o geral, o específico e o particular(!) já estão instaladas desde a origem, por assim dizer, nas comunicações subjetivamente constituídas das nossas formas de vida simbolicamente estruturadas, e que elas não precisam de nenhuma dissolução assimétrica- da mes­ma forma que a tensão entre facticidade e validação também não pre­cisa de um abrandamento assimétrico da tensão, seja em uma direção (nominalista), seja em outra (platónica). No mundo em que nada se recebe senão em troca de um pagamento também há que se pagar um preço por isso. Esse preço consiste no desacoplamento temporário entre

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os enunciados que podem ser feitos a partir de uma perspectiva parti­cipativa (testável) e os enunciados sobre o que só se pode mostrar ao observador no âmbito de uma estratégia conceituai nominalista: por exemplo, enunciados objetivos sobre como as formas culturais de vida surgiram na história natural, sobre qual a aparência das constan­tes da natureza sob as quais elas podem se reproduzir sozinhas etc. Mas por que razão não se deveria deixar isso ao encargo de outras ciências? É preciso sonhar mais uma vez o sonho empirista da ciência nomológica única, embalado agora em um tule certamente mais are­jado e festivo da poiesis distinguidora, própria à teoria dos sistemas? Sob as condições do pensamento pós-metafísico, sequer considero que haja um "preço" a pagar pela renúncia a uma teoria universal.

Quando se cumpre a mudança de perspectiva sugerida, no entan­to, desaparece a coerção sistemática que obriga a propor as perguntas que se impõem a Luhmann: a pergunta pela natureza local de todas as argumentações, a pergunta pelos efeitos excludentes de todos os discur­sos, a pergunta pelos teores normativos do conceito de racionalidade etc. É certo, como já revela a forma gerundiva, que idealizações são ope­rações que cumprimos aqui e agora, mas as quais temos de cumprir de maneira a não danificar o sentido delas que seja capaz de transcender o contexto. É certo, também, que o discurso civil de liberdade e igualdade se constitui segundo regras próprias; mas de maneira que ele, enquanto discurso universalista, submete-se como tala uma crítica a partir de den­tro -já que é justamente sua capacidade de autotransformação que o distingue de outros discursos, como os descritos por Foucault. A raciona­lidade comunicativa que desvenda o segredo do surgimento da legi­timidade a partir da legalidade não pode "substituir" o dominador, já que o lugar deste último na democracia deve permanecer desocupado, e não apenas em sentido literal. A contribuição paradoxal do direito (e paradoxal somente à primeira vista) consiste sim em que ele subjuga o potencial conflituoso das liberdades subjetivas aí desencadeadas, por meio de normas que garantem a igualdade e que só podem exercer coer­ção enquanto forem reconhecidas como legítimas no terreno instável das liberdades comunicativas que aí se desencadeiam.

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Fontes dos capítulos

(I) inédito

(2) Reconciliation through the Public Use of Reason: Remarks on John Rawls' Politicai Liberalism, The ]ournal of Philosophy, XCII, mar. 1995, pp. 109-131

(3) inédito

(4) versão ampliada de: The European Nation State- lts Achievements and Limitations, Ratio Juris, 9, jun. 1996, pp. 125-137

(5) inédito

( 6) Remarks on Dieter Grimm's 'Does Europe Need a Constitution?', Euro­pean Law Journa~ 1, nov. 1995, pp. 303-307

(7) in: Kritische Justiz. 28, 1995, pp. 293-319

(8) in: Ch. Taylor et alii. Multikulturalismus und die Politik der Anerken­nung [Multiculturalismo e a política do reconhecimento]. f/m, 1993. pp. 147-196

(9) versão ampliada de uma colaboração para a "Festschrift" em homena­gem a Iring Fetscher: H. Münkler (org.). Die Chancen der Freiheit. Mu­nique, 1992, pp. 11-24

(I O) in: U. PreuB (org.). Zum Begriff der Verfassung [Sobre o conceito de constituição]. f/m, 1994, pp. 83-94.

(I 1) em inglês in: Cardozo Law Review, vol. 17, mar. 1996, Part II, pp. 14 77-1558

385

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Índice de nomes

Abendroth, Wolfgang 366 Alexy, Robert 60, 354, 373, 380 Alter, P. 247 Anderson 127 Apel, Kari-Otto 60, 344 Archibugi, D. 193, 21 O Arendt, Hannah 270, 279 Aristóteles 15, 20, 291

Bade, K. J. 264 Baier, A. C. 24 Baynes, K. 60, 63 Bedau, H. A. 216 Beiner, R. 245 Benhabib, Sheyla 60, 71, 86, 239 Berding, Helmut 148, 152 Berman, P. 241 Bernstein, Richard F. 300, 30 I Bismarck, Otto von 122, 258, 266 Bluntschli, Johann Caspar 133, 153 Bõckenfõrde, Ernst Wolfgang 151 Bodin, Jean 282 Brubaker, Richard 258 Brumlik, Micha 1 98 Brunkhorst, Hauke 198, 199, 30 I Bryde, B. O. 156

Caracalla 143 Carens, ). H. 259 Carter, )immy 210 Cavou r, C'Ãlmillo Benso, Graf von 122 Cohn-Bendit, Daniel 251,259 Connor, W. 148 Cooper, R. 207 Czempiel, ErnstOtto 144, 198,209,223

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Dahl, R. A. 160, 164, 165 Daniels, N. 69 Davidson, Donald 50, 51, 348 Derrida, Jacques 347,364,384 Doppelt, G. 171 Dummett, Michael 343 Dworkin, Ronald 40, 42, 70, 233, 244,

260

Elster, Jon 26 Emmer, P. C. 261 Engels, Friedrich 366 Enzensberger, Hans Magnus 222, 223

Fichte, Johann Gottlieb 197 Flick, Friedrich 219 Forst, Rainer 54, 60, 63, 89, 108, 111,

157,218 Foucault, Michel 308, 349, 384 Frankenberg, Günther 376-378 Fraser, Nancy 237 Frederico II 196 Frowein,J.A. 163,174

Gadamer, Hans-Georg 301 Gehlen, Arnold 223 Gibbard,Allan 27-31,36 Giddens, Anthony 138, 195 Goffman, Erving 356 Gould, Mark 300, 373-379 Greenwood, C h. 171, 202, 205 Grice 349 Grimm, Dieter 177-181, 183 Guéhenno, J. M. 143, 144 Günther, Klaus 52, 226,227, 355, 357

387

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Gurland, A. R. L. 367 Gutmann, Amy 232, 241

Habermas,Jürgen 16,19,20,47,49,50, 52,54,59,60, 71, 72, 79,81,91,94, 106, 117, 137, 152, 156, 164, 197, 199, 202, 211, 225, 230, 235, 241, 253, 254, 259, 267, 278, 300, 301, 306, 308, 310, 314, 319-321, 323, 345,354-356,361,366,367,373,375

Hare, Richard M. 14 Hart, H. L. A. 13, 69 Hauser, L. 16 Heath, J. 50 Hegel, G. W. F. 54, 71, 118, 122, 143,

157,194,208,220,233,319 Heidegger, Martin 41 Held, D. 193,210 Heller, Hermann 173 Hinsch, Wilfried 69 Hitler, Adolf 200 Hobbes, Thommas 92, 95, 101, 106, 130,

149,163,214,221 Hõffe, Otfried 213,342 Honneth, Axel 54, 198, 222, 230, 308 Horkheimer, Max 22, 223 Howard, Dick 300, 372, 373 Hoy,D. 308 Huber, W. 204 Humboldt, Wilhelm von 54 Hume, David 23 Hurley, S. 213 Husserl, Edmund 353

Ipsen, H. P. 173 Isensee, J. 20 1. 212

Jacobson, Arthur J. 336 Jahn, B. 169 Jellinek 82 Joas, H. 308 Joppke, Ch. 175

Kaa, D. J. van de 256 Kambartel, Friedrich 325

388 A INCLUSÃO DO OUTRO

Kant, lmmanuel 15, 23, 28, 43, 45, 46. 61,83.86,92,93,95, 104,118,126, 129, 159, 160, 185-197, 199,202-204, 206, 208, 211, 214, 216, 217, 222,223,227,232,286,287,291,373

Kelsen, Hans 211 Kesting, Hanno 366 Kierkegaard, Sõren 15 Kirchheimer, Otto 366 Knieper, R. 139, 195 Kõnig, S. 214,216 Korsgaard, Chr. M. 46 Koselleck, Reinhart 366 Kymlicka, W. 249

Lafont, Cristina 353 Larmore, Charles 117, 365 Leggewie, Claus 148 Lênin, W.I. 154, 223 Lenk, Hans 21 Lenoble, Jacques 300, 345-349, 351-353 LePre, E. 51 Lepsius, M. Rainer 122, 148 Lindholm, T. 208 Locke,John 213,214,286,291 Lübbe, Hermann 147,152,174 Luhmann, Niklas 380 Lukács, Georg 194 Lyotard, François 358, 364

Maclntyre, Alasdair 305, 323 Mackie, J. L. 20, 25 Martens, Ekkehard 22 Marx, Karl 124 Maus,Ingeborg 154,157,159 McCarthy, Thomas A. 89, 308, 322 McDowell, J. 20, 21, 37,38 Mead, George Herbert 42, 54, 71,96 Michelman, Frank I. 269,271,272,274,

275,277 Milo,R. 98 Minow, Martha 335 Motzkin, Gabriel 300, 372, 373 Müller, J. P. 367 Münkler, Herfried 126

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Murswiek, D. 173 Mussolini, Benito 223

Napoleão 265 Nass, K. 171 Neumann, Franz 366 Niquet, Marcel 58 Nordhofen, Eckhard 16 Nye, J. S. 196

O'Neill, Onora 68 Offe, Claus 309 Ott, Konrad 58

Parsons, Talcott 376 Peirce, Charles S. 51 Peters, Bernhard 329,330 Platão 20 Popper, Sir Karl 14 Power, Michael 196 Prantl, Heribert 263 PreuB, Ulrich K. 300,365-368,385 Puhle, Hans 166 Putnam, Hilary 343

Quaritsch, Helmut 205 Quine, Willard Van Orman 325, 349

Rasmussen, David 300, 353, 354 Rawls, John 8, 36, 37, 52,61-101, l03-

ll4, ll6-ll8, 231, 233, 253, 262, 267,317

Raz, J. 167 Regan, T. 216 Rehg, William R. 60, 72, 338 Rhode, D. L. 236 Riedel, E. 204 Riedel, Manfred 21 Rorty, Richard 51, 74, 115,301 Rosenfeld, Michel 300, 326, 327, 330,

332-336 Rousseau,J.-J. 43,83, 129,159,213,282,

286,291 Rushdie, Salman 252

Sahlins, P. 149 Scanlon, T. M. 65, 74, 95, 96 Scelle, Georges 203 Schmid, Th. 251, 259 Schmidt, Th. M. 16 Schmitt, Carl 152-157, 161, 168, 169,

173, 181, 186, 203, 205, 212, 213, 218-226

Schnãdelbach, Herbert 22 Schulze, H. 127, 128, 133, 149, 193 Schwardtlãnder, J. 213 Schwarz, G. 209 Searle, John 241 Seel, Martin 33, 34, 41, 42, 55 Seifert, Jürgen 367 Sen, A. K. 65, 95 Senghaas, Dieter 171, 195, 208, 223 Senghass, Eva 208 Shue, Henry 216,370 Shue, St. 213 Sima, B. 163 St. Pierre, Abbé de 185 Stevenson 14 Strauss, Leo 336 Strawson, P. F. 13

Taylor, Charles 9,39,164,231-234,241, 242,244,250,255,256,272

Teubner, Gunther 300, 353, 358, 359, 361-365

Tugendhat, Ernst 22, 26, 27, 32-36, 46, 55,59

Verdross, A. 163 Vico, Giovanni Battista 325 Voltaire 196

Waldron 25 Wallerstein, Immanuel 139 Walzer, Michael 169-171, 233, 244, 258 Webe~Max 85,124,149 Weer, D. van de 216 Wehler, Hans-Ulrich 147, 152 Weischedel, Wilhelm 43,126

ÍNDICE DE NOMES 389

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Weizsacker, Carl Friedrich von 144 Wellmer, Albrecht 51, 198, 301, 343, 348 Wiegand, E. 256 Williams, Bernard 37, 40, 65,95 Wilson, Woodrow 154, 199 Wingert, Lutz 13, 19, 51, 54, 89, 102,

118,323

Wittgenstein, Ludwig 38, 70 Wolf, Susan 250 Wolfrum, Rüdiger 168,204 Wolin, Richard 41 Wright, Crispin 51, 343

Young, I. M. 67

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