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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS MESTRADO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM “A MÃO (IN)VISÍVEL DO NEOLIBERALISMO” NA LÍNGUA: INDÍCES DE TENDÊNCIAS DISCURSIVAS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL Cuiabá 2007

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS MESTRADO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

“A MÃO (IN)VISÍVEL DO NEOLIBERALISMO” NA LÍNGUA: INDÍCES DE TENDÊNCIAS DISCURSIVAS NO PORTUGUÊS

BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL

Cuiabá 2007

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MARILENA INÁCIO DE SOUZA

“A MÃO (IN)VISÍVEL DO NEOLIBERALISMO” NA LÍNGUA: INDÍCES DE TENDÊNCIAS DISCURSIVAS NO PORTUGUÊS

BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Dissertação apresentada ao programa de Mestrado em Estudos de Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem.

Área de Concentração: Práticas discursivas e Sociais Orientador: Prof. Dr. Roberto Leiser Baronas

Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL

Cuiabá 2007

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MARILENA INÁCIO DE SOUZA

“A MÃO (IN)VISÍVEL DO NEOLIBERALISMO” NA LÍNGUA: INDÍCES DE TENDÊNCIAS DISCURSIVAS NO PORTUGUÊS

BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Dissertação apresentada ao programa de Mestrado em Estudos de Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem.

____________________________________ Prof. Dr. Roberto Leiser Baronas (Orientador) _____________________________________ Prafa. Dra. Freda Indursky (Avaliador Externo) _______________________________________ Profa. Dra. Maria Inês P. Cox (Avaliador Interno) __________________________________ Profa. Dra. Maria Rosa Petroni (Avaliador Suplente)

DEFESA REALIZA EM ____/____/_____.

MENÇÃO:__________________________________

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Dedico este trabalho a todos que sempre torceram por mim, em especial, a minha mãe Almerinda, amiga e companheira de todas as horas; ao meu pai Adersom, pelos sábios conselhos; aos meus filhos Bruna Cristina e João Victor, pelo amor e compreensão; aos meus avós Manoel e Honória, que mesmo à distância sempre oraram e torceram muito por mim;

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AGRADECIMENTOS

A realização deste trabalho só foi possível graças à colaboração direta e indireta de

muitas pessoas. Manifesto minha gratidão a todas elas e de forma muito especial:

a Deus, Senhor de todas as horas;

a Nossa Senhora Aparecida, pela fé que me sustenta;

aos meus pais, Adersom e Almerinda, pelo apoio e dedicação incondicionais;

aos meus filhos Bruna Cristina e João Victor, pela paciência que tiveram

comigo durante todo esse trajeto;

às minhas irmãs, Esmeralda, Célia e Roselena, por ter ajudado a cuidar dos

meus filhos nos momentos em que estive ausente.

aos meus amigos Osmar Quim e Dalva Aparecida Constantino pela

compreensão e amizade nos momentos difíceis;

aos meus colegas de turma do programa de Pós-graduação/MeEL, pelo

companheirismo;

aos funcionários do programa de Pós-graduação, em especial a professora Dra.

Maria Rosa e ao secretário Genessy pela atenção;

a CAPES, pela bolsa de estudos;

às professoras Dras. Maria Inês Pagliarini Cox e Simone Padilha, pelo

incentivo e também pelas importantes contribuições de leituras no momento em que esse

trabalho ainda estava em fase embrionária.

ao meu querido amigo e professor Dr. Roberto Leiser Baronas, não só pelos

preciosos comentários e sugestões de orientador, mas, especialmente, pelo carinho e amizade

que sempre demonstrou.

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(...) todo enunciado é intrinsecamente suscetível de torna-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro (...). Todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois, lingüisticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar a interpretação.

Michel Pêcheux (2002:53).

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RESUMO

SOUZA, Marilena Inácio de. “A mão (in)visível do neoliberalismo na língua”: índices de tendências discursivas no português brasileiro contemporâneo. Esta dissertação tem por objetivo interrogar a língua enquanto discurso para verificar os

efeitos de sentido que algumas tendências discursivas, em especial o fenômeno da

nominalização do sujeito, podem produzir. Para evidenciar como esse fenômeno se

materializa na língua selecionamos 400 (quatrocentos) enunciados presentes nas manchetes

das principais primeiras páginas do jornal A Folha de S. Paulo desde 1970 à 2006. O corpus

em questão foi extraído do livro: Folha de S. Paulo: Primeira Página uma viagem pela

história do Brasil e do Mundo nas 223 mais importantes capas da FOLHA desde 1921.

Buscamos descrever e interpretar a materialidade lingüístico-discursiva desses enunciados,

examinando os mecanismos sintáticos e o funcionamento enunciativo em questão. Para tal,

fundamentamo-nos nos postulados teórico-metodológicos da Análise do Discurso de

orientação francesa, teoria da linguagem que busca evidenciar que os sentidos possuem uma

relação de imbricamento com a história. Trabalhamos no limite entre o discurso e a língua

para trazer a tona a rede de implícitos, o pré-construído que sustenta o discurso que se

evidencia nas manchetes em questão. Em outras palavras, de-superficializamos os

mecanismos lingüísticos e pomos em evidência suas matrizes de sentido. Por meio da de-

sintagmatização discursiva buscamos compreender o processo discursivo que subjaz a

estrutura lingüística e, por meio dele, a formação discursiva que afeta o sujeito do discurso.

Ao final de nossas análises, chegamos à conclusão de que novas tendências discursivas têm

irrompido nas formas da língua. Essas tendências embora se materializem na língua não se

restringem a ela, são produto de mudanças sociais e culturais denominadas de globalização e

seu discurso de base, o neoliberalismo.

Palavras-chave: análise de discurso, neoliberalismo, nominalização do sujeito, efeito de

pré-construído.

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ABSTRACT

SOUZA, Marilena Inácio de. “The (in)visible “hand” of neoliberalism in the language”:

discursive tendencies in the contemporary Brazilian Portuguese.

This dissertation aims at questioning the language as discourse in order to verify the effects of

sense that some discursive tendencies, especially the phenomenon of subject nominalization,

can produce. In order to evidence how this phenomenon appears in the language we have

selected 400 (four hundred) headlines from the front pages of the newspaper A Folha de S.

Paulo from 1970 to 2006. The corpus was taken from the book: Folha de S. Paulo: Primeira

Página uma viagem pela história do Brasil e do Mundo nas 223 mais importantes capas da

FOLHA desde 1921. We intend to describe and interpret the linguistic-discursive materiality

of these headlines, analyzing the syntactic mechanisms and the enunciative functioning. For

that, this study is based on the theoretical-methodological postulations of French Discourse

Analysis, language theory that aims at evidencing that senses have a close relationship to

history. We work in the limit between discourse and language in order to show the amount of

implicit senses, the pre-constructed effect that supports the discourse in the headlines. In other

words, we present the linguistic mechanisms and evidence their sense. Through discourse

fragmentation we intend to understand the discursive process that underlines the linguistic

structure and, through it, the discursive formation that affects the discourse subject. By the

end of our analysis, we conclude that new discursive tendencies have emerged as language

forms. Although these tendencies appear in the language they do not restrict themselves to it,

they are a product of social and cultural changes denominated globalization and its base

discourse, the neoliberalism.

Key-words: discourse analysis, neoliberalism, subject nominalization, pre-constructed

effect.

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SUMÁRIO:

PRIMEIRAS ASSERÇÕES 10

I- CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICA 13

1.1 Introduzindo a Reflexão 13

1.2 O quadro epistemológico 13

1.3 Os procedimentos de análise presente nas três fases da Análise de Discurso 24

1.3.1 Formação discursiva, interdiscurso e efeito de pré-construído: o quadro teórico de

referência 27

1.3.2 Um breve efeito de fim 42

II- DA LÍNGUA AO DISCURSO 44

2.1 Primeiras palavras 44

2.2 O sujeito a partir da perspectiva normativa e funcionalista 44

2.3 Da estrutura lingüística à superfície discursiva: uma definição prototípica da função

sujeito 48

2.3.1 Algumas considerações sobre o fenômeno da nominalização 51

2.3.2 A Nominalização como uma função referencial discursiva 56

III. NEOLIBERALISMO: A IDEOLOGIA CONSTITUTIVA DE UM DISCURSO

HEGEMÔNICO 60

3.1 A Ideologia do neoliberalismo e seu discurso de base 60

3.2 Algumas tendências discursivas que intervêm na ordem do discurso 68

IV ANALÍTICO TEÓRICO 81

4.1 Introduzindo a análise 81

4.3 1 Apresentando o corpus 85

4.3.2 Sobre a nominalização do sujeito nas manchetes do jornal 107

4.3.3 A nominalização do sujeito e o pré-construído 112

CONSIDERAÇÕES FINAIS 120

REFERÊNCIAS 124

ANEXOS 127

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PRIMEIRAS ASSERÇÕES

Esta dissertação tem por objetivo interrogar a língua enquanto discurso para observar

os efeitos de sentido que algumas tendências discursivas, em especial o fenômeno da

nominalização do sujeito, podem produzir em determinados enunciados. Chamamos de

nominalização do sujeito o fenômeno lingüístico-discursivo que se caracteriza por apresentar

uma forma lexical nominal derivada de um verbo ou de um adjetivo na posição de sujeito da

oração. Para constatar a presença desse fenômeno, na língua, selecionamos um conjunto de

enunciados constitutivos das principais manchetes do jornal A Folha de S. Paulo desde os

anos de 1970 até os anos de 2006 e buscamos compreendê-los em sua materialidade

lingüística e discursiva. Embasamo-nos teórica e metodologicamente na Análise de Discurso

de orientação francesa, teoria da linguagem que busca evidenciar que o sentido possui uma

relação de imbricamento com a história.

Mobilizamos, assim, no primeiro capítulo desta dissertação, a teoria apresentada por

Michel Pêcheux e seu grupo de trabalho ao longo de suas obras. Mostramos a problemática

constitutiva do discurso, ressaltando que o discurso se constitui em determinadas formações

discursivas que mantêm uma relação de determinação com as formações ideológicas.

Ressaltamos a contribuição de Courtine (1981) para a compreensão do conceito de formação

discursiva e buscamos compreender a estreita relação entre interdiscurso, formação discursiva

e formação ideológica. Nesse processo, destacamos os conceitos de pré-construído, discurso

transverso e intradiscurso e reforçamos a natureza ideológica do discurso, relacionando-a

com a questão do sentido e do sujeito do discurso.

Arrolamos ainda as reflexões específicas sobre a noção do sujeito discursivo, uma vez

que, para Análise de Discurso, não se focaliza o indivíduo falante, compreendido como um

sujeito empírico, ou seja, como alguém que tem uma existência individualizada no mundo.

Importa o sujeito inserido em uma conjuntura social, tomado em um lugar social, histórica e

ideologicamente marcado, um sujeito que não é homogêneo, e sim heterogêneo, constituído

por um conjunto de diferentes posições enunciativas.

Dando continuidade a este estudo, já em um segundo capítulo, lançamos um breve e

superficial olhar para a maneira como a função sujeito é tratada dentro dos estudos

lingüísticos. Nos serviram como ponto de partida os estudos de Napoleão Mendes de

Almeida, Gramática Metódica da Língua Portuguesa, 1956; Maria Helena de Moura Neves,

Gramática de Usos do Português, 2000; e de Eunice Pontes, Sujeito: da sintaxe ao discurso,

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1986. Buscamos, com essa exposição, refletir sobre as diferentes maneiras de se categorizar e

analisar o sujeito da oração. Ainda neste capitulo, abordamos, sob um viés lingüístico e

discursivo, o fenômeno da nominalização. Essa abordagem é extremamente relevante para

que possamos compreender o aspecto discursivo ligado ao encadeamento sintático dos

enunciados em que há a presença da nominalização do sujeito.

O caráter de complexidade, por nós assinalado, decorre do fato de que o discurso

apresentado nas seqüências discursivas implica uma exterioridade, é apreendido no social e

cuja compreensão coloca em evidência aspectos ideológicos e históricos próprios à existência

dos discursos nos diferentes contextos. Isso nos leva a pensar que a língua é influenciada por

mudanças sociais e culturais, neste caso específico, denominadas de globalização e, seu

discurso de base, o discurso neoliberal.

Acreditando nisso, o nosso terceiro capítulo é dedicado a fazer a caracterização do

neoliberalismo, mostrando o quanto esta prática político-econômica tem influenciado no

surgimento de novos discursos que se materializam na língua, a ponto de modificá-la não só

lingüisticamente, mas, principalmente, enunciativamente. Nesse sentido, apresentamos as

reflexões de F. Gadet (2005), sobre as mudanças discursivas que nos últimos anos têm se

manifestado na língua francesa, nas mais diversas práticas discursivas. Direcionaremos o

estudo de Gadet ao português do Brasil, já que acreditamos, juntamente com a autora, que

essas mudanças são transnacionais, fruto do neoliberalismo e da globalização que, por sua vez,

afeta todas as sociedades levando-as a partilharem traços tanto nas estruturas sociais quanto no uso das

línguas.

Não estamos, com isso, negando o fato de que a nominalização é um recurso

característico da língua, mas ponderando que esse recurso tem se manifestado nas formas

discursivas com um objetivo em específico: acentuar os discursos típicos da política

neoliberal, tornando isentos, de qualquer responsabilidade que suas ações possam causar, os

sujeitos do discurso. Essa nova forma de apresentação do sujeito discursivo corresponde ao

novo sujeito criado pela ideologia hegemônica do neoliberalismo. Um sujeito voltado para o

seu próprio bem, influenciado pelas leis do mercado, marcado, constituído pela ideologia

mercantilista do modelo político vigente.

Dando seqüência, apresentamos no quarto e último capítulo da presente dissertação a

análise do corpus. Mostramos a partir da exposição das manchetes do jornal A Folha de S.

Paulo a materialização de novas tendências discursivas na língua. Observamos a forma de

apresentação do sujeito da oração, nas seqüências discursivas em questão, evidenciando a

presença significativa de enunciados em que o sujeito da ação não mais se dá como evidente,

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mas escamoteia-se por meio da nominalização. Devido à complexidade de se analisar o

fenômeno em questão, o abordamos, primeiro, sob um aspecto lingüístico, para, depois,

pensá-lo também discursivamente.

Acreditamos que a globalização e seu discurso de base, o discurso neoliberal, atuam como

fator preponderante para manifestação desse fenômeno. Nesse novo campo discursivo, a construção

com a voz ativa, que tem como sujeito um ser “agente”, vai ceder, progressivamente, lugar a

estruturas sintáticas em que o sujeito da oração não se evidencia. Nossas análises mostraram o

aumento significativo de enunciados produzidos sob o efeito do sujeito inanimado, além de constatar a

presença de enunciados em que o sujeito aparece nominalizado. Analisamos discursivamente esse

fenômeno, mostrando que subjacente a ele há um “pré-construído”, um discurso anterior que

age de “fora” para dentro das seqüências discursivas determinando o que “pode e deve ser

dito”.

Nesse processo, ressaltamos que o lugar histórico-social em que os sujeitos

enunciadores de determinado discurso se encontram envolve o contexto e a situação e

intervém a título de condições de produção do discurso. Não se trata da realidade física e sim

de um objeto imaginário socioideológico. Trata-se,

de alguma coisa mais forte que vem pela história, que não pede licença, que vem pela memória, pelas filiações de sentidos constituídos em outros dizeres, em muitas outras vozes, no jogo da língua, que vai se historicizando (...) marcada pela ideologia e pelas posições relativas ao poder. (ORLANDI, 2001:32)

Assim, acreditamos que o discurso que sustenta as seqüências discursivas

nominalizadas emana da exterioridade lingüística, do social, das posições ideológicas dos

sujeitos discursivos. Essas posições, por sua vez, se divergem devido a coexistência de

diferentes discursos, isto implica diferenças quanto à inscrição ideológica dos sujeitos e

grupos sociais em uma mesma sociedade, daí os conflitos, as contradições, pois o sujeito ao

mostrar-se, inscreve-se em um espaço socioideológico e não em outros, enuncia a partir dessa

inscrição; de sua voz, emanam discursos, cujas existências encontram-se na exterioridade das

estruturas lingüísticas enunciadas.

I- CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

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1.1 Introduzindo a reflexão

Neste primeiro capítulo, mobilizamos o arcabouço teórico-metodológico da Análise de

Discurso de orientação francesa. Esse arcabouço nos sustentará na compreensão de nosso

objeto de estudo, a saber, o efeito de sentido produzido por seqüências discursivas em que o

sujeito da oração aparece nominalizado.

A escola francesa de Análise de Discurso surgiu na França na década de 1960 e se

particulariza por articular a análise da materialidade lingüística ao histórico-social e ao

político, que são as condições em que se dão os processos discursivos. Desde seu surgimento,

procurou discutir e definir a natureza da linguagem e sua relação com a exterioridade, tendo

em vista compreender os modos de determinação histórica dos processos de produção dos

sentidos, na perspectiva de uma semântica discursiva de cunho materialista.

A Análise de Discurso se apresenta como sendo uma teoria crítica da linguagem que

pretende fornecer às humanidades um instrumento científico capaz de abrir uma fissura

teórica e científica no campo das ciências sociais, e, em particular da psicologia social. Para

tanto, Pêcheux e Fuchs (1997) articulam três regiões do conhecimento científico, a saber: o

materialismo histórico como teoria das formações sociais e de suas transformações, aí

compreendida a teoria das ideologias; a lingüística como teoria, ao mesmo tempo, dos

mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação; a teoria do discurso como teoria da

determinação histórica dos processos semânticos.

Os autores observam ainda que estas três regiões são atravessadas e articuladas por

uma teoria da subjetividade de natureza psicanalítica. A seguir, mostraremos de uma forma

não exaustiva, como estas regiões se articulam no interior da Análise de Discurso.

1.2 O quadro epistemológico

Não pretendemos fazer uma ampla revisão da literatura que se ocupa do contexto

epistemológico da Análise de Discurso, mostraremos apenas como o materialismo histórico se

articula com a lingüística de base saussuriana que, por conseguinte, relaciona-se com

ideologia, uma vez que esta se materializa na língua.

Começamos essa discussão asseverando que a Análise de Discurso se inscreve num

projeto político maior: o da criação, por parte de Althusser, de uma teoria geral da ideologia.

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Assim, compreender o funcionamento discursivo da linguagem é o meio que a teoria encontra

para dar conta de tal projeto.

A Lingüística saussuriana consiste em fundamentar a arbitrariedade do signo, em

mostrar que a língua é um sistema de valores constituídos não por conteúdos ou produtos de

uma vivência, mas por diferenças puras. Saussure, em o Curso de Lingüística Geral (1916),

oferece uma interpretação da língua que a coloca resolutamente do lado da abstração para

melhor separá-la do empirismo e das considerações psicologizantes. Para Saussure, a língua

é

um objeto bem definido no conjunto heteróclito dos fatos da linguagem. Pode-se localizá-la na porção determinado do circuito em que uma imagem auditiva vem associar-se a um conceito. Ela é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude de uma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade. (SAUSSURE, 2004: 22)

Ao pensar dessa forma, Saussure opõe língua à fala. Essa oposição encobre a

distinção entre social e individual, concreto e abstrato, contingente e necessário, por essa

razão, a ciência lingüística limita-se a ter por objeto a língua, único objeto que pode dar lugar

a uma racionalização científica. A definição da língua como objeto da Lingüística traz

consigo a eliminação do sujeito falante, do homem que a coloca em funcionamento, uma vez

que, segundo Saussure,

a língua, distinta da fala, é um objeto que se pode estudar separadamente. Não falamos mais as línguas mortas, mas podemos muito bem assimilar-lhes o organismo lingüístico. (...) Enquanto a linguagem é de natureza heterogênea a língua é um fato social, de natureza homogênea: constitui-se num sistema de signos onde, de essencial, só existe a união do sentido e da imagem acústica, e onde as duas partes do signo são igualmente psíquicas. (IBIDEM, 2004:23).

Com esta definição, a linguagem passa a ser reconhecida pela lingüística saussuriana

como tendo uma autonomia relativa. Isso porque, a partir da definição da língua como um

sistema homogêneo, tornou-se possível estudar a língua a partir de suas regularidades, sendo,

portanto, possível apreendê-la em sua totalidade, uma vez que as influências externas,

geradoras de irregularidades, não afetam o sistema, já que não são consideradas como parte

da estrutura. Em Saussure, a língua é vista como um sistema fechado em si mesmo. O signo

lingüístico une não uma coisa ao seu nome, mas um conceito a uma imagem acústica num

vínculo arbitrário que remete tanto a realidade, quanto o referente, para o exterior do campo

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dos estudos lingüísticos. Saussure vinculou a arbitrariedade do signo ao princípio

semiológico, ou seja, à teoria do valor, o que lhe permite dizer que na língua há apenas

diferenças.

Por essa orientação imanentista1, Saussure (1916) limita o seu projeto e escapa a toda

e qualquer correlação entre duas de suas proposições: “A língua é um sistema de signos” e

aquela segundo a qual “a língua é um fato social”. Ele encerra sua lingüística num estudo

restritivo do código, separada de suas condições de aparecimento e de sua significação. Dosse

(1993), ao se referir ao modo saussuriano de ver a língua, chama a atenção para o fato de que

se a postura de Saussure é, pois, restritiva por definição, ela inscreve-se, não obstante, numa

semiologia geral que integre todas as disciplinas que se interessam pela vida dos signos no

seio da vida social.

É assim que nasce uma nova disciplina, autonomizada em relação às outras ciências

humanas: a Lingüística. Uma vez estabelecida as suas regras próprias, ela vai, por seu rigor,

seu grau de formalização, arrastar em sua esteira todas as outras disciplinas das humanidades

principalmente, e fazê-las assimilar seu programa e seus métodos. Logo, esta disciplina

tornou-se a ciência-piloto de todas as ciências humanas e sociais. Henry (1969) salienta que

os seguidores de Saussure identificaram cultura e linguagem de tal modo que toda análise de

qualquer fato cultural devia tomar uma forma de análise lingüística.

Observa Dosse (1993), a Lingüística passa a ser evocada por toda a parte: Merleau-

Ponty em Filosofia, Levi-Strauss em Antropologia, Barthes na Literatura, Lacan em

Psicanálise. A definição de um programa semiológico global, suplantando a Lingüística para

englobar todas as ciências humanas num projeto comum, que foi a grande ambição do período

dos anos 50 e 60, encontra sua justificação e seus incentivos na definição que dá Saussure da

semiologia como “a ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social”.

O estruturalismo se alastrou nos países europeus e encontrou nos anos de 50 e 60 na

França um terreno fecundo. Assim, produziu frutos em diversas áreas do conhecimento

científico. Sobre a história do estruturalismo, Dosse (1993) garante que:

O êxito que o estruturalismo conheceu na França ao longo dos anos 50 e 60 não tem precedente na história da vida intelectual desse país. O fenômeno obteve a adesão da maior parte da intelligentsia, até reduzir a nada algumas resistências ou objeções que se manifestaram quando do que se pode chamar o momento estruturalista. As razões desse êxito espetacular dependeram essencialmente do fato de que o estruturalismo apresentou-se como um

1 O termo imanentista tem sido usado dentro dos estudos lingüísticos para se referir a uma orientação saussuriana que vê a língua como um sistema de que só se conhece a sua própria ordem. (DOSSE, 1993: 70)

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método rigoroso que podia ocasionar esperanças a respeito de certos progressos decisivos no rumo da ciência; mas também, simultaneamente, e de modo mais fundamental, do fato de que o estruturalismo constituiu um momento particular da história do pensamento suscetível de ser qualificado como o tempo forte da consciência crítica. Essa conjunção é que permite compreender porque tantos intelectuais se reconheceram num mesmo programa. (DOSSE, 1993:13)

No centro desse novo paradigma, situa-se o estruturalismo lingüístico a servir como

norte e inspiração. A Lingüística em seu papel de ciência-piloto das ciências humanas tinha

condições de fornecer aos aficcionados da nova corrente as ferramentas essenciais para a

análise da língua, enquanto estrutura formal, submetida ao rigor do método e aos ditames do

formalismo científico, tão valorizado na época.

Ao longo do percurso triunfal dos estruturalistas, que marcou de forma indelével os

anos 50 e 60, houve sempre uma constante: deliberada “exclusão do sujeito”. Esse foi o preço

a pagar pelos defensores do paradigma estrutural para a ruptura com a fenomenologia, o

psicologismo ou a hermenêutica. Importava normalizar o sujeito, já que era visto como

elemento suscetível de perturbar a análise do objeto científico, que deveria corresponder a

uma língua objetivada, padronizada. Esse era o panorama existente na França até meados dos

anos de 1960, época em que o estruturalismo viveu o seu apogeu, ainda que já mostrasse

certas fissuras internas.

É, pois, nesse horizonte de definição da Lingüística como uma ciência que se inscreve

o projeto do filósofo Louis Althusser. Cabe lembrar que este projeto foi fortemente

influenciado pelo materialismo histórico, concebido inicialmente por Marx e Engels, em

1845- 1846. Ao falar sobre o marxismo, nos reportaremos a Penha (1991) que, em seus

escritos, apresenta uma síntese sobre a teoria marxista. O autor nos leva a um dos adeptos de

Marx, o filósofo francês Heri Lefebvre que argumenta:

o marxismo surgiu com a sociedade moderna com a grande indústria e o proletariado fabril. Apresenta-se como a concepção do mundo que exprime este mundo moderno, as suas contradições, os seus problemas e que propõe, para tais problemas, soluções racionais. (LEFEBVRE apud PENHA, 1991:73)

Penha (1991) salienta que, ao elaborar a sua teoria, Marx toma como base três fontes

diferentes: a filosofia clássica alemã, a economia política inglesa e o socialismo utópico

francês. Embora Marx tenha se fundamentado nestas três fontes, no entendimento de Penha, é,

sem dúvida, a filosofia alemã, mais precisamente Hegel, que marcará acima de qualquer outra

influência, o pensamento de Marx. Mas o marxismo critica o sistema hegeliano por seu

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idealismo. Hegel, diz Max, “errou ao considerar a idéia como o elemento primordial, ao invés

de conceder tal primazia à realidade material”. Quando Marx se propõe colocar a dialética sob

seus pés, isso significa substituir o idealismo pelo materialismo. Só essa inversão é capaz de

resolver o problema da evolução histórica ao propiciar a criação do materialismo dialético:

materialismo, porque atribui à matéria precedência sobre a idéia, dialético, porque a matéria

evolui incessantemente.

A filosofia do materialismo dialético aplicada ao estudo da sociedade resulta no

materialismo histórico. Marx a define como: “o modo de produção da vida material

condiciona o processo da vida social, política e espiritual, em geral. Não é a consciência dos

homens que determina seu ser, mas, pelo contrário, é o ser social que determina sua

consciência2”. Em outros termos, a filosofia do materialismo histórico se define por acreditar

em uma história materialista construída a partir das relações de trabalho e de produção

estabelecidas pelos homens, as quais determinam relações sociais e políticas.

É neste campo de saber materialista que Althusser (1970) se fundamenta para

formular a teoria das ideologias. Em sua formulação, distingue uma teoria das ideologias

particulares e uma teoria da ideologia em geral. Tal distinção permite a Althusser evidenciar

o mecanismo responsável pela reprodução das relações de produção, comum a todas as

ideologias particulares.

Ao investigar o que determina as condições de reprodução social, Althusser parte do

pressuposto de que as ideologias têm existência material, ou seja, devem ser estudadas não

como idéias, mas como um conjunto de práticas materiais necessárias que reproduzem as

relações de produção, bem como à questão da reprodução das condições econômicas, políticas

e ideológicas. Sobre este aspecto, Althusser (1970:85) argumenta: “a ideologia representa a

relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”.

É essa relação imaginária com o mundo real, que é o objeto da representação

ideológica. Vê-se aí o efeito do materialismo histórico. O filósofo francês dá ênfase à

materialidade da existência, rompendo com a pretensão idealista de ciência de dominar o

objeto de estudo, controlando-o a partir de método administrativo aplicável a um determinado

universo, como se a sua existência se desse no nível das idéias.

Com base nessas reflexões vão ser formuladas as principais teses do materialismo

histórico: o mundo exterior material existe; o conhecimento objetivo desse mundo é

2 Marx é citado por Penha, 1991: 76

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produzido no desenvolvimento histórico das disciplinas científicas; o conhecimento objetivo é

independente do sujeito.

Althusser toma criticamente estas teses e, em suas reflexões, observa que a região da

ideologia deve ser caracterizada por uma materialidade específica articulada sobre a

materialidade econômica. Isto equivale a dizer que “o funcionamento da instância ideológica

deve ser concebido como determinado em última instância pela instância econômica, na

medida em que aparece como uma das condições não econômicas da reprodução da base

econômica”. (PÊCHEUX e FUCHS, 1997:165)

Embasando-se no fato de que a ideologia reflete uma relação social que tem por

objeto representações que refletem as relações sociais reais, Althusser (1970) reivindica uma

existência material para a ideologia. Para justificar o seu posicionamento, ele formula duas

teses fundamentais, segundo as quais, “não existe prática senão através de e sob uma

ideologia; não existe ideologia senão através do sujeito e para o sujeito” (ALTHUSSER,

1970: 93).

São estas teses que levam o autor à noção da interpelação do sujeito3. Com a noção

da interpelação, Althusser assevera que a categoria de sujeito preexiste ao indivíduo concreto

e é ela que condiciona sua existência social. Assim, para Authusser (1970:104), “o indivíduo é

interpelado como sujeito (livre) para livremente submeter-se às ordens do sujeito, para aceitar,

portanto (livremente) sua submissão”. Encontra-se aí uma relação que interessa de perto a

Pêcheux, a saber, a relação da linguagem com a ideologia. Esclareçamos, para Althusser, a

ideologia se materializa na linguagem.

Embora Althusser não tenha desenvolvido uma teoria que buscasse compreender a

relação entre linguagem e ideologia, a Lingüística aparece como um terreno fecundo para o

projeto althusseriano e, conseqüentemente, para a Análise de Discurso que aí se inspira. A

linguagem se coloca para Althusser como uma via por meio da qual se pode depreender o

funcionamento da ideologia. Assim, o projeto althusseriano, inserido em uma tradição

marxista que buscava apreender o funcionamento da ideologia a partir de sua materialidade

lingüística, via com bons olhos uma Lingüística de cunho estrutural. O autor tem consciência

contudo, de que apenas esta lingüística não é suficiente, é preciso uma teoria do discurso

concebida como o lugar teórico para o qual convergem componentes lingüísticos e

socioideológicos para acolher este projeto. Em outros termos, era preciso uma teoria do

discurso que tratasse da determinação histórica dos processos semânticos.

3 A ideologia interpela os indivíduos concretos enquanto sujeitos concretos. (Althusser, 1970:96).

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É aí que se insere o projeto da Análise de Discurso. Pêcheux parte dos estudos

formulados por Althusser sobre o paralelo entre a evidência da transparência da linguagem e

a evidência segundo a qual somos sujeitos para introduzir a noção de discurso. Em outras

palavras, Michel Pêcheux retoma a concepção althusseriana de ideologia e, a partir dela,

inicia a fundamentação da sua teoria do discurso. Na visão de Pêcheux, a atividade

discursiva, que é uma das formas de manifestação da ideologia, exercida pelo sujeito

interpelado ideologicamente e, por conseguinte, assujeitado, trava-se no interior dos

aparelhos ideológicos de Estado e reflete inexoravelmente a luta de classes. De fato, é

bebendo na fonte althusseriana que Michel Pêcheux faz avançar a sua própria questão sobre o

discurso e sobre o sujeito do discurso. No cerne de sua reflexão, aparece uma analogia entre a

ideologia e o inconsciente. Cabe lembrar, aqui, que ao se referir ao inconsciente Pêcheux está

se referindo a teoria psicanalítica freudiana tal como Lacan a reformulou. Abriremos um

parêntese para abordar como a teoria psicanalítica atravessa o quadro epistemológico da

Análise de Discurso.

Mussalim (2004:107) descreve que a partir da descoberta do inconsciente por Freud, o

conceito de sujeito sofre uma alteração, que cabe salientar: “seu estatuto de entidade

homogênea passa a ser questionado diante da concepção freudiana de sujeito clivado, divido

entre o consciente e o inconsciente”. Lacan faz uma releitura de Freud recorrendo ao

estruturalismo lingüístico, especialmente a Saussure e a Jakobson para poder abordar com

mais precisão o inconsciente.

É Jakobson que permite ampliar o campo de difusão do modelo fonológico à

psicanálise, graças aos seus estudos sobre a afasia. De acordo com Dosse (1993), ele

distingue nesse distúrbio dois tipos de alteração que permitem reconstruir os mecanismos de

aquisição da linguagem, portanto, de suas leis próprias, e extrai ensinamentos clínicos sobre

eles e a seleção, que é a possibilidade de substituir um dos termos pelo outro. Com isso,

retoma a aposição saussuriana entre sintagma e associação. Sobre este ponto, Dosse (1993)

cita Jakobson,

Para os afásicos do primeiro tipo, deficiência na seleção, o contexto constitui um fator indispensável e decisivo. (...) Quanto mais suas palavras dependem do contexto, melhor se sai de sua tarefa verbal (...). Assim, é somente a armação, os elos de conexão da comunicação, que estão salvaguardados nesse tipo de afasia. (JAKOBSON, 1956. apud. DOSSE, 1993:81)

Vê-se que esse tipo de afasia opõe-se àquele em que o doente sofre, pelo contrário, de

uma deficiência que redunda em agramatismo ou caos verbal. Jakobson vincula os dois

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fenômenos às duas grandes figuras da retórica que são a metáfora, impossibilitada no primeiro

caso de afasia, e a metonímia, que se torna impossível no caso da perturbação de

contigüidade.

Lacan retomará essa distinção deslocando-a no campo freudiano, para as noções de

condensação e de deslocamento, a fim de explicar o modo de funcionamento do inconsciente.

Ao fazer isso, situa-se dentro do estruturalismo cuja conceitualização retoma, ainda que

adaptada aos seus propósitos: é toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica

descobre no inconsciente. Para explicitar essa relação do inconsciente com a linguagem

aborda o inconsciente, demonstrando que existe uma estrutura discursiva que é regida por

regularidades. E aí que Lacan encontra-se com Saussure, entretanto, diferentemente de

Saussure, Lacan relega o significado para um lugar secundário fazendo-o experimentar a

cadeia significante num movimento em que Lacan introduz a noção de deslizamento

incessante do significado sob o significante.

Autores ligados ao grupo de Michel Pêcheux, tais como Gadet, Leon, Maldidier e Plon

(1997: 53) observam que ao anunciar seu célebre axioma: “o significante representa o sujeito

para um outro significante”, Lacan marca a absoluta incompatibilidade entre seu sujeito do

inconsciente e qualquer outra forma de localização em cujo quadro pudesse vir a ser

identificado um sujeito, suporte de operações terminantemente psíquicas e totalmente

estruturado pela linguagem. Isto porque, em Lacan, o sujeito encontra-se descentrado, o

efeito de significante que remete ele próprio para um outro significante, é o produto da

linguagem que fala nele. O inconsciente torna-se, portanto, efeito de linguagem, de suas

regras, de seu código.

Lacan assume que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, como uma cadeia

de significantes latentes que se repetem e interferem no discurso efetivo, como se houvesse

sempre, sob as palavras outras palavras, como se o discurso fosse sempre atravessado pelo

discurso do Outro, do inconsciente. Entretanto, Lacan toma um caminho oposto ao

estruturalismo, por um lado, em relação à inserção do sujeito na estrutura, ou seja, para Lacan

o sujeito, por definir-se por meio da palavra do Outro, nada mais é do que um significante do

Outro. Mas por ser um sujeito clivado, dividido entre o consciente e o inconsciente, inscreve-

se na estrutura, caracteristicamente definida por relações binárias entre seus elementos, como

uma descontinuidade, pois irrompe no intervalo existente entre dois significantes, emerge sob

as palavras, sob o discurso, por outro, porque rompe com a simetria entre os interlocutores da

comunicação. Para Lacan, o Outro ocupa uma posição de domínio com relação ao sujeito, é

uma ordem anterior e exterior a ele, em relação à qual o sujeito se define. Assim, Lacan

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coloca “primeiramente uma concepção do inconsciente como estruturado como uma

linguagem, e do sujeito como ser de linguagem ou ser falante”. (HENRY, 1997: 27).

Pêcheux retoma a teoria do sujeito inconsciente de Lacan, sujeito este que precede do

lugar do simbólico, lugar do Outro, distinto do outro, o da relação imaginária que diz respeito

ao “eu”, isto é, o sujeito clivado, dividido entre o consciente e o inconsciente, mas estruturado

com base na linguagem, para estabelecer a sua própria definição do sujeito. Com isso,

Pêcheux desenvolve uma teoria do sujeito condizente com um de um seus interesses centrais,

o de conceber os textos como produtos de um trabalho ideológico não-consciente do sujeito.

A propósito da relação do discurso com a ideologia, Pêcheux acredita que a ideologia

não é refletida no discurso como algo que lhe é exterior, ao contrário, é ela quem produz o

efeito de sentido, ao mesmo tempo em que é constitutiva da prática discursiva. O discurso

enquanto prática discursiva, apresenta um sujeito e um sentido que não são produzidos como

individuais, mas, ao contrário, eles são histórica e ideologicamente constituídos. Este

posicionamento toca no ponto neurálgico da Lingüística saussuriana que concebe a

significação como sendo algo que se realiza no próprio sistema.

Para Pêcheux (1997: 78), “os fenômenos lingüísticos de dimensão superior à frase

podem efetivamente ser concebidos como um funcionamento, mas com a condição de

acrescentarem imediatamente que este funcionamento não é integralmente lingüístico”, uma

vez que também se encontram aí as condições de produção que envolvem os protagonistas e

seus lugares de produção. Por isso, “é impossível analisar um discurso como um texto, isto é,

como uma seqüência lingüística fechada sobre si mesma, mas se faz necessário referi-lo ao

conjunto de discursos possíveis”.

Consoante a isso, Pêcheux afirma:

(...) o discurso deve ser remetido às relações de sentido nas quais é produzido: assim, tal discurso remete a tal outro, frente ao qual é resposta direta ou indireta, ou do qual ele orquestra os termos principais ou anula os argumentos. Em outros termos, o processo discursivo não tem, de direito, início: o discurso se conjuga sempre sobre um discurso prévio, ao qual ele atribui o papel de matéria-prima e o orador sabe que quando evoca tal acontecimento, que já foi objeto de discurso, ressuscita no espírito dos ouvintes o discurso no qual este acontecimento era alegado com as deformações que a situação presente introduz e da qual pode tirar partido. ([PÊCHEUX, 1997: 77)

Desse modo, só é possível analisar um discurso se considerarmos que os

interlocutores, a situação, o contexto histórico-social, juntamente com a superfície lingüística,

fazem parte do discurso e constituem seu processo de significação. Isto porque o que está em

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jogo não é somente o sentido cristalizado de uma palavra, frase ou proposição. Interessa,

sobretudo, captar o processo semântico em suas contradições.

Pêcheux (1997) propõe a noção de condições de produção, responsável pelo

engendramento dos discursos. Para ele, um estado dado das condições de produção

corresponde a uma estrutura definida dos processos de produção do discurso a partir da

língua, o que significa que, se o estado das condições é fixado, o conjunto dos discursivos

suscetíveis de serem produzidos nessas condições manifesta invariantes semântico-retóricas

estáveis no conjunto considerado e que são características do processo de produção colocado

em jogo.

Pêcheux (1997) afirma que há nos processos discursivos uma série de formações

imaginárias que designam os lugares que os locutores se atribuem cada um a si e ao outro, a

imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro. Ou seja, existem nos

mecanismos de qualquer formação social regras de projeção, que estabelecem as relações

entre as situações e as posições. Em outros termos, todo processo discursivo supõe a

existência de formações imaginárias. Isto porque em todo processo discursivo há por parte do

emissor uma antecipação das representações do receptor, sobre a qual se funda a estratégia do

discurso.

Dessa forma, para a Análise de Discurso, o sujeito, por não ter acesso às reais

condições de produção de seu discurso, representa essas condições de maneira imaginária. É o

que Pêcheux (1997) chama de jogo de imagens de um discurso. Reproduzimos, a seguir, o

quadro que o próprio autor apresenta:

Expressão que designa as formações

imaginárias

Significação da Expressão Questões implícitas cuja

“resposta” subentende a formação

imaginária correspondente.

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Imagem do lugar de A para o

Sujeito colocado em A

Quem sou eu para lhe falar assim?

A

{

IA(A)

IA(B) Imagem do lugar de B para o

sujeito colocado em A

Quem é ele para que eu lhe fale

assim?

Imagem do lugar de B para o

sujeito colocado em B

Quem sou eu para que ele me fale

assim?

B

{

IB(A)

IB(B) Imagem do lugar de A para o

sujeito colocado em B

Quem é ele para que me fale assim?

A IA(R) Ponto de vista de A sobre R De que lhe falo assim?

B IB(R) Ponto de vista de B sobre R De que ele me fala assim?

Fonte: (PÊCHEUX, 1997:83)

Assim, as diversas formações resultam, elas mesmas, de processos discursivos

anteriores que deixaram de funcionar, mas que deram nascimento a tomadas de posição

implícitas que asseguram a possibilidade de processo discursivos em foco. Para Pêcheux

(1997: 85), “a percepção é sempre atravessada pelo já ouvido e o já dito através dos quais se

constitui a substância das formações imaginárias enunciadas”.

Sobre este ponto, Pêcheux argumenta:

um discurso não apresenta, na sua materialidade textual, uma unidade orgânica em um só nível que se poderia colocar em evidência a partir do próprio discurso, mas que toda forma discursiva particular remete necessariamente à série de formas possíveis, e que essas remissões da superfície de cada discurso às superfícies possíveis que lhe são justapostas na operação de análise, constituem justamente os sintomas pertinentes do processo de produção dominante que rege o discurso submetido à análise. (PECHEUX, 1997: 104, 105)

Pêcheux, ao elaborar a teoria do discurso enquanto teoria geral da produção dos

efeitos de sentidos, almeja realizar as condições de uma prática de leitura, enquanto detecção

sistemática dos sintomas representativos dos efeitos de sentido no interior da superfície

discursiva. Ou dizendo de outra forma, a Análise de Discurso de Pêcheux se constitui num

dispositivo de leitura que busca revelar o irrevelado no texto que lê remetendo-o a outro texto

presente no outro por uma ausência necessária.

Para a Análise de Discurso, um processo discursivo não se caracteriza somente pelos

efeitos semânticos que nele se encontram realizados, o que é dito em um dado discurso, mas

também pela ausência de certo número de efeitos que estão presentes no exterior específico

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do processo de produção do discurso. Para Pêcheux (1997:149), não se pode definir “a

ausência de um efeito de sentido senão como a ausência específica daquilo que está presente

em outro lugar: o não-dito”. Por isso, o que o sujeito diz deve sempre ser referido às

condições em que ele diz. Conforme já enunciamos, para a Análise de Discurso, o que é

pertinente não é o conteúdo apresentado em um discurso qualquer, mas a confrontação do

discurso que o sujeito sustenta em relação ao que ele diz e faz em outro lugar, isto é, em

relação a outros papéis discursivos cujos efeitos podem ser apreendidos em um outro lugar.

Estabelece-se, assim, o quadro epistemológico da teoria do discurso, na qual se

inscreve a perspectiva da Análise de Discurso, e é nessa vertente teórica que se inscreve o

presente trabalho. Antes, porém, de entrarmos na análise propriamente dita, mostraremos, na

próxima seção, como se deram os procedimentos de análise desta teoria nas suas diferentes

fases. Desde já afirmamos que, independentemente de qualquer uma de suas fases, a Análise

de Discurso trabalha sobre a materialidade discursiva, procurando compreender o seu

funcionamento para determinar os funcionamentos discursivos que promovem a instauração

da ilusão do sujeito, da mesma forma que procura analisar os processos de significação dos

quais participa o efeito de sentido pelo discurso como evidência do sentido único.

1.3 Os procedimentos de análise presente nas três fases da Análise de Discurso

A empreitada teórica e metodológica de Michel Pêcheux, desde o início dos anos de

1960, provocou deslocamentos que podem ser caracterizados por revisões e mudanças em

seus conceitos essenciais e configuram-se, basicamente, em três épocas que se distinguem.

Pêcheux (1997) sintetiza as três épocas da Análise de Discurso: a primeira época

corresponde à exploração metodológica da noção de maquinaria discursivo-estrutural. Nesse

dispositivo, um processo de produção discursiva é concebido como uma máquina

autodeterminada e fechada sobre si mesma, de tal modo que um sujeito-estrutura determina os

sujeitos como produtores de seus discursos, isto é, os sujeitos acreditam que utilizam

livremente seus discursos quando na verdade são seus “servos” assujeitados, seus “suportes”.

Em outros termos, como cada processo discursivo é gerado por uma máquina discursiva, a

cultura, a ideologia, o sujeito não poderia ser concebido como fonte do próprio discurso. Isto

equivale a dizer que este sujeito é assujeitado à maquinaria, já que está submetido às regras

específicas que delimitam o discurso que enuncia. Assim, Pêcheux recusa a tese do sujeito

intencional como fonte enunciadora do discurso. Pêcheux atesta que metodologicamente este

procedimento buscou:

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reunir um conjunto de traços discursivos empíricos (“corpus de seqüências discursivas”) fazendo a hipótese de que a produção desses traços foi dominada por apenas uma máquina discursiva; em seguida construir, a partir desse conjunto de traços e através de procedimentos lingüísticos regulados, o espaço da distribuição combinatória das variações empíricas desses traços. (PÊCHEUX, 1997: 312)

Observamos que este dispositivo de análise do discurso é representado sob a forma de

algoritmos. Ele tem um papel operatório na construção do corpus: filtro capaz de selecionar

as seqüências discursivas que formam o espaço fechado do corpus. Salientamos que a análise

discursiva feita a partir de seqüências do corpus consiste essencialmente em deslinearizar, ou

seja, em desfazer os encaixes sintáticos reduzindo-os a enunciados elementares de um número

de lugares fixo.

Nesta fase da Análise de Discurso, o discurso é tratado a partir de seqüências

discursivas, selecionadas num espaço discursivo supostamente dominado por condições de

produção estáveis e homogêneas. O procedimento de análise, de acordo com esta proposta,

focalizava cada seqüência lingüística como um pré-requisito indispensável para a análise

discursiva do corpus, ou seja, a análise lingüística é considerada como uma operação

autônoma. Ela também supõe a neutralidade e a independência discursiva da sintaxe. Em

outras palavras, a primeira fase da Análise de discurso é um procedimento por etapa, com

ordem fixa, restrita teórica e metodologicamente a um começo e um fim predeterminados.

O segundo momento da Análise de Discurso inicia-se, de acordo com Maldidier

(2003), com a publicação do artigo de Pêcheux e C. Fuchs, Mises au point et perspectives à

propôs de l’ analyse automatique du discours, em português, A Propósito da Análise

Automática do Discurso: Atualização e Perspectivas e, posteriormente, com o aparecimento

da obra Les Verites de La Palice, traduzido como Semântica e Discurso: uma crítica a

afirmação do óbvio ambos publicados no mesmo ano, 1975, e vai até o ano de 1980. Durante

este período vários artigos são publicados e vários questionamentos são feitos a respeito da

teoria do discurso. Observa Maldidier (2003) que esta é uma fase de tateamentos teóricos.

Vem à tona a noção de formação discursiva. Segundo Pêcheux (1997:314), “este conceito

começa a fazer explodir a noção de máquina estrutural fechada na medida em que o

dispositivo da formação discursiva está em relação paradoxal com seu ‘exterior’”. Isto porque

uma formação discursiva é constituída de saberes provenientes de outras formações

discursivas, de elementos que vem de seu exterior, ou, como prefere Pêcheux, de algo que foi

produzido antes, independentemente. Nesse momento de formulação e reformulação teórica,

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surge também a noção de interdiscurso para designar “o exterior específico” de uma

formação discursiva. Contudo, o sujeito do discurso continua sendo concebido como puro

efeito de assujeitamento à maquinaria da formação discursiva com a qual ele se identifica.

No tocante aos procedimentos, Pêcheux (1997) observa, então, que a segunda fase

manifesta poucas inovações: o deslocamento é sobretudo sensível ao nível da construção dos

corpora discursivos, que permitem trabalhar sistematicamente suas influências internas

desiguais, ultrapassando o nível da justaposição.

Os novos procedimentos de análise são, de fato, caracterizados na terceira fase da

Análise de Discurso. É nesta fase que Pêcheux (1997:315) apresenta interrogações em torno

do trabalho que realiza: “são direções referíveis em um trabalho de interrogação-negação-

descontrução das noções postas em jogo na Análise de Discurso”. O primado teórico do

outro sobre o mesmo se acentua, empurrando até o limite a crise da noção de máquina

discursiva estrutural.

São construídos novos algoritmos enquanto máquinas paradoxais, como afirma

Pêcheux (1997), o procedimento da análise de discurso por etapas, com ordem fixa, explode

definitivamente por intermédio da desestabilização das garantias sócio-históricas que se

supunham assegurar a priori a pertinência teórica e de procedimentos de uma construção

empírica do corpus refletindo essas garantias; há também o reconhecimento da não

neutralidade da sintaxe; aborda-se a noção de enunciação e as reflexões sobre a

heterogeneidade enunciativa levam à discussão sobre o discurso-outro. São feitas, enfim,

várias interrogações acerca do sujeito do discurso, do espaço de memória, e sobre a própria

Análise de Discurso, enquanto procedimento de análise e até mesmo sobre a possibilidade de

uma política da Análise de Discurso4.

Todos estes questionamentos, os conceitos acrescentados e os reformulados, ao longo

do percurso teórico-metodológico desenvolvido por Pêcheux, nos autorizam a dizer que

embora a teoria apresentada na primeira fase da Análise de Discurso tenha passado por

constantes reformulações dentro da própria Análise de Discurso, a preocupação de Pêcheux

sobre o sujeito da linguagem e o sujeito da ideologia está presente em todo o seu trabalho.

Dito de outro modo, no trajeto que percorreu, Pêcheux buscou discernir mais claramente as

4 Do ponto de vista político, a Análise do Discurso (AD) nasce, assim, na perspectiva de uma intervenção, de uma ação transformadora, que visa combater excessivo formalismo lingüístico então vigente, visto como uma nova facção de tipo burguês. Ao lado dessa tendência revolucionária, a AD busca desautomatizar a relação com a linguagem, donde sua relação crítica com a lingüística. A rigor o que a AD faz de mais corrosivo é abrir um campo de questões no interior da própria lingüística, operando um sensível deslocamento de terreno na área, sobretudo nos conceitos de língua, historicidade e sujeito, deixados à margem pelas correntes em voga na época. (FERREIRA, 2005:14)

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relações entre estes dois sujeitos, ou seja, as relações entre a evidência subjetiva e a evidência

do sentido, com isso, colocou o discurso entre a linguagem e a ideologia.

Esperamos ter deixado um pouco mais claro como se evidenciam os procedimentos de

análise e, por conseguinte, como cada fase da Análise de Discurso se particulariza. Agora

traremos à tona os principais conceitos que se fizeram presentes no processo de construção

deste campo de conhecimento e que serão mobilizados na nossa análise.

1.3.1 Formação discursiva, interdiscurso e efeito de pré-construído: o quadro teórico de

referência

Nosso objetivo aqui não é apresentar um histórico exaustivo de todos os trabalhos que

teorizam a Análise de Discurso, por isso recortamos apenas alguns conceitos primordiais à

Análise de Discurso que, por sua vez, serão necessários para a compreensão da análise de

nosso corpus, a saber, as seqüências discursivas que compõem as principais manchetes

presentes nas primeiras páginas do jornal A Folha de S. Paulo desde 1970 até os nossos dias

atuais.

Optamos por não retomar o conceito de máquina discursiva da primeira fase da

Análise de Discurso, mais comumente conhecida como Análise Automática do Discurso, por

acreditar que o modelo automático de tratamento do discurso aí inserido, embora continuasse

em desenvolvimento na Análise de Discurso francófona, na Análise de Discurso de língua

portuguesa, foi gradativamente abandonado. Primeiramente, descreveremos o conceito de

formação discursiva, e, em seguida, apresentaremos os conceitos de formação ideológica,

efeito de pré-construído, interdiscurso, intradiscurso, e discurso transverso. Estes conceitos

nos permitem pensar o sujeito do discurso e, conseqüentemente, o sentido que aí se

estabelece.

A expressão formação discursiva foi primeiramente utilizada por Michel Foucault em

Arqueologia do Saber, (1969). Na designação do autor, uma formação discursiva é

um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições de exercícios da função enunciativa. (FOUCAULT, 1969:153)

Em outros termos, uma formação discursiva determina o que pode e deve ser dito a

partir de um determinado lugar social. Pêcheux retoma este conceito e o apresenta em seu

artigo Língua, Linguagem, Discurso, originalmente publicado em 1971, na página Idéias do

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L’ Humanité do jornal comunista francês. Maldidier (2003) descreve que este texto passa por

uma reformulação e aparece, dois meses depois, no número 24 da revista Langages. Agora

com a co-autoria de Claudine Horoche e Paul Henry, passou a se chamar A Semântica e o

corte Saussuriano: Língua, Linguagem e Discurso. Embora o conceito de formação

discursiva apareça neste artigo, nossa abordagem vai buscá-lo num outro artigo, Atualizações

e Perspectivas a propósito da análise automática do discurso (1975). Aqui, Michel Pêcheux

e C. Fuchs faz uma espécie de relato teórico que, com apoio em Althusser, leva ao

funcionamento da instância ideológica, à interpelação, dos aparelhos ideológicos de Estado

como lugares de afrontamento de posições político-ideológicas, às formações ideológicas e às

formações discursivas que são seus componentes necessários.

De fato, Pêcheux e Fuchs estão pensando na relação entre ideologia e discurso. Para

eles, é impossível identificar ideologia e discurso, contudo deve se conceber o discurso como

um dos aspectos da materialidade ideológica. Com esta formulação, os autores afirmam que

a “espécie discursiva” pertence ao “gênero” ideológico, ou seja,

as formações ideológicas comportam necessariamente como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas interligadas que determinam o que pode e deve ser dito ( articulado sob a forma de uma harenga, um sermão, um panfleto, uma exposição, um programa etc.) a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, isto é, numa certa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico, e inscrita numa relação de classes. (PÊCHEUX e FUCHS 1997: 166)

Para os autores, a formação discursiva deriva de condições de produção específicas,

identificáveis a partir do que eles designaram como formações ideológicas. Logo, a ideologia

interpela os indivíduos em sujeito. Este aspecto constitutivo da Ideologia sempre se realiza

por meio de um conjunto complexo determinado de “formações ideológicas” que

desempenham no interior deste conjunto, um papel necessariamente desigual na reprodução e

na transformação das relações de produção, e isto em razão de suas características

“regionais” e, ao mesmo tempo, de suas características de classe. Por causa desta dupla razão,

as formações discursivas intervêm nas formações ideológicas enquanto componentes.

Afirmam então Pêcheux e Fuchs,

uma formação discursiva existe historicamente no interior de determinadas relações de classes, fornecendo elementos que se integram em novas formações discursivas, constituindo-se no interior de novas relações ideológicas, que colocam em jogo novas formações ideológicas. (PÊCHEUX e FUCHS, 1997: 167-8)

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Por meio dessa teorização, os autores compreendem que a evidência da leitura

subjetiva é uma ilusão constitutiva do “efeito-sujeito” em relação à linguagem e que contribui,

neste domínio específico, para produzir o efeito assujeitamento5. Na realidade,

o sentido de uma seqüência só é materialmente concebível na medida em que se concebe esta seqüência como pertencente necessariamente a esta ou àquela formação discursiva ( o que explica, de passagem, que ela possa ter vários sentidos). É este fato de toda seqüência pertencer a uma formação discursiva para que seja dotada de sentido que se acha recalcado para ou pelo sujeito e recoberto para este último sob a forma da retomada pelo sujeito de um sentido universal preexistente. (PÊCHEUX e FUCHS, 1997: 169)

O lugar histórico-social em que os sujeitos enunciadores de determinado discurso se

encontram envolve o contexto e a situação e intervém a título de condições de produção do

discurso. Logo, o sentido só existe na formação discursiva na qual ele se constitui.

O conceito de formação discursiva faz emergir a questão da enunciação, entendida

aqui como a relação sempre presente do sujeito enunciador com o seu enunciado. Nas

palavras de Pêcheux e Fuchs, o processo enunciativo corresponde a

uma série de determinações sucessivas através das quais o enunciado se constitui pouco a pouco e tem por característica colocar o dito e conseqüentemente rejeitar o não dito. Essa concepção discursiva da enunciação consiste, pois, em estabelecer fronteiras entre o que é selecionado e precisado pouco a pouco e o que dele é rejeitado. ( PÊCHEUX e FUCHS, 1997:175-6)

É no interior dessa concepção de enunciação que as noções de sujeito do discurso e de

condições de produção ganham força e fazem a passagem dos dados da língua para os fatos

do discurso.

A tomada em conta dos mecanismos enunciativos como parte integrante da

materialidade lingüística não pode ser dissociada dos mecanismos sintáticos. Entretanto, ela

só é reconhecida no espaço conceptual da teoria dos dois esquecimentos6. Este conceito

5 Atravessado pela linguagem e pela história, sob o modo do imaginário, o sujeito só tem acesso a parte do que diz. Ele é materialmente dividido desde sua constituição: ele é sujeito de e é sujeito à. Ele é sujeito à língua e à história, pois para se constituir, para (se) produzir sentidos ele é afetado por elas. Ele é assim determinado, pois se não sofrer os efeitos do simbólico, ou seja, se ele não se submeter à língua e à história ele não se constitui, ele não fala, não produz sentidos. (ORLANDI, 2001:48-9) 6 O termo esquecimento não está designando aqui a perda de alguma coisa que se tenha um dia sabido, como quando se fala de perda de memória, mas o acobertamento da causa do sujeito no próprio interior de seu efeito. (PÊCHEUX, 1995:163)

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emerge da (re)leitura que Michel Pêcheux faz de Lacan que, por sua vez, fundamenta-se em

Freud. Sobre o termo esquecimento, os autores refletem sobre a ilusão constitutiva do efeito

sujeito, isto é, a ilusão para o sujeito em se constituir na fonte do sentido. Apresentamos

agora a teoria dos dois esquecimentos, visto que esta teoria nos ajudará a compreender a

noção de formação discursiva e, conseqüentemente, o nosso objeto de estudo.

Segundo Pêcheux e Fuchs (1975), no esquecimento n° 1 o sujeito esquece, recalca que

o sentido se forma em um processo que lhe é exterior, isto porque a zona deste esquecimento

é inacessível ao sujeito. Retomando a leitura que Lacan faz de Freud, Pêcheux diz que este

esquecimento se define por um funcionamento inconsciente, no sentido em que a ideologia é

constitutivamente inconsciente dela mesma. Já o esquecimento n° 2 designa a zona em que o

sujeito enunciador se move, em que ele constitui seu enunciado colocando as fronteiras entre

o dito e o rejeitado, o não-dito. Esta zona do esquecimento n° 2 se caracteriza por um

funcionamento do tipo pré-consciente/consciente. De fato, o sujeito pode penetrar

conscientemente na zona do esquecimento n° 2 e ele o faz em realidade constantemente por

um retorno de seu discurso sobre si, uma antecipação de seu efeito, e pela consideração da

defasagem que aí introduz o discurso de um outro. Assim, enquanto o segundo esquecimento

remete aos mecanismos enunciativos analisáveis na superfície do discurso, o primeiro deve

ser posto em relação das famílias parafrásticas constitutivas dos efeitos de sentido.

A relação entre os esquecimentos n° 1 e n° 2 remete à relação entre a condição de

existência não-subjetiva da ilusão subjetiva e as formas subjetivas de sua realização.

Salientamos, que ao utilizar a terminologia freudiana, que distingue, por um lado, o pré-

consciente-consciente e, por outro lado, o inconsciente, Pêcheux e Fuchs pretendem

caracterizar o fato de que uma formação discursiva é

constituída-margeada pelo que lhe é exterior, logo por aquilo que aí é estritamente não-formulável, já que a determina, e, ao mesmo tempo, sublinhar que esta exterioridade constitutiva em nenhum caso poderia ser confundida com o espaço subjetivo da enunciação, espaço imaginário7 que assegura ao sujeito falante seus deslocamentos no interior do reformulável, de forma que ele faça incessantes retornos sobre o que formula e aí se reconheça na relação reflexiva ou pré-consciente com as palavras, que faz com que elas nos apareçam como a expressão das coisas. (PÊCHEUX E FUCHS, 1997: 177-8)

7 Imaginário deve ser aqui entendido em seu sentido técnico, lacaniano. (...). É preciso dizer tudo que a teoria dos dois esquecimentos deve à psicanálise. Michel Pêcheux o sublinha muito claramente. A oposição dos dois esquecimentos é a das zonas em que eles trabalham: pré-consciente para o esquecimento número 2, o inconsciente para o esquecimento número 1. Mais fundamentalmente, esta oposição sugere uma analogia com a teoria lacaniana do outro versus o Outro. (MALDIDIER, 2003: 43)

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Aqui é que se inicia uma verdadeira busca, a da relação entre ideologia e inconsciente.

Nesta busca, Pêcheux observa o fato de que a desigualdade entre os dois esquecimentos

corresponde a uma relação de dominância em que o não-afirmado precede e domina o

afirmado. O recalque que caracteriza o esquecimento número 1 regula a relação entre o “dito”

e o “não-dito” no esquecimento número 2, onde se estrutura o processo discursivo.

Dessa forma, os processos discursivos não têm origem no sujeito, já que são

determinados pela formação discursiva em que o falante se insere. No entanto, o sujeito

falante tem a ilusão discursiva não apenas de ser a fonte do sentido, mas também de ter

domínio daquilo que diz. Essas duas ilusões do sujeito apontam para a questão da constituição

ideológica e psíquica do sujeito do discurso. Ele é interpelado a tomar posição na formação

discursiva que o determina e que corresponde ao seu lugar na formação social, responsável

pelo modo de produção da sociedade em que vive.

Constituído, o sujeito produz seu discurso afetado pelos dois esquecimentos. O termo

discurso aqui não deve ser entendido como fala, tampouco como um elemento particular do

sistema da língua, mas sim como o efeito de sentidos entre interlocutores, que não se

confunde com um discurso empírico, um texto ou uma mensagem.

Para entender a relação do termo discurso com os dois tipos de esquecimento que

acompanham o sujeito, os autores distinguem base lingüística de processo discursivo que se

desenvolve sobre esta base. Para eles, a base lingüística, seja ela, uma seqüência oral ou

escrita de dimensão variável é, em geral, superior à frase e está relacionada ao esquecimento n

1. Ao passo que o processo discursivo seria o resultado da relação regulada de objetos

discursivos8 correspondentes a superfícies lingüísticas que derivam, elas mesmas, de

condições de produção estáveis e homogêneas, portanto corresponde ao esquecimento n 2.

Sobre este aspecto Freda Indusky argumenta:

o exame da base lingüística torna-se, pois uma etapa indispensável, embora insuficiente, para identificar a formação discursiva que subjaz ao processo discursivo em análise. Para atingir a formação discursiva, é preciso relacionar esses dois níveis entre si. (FREDA INDUSKY 1997:33)

A análise da superfície lingüística de um discurso implica necessariamente o exame

dos mecanismos sintáticos e o funcionamento enunciativo em questão, de-superficializando

esses mecanismos e a busca pelo estabelecimento de suas famílias parafrásticas, objetivando

8 Entendido como o resultado da transformação da superfície lingüística de um discurso concreto, em um objeto teórico, isto é, em um objeto lingüisticamente de-superficializado, produzido por uma análise lingüística que visa a anular a ilusão número 2. (PÊCHEUX e FUCHS, 1997: 180)

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estabelecer suas matrizes de sentido. Somente após esta etapa, é possível atingir o processo

discursivo que lhe subjaz e, por intermédio dele, a formação discursiva que afeta o sujeito do

discurso.

Michel Pêcheux e Fuchs (1997) entendem as condições de produção de um discurso

não como espécies de filtros ou freios que viriam impedir o livre funcionamento da

linguagem, ao contrário essas condições caracterizam o discurso, o constituem e como tal são

objetos de análise. De fato, os autores estão afirmando que o discurso só pode ser concebido

como um processo social cuja especificidade reside no tipo de materialidade de sua base, a

saber, a materialidade lingüística.

Ao estudar o discurso a partir de sua materialidade lingüística, Pêcheux recorre ao

conceito de pré-construído, elaborado por ele mesmo Pêcheux e Paul Henry. Maldidier

(2003), observa que este conceito surge a partir da leitura materialista que estes filósofos

fizeram dos trabalhos de Frege e, ao mesmo tempo, da reflexão crítica sobre os trabalhos de

Ducrot, mais especificamente, do conceito de pressuposição. Podemos ver toda a

conceitualização do efeito de pré-construído em Semântica e Discurso,1975.

Este conceito será bastante útil à análise de nosso corpus, já que, conforme assevera

Pêcheux (1995), o efeito de pré-construído nos permite pensar a discrepância entre os

enunciados que se concretizam no discurso e o discurso já lá. Assim, ao analisar os

enunciados, corpus de nossa pesquisa, presentes nas manchetes nas primeiras páginas do

jornal A Folha de S. Paulo procuraremos pôr em evidência o discurso que o constituiu, isto é,

o discurso já lá.

O conceito de pré-construído constitui um ponto fundamental da teoria do discurso, já

que, segundo Pêcheux, ele nos possibilita pensar na articulação do efeito de anterioridade ou

de distância e do efeito de identificação ou reconhecimento do discurso com relação a ele

mesmo. Maldidier (2003), reportando-se a Pêcheux (1975), ao falar sobre este assunto,

afirma que o efeito de pré-construído, ligado ao encaixe sintático, é o de uma distância entre

o que foi pensado antes, em outro lugar e independentemente, e o que está contido na

afirmação global da frase. Seu efeito próprio é o de uma espécie de retorno do saber no

pensamento. Sua teorização reveste-se de um duplo aspecto, de um lado, ele designa

processos discursivos que se desenvolvem sob a base lingüística, de outro, representam o

traço de relações de distância entre o discurso atual e o já lá.

Observamos que, para Pêcheux (1995:102), o discurso atual não é o que sua imagem

deixa ver, já que o sujeito não deixa de aí encontrar “o impensado do pensamento, impensado

este que pré-existe ao sujeito”. Assim, este conceito nos possibilita compreender a estranha

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familiaridade9 de Freud. De fato, a mistura surpreendente de absurdo e de evidência, o

retorno do estranho no familiar estão presentes no conceito de pré-construído então definido,

por Pêcheux (1995:156), como “a modalidade discursiva da discrepância pela qual o

indivíduo é interpelado em sujeito ao mesmo tempo que é sempre-já-sujeito”. O que oculta

essa evidência é o fato de que o sujeito é desde sempre um indivíduo interpelado em sujeito,

ou seja, a identidade que esta evidência oculta resulta de uma identificação-interpelação do

sujeito, cuja origem estranha é, no entanto, estranhamente familiar. Nesse sentido, a noção de

pré-construído se articula a da interpelação do sujeito.

Conforme já afirmamos, é refletindo sobre a tese de Althusser (1970:104) da

interpelação ideológica: “o indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para livremente

submeter-se às ordens do sujeito, para aceitar, portanto, (livremente) sua submissão”, que

Michel Pêcheux faz avançar a sua própria questão sobre o sujeito do discurso.

Essa evidência da existência espontânea do sujeito como origem ou causa de si

é imediatamente aproximada por Althusser a uma outra evidência, presente em toda filosofia

idealista da linguagem, que é a evidência do sentido:

Como todas as evidências, inclusive aquelas que fazem com que uma palavra designe uma coisa ou possua um significado (portanto inclusas as evidências da transparência da linguagem), a evidência de que vocês e eu somos sujeitos, e que isto não constitua um problema, é um efeito ideológico, o efeito ideológico elementar. (ALTHUSSER, 1970:94)

Todo o trabalho de Pêcheux encontra aí sua determinação, pela qual a questão da

constituição do sentido junta-se à da constituição do sujeito no interior da própria “tese

central”, na figura da interpelação. Essa figura, que vai designar, pela discrepância da

formulação “indivíduo”/sujeito” o paradoxo pelo qual o sujeito é chamado à existência. Daí a

asserção de que o sujeito é interpelado pela Ideologia. Na verdade, a tese a Ideologia

interpela os indivíduos em sujeitos designa exatamente que o não-sujeito é interpelado-

constituído em sujeito pela Ideologia. Tal interpretação tem um efeito retroativo que faz com

que todo indivíduo seja sempre-já-sujeito.

Pêcheux verifica que sendo sempre-já-sujeito, o sujeito sempre-já se esqueceu das

determinações que o constituem como tal. Isso explica o caráter absolutamente necessário da

dupla forma do assujeitamento ideológico que permite compreender que o pré-construído, tal

9 A história relatada por Freud: Este é o lugar onde o duque de Wellington falou aquelas palavras? - Sim, este é o lugar, mas ele nunca falou tais palavras. Foi isso que levou Pêcheux e P. Henry a propor o termo “pré-construído para designar o que remete a uma construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é construído pelo enunciado. (PÊCHEUX, 1995:99)

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como Pêcheux o definiu remete simultaneamente aos conteúdos de pensamento do “sujeito

universal” suporte da identificação e àquilo que todo mundo, em um momento específico,

pode ser e entender, sob a forma de evidências do contexto situacional.

Compreender realmente isso, segundo Pêcheux, é o único meio de evitar repetir, sob

a forma de uma análise teórica o efeito Münchhausen10, colocando o sujeito como origem do

sujeito, isto é, colocar o sujeito do discurso como origem do sujeito do discurso.

Para evitar o efeito Münchhausen, Pêcheux recorre a forma-sujeito11, termo

emprestado a Althusser, que teoriza o funcionamento imaginário do sujeito. Cabe agora,

voltar à questão do pré-construído diferenciando-o do efeito da articulação de enunciados,

visto que esta distinção nos ajudará a compreender melhor a noção da forma-sujeito que, por

sua vez, também é fundamental à elaboração do conceito de interdiscurso. Conforme

Pêcheux,

o pré-construído corresponde ao sempre já aí da interpelação ideológica que fornece-impõe a realidade e seu sentido sob a forma da universalidade, ao passo que a articulação constitui o sujeito em sua relação com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que determina a dominação da forma-sujeito. (PÊCHEUX, 1995: 164)

Maldidier (2003), ao falar sobre o assunto, argumenta que o pré-construído, assim

como a articulação de enunciados não se reduzem a funcionamentos lógicos-linguísticos,

portanto, são o resultado de efeitos propriamente discursivos ligados ao encaixe sintático.

A distinção estabelecida nos permite evidenciar que por meio da forma-sujeito se

estabelece uma série de conceitos inter-relacionados, dentre eles, ressalta Pêcheux (1995:162),

o conceito de interdiscurso, “cuja objetividade material reside no fato de que isto fala sempre

antes em outro lugar e independentemente” . O interdiscurso não é nem designação banal dos

discursos que existiram antes nem a idéia de algo comum a todos os discursos, ele é o todo

complexo com o dominante das formações discursivas, intrincado no complexo das formações

ideológicas e submetido à lei de desigualdade-contradição-subordinação, ou seja, o

interdiscurso designa o espaço discursivo e ideológico no qual se desdobram as formações

discursivas em função de relações de dominação e de contradição. Podemos dizer que o

10 Este termo designa o efeito fantástico pelo qual o indivíduo é interpelado em sujeito. O nome de efeito Münchhausen foi dado em memória ao imortal barão que se elevava nos ares puxando-se pelos próprios cabelos. (PÊCHEUX, 1995:157) 11 A expressão forma-sujeito é introduzida por L. Althusser( Resposta a John Lewis). Para Althusser, Todo indivíduo humano, isto é, social, só pode ser agente de uma prática se se revestir da forma-sujeito. A forma-sujeito, de fato, é a forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais. (PÊCHEUX, 1995: 163 )

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interdiscurso trata-se da presença de diferentes discursos oriundos de diferentes momentos na

história e de diferentes lugares sociais entrelaçados no interior de uma formação discursiva.

O conceito de interdiscurso reordena e aprofunda o conceito de formação discursiva.

Em Semântica e Discurso 1975, Pêcheux retoma a concepção inicial de formação discursiva,

reforçando sua natureza discursiva e ideológica e relacionado-a com a questão do sentido e

do sujeito do discurso. Parece, definitivamente, que as formações discursivas e as formações

ideológicas estão agora intimamente intrincadas. Este intrincamento pode ser explicado por

meio de duas teses a primeira consiste em considerar que:

as palavras, expressões, proposições e etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam. O que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, ou seja, em referência às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. Chamaremos formações discursivas aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada, numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc) (PÊCHEUX, 1995: 160).

Desse modo, uma palavra, uma frase, uma expressão ou mesmo uma proposição não

tem sentido literal. A literalidade dos sentidos se dá num processo sócio-histórico de embates,

de lutas, de contradições. Dizendo de outro modo, é o interdiscurso que determina e regula a

formação discursiva na qual tais elementos lingüísticos são produzidos.

O reconhecimento de que a formação discursiva é o lugar da constituição do sentido

leva à segunda tese que Pêcheux (1995:162) enuncia da seguinte maneira: “Toda formação

discursiva dissimula, pela transparência do sentido que nela se constitui, sua dependência com

respeito ao todo complexo com dominante das formações discursivas, intrincado no complexo

das formações ideológicas”.

O conceito de formação discursiva passa por uma reformulação, agora o autor não fala

mais na dependência das formações discursivas em relação às formações ideológicas, ele

prefere falar em intrincamento. Isto porque o interdiscurso constitutivo das formações

discursivas está intrincado no conceito de formações ideológicas. Logo, não há como separar

interdiscurso de formação discursiva nem, tampouco, separar as formações discursivas das

formações ideológicas.

Para Pêcheux, o próprio de toda formação discursiva é de “dissimular”, na

transparência do sentido que aí se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso

que determina essa formação discursiva como tal, objetividade material essa que reside no

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fato de que “isso fala sempre antes, em outro lugar e independentemente, isto é, sob a

dominação do interdiscurso”. Assim, uma formação discursiva nunca é homogênea, é, ao

contrário, sempre constituída por diferentes discursos. Um mesmo tema, a ser colocado em

evidência, pode ser objeto de conflitos, de tensão, face às diferentes posições ocupadas por

sujeitos que se opõem, se contestam. Portanto, todo enunciado pode tornar-se outro.

Courtine (1981) interessa-se pela problemática da formação discursiva e elabora um

trabalho fundamental a Análise de Discurso, principalmente aos novos contornos que este

conceito irá tomar. O autor retoma os postulados de Foucault (1969), Pecheux & Fuchs

(1975) e Henry (1975), proporcionando uma releitura bastante integradora dessa noção. Para

este autor, as proposições que articulam a relação das formações ideológicas às formações

discursivas podem ser explicadas da seguinte maneira: a instância ideológica realiza, sob a

forma de uma contradição desigual no seio de aparelhos, uma combinação complexa de

elementos, dos quais um é uma formação ideológica. As formações ideológicas possuem ao

mesmo tempo um caráter regional, ou específico, e comportam posições de classe. É o que

explica que se possa, a partir de formações ideológicas antagonistas, falar dos mesmos objetos

e falar deles “diferentemente”.

O autor entende ainda que as formações discursivas são componentes inter-ligados

das formações ideológicas. Isso implica que as formações discursivas que constituem a

mesma formação ideológica possam ser distinguidas umas das outras em função de sua

especialização. Implica também que as formações discursivas que dependem de formações

ideológicas antagonistas ou aliadas mantenham entre si relações contraditórias, que se

inscrevem necessariamente na materialidade dessas formações discursivas, ou seja, em sua

materialidade lingüística. Courtine (1981) acrescenta, a formulação de Pêcheux: “uma

formação discursiva é o que determina, numa formação ideológica dada e numa conjuntura, o

que pode e deve ser dito” o fato de que essa característica não é isolável das relações

contraditórias que uma formação discursiva estabelece com as outras. Ou seja, ao invés de

caracterizar isoladamente cada formação discursiva, é preciso explicitar o contato existente

entre distintas formações discursivas provenientes da mesma formação ideológica, a qual, ao

mesmo tempo, é única e dividida, apresentando um antagonismo desigual. Segundo Courtine,

para compreender o contato existente entre as formações discursivas e as ideológicas é preciso

trazer à tona as formas pelas quais elementos pré-construídos, produzidos no exterior da

formação discursiva, são integrados, acolhidos, absorvidos, reconfigurados, denegados ou

ignorados por uma dada formação discursiva. O pré-construído, conforme já assinalamos, é o

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“sempre-já-lá” da interpelação ideológica que fornece/impõe a realidade de seu sentido sob a

forma da “universalidade”.

Isso implica considerar que há dois ou mais discursos fundidos em um só numa

mesma formação discursiva, estabelecendo a contradição como seu princípio constitutivo.

Logo, “uma formação discursiva é uma unidade dividida e heterogênea”. Portanto, é preciso

considerar que o estudo de um processo discursivo no seio de uma formação discursiva dada

não é dissociável do estudo da determinação desse processo discursivo por seu interdiscurso.

Courtine (1981), igualmente, retoma a reflexão sobre a noção de interdiscurso. Para

ele, o interdiscurso é o lugar no qual se constituem, para um sujeito falante que produz uma

seqüência discursiva dominada por uma formação discursiva determinada, os objetos de que

esse enunciador se apropria para fazer deles objetos de seu discurso, bem como as

articulações entre esses objetos, pelos quais o sujeito enunciador vai dar uma coerência a seu

propósito, naquilo que Pêcheux (1975) chama, o “intradiscursivo” da seqüência discursiva

que ele enuncia. É na relação entre o interdiscurso de uma formação discursiva e o

intradiscurso de uma seqüência discursiva produzida por um sujeito enunciador a partir de um

lugar inscrito numa relação de lugares no seio dessa formação discursiva que é necessário

situar os processos pelos quais o sujeito falante é interpelado-assujeitado em sujeito de seu

discurso. A noção de discurso implica, nesse processo, considerar as condições histórico-

sociais de produção que o envolvem. Ou dizendo de outra forma, os indivíduos são

interpelados em sujeitos-falantes de seu discurso pelas formações discursivas que representam

na linguagem as formações ideológicas que lhes são correspondentes.

É nessa relação que se pode verificar, sob forma de pré-construídos e da articulação

de enunciados, a articulação do discurso com a língua. De acordo com Courtine (1981), é no

interdiscurso como lugar de formação do pré-construído e da articulação de enunciados que

se constitui o enunciável como exterior ao sujeito da enunciação.

A reflexão sobre o enunciado também é retomada por Courtine (1981). O autor

reafirma a definição dada por Foucault (1969) de que é no enunciado que se constrói a

estabilidade referencial dos elementos de saber e acrescenta o fato de que “o enunciado

consiste em um esquema geral que governa a repetibilidade no interior de uma rede de

formulações”.

Por rede de formulações, Courtine (1981) entende o conjunto das formulações no

interior das quais o enunciado se inscreve e se constitui em um elemento em uma seqüência

discursiva. O enunciado será aí definido por sua inscrição numa colocação em seqüência

horizontal, ou intradiscursiva, lugar em que os objetos se constituem como pré-construídos.

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Ainda para o autor, as diferentes redes de formulações que se estabelecem em uma formação

discursiva são responsáveis pelo processo discursivo da formação discursiva em questão, isto

é, o enunciado entra numa rede interdiscursiva de formulação. Isso equivale a dizer que o

enunciado se encontra situado, por um lado, numa relação horizontal em relação a outros

enunciados no seio do intradiscurso de uma seqüência discursiva, e, por outro, numa relação

vertical em relação a formulações que podem ser descobertas em outras seqüências

discursivas, no interdiscurso de uma formação discursiva, ou seja, a definição do enunciado

sublinha de novo a indissociabilidade dos dois modos de existência do discurso como objeto.

Por outro lado, nessa rede vertical, um enunciado dado terá lugar no interior de um conjunto

de formulações extraídas de seqüências discursivas que relevam de outras condições de

produção do discurso.

À noção de enunciado, na esteira dos estudos enunciativos, Courtine contrapõe a de

enunciação. Enquanto o enunciado tem uma existência material repetível, isto é, pode-se falar

o mesmo enunciado em enunciações distintas, a enunciação é um acontecimento irrepetível.

Ela tem uma singularidade situada e datada que não se pode reduzir. A oposição

enunciado/enunciação permite, aqui, pensar o discurso na unidade e na diversidade, na

coerência e na dispersão, na repetição e na variação; ela reparte esses modos contraditórios de

existência do discurso como objeto em dois níveis, o do enunciado e o da formulação, que põe

em jogo a descrição das formações discursivas à existência vertical, interdiscursiva de um

sistema de formação de enunciados, que assegura ao discurso a permanência estrutural de

uma repetição, responde a existência horizontal, intradiscursiva da formulação, onde a

enunciação pode produzir uma variação conjuntural.

É nesta articulação do enunciado com a enunciação que se insere o sujeito do discurso.

Courtine (1981) reporta-se novamente a Foucault (1969) ao observar que este sujeito não é

nem o sujeito gramatical, nem o sujeito da enunciação. “Não se deve, pois, conceber o

sujeito do enunciado como idêntico ao autor da formulação (...). Ele não é, de fato, causa,

origem ou ponto de partida desse fenômeno que é a articulação escrita ou oral de uma frase”.

(FOUCAULT, 1969: 124-6). Courtine compartilha com Foucault (1969: 123) a idéia de que

o sujeito do enunciado não pode ser concebido como idêntico ao autor da formulação, porque

ele “é uma função vazia que pode ser preenchida por indivíduos até certo ponto indiferentes

quando formulam o enunciado”.

Essa função vazia consiste, assim, em uma posição do sujeito. Ela é, segundo

Courtine, indiferente aos sujeitos enunciadores que vêm preenchê-la, é o lugar do sujeito

“universal” próprio de uma formação discursiva determinada. Dessa forma, esse lugar é

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apenas aparentemente vazio, pois ele é preenchido, de fato, pelo sujeito de saber da formação

discursiva em análise. Isso equivale a dizer que se constitui, no seio de uma formação

discursiva, um “sujeito universal” que garante “o que qualquer um conhece, pode ver ou

compreender” e que o assujeitamento do sujeito em sujeito ideológico se realiza, nos termos

de Pêcheux, pela identificação do sujeito enunciador ao sujeito universal da formação

discursiva: “o que cada um conhece, pode ver ou compreender” é também “o que pode e deve

ser dito”. Se o pré-construído dá seus objetos ao sujeito enunciador sob a modalidade da

exterioridade e da pré-existência, essa modalidade desaparece ou é esquecida no movimento

de identificação.

A interpelação-assujeitamento do sujeito falante em sujeito de seu discurso se realiza

pela identificação desse último ao sujeito universal da formação discursiva. O sujeito

enunciador é, nessa perspectiva, produzido como um efeito das modalidades dessa

identificação, isto é, ele se constitui no domínio da forma-sujeito. Como já foi dito, o sujeito

se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina, a interpelação do indivíduo em

sujeito de seu discurso se efetua pela identificação do sujeito com a formação discursiva que o

domina, ou seja, na qual ele é constituído em sujeito: essa identificação, fundadora da unidade

imaginária do sujeito, apóia-se no fato de que os elementos do interdiscurso, enquanto pré-

construído e encadeamento de enunciados que constituem, no discurso do sujeito, os traços

daquilo que o determina, são re-inscritos no discurso do próprio sujeito.

Retomamos a distinção pré-construído e articulação de enunciados, estabelecida

anteriormente, para colocar que estes elementos repelidos às ilusões idealistas que lhes

concernem aparecem determinando o sujeito, impondo dissimulando-lhe seu assujeitamento

sob a aparência da autonomia, isto é, por intermédio da estrutura discursiva da forma-sujeito.

Ao lado das noções de pré-construído e de articulação de enunciados surgem os

conceitos de discurso-transverso e intradiscurso. Segundo Pêcheux (1995), a articulação de

enunciados está em relação direta com o que ele designa de discurso transverso, uma vez que

se pode dizer que a articulação provém da linearização ou sintagmatização do discurso-

transverso no eixo do intradiscurso, caracterizado como o funcionamento do discurso em

relação a ele mesmo.

O interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e põe em conexão entre si os

elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-construído, que fornece a

matéria-prima na qual o sujeito se constitui como sujeito falante, com a formação discursiva

que o assujeita. Nesse sentido, Pêcheux (1995: 167) afirma que “o intradiscurso, enquanto fio

do discurso do sujeito, é, a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma

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exterioridade inteiramente determinada como tal do exterior”. Assim, o intradiscurso só pode

ser compreendido na relação com o interdiscurso.

Na concepção de Courtine (1981), o pré-construído é uma decalagem entre o

interdiscurso como lugar de construção do pré-construído e o intradiscurso, como lugar da

enunciação por um sujeito. Um elemento do interdiscurso se nominaliza e se encadeia no

intradiscurso sob a forma de pré-construído, isto é, como se esse elemento se encontrasse já

aí. O pré-construído remete assim às evidências por meio das quais o sujeito se vê dando os

objetos de seu discurso: “o que qualquer um sabe”, e, simultaneamente, “o que qualquer um

pode ver” numa dada situação.

O intradiscurso só pode ser pensado como o lugar em que a forma-sujeito tende a

absorver-esquecer o interdiscurso no intradiscurso, ou seja, ela “simula o interdiscurso no

intradiscurso, de modo que o interdiscurso aparece como o puro ‘já dito’ do intradiscurso no

qual ele se articula por co-referência12” . Desse modo, os elementos discursivos do

interdiscurso, a saber, o funcionamento do pré-construído e o discurso-transverso

desempenham um papel importante no processo de constituição de um dado discurso.

Sobre essa questão, Pêcheux observa que a tomada de posição do enunciador enquanto

sujeito-falante não é, de modo algum, concebível como um ato originário desse sujeito: ao

contrário, ela deve ser compreendida como o efeito, na forma-sujeito da determinação do

interdiscurso como discurso-transverso, isto é, o efeito da “exterioridade” do real ideológico-

discursivo, na medida em que ela se volta sobre si mesma para se atravessar.

Nesse sentido, encontramos novamente a teoria dos dois esquecimentos, já que a

tomada de posição resulta de um retorno do “Sujeito” no sujeito. Já dissemos anteriormente

que Pêcheux utiliza o termo pré-consciente-consciente para se referir ao esquecimento n° 2 e

inconsciente para se referir ao esquecimento n° 1, agora Pêcheux retoma estes termos para

dizer que o pré-consciente caracteriza a retomada de uma representação verbal consciente

pelo processo primário inconsciente, chegando à formação discursiva de uma nova

representação, que aparece conscientemente ligada à primeira, embora sua articulação real

com ela seja inconsciente. É a união das duas representações verbais que é restabelecida na

discursividade, na medida em que ambas podem ser unidas à mesma formação discursiva.

Ademais, todo discurso é a ocultação do inconsciente.

Pêcheux (1995:175) compreende que o esquecimento n 2° “cobre exatamente o

funcionamento do sujeito discursivo na formação discursiva que o domina, e que é aí,

12 A co-referência designa o efeito de conjunto pelo qual a identidade estável dos referentes, daquilo que está em questão, se encontra garantida no fio do discurso. (PÊCHEUX, 1995: 167)

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precisamente, que se apóia sua liberdade de sujeito-falante”. Além disso, o efeito da forma-

sujeito do discurso mascara o esquecimento n° 1, por meio do funcionamento do

esquecimento n° 2. Dessa forma, o espaço de reformulação-paráfrase que caracteriza uma

formação discursiva aparece como o lugar de constituição do imaginário lingüístico13.

Pêcheux insiste no fato de que, no espaço de reformulação-paráfrase de uma formação

discursiva, espaço no qual se constitui o sentido, se efetua o acobertamento do impensado que

o determina. Na realidade, esse acobertamento se efetua na esfera reflexiva da consciência e

da intersubjetividade, isto é, na esfera sem margens nem limites da forma-sujeito.

O que precede nos autoriza a dizer que o sujeito do discurso não é um sujeito

homogêneo, um dado a priori, ao contrário resulta de uma estrutura complexa, tem existência

no espaço discursivo, é descentrado, constitui-se entre o “eu” e “outro”. O sujeito discursivo

se constitui a partir de diferentes discursos e, por isso, se inscreve em dadas formações

discursivas e ideológicas.

Podemos, a partir de agora, falar sobre o conceito de práticas discursivas. Segundo

Pêcheux (1995), toda prática discursiva está inscrita no complexo contraditório-desigual-

sobredeterminado das formações discursivas que caracteriza a instância ideológica em

condições históricas dadas. Já assinalamos anteriormente que essas formações discursivas

mantêm entre si relações de determinação dessimétrica pelos efeitos de pré-construído e

efeitos-transversos. Esse ponto nos leva novamente a questão do discurso na forma-sujeito, já

que não existe prática discursiva sem sujeito. Com isso, Pêcheux (1995) não está querendo

dizer que uma prática discursiva seja a prática do sujeito, mas sim que todo sujeito é

constitutivamente colocado como “autor de e responsável por seus atos” em cada prática em

que se inscreve.

Os termos interdiscurso, intradiscurso, efeito de pré-construído e efeito-transverso que

caracterizam a forma da discursividade não correspondem a fenômenos lingüísticos, mas

representam em relação à base lingüística, a existência determinante do todo complexo das

formações ideológicas, submetido, em condições históricas sempre específicas, à lei geral de

desigualdade que afeta essas formações enquanto ideologias práticas e ideologias teóricas, e

por meio de suas características ao mesmo tempo regionais e de classe no processo de

reprodução-transformação das relações de produção existentes.

13 A esse imaginário lingüístico deveriam, sem dúvida, ser relacionadas também as evidências lexicais inscritas na estrutura da língua, levando-se conta que as equivalências lexicalizadas entre substituíveis resultam, de fato, do esquecimento do tipo 1 do discurso-transverso que as une, de modo que essas equivalências aparecem, no que chamamos o imaginário lingüístico, como o simples efeito das propriedades lexicais, evidentes em sua eternidade. (PÊCHEUX, 1995:177)

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1.3.2 Um breve pré-efeito de fim...

Nesse breve percurso procuramos evidenciar que a Análise de Discurso se constituiu a

partir da articulação de vários campos de conhecimento. Também nos preocupamos em

mostrar que seu objeto de estudo, o discurso, foi concebido inicialmente a partir de um

dispositivo teórico cujas bases são aprofundadas nas distintas fases desta trans-disciplina. Ao

fazer isso, esperamos ter deixado um pouco mais claro que embora Michel Pêcheux tenha

reformulado e elaborado os construtos teórico-metodológicos da Análise de Discurso, ele

manteve, desde a formulação de seu projeto inicial, (1969), até o fim de sua vida (1983), uma

posição clara sobre a questão do sujeito e do sentido. Para ele, o sentido não pode ser regulado

na esfera das relações interindividuais, tampouco na das relações sociais pensadas no modo da

interação entre grupos humanos, ao contrário, a produção de sentido é parte integrante da

interpelação do indivíduo em sujeito, na medida em que, entre outras determinações, o sujeito

é produzido como causa de si na forma-sujeito do discurso sob o efeito do interdiscurso.

Com esse vôo panorâmico sobre a Análise de Discurso esperamos ter mostrado que a

teoria do discurso se fundamenta no materialismo histórico, por isso vê o discurso como uma

manifestação, uma materialização da ideologia decorrente do modo de organização dos

modos de produção social. O sujeito do discurso não poderia ser considerado como aquele

que decide sobre os sentidos e as possibilidades enunciativas do próprio discurso, mas como

aquele que ocupa um lugar social e a partir dele enuncia, sempre inserido nos processos

históricos que lhes permitem determinadas enunciações e não outras.

Vimos que para a Análise de Discurso o sujeito discursivo pode ser apreendido e

analisado a partir dos discursos que, como já evidenciamos, constitui-se da dispersão de

acontecimentos e de discursos outros, historicamente marcados que se transformam e se

modificam. A seguir verificamos como diferentes olhares teóricos sobre a função sujeito

foram construídos ao longo da história dos estudos lingüísticos.

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II DA LÍNGUA AO DISCURSO

2.1 Primeiras palavras

Este capítulo está divido três momentos distintos: o primeiro apresenta como a função

sujeito é tratada dentro dos estudos lingüísticos. Para tanto, vamos abordá-lo a partir de

gramáticas que se inscrevem em vertentes teóricas diferentes: Gramática Metódica de Língua

Portuguesa, 1956 e Gramática de Usos do Português, 2000. Essas gramáticas se inscrevem,

respectivamente, numa abordagem tradicional e funcionalista. Nós as escolhemos como

pontos de partida, porque elas nos permitem ter duas visões diferentes sobre a questão do

sujeito. Em nossa exposição, não fazemos opção de uma em relação à outra, tampouco

pretendemos apontar caminhos propriamente ditos para uma nova definição da função sujeito.

Apenas tentaremos refletir sobre duas maneiras distintas de se construir hipóteses sobre a

linguagem.

No segundo momento, nos reportaremos a Eunice Pontes (1986), em sua obra Sujeito:

da sintaxe ao discurso. Nesse percurso, apresentaremos alguns questionamentos sobre a

definição cristalizada da função sujeito. Também lançaremos um rápido olhar para a definição

prototípica de sujeito14, que, analisado se considerando o contexto em que foi produzido,

pode dar conta de alguns problemas de sintaxe. Enfocaremos o sujeito prototípico para

verificarmos como esse ser gente presente nessa definição de sujeito é construído, isto é,

quais os discursos que ideologicamente influenciaram a sua constituição.

Por fim, abordaremos o fenômeno da nominalização sob um viés lingüístico e também

discursivo, essa abordagem nos permitirá compreender o fenômeno em questão.

2.2 O sujeito a partir da perspectiva normativa e funcionalista

A primeira abordagem que apresentaremos sobre a função sujeito é a abordagem de

cunho tradicional. De acordo com Neves (1987:61), a concepção de língua subjacente a esta

gramática é a concepção filosófica de linguagem: “a linguagem é a expressão de tudo o que é,

e Aristóteles a estuda onde quer que apareça, pois é só através de seu exame que a realidade15

14 O conceito prototípico de sujeito foi elaborado a partir dos estudos de Keenan e Comrie, 1972 e é retomado em Pontes (1986) ao apresentar a questão do sujeito posposto. 15 Na palavra realidade há o perigo da intervenção de um conceito que é moderno e que não está bem de acordo com a vivência grega. O grego não possuía um vocábulo para exprimir o que chamamos realidade. Realidade, para o grego é ser (ousia, gígnomia). Assim, pois se entenda aqui o termo. (NEVES,1987:61)

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pode ser examinada”. As gramáticas que se inscrevem nesse arcabouço teórico estabelecem

regras de um predeterminado modelo ou padrão de língua, consideradas as melhores, para a

língua escrita, com base no uso que dela faziam aqueles que a sociedade considerava e

considera os seus mais bem acabados usuários, os chamados grandes escritores, tanto poetas

quanto prosadores. Portanto, trabalha-se com uma concepção de língua como algo abstrato,

um dispositivo que o sujeito, nesse caso indivíduo, poderá apreender, e conseqüentemente,

tornar-se usuário.

Napoleão Mendes de Almeida em Gramática Metódica da Língua Portuguesa (1956)

representa como se estabelece a função sujeito a partir dessa concepção de língua. Ao falar

sobre os princípios organizacionais da sentença, que é o que nos interessa, estabelece que os

termos da oração classificam-se em: essenciais, integrantes e acessórios. Nosso enfoque

aponta apenas para os termos essenciais, o sujeito e o predicado, visto que, para Almeida, são

estes termos que ordinariamente concorrem para a formação da oração. Sobre o sujeito, autor

argumenta:

Se o sujeito de um verbo é a pessoa ou coisa sobre a qual se faz alguma declaração, é evidente que o sujeito deve ser constituído de substantivo, pois a esta classe de palavras cabe nomear as pessoas e as coisas. Pode, no entanto, o sujeito deixar de ser constituído de substantivo essencial, isto é, de substantivo propriamente dito, para ser constituído de substantivo virtual, isto é, de palavra frase ou oração, que tenham igual força de substantivo. Podem ainda, portanto funcionar como sujeito: a) um pronome: Ele é estudioso; b) qualquer palavra substantivada: Assaz é advérbio; c) uma frase de sentido incompleto: Trabalho e honra deve ser lema de todos nós; d) uma oração: É bom que ele vá ao Rio. ( ALMEIDA, 1956 410)

No entendimento de Almeida, o sujeito é o ser sobre o qual se faz uma declaração.

Em seus ensinamentos, também é possível verificar que esse sujeito é um sujeito agente, já

que, ao apresentar a forma para descobrir o sujeito da oração, Almeida afirma:

Suponha-se a oração “Pedro quebrou o disco” . – Para que se descubra o sujeito da oração, é bastante saber quem praticou a ação de quebrar, isto é, quem quebrou o disco. O que se consegue mediante uma pergunta em que se coloque que ou quem antes do verbo: Quem quebrou o disco? Resposta: Pedro. A resposta indica o sujeito da oração. (...). (IBIDEM, 411)

O sujeito, em Napoleão, é um sujeito que pratica a ação verbal. O problema está

justamente nos casos em que o sintagma nominal que ocupa o lugar de sujeito não pratica

nenhuma ação e, mesmo assim, os gramáticos insistem em classificá-lo como sujeito. Essa

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contradição entre as regras estabelecidas nas gramáticas e aquilo que se realiza no

funcionamento efetivo da língua tem levado muitos lingüistas, dentre eles, Eunice Pontes

(1986), a quem nos reportamos na próxima seção, a estudar a definição de sujeito.

Quanto ao predicado, Almeida observa:

Entende-se por predicado, em análise sintática, o que se declara do sujeito, e essa é a função precípua do verbo: A águia VOOU. Quando o verbo trouxer um complemento, este ficará sintaticamente fazendo parte dele, ou seja, o predicado passará a ser constituído de todo o conjunto verbo-complemento. Da existência ou não deste complemente decorrem as espécies de predicado. (ALMEIDA, 417)

Assim como não apresentamos os tipos de sujeito também não apresentaremos os tipos

de predicado, visto que esta classificação não será relevante ao objetivo que, a princípio,

propomos: verificar a partir dos enunciados presentes nas primeiras páginas do jornal A Folha

de S. Paulo, no período que compreende os anos 1970 até os dias atuais como os sujeitos

destes enunciados se apresentam na estrutura lingüística.

Tendo apresentado rapidamente a função sujeito na perspectiva de uma gramática

normativa, passamos agora a abordá-lo pelo viés de uma gramática de cunho funcionalista.

Antes, porém, apresentaremos uma breve conceituação desse modelo de análise lingüística.

Acreditamos que esta exposição teórica nós permitirá melhor entender o conceito de sujeito aí

inserido.

Neves (1997) diz que a gramática funcional considera a competência comunicativa,

mais exatamente, ela considera a capacidade que os indivíduos têm não apenas de codificar e

decodificar expressões, mas também de usar e interpretar essas expressões de uma maneira

interacionalmente satisfatória. Em outros termos, a gramática funcional leva sempre em

consideração o uso das expressões lingüísticas na interação verbal, o que pressupõe uma certa

pragmatização do componente sintático-semântico do modelo lingüístico. Fica evidente,

desse modo, que a concepção de língua subjacente a este modelo não é a mesma adotada

pelos gramáticos normativistas. A língua, no paradigma funcional, afirma Dik (1978:01), “é

concebida, em primeiro lugar, como um instrumento de interação social entre seres humanos,

usado como objetivo principal de estabelecer relações entre os usuários”.

Consoante a esta concepção de língua estabelece-se níveis sintáticos de organização da

frase, abrindo-se nesses níveis a semântica, uma gramática de casos, e a pragmática, uma

gramática da comunicação, definida pela imagem do interlocutor. Logo, neste modelo teórico,

a frase é reconhecida como uma unidade susceptível de análise não apenas nos níveis

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fonológico, morfológico e sintático, mas também no nível comunicativo. O que nos permite

dizer que o sujeito, aqui, é um sujeito intencional que se constitui na interação com o

interlocutor.

Do lado do falante, há uma intenção não apenas de passar um conteúdo qualquer, mas,

principalmente, de obter uma modificação na informação pragmática do ouvinte; do lado

deste tem que haver apenas a disponibilidade de receber um conteúdo. A expressão lingüística

que o falante emite é função: da intenção do falante; da informação pragmática do falante; da

antecipação que ele faz da interpretação do destinatário. Portanto, nessa vertente teórica, só é

possível analisar o sujeito da sentença se levarmos em consideração o contexto em que este se

insere.

Quanto ao predicado, Neves (2000) observa que todas as palavras que constituem o

léxico da língua podem ser analisadas dentro da predicação. Os predicados são

semanticamente interpretados como designadores de propriedades ou relações, e suas

categorias são distinguidas segundo suas propriedades formais e funcionais.

Neves diz, ainda, que o predicado, que designa propriedades ou relações, se aplica a

um certo número de termos que se referem a entidades, produzindo uma predicação que

designa um estado de coisas, ou seja, uma codificação lingüística que o falante faz da

situação. Estão implicados aí os papéis semânticos e a perspectivização que resolve funções

sintáticas. Dessa forma, o predicado em Neves,

Tem propriedades sintáticas e semânticas, como a formalexical, a categoria, o número e função semântica dos termos, além das restrições de seleção a estes impostas.

Só não constituem predicados os verbos que modalizam (poder, dever, precisar, etc.), os que indicam aspecto e os que auxiliam a indicação de tempo e de voz. (NEVES, 2000: 25)

Com base nessa breve exposição, observamos que a definição de sujeito apresentada

em Neves não é mesma em Almeida. Isto se justifica devido ao fato de que as gramáticas

expostas aqui, adotam, como fundamentação teórica, diferentes concepções de língua.

Almeida (1956), como já dissemos, fundamenta-se nos estudos filosóficos tradicionais, ao

passo que Neves (2000) adota uma visão de língua calcada nos estudos funcionalistas,

contudo, suas reflexões concebem a linguagem como um instrumento de comunicação.

Feita a apresentação da função sujeito e tendo observado como este se constituiu nos

estudos normativistas e funcionalistas, passamos, a seguir, a alguns questionamentos que esta

função tem suscitado nos estudos lingüísticos.

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2.3 Da estrutura lingüística à superfície discursiva: uma definição prototípica da função

sujeito

Embora tenhamos apresentado, na seção anterior, que nos estudos lingüísticos existe

uma definição cristalizada da função sujeito, essa definição tem provocado inúmeros

questionamentos. Não pretendemos expor, aqui, todos os trabalhos que se ocupam dessa

temática, tampouco, temos a pretensão de sanar os questionamentos que ela suscita. Apenas

lançaremos um rápido olhar para a definição prototípica de sujeito16, que, analisada à luz das

teorias do discurso, pode dar conta de alguns problemas de sintaxe. Para tanto, nos reportamos

a Eunice Pontes (1986), em sua obra Sujeito: da sintaxe ao discurso. Aqui, a autora se propõe

a investigar o que é sujeito.

Seu interesse por esta questão surgiu quando a autora se deparou com sentenças como

O carro furou o pneu; João feriu-se nos espinhos e João operou o estômago. Segundo Pontes,

é comum pensar que numa sentença ativa e ainda mais transitiva o sujeito seja agente, no

entanto, observa a autora, em orações como as expostas, o sujeito não é o agente que praticou

a ação, ou seja, em O carro furou o pneu, o carro não é o ser agente que praticou a ação de

furar o pneu. Em João feriu-se nos espinhos o sujeito é paciente e não agente. Do mesmo

modo, em João operou o estômago também não se tem um sujeito agente, a não ser, é claro,

que João seja um médico e tenha feito uma operação de estômago em alguém. Dado a

dificuldade de identificar o sujeito em sentenças como essas, Pontes se questiona se esse

sintagma nominal inicial é mesmo sujeito e, se é, qual a definição de sujeito que abrange

casos como esses?

Em busca de respostas para essas questões, a autora se deparou com chamado

“sujeito posposto”. Considerando esta ocorrência em língua oral e escrita, propôs para a

explanação desse fenômeno as seguintes caracterizações:

Que ele se dá quando algum elemento na oração se torna mais tópico do que sujeito. Isso explicaria porque a posposição do sujeito se dá em orações topicalizados de modo geral, aí incluídas também as relativas, interrogativas com pronome, optativas, exclamativas, todas elas marcadas em relação à declarativa neutra afirmativa, que é a não-marcada em português. Esse principio da topicalidade relativa, explica o fenômeno de uma maneira geral. Quanto às orações existenciais, que não têm tópico, explica-se a posposição pelo fato de que o sintagma nominal não é tópico, nesse caso. (...) É importante assinalar esse ponto: o sintagma nominal não é simplesmente

16 O conceito prototípico de sujeito foi elaborado a partir dos estudos de Keenan e Comrie, 1972 e é retomado em Pontes (1986) ao apresentar a questão do sujeito posposto.

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posposto ao verbo, ele ocorre freqüentemente no fim da sentença. (PONTES, 1986:34)

Essa explicação, observa Pontes, implica que há uma discrepância entre as

características do sujeito, uma vez que, em geral, se diz que o sujeito nas línguas indo-

européias ocidentais é também o tópico da sentença. Quando algum outro elemento é

topicalizado, o sujeito perde seu lugar inicial na sentença. Isso leva Pontes (1986:35) a se

perguntar: qual é o status do sujeito em português? Porque continuamos a considerar como

sujeito o SN que ocorre depois do verbo, apesar de tal SN ter características bem diversas

das do sujeito numa S como O João quebrou o copo?

Permulter (1976), citado por Pontes, oferece uma explicação para essas questões.

Segundo o autor, o chamado sujeito posposto em português não é sujeito na estrutura

superficial. Sua argumentação reforçou a convicção de Pontes de que este sintagma nominal

é objeto. Para elucidar melhor sua convicção, Pontes busca respaldo nos estudos

sociolingüísticos de Lira (1982), que apontam para a mesma direção, pois, a autora, após

estudar o fenômeno da inversão do sujeito, considerando uma série de parâmetros, concluiu

que este sujeito não tem nenhuma das características de sujeito.

Outro estudo, abordado por Pontes, o de Teonila Pinto (1981), baseado na tarefa de

reconhecimento de sujeito por alunos de segundo grau em São Paulo, demonstrou que estes

têm grande dificuldade de reconhecer o sintagma nominal posposto como sujeito, enquanto

que para o sujeito anteposto os alunos apresentam as mais altas percentagens de acerto. Esta

pesquisa demonstra, sobretudo que o que importa para se reconhecer um sintagma nominal

como sujeito é a presença de certos traços, como agente e tópico, e que quanto mais esses

traços estão presentes, mais fácil é a tarefa de identificação. Passando a um estudo da

posposição em francês, observou que é necessário enfocar o fenômeno à luz do discurso, e,

nesse caso, tem papel importante à função que o sintagma nominal desempenha.

Apoiando-se criticamente nos estudos referidos, Pontes conclui que o sintagma

nominal posposto ao verbo, por não ser nem agente nem tópico, não apresenta o traço

característico do sujeito, portanto, não deveria ser caracterizado como tal.

Examinando o que diversos lingüistas escreveram a respeito do sujeito, Pontes verifica

que emerge um quadro parecido ao já mostrado aqui: o agente costuma ser um traço

característico de sujeito, bem como o tópico. Alguns lingüistas que estudaram esse problema

mais recentemente, sob uma perspectiva tipológica, como Keenan e Comrie (1972),

caminharam para uma definição prototípica de sujeito, segundo a qual, “para ser sujeito, o

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sintagma nominal deve apresentar uma clara preponderância das propriedades de sujeito”. Ou

dizendo de outro modo, para ser sujeito, o sintagma nominal deve aparecer no inicio da

sentença, ser agente ou tópico. Ao conceituar o sujeito, Keenan se baseia em traços

semânticos e pragmáticos, além dos sintáticos.

Estabelece-se aí a distinção entre o sujeito em Almeida (1956) e o sujeito em Keenen

(1972). Embora ambos consideram o sujeito como “o ser que prática a ação”, Keenen

considera o ser agente em sua relação contextual, envolvendo fatores pragmáticos e

semânticos. E é essa relação que interessa também a Pontes.

De acordo com Pontes, a noção de agente também parece ser mais bem entendida em

termos de casos típicos, sendo, em geral, um ser humano ou algo animado. Alguns lingüistas

caracterizam agente também como sendo um ser inanimado, desde que cause um efeito em

um objeto, por sua ação. Entretanto, para a autora, a questão agente está ligada a seres

volitivos. O verbo também é importante para dizer se se trata de agente ou não. Além disso,

ressalta Pontes, para se dizer se um elemento deve ser considerado agente, paciente ou

instrumento, é necessário levar em conta o contexto em que ocorre, o que evidencia que, pelo

menos, em português existe uma correlação entre relações gramaticais e papéis semânticos. É,

nesse sentido, que se pode relacionar agente e tópico, já que este também só pode ser definido

se considerarmos o contexto.

Para Pontes, há uma ligação bastante forte entre tópico e agente. E esta ligação se

expressa por meio do sujeito, que enfeixa os dois. A ligação entre agente-tópico-sujeito, é

uma ilustração perfeita da conexão entre sintaxe, semântica e pragmática.

Podemos agora, a partir da reflexão crítica de Pontes, responder às questões a que ela

se coloca no início desta discussão. Apresentamos novamente as sentenças trazidas como

exemplo: O carro furou o pneu; João feriu-se nos espinhos; João operou o estômago; para

afirmarmos que o sintagma nominal inicial destas sentenças não apresenta as características

de um sujeito prototípico, uma vez que, em nenhuma destas sentenças o sujeito é o ser agente.

Entretanto, cabe salientar que eles apresentam características que se aproximam daquelas que

compõem os traços do sujeito típico, ou seja, o sintagma nominal inicial destas orações ou se

refere ao ser humano ou se refere ao todo em vez da parte. Isso dificilmente ocorre com um

sujeito posposto. O que equivale a dizer que o sintagma nominal que aparece posposto ao

verbo, por não ter as características, aparecer no início da sentença, ser agente ou tópico, que

tipificam o sujeito em língua portuguesa, não pode ser considerado como sujeito da oração.

Em suma, o sujeito posposto surge com características mais próprias de objeto do que

de sujeito, o que corresponde com a intuição dos falantes que quando testados, classificam-no

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como objeto. Como já evidenciamos, este fato levou Pontes à recorrência da definição do

sujeito prototípico, o que lhe possibilita pensar em uma definição não-clássica de sujeito que,

a seu ver, implica rever procedimentos cristalizados em algumas áreas da Lingüística, como o

de se basear em casos excepcionais, em exemplos marginais na língua. Segundo a autora, a

visão não-clássica é mais totalizante, vê primeiro o que é mais geral, mais comum, mais

sistematizado, e a partir dos casos claros é que examina os obscuros.

O que precede nos autoriza a dizer que o conceito de sujeito adotado por Pontes

(1986) abre caminhos para novas pesquisas que se preocupam não apenas com a questão

sintática da língua, mas, e, principalmente, com seus aspectos semânticos-discursivos. É o

caso da presente investigação, partimos dos postulados de Pontes, enfocando principalmente o

sujeito prototípico para verificamos como esse ser gente presente nessa definição de sujeito é

construído, isto é, quais os discursos que ideologicamente influenciaram a sua constituição.

Especificamente, preocupamo-nos com os casos em que o sujeito da aração aparece

nominalizado. A nominalização serve, entre outros usos, para evidenciar a presença de um

discurso que está fora, situado em um outro lugar, mas que é retomado, trazido à tona, por

meio da interdiscursividade que o cerceia. Assim, salientamos que a forma como o sujeito se

apresenta na sentença não é apenas um recurso da estrutura sintática, é, ao contrário, a

representação de discursos outros que, enquanto matriz de sentidos, determina as condições

de possibilidade do que pode e deve ser dito.

Para que possamos compreender o fenômeno da nominalização traremos, a seguir,

algumas considerações sobre a sua constituição. Primeiramente, apresentaremos a

nominalização como um recurso lingüístico, para, em seguida, enfocá-lo também como um

processo discursivo na constituição do sujeito da oração..

2.3.1 Algumas considerações sobre o fenômeno da nominalização

A nominalização é um fenômeno lingüístico que se caracteriza por apresentar formas

lexicais nominais derivadas de verbos ou de adjetivos. Devido à complexidade de se analisar

o fenômeno em questão, traremos, ao longo desta seção, algumas reflexões de estudiosos do

assunto a respeito de sua constituição lingüística e também discursiva.

Lopes (1996:03), ao estudar o fenômeno da nominalização, observa que os nomes

podem ser classificados em não derivados e derivados, estes, por sua vez, subdividem-se em,

deadjetivais e deverbais. A autora salienta que enquanto os nomes não derivados

caracterizam-se pela saturação lexical os derivados designam entidades referenciais.

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Mavale, ao analisar os nomes deverbais e deadjetivais no português de Moçambique,

observa que há nos nomes deadjetivais uma perda de adjetivalidade, apresentando os

seguintes traços nas entradas lexicais: + N – V. Ao passo que os nomes deverbais têm como

característica principal o fato de a base ser de origem verbal, apresentando as seguintes

informações na entrada lexical: + N, -V. Segundo a autora, para que possamos estudar os

nomes deverbais é preciso salientar alguns aspectos que podem contribuir para a compreensão

das construções nominais, visto que os nomes e os verbos além de partilharem a seleção de

complementos, são, todos, categorias lexicais.

Essas categorias, observa Brito (1994: 73), apresentam aspectos divergentes, os quais

podem ser resumidos: na opcionalidade da presença de complementos dos nomes; e ou na

presença obrigatória de preposições a preceder os complementos nominais e a sua ausência

nas construções verbais.

Mavale, salienta que, na literatura sobre nominalizações, é costume dizer que os

nomes derivados de verbos podem ser classificados em resultativos ou eventivos. Os

primeiros caracterizam-se pelo seu poder referencial, à semelhança dos nomes não derivados.

Além disso, este tipo de nominal não apresenta estrutura argumental. Cabe salientar, no

entanto, que essa leitura não é unívoca, Brito e Oliveira (1997), por exemplo, vêem de forma

diferente esse fenômeno. Para essas autoras, tanto a forma eventiva quanto a resultativa

preservam a estrutura argumental dos verbos correspondentes.

Lopes (1996:10), ao falar sobre a essa questão, defende que muitos dos nomes

deverbais são ambíguos, pois sugerem quer a interpretação eventiva, quer a resultativa. A

autora se questiona se esta ambigüidade provém da base ou não. É nesta reflexão que muitos

autores afirmam que os nomes derivados dos verbos se dividem em dois grupos: os que

mantêm as propriedades dos verbos correspondentes e os que denotam uma entidade concreta

que é o resultado de um processo. Este último grupo não tem propriedade aspectual, sendo o

mesmo fenômeno que se verifica nos nomes não derivados.

Para Mavale, os nomes deverbais com interpretação eventiva mantêm a significação

básica e a função de predicação dos verbos de que derivam, ou seja, reproduzem a estrutura e

os conteúdos comandados pelo verbo. A autora ressalta que se encontram nessas

nominalizações as mesmas funções semânticas que são atribuídas aos argumentos dos verbos

correspondentes. Em suma, há, de uma maneira geral, uma correspondência entre a valência

dos nomes e a dos verbos de que derivam.

Devido a essa correspondência, Brito e Oliveira (1997) defendem a importância de se

considerar a natureza semântica do predicado na diferenciação entre a interpretação eventiva e

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a leitura resultativa. Para uma melhor caracterização das diferentes leituras que os nominais

sugerem, são usados testes de variada natureza. Porém, importa referir que os mesmos não são

válidos para todas as línguas. Não obstante as oscilações resultantes das variações

paramétricas de cada língua, Grimshaw (1990) aponta para os seguintes aspectos a serem

considerados na análise das nominalizações: os determinantes que ocorrem com os nomes; o

fenômeno de pluralização; os modificadores aspectuais.

Dada a especificidade da língua portuguesa, os testes acima são considerados não

confiáveis, pois é possível realizar enunciados em que os elementos considerados

incompatíveis ocorrem sem provocar estranheza. Estudos feitos por Brito e Oliveira (1997)

indicam os seguintes critérios: adição da negação não ao nominal; o uso de expressões

adverbiais durativas; o recurso à forma progressiva associada a verbos perceptivos.

Defendemos, aqui, a proximidade entre as construções nominais com interpretação

eventiva e os verbos e os adjetivos de que derivam. Acreditamos que os nomes derivados de

verbos e de adjetivos realizam argumentos dos verbos e dos adjetivos correspondentes.

Cumpre salientar, no entanto, que, na nominalização, as categorias verbais de tempo e de

concordância desaparecem.

Apesar dos nomes deverbais herdarem algumas características da base, Rio-torto

(1997) assevera que eles, os nominais, apresentam um novo produto com propriedades

específicas, modulado pelo contexto. Esta autora, defende a necessidade de ter em conta

questões como: o modo de referenciação instanciado pelo sintagma nominal, o modo de

inserção deste na frase, a estrutura desta em harmonia com a estrutura global do enunciado,

visando a sua interpretação. Para Lopes (1997), o contexto desempenha um papel importante

na medida em que permite verificar se o referente do nome é um processo/evento ou uma

entidade resultante desse processo.

Ao falar sobre o modo de apresentação da nominalização, Mavale verifica que este

fenômeno pode ser introduzido, na língua, por meio de um argumento interno ou externo. Na

língua portuguesa do Brasil, o argumento interno é tipicamente expresso por uma preposição

de + um sintagma nominal. Essa estrutura sintática recebe o papel temático de tema. A título

de ilustração a autora apresenta o seguinte exemplo:“A erradicação da malaria pelo

Ministério da Saúde foi possível graças `a colaboração indescritível das populações”. As

palavras em negrito expressam o nome deverbal, o qual passa a desempenhar o papel de

núcleo do sintagma nominal, a preposição “de”, nessa frase, serve de marcador temático e

representa objeto da ação descrita pela nominalização. Diferentemente da estrutura

nominalizada com argumento interno, a nominalização com argumento externo implica a

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interpretação de agente por outras formas nominais, como adjetivos temáticos ou referenciais

e por determinantes possessivos. Grimshaw (1990), defende que o argumento externo ocorre

quando o tema vem expresso. As manchetes veiculadas no jornal A Folha de S. Paulo

apresenta enunciados com as seguintes características:

(01) Reação em cadeia faz banho de sangue.

(02) Corrupção manda lucro aos paraísos fiscais do exterior�.

Para Grimshaw, a omissão do argumento interno, isto é, da preposição seguida de uma

forma lexical nominal, se justifica pelo fato de o sintagma nominal, nessas frases, os termos

“reação” e “corrupção” derivarem de verbos que não exige ocorrência obrigatória do objeto.

Parece tratar-se de um objeto incorporado. Nomes com essa tendência permitem a

recuperação do argumento interno, dado o seu semantismo. Ademais, a sua estrutura

conceptual facilita a compreensão do enunciado. Um outro fator relevante a ser considerado,

de acordo com Rio-Torto (1997), é que a maioria das construções nominalizadas apresenta o

sufixo /cão/ ou /são/. Como podemos observar nas sentenças acima, esse tipo de sufixo

permite discernir a estrutura argumental do sintagma nominal nominalizado. Assim, o termo

“reação” nos remete ao ato de reagir; e “corrupção” ao ato de corromper.

Há ainda que considerarmos que a nominalização pode ser introduzida, no texto, por

meio de descrições definidas existentes no discurso. Haag (2003), considera como descrições

definidas os sintagmas nominais que iniciam por artigo definido, a saber, o a e suas formas

plurais, os, as, como por exemplo: “O assassino foi preso ontem. A prisão deixou todos

aliviados”. O sintagma nominalizado, nesse caso, o termo “a prisão” retoma a ação que já

havia sido exposta na sentença anterior.

Haag (2003) observa que ao serem introduzidas no texto, as descrições definidas

podem estar se referindo a uma entidade que esteja aparecendo pela primeira vez no co-texto

discursivo, ou podem se referir a alguma palavra ou expressão já expressa no texto. Dessa

forma, elas podem ser novas no discurso, ou podem apresentar uma relação de co-referência

ou de referência com algum termo anterior já conhecido do interlocutor do texto.

Muitos estudiosos têm apontado as descrições nominais definidas como expressões

típicas do processo discursivo de referenciação, admitindo que tais formas têm a função de

remeter “a elementos presentes no co-texto ou detectáveis a partir de outros elementos nele

presentes” sendo, portanto, formas nominais anafóricas. Inserida nesse quadro, a estratégia de

nominalização é um campo fértil e aberto a diferentes reflexões. Na opinião de Zamponi,

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as nominalizações talvez constituam o fenômeno anafórico que mais deixa à amostra, no texto escrito, os bastidores da construção de objetos-de-discurso pela atividade referencial. Com efeito, quando um sintagma nominal transforma em referente o processo denotado por uma proposição, que, obviamente, não tinha esse estatuto anteriormente, testemunha-se claramente a operação discursiva de referenciação. Não é à toa que a própria denominação de processo – nominalização – indica um processo. (ZAMPONI, (2003:199)

Observamos que a estratégia de referir, por meio de um sintagma nominal definido,

dando status de nome a uma seqüência textual com outro status categorial, geralmente uma

proposição, é um recurso de progressão textual muito comum na língua portuguesa e, por esse

viés, tem recebido grande atenção de especialistas. Koch (1984; 1989) salienta que no Brasil,

essa foi a tônica dos primeiros estudos de lingüística textual que abordaram o fenômeno,

rotulado de nominalização e visto, sobretudo, como recurso de coesão referencial nas cadeias

anafóricas. De acordo com Koch (1992), a partir da adoção de uma perspectiva sócio-

interacional no trabalho com textos, a nominalização passou a ser encarada como estratégia

argumentativa de organização textual e como expressão de polifonia, portanto como um

processo mais ligado à dinâmica textual-discursiva.

Sériot (1986), ao falar sobre o assunto, observa que a nominalização permite colocar

em questão as categorias gramaticais tradicionais forjadas sobre critérios que misturam o

plano morfológico, sintático, semântico e impedem de levar em consideração as relações entre

unidades e frases inteiras, mantendo ao mesmo tempo como constituinte de base e como

categoria gramatical notações tais como verbo e nome. Por isso, o fenômeno da

nominalização não pode ser analisado por posições polarizadas, quer dizer, de um lado, a

gramática e, de outro, o léxico; de um lado a sintaxe, e, de outro, a semântica; de um lado o

verbo, e, de outro, o nome. Ao contrário, para estudá-lo, articulamos essas dicotomias e

ancoramos a materialidade do fenômeno em questão no mundo extralingüístico, universo

social e ideológico, e nos indivíduos que falam. Essa ancoragem é fundamental para que

possamos compreender uma materialidade que é representacional e cujas funções e natureza

primordiais características do extralingüístico devem oferecer propriedades relevantes para a

materialidade lingüística.

Na tentativa de aclarar melhor essa questão, apresentaremos, a seguir, algumas

reflexões sobre o caráter referencial e o estatuto informacional das estruturas nominalizadas.

Nesse percurso, procuraremos mostrar a necessidade de se buscar nas ações sócio-interativas

e cognitivas explicação para a organização intratextual do fenômeno em questão. Avançando

nessa direção, procuraremos, na análise da nominalização, relacionar o fenômeno de

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“retomada” anafórica não apenas a discursos intratextuais, mas, e, sobretudo, a discursos

extratextuais capazes de operar no texto, atribuindo-lhe sentido.

2.3. 2 A nominalização como uma função referencial discursiva

Camacho (2005) observa que as nominalizações são construções encaixadas, e, como

tal, é dotada de uma característica gramatical relevante: além de poderem preservar a

estrutura argumental do predicado verbal de origem, podem atuar como um termo da

predicação matriz. Essa característica dá aos nomes deverbais e deadjetivais a versatilidade

funcional de exercer funções sintáticas, semânticas e pragmáticas de que não seriam capazes

caso se mantivessem como verbos ou como adjetivos.

De acordo com Camacho (2005), uma razão que favorece a seleção de uma

nominalização é a função textual-discursiva. Isso significa que empregar um sintagma

nominal nominalizado possibilita ao falante introduzir um novo referente no discurso ou

retomar uma predicação já enunciada no texto precedente, situação que vincula função textual

e estatuto informacional. Acreditamos que a função textual que a nominalização exerce no

discurso em função de seu estatuto informacional torna os nomes de segunda ordem, que

representam estados de coisas, similares, em termos informacionais, aos nomes prototípicos,

que são, por definição, nomes de primeira ordem.

Dik (1985; 1997), citado por Camacho, entende a nominalização como uma

predicação encaixada capaz de incorporar regras produtivas de formação de predicados. Para

esse autor, nas línguas em que os nomes podem ser produtivamente derivados do verbo

correspondente, as relações relevantes podem ser expressas em uma regra de formação de

predicado. O autor pondera que na condição de predicado derivado, as nominalizações

submetem-se a ajustes formais próprios de um modelo prototípico de termo, que é o nome de

primeira ordem, ou seja, os nomes concretos. Os ajustes mais comuns da predicação verbal

encaixada à expressão do termo nominal são os seguintes: um predicado verbal torna-se um

núcleo nominal; um operador de predicado verbal, como o sufixo modo-temporal passa a zero

no predicado nominal e, inversamente, um zero no predicado verbal, como a noção de

definitude expressa pelo artigo, transforma-se num operador de termo no predicado nominal;

o primeiro e o segundo argumento podem tanto assumir a forma de uma expressão de

possuidor quanto a de um adjetivo; já um satélite adverbial só pode assumir a forma de um

adjetivo. Para ilustrar essa questão, Camacho apresenta os seguintes exemplos:

a-“O Brasil comprou rapidamente os dólares do mercado”.

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b-“A rápida compra brasileira dos dólares do mercado”.

Sobre a relação entre a nominalização e o estatuto informacional, Camacho destaca

que, mesmo constituindo predicações, o nome deverbal e deajetival é um convite ao

interlocutor para atentar para alguma entidade referencial. No caso de uma nominalização,

como a da letra b, o referente não pode ser uma pessoa, animal, ou outro objeto tangível, deve

ser uma entidade de ordem superior, ou seja, de segunda ou de terceira ordem.

Na análise das nominalizações, Camacho (2005) aplica a taxonomia dado/novo de

Prince (1981). Esse autor estabelece três categorias para as noções dado e novo: Novo,

Inferível e Evocado. No primeiro caso, a informação nova representa entidades que o falante

introduz pela primeira vez no discurso. Essas entidades podem ser de dois tipos:

completamente novas, quando o ouvinte tem de construir completamente a referência para o

interlocutor, e não-usada, quando o ouvinte presume que a entidade correspondente já está no

modelo discursivo do interlocutor. As entidades completamente novas subdividem-se, por sua

vez, em dois outros tipos: ancoradas e não-ancoradas; no primeiro caso o sintagma nominal

representado vincula-se a outra entidade já mencionada no texto precedente, o que não

acontece com as entidades não-ancoradas.

As entidades evocadas são as que já ocorrem no modelo discursivo do ouvinte,

podendo subdividir-se em dois tipos: entidades textualmente evocadas e situacionalmente

evocadas, conforme o modo de manifestação no âmbito do texto ou na esfera dos

participantes do discurso e dos fatores salientes do contexto situacional.

Camacho (2005), observa que a noção de entidade nova não-usada se aproxima muito

do conceito de entidade evocada; é nova por ser introduzida pela primeira vez no discurso,

embora já esteja incluída no conhecimento do ouvinte. Não há, por isso, necessidade de

construir a referência dessa entidade, o que constituiria uma entidade completamente nova. É

por não haver a necessidade de construção da referência que uma entidade nova não-usada se

aproxima da noção de entidade evocada.

Por fim, apresentamos o terceiro tipo de entidade discursiva: a inferível. Uma entidade

discursiva é inferível se o falante supõe que o ouvinte pode identificar o referente pretendido,

via razões lógicas ou plausíveis, a partir de outra entidade discursiva evocada ou inferível.

Novamente, esse tipo de entidade se subdivide em dois tipos: inferível contido, que se refere a

entidades cuja inferência está dentro do próprio sintagma nominal, e inferível não-contido.

Em nossas análises, verificamos a preponderância de entidades novas não-usadas

sobre os demais tipos de entidades nominalizadas. Tal preponderância se justifica devido ao

fato de que o nosso corpus é constituído de manchetes de jornal, portanto, o enunciado

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veiculado não faz referência textual a nenhum outro enunciado anteriormente citado, ao

contrário, sua referência é contextual, como em:

(01) Choque do Plano Collor é o maior de toda a história17.

(02) Correção da tabela do IR vai incluir as deduções18.

(03) Calote da Tailândia preocupa o mercado19.

Essa expressividade saliente das nominalizações como entidades novas não-usadas,

confirma, a princípio, a função discursiva textual apontada por Mackenzie (1985), segundo a

qual produzir uma nominalização permite ao falante introduzir um novo referente no discurso.

Nos exemplos citados, as nominalizações referem-se a entidades introduzidas pela primeira

vez no discurso, mas que podem ser presumidas pelo ouvinte em seu modelo discursivo. Esse

tipo de nominalização permite ao falante sinalizar ao ouvinte a introdução particularmente

explícita de um novo referente discursivo, isto é, de uma noção referencial que permite fazer a

identificação pretendida.

Para Camacho (2005), dificilmente uma nominalização será totalmente nova, ou, mais

especificamente completamente nova. É verdade que há função informacional derivada do

fato de que, ao construir uma predicação como um nome, o falante convida seu interlocutor a

atentar para um referente; entretanto, como, em geral, uma nominalização de segunda ordem

retoma predicação já enunciada no texto precedente, é pouco provável que a entidade

nomeada seja totalmente desconhecida pelo ouvinte; ou está em sua memória, podendo ser

presumida, ou pode ser inferida, ou evocada. O autor verifica ainda que a nominalização

pode incidir tanto na função de sujeito quanto na função de complemento da oração,

produzindo diferentes efeitos de sentidos. Nos dedicaremos a estudar apenas a nominalização

do sujeito, dado a sua alta preponderância em nosso corpus e, sobretudo, a função discursiva

que ela exerce.

Uma das razões que nos levou a estudar a nominalização do sujeito é o fato de que ela

cria objetos-de-discurso e não apenas referentes previamente definidos. Esses objetos-de-

discurso se alimentam da memória discursiva dos interlocutores, a qual constitui ponto

fundamental para a direção argumentativa dos textos com discurso opinativo. Assim, a análise

que nos propomos a fazer busca explicar a ocorrência de estruturas resultantes de

nominalização como uma estratégia socialmente trabalhada, dependente de discursos

anteriores sobre os quais os interlocutores atuam.

17 Manchete veiculada no jornal A Folha de S. Paulo em 17/03/1990. 18 Manchete veiculada no jornal A Folha de S. Paulo em 30/12/2004 19 Manchete veiculada no jornal A Folha de S. Paulo em 30/08/1997

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Ponderamos que esse discurso anterior,“já dito”, retomado nas manchetes do jornal A

Folha de S. Paulo tem lugar nas práticas discursivas do sistema neoliberal, já que acreditamos

que esse modelo sócio-político afeta todas as sociedades levando-as a partilharem traços tanto

no uso das estruturas sociais quanto no uso das línguas. Nessa linha de investigação, a noção

de um discurso pré-construído abarca a de memória, de lugares discursivos prévios, que

alimentam novos discursos, numa interação entre um já-dito e um novo dizer. Para que

possamos entender como esse discurso pré-construído é retomado nas formas da língua

faremos, a seguir, a caracterização do sistema político neoliberal do qual ele se origina.

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III. NEOLIBERALISMO: A IDEOLOGIA CONSTITUTIVA DE UM

DISCURSO HEGEMÔNICO

3.1 A Ideologia do neoliberalismo e seu discurso de base

Neste capítulo, buscamos mostrar como o neoliberalismo, ideologia hoje hegemônica,

tem influenciado de maneira relevante o surgimento de novos fenômenos discursivos que,

por sua vez, materializam-se na língua. Para tal, abordamos o neoliberalismo em sua essência.

Discutimos essa prática político-econômica desde sua origem, buscando compreender os

motivos que fizeram do neoliberalismo um movimento político-econômico forte e

hegemônico capaz, até mesmo, de modificar a vida das pessoas inclusive o seu modo de ver e

pensar no mundo. Esclarecemos que nosso propósito não é apresentar os benefícios ou os

males que essa política possa ter causado nas distintas sociedades. Detemo-nos apenas em

conceitos que julgamos fundamentais ao entendimento do nosso propósito, a saber, as novas

tendências discursivas presentes na língua falada e escrita no Brasil.

Iniciamos essa discussão apresentado o fato de que o neoliberalismo originou-se nas

bases do liberalismo clássico. Portanto, antes de falarmos sobre o neoliberalismo, julgamos

ser necessário registrar primeiro quais são as idéias mestras dessa corrente e contra quem elas

se movem. Embasamo-nos em Reginaldo Moraes20, mais especificamente em sua obra

Neoliberalismo: de onde vem, para onde vai?. Nela, o autor afirma que a pedra fundamental

do liberalismo costuma ser identificada com Adam Smith21. Na concepção de Smith, o

mundo seria melhor, mais justo, racional, eficiente e produtivo, se houvesse a mais livre

iniciativa, se as atitudes econômicas dos indivíduos e suas relações não fossem limitadas por

regulamentos e monopólios garantidos pelo Estado ou pelas corporações de ofício. Smith

prega a necessidade de desregulamentar e privatizar as atividades econômicas, reduzindo o

Estado a funções definidas, que delimitassem apenas parâmetros bastante gerais para as

atividades livres dos agentes econômicos. Na argumentação de Smith, são três as funções do

governo: “a manutenção da segurança interna e externa, a garantia da propriedade e dos

contratos e a responsabilidade por serviços essenciais de utilidade pública”.

20 Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes é doutor em filosofia pela universidade de São Paulo e professor do Departamento de Ciência Política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (Unicamp). (...) Publicou os livros Celso Furtado, o subdesenvolvimento e as idéias da Cepal, pela Ática, em 1995; A redemocratização espanhola: lições de uma distensão lenta, gradual e insegura, pela Brasiliense, em 1982; e Pacto social: entre a negociação e o pacote, pela L&PM, em 1986. (MORAES, 2001) 21 Mais especificamente com a publicação de A riqueza das nações, 1976. (MORAES, 2001:13)

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A doutrina liberal, a procura do lucro e a motivação do interesse próprio são

inclinações fundamentais da natureza do homem. Elas estimulam o empenho e o engenho dos

agentes, recompensam a poupança, a abstinência presente, e remuneram o investimento.

Ademais, premiam a iniciativa criadora, incitando ao trabalho e à inovação. Como resultado,

cria-se um sistema ordenador e coordenador das ações humanas, identificadas com ofertas e

demandas mediadas por um mecanismo de preços. Esse sistema social revelaria de modo

espontâneo e incontestável as necessidades de cada um e de todos os indivíduos. O sistema

também indicaria a eficácia da empresa e dos empreendedores, sancionando as escolhas

individuais, atribuindo valores negativos ou positivos.

A expressão cunhada por Smith, “a sua ‘mão invisível’ do mercado”, tornou-se a

fórmula preferida dos economistas liberais. Na percepção de Smith, o novo sistema seria

óbvio e simples.

Deixa-se a cada qual, enquanto não violar as leis da justiça, perfeita liberdade de ir em busca de seu próprio interesse, a seu próprio modo, e fazer com que tanto seu trabalho como seu capital concorram com os de qualquer outra pessoa ou categoria de pessoas. (SMITH, 1983:47 apud MORAES, 2001:15)

Moraes observa que o pensamento de Smith ganhou dimensão e se generalizou, em

1817, com David Ricardo, autor que estendeu as idéias de Smith ao conjunto da sociedade

pensada em termos internacional. Com esse autor, as virtudes da divisão social do trabalho

ganham a forma mais ampla da doutrina das “vantagens recíprocas” resultantes de uma

especialização natural dos países nessa divisão do trabalho:

Num sistema comercial perfeitamente livre, cada um naturalmente dedica seu capital e seu trabalho à atividade que lhe seja mais benéfica. Essa busca de vantagem individual está admiravelmente associada ao bem universal do conjunto dos países. Estimulando a dedicação ao trabalho, recompensando a engenhosidade e propiciando o uso mais eficaz das potencialidades proporcionadas pela natureza, distribui-se o trabalho de modo mais eficiente e mais econômico, enquanto pelo aumento geral de volume de produtos difunde-se o beneficio de modo geral e une-se a sociedade universal de todas as nações do mundo civilizado por laços comuns de interesse e de intercâmbio. Este é o princípio que determina que o vinho seja produzido na França e em Portugal, que o trigo seja cultivado na América e na Polônia, e que as ferramentas e outros bens sejam manufaturados na Inglaterra. (RICARDO, 1982:104 apud MORAES, 2001:16)

Observamos que, tanto para Smith (1776), quanto para Ricardo (1817), o mercado é o

melhor caminho para gerar eficiência justiça e riqueza. Eficiência, porque propicia o uso mais

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eficaz das potencialidades pela natureza, distribui o trabalho de modo mais econômico.

Justiça, porque estimula a dedicação ao trabalho e recompensa a engenhosidade. E riqueza, já

que, pelo aumento de volume de produtos, difunde-se o beneficio. Ainda para Smith, para

que o mundo seja mais livre, justo e rico, é necessário que a disciplina anônima e invisível da

concorrência substitua a disciplina visível das hierarquias arcaicas, ou seja, é preciso que a

concorrência substitua as obrigações tradicionais e personalizadas das instituições medievais,

os regulamentos das corporações de ofício e as leis do Estado mercantilista.

Esse novo sistema político econômico constituído nas últimas décadas do século

XVIII desdobrou-se em dois grandes princípios programáticos:

1) a procura do interesse próprio conduz ao ajustamento entre os indivíduos e a uma determinada harmonização dos diferentes esforços e vontades. Delineia-se a convicção na existência de leis econômicas: as ações intencionais das pessoas produzem, de modo não intencional, regularidades semelhantes às leis de um sistema físico. 2) O poder político deve ser cuidadosamente limitado pela lei. (...) Deve se limitar a intervenção do poder político para permitir que os indivíduos vivam como bem entendam. (MORAES, 2001:21)

Esses princípios vão desembocar, no fim do século XIX e inicio do século XX, em

uma nova prática política-econômica, o neoliberalismo. A linha geral desse novo modelo

político era evitar a politização da vida econômica. Para isso, observa Moraes, os neoliberais

aprofundaram e radicalizaram algumas idéias do pensamento liberal, tais como: limitar acesso

ao sufrágio, concedendo-se o direito de voto somente aos proprietários ou detentores de certa

margem de renda; limitar o âmbito do sufrágio, neutralizando seus poderes pelo firme

estabelecimento de questões e funções públicas que, definitivamente, deveriam estar imunes

ao voto e à ação política do público. Alguns cargos não seriam elegíveis nem fiscalizados pelo

Parlamento. Algumas decisões seriam excluídas da alçada do Parlamento mediante cláusulas

constitucionais ou leis fundamentais que só poderiam ser mudadas com muita dificuldade.

Moraes (2001), salienta que um dos autores que marcou significativamente essa

mudança política foi Herbert Spencer (1820-1903). Seu livro Indivíduo contra o Estado

defende o sistema da concorrência como uma espécie de seleção natural dos mais aptos, um

darwinismo social. Spencer ataca duramente a democracia, a intervenção estatal na economia

e a criação de políticas sociais. Entretanto, é na figura do austríaco Ludwig von Mises (1881-

1973) e, sobretudo, de um discípulo seu, Friedrich von Hayek22, que a prática dessa política

22 Para um estudo mais específico de Hayek, ver MORAES, R. Hayek e a teoria política do neoliberalismo econômico (I), coleção Textos didáticos Campinas:IFCH/Unicamp, 1999.

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se torna mais evidente na sociedade. Hayek lança O Caminho da Servidão (1944), um livro

de combate, provocativamente endereçado aos socialistas de todos os partidos. Aqui, o autor

não milita apenas contra os partidários da revolução e da economia globalmente planificada,

mas contra toda e qualquer medida política, econômica e social que indique a mais tímida

simpatia ou concessão para com as veleidades reformistas ou pretensões de fundar uma

“terceira via” entre capitalismo e comunismo. Além disso, nos anos seguintes, Hayek se

empenhou na organização de uma política internacional dos neoliberais, a Sociedade do Mont

P`elerin, fundada na cidade do mesmo nome (na Suíça) numa conferência realizada em 1947.

As idéias de Hayek ganham força e são revitalizadas por Milton Friedman, um dos

grandes nomes da escola de Chicago. Ele escreveu a obra Capitalismo e Liberdade (1977).

Assim como Hayek, Friedman acreditava que o mercado era um processo competitivo de

descoberta. Nele, inumeráveis indivíduos movem-se orientados pelos seus próprios interesses.

O mercado é a combinação desses planos e atividades individuais de produtores e

consumidores. Os elementos motores desse mundo são a função empreendedora do indivíduo

e a concorrência, no interior de uma complexa divisão social do trabalho. A ordem do

mercado é produto das atividades dos indivíduos, mas não do desígnio nem da deliberação de

ninguém em particular. Não é resultado de uma razão, em sentido estrito. Aliás, todas as

instituições econômicas, políticas e culturais positivas são resultados de uma evolução

espontânea. Os participantes do mercado tomam decisões olhando o sistema de preços do

mercado livre – é assim que ajustam a todo o momento seus planos de produção e de

consumo.

O que se tem chamado de neoliberalismo constitui em primeiro lugar uma ideologia,

uma forma de ver o mundo social, uma corrente de pensamento fundamentada no liberalismo

clássico que vê no Estado mercantilista e nas corporações os seus maiores inimigos. Os

neoliberais partem desses pressupostos para justificar seu combate e apresentá-lo como a

continuação de uma respeitável campanha antiabsolutista. Seus inimigos passam a ser o

conjunto institucional composto pelo Estado de bem-estar social, pela planificação e pela

intervenção estatal na economia e os sindicatos e centrais sindicais, que, nas democracias de

massas do século XX, também foram paulatinamente integrados nesse conjunto institucional.

Moraes (2001) salienta que para os países latino-americanos, os neoliberais fazem uma

adaptação dessa cena:

aqui o adversário estaria no modelo de governo gerado pelas ideologias nacionalistas e desenvolvimentistas, pelo populismo e pelos comunistas. A argumentação neoliberal tem uma estratégia similar à do sermão. Primeiro, desenha um diagnóstico apocalíptico. Em seguida, prega uma receita

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salvacionista: forte ação governamental contra os sindicatos e prioridade para uma política antiinflacionária monetarista, reformas orientadas para e pelo mercado, libertando o capital dos controles civilizadores que lhe foram impostos por duzentos anos de lutas populares. (MORAES, 2001:28)

Com essas medidas, o movimento neoliberal desenhava um novo modo de produzir

decisões políticas, novas formas de participação na política. Dito de outro modo, consolidava-

se um novo mundo político, marcado pela negociação entre corporações empresariais e

proletárias, intermediadas e institucionalizadas pelo poder público. Processavam-se, desse

modo, mudanças profundas na esfera pública e na esfera privada. As companhias

multinacionais espalhavam pelo mundo suas fábricas e investimentos e movimentavam

gigantescos fundos financeiros envolvidos nesses processos, lucros a serem remetidos,

royalties, patentes, transferências, empréstimos e aplicações. No início dos anos 70, as

autoridades monetárias americanas anunciavam que as coisas estavam muito mudadas: o dólar

não teria mais conversão automática em ouro. Em 1974, registrou-se pela primeira vez a

estagflação, um misto de inflação alta e estagnação que afetavam o conjunto dos países

capitalistas desenvolvidos. Crescia o mercado financeiro paralelo que desafiava as

regulamentações nacionais: comércio de ações, de títulos públicos, de divisas, as formas de

riqueza intangível e líquida do capitalismo de papel.

Fatos como esses levaram diferentes lideres partidários alinhados com programas

neoliberais a conquistarem governos de importantes países: em 1973, no Chile, com Pinochet,

e em 1976, na Argentina, com o general Videla e o ministério de Martinez de Hoz; em 1979,

Margaret Thatcher, na Inglaterra; em 1980, Reagan, nos Estados Unidos; em 1982, Helmut

Kohl, na Alemanha. Moraes(2001) ressalta que nos anos de 1980, os programas neoliberais de

ajuste econômico foram impostos a países latino-americanos como condição para a

renegociação de suas dívidas galopantes. Daí se passou à vigilância e ao efetivo

gerenciamento das economias locais pelo Banco Mundial e pelo FMI: 1985, Bolívia; 1988,

México, com Salinas de Gortari; 1989, novamente a Argentina, dessa vez com Menen; 1989,

Venezuela, com Carlos Andrés Perez; 1990, Fujimori, no Peru. E, desde 1989, o Brasil, de

Fernando Collor de Mello. Convém salientar que, no Brasil, a ideologia neoliberal chegou ao

país pela via das pressões das instituições internacionais e dos grandes bancos credores. Com

o governo Collor o neoliberalismo transformou-se na doutrina oficial usada para justificar a

“destruição” do Estado Brasileiro e o desmonte da indústria nacional.

Para que possamos compreender melhor porque o neoliberalismo atraiu e continua

atraindo tantos países, trouxemos para a discussão as idéias mestras desse movimento.

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Segundo Moraes (2001:35), elas acentuam duas grandes exigências gerais e complementares:

“privatizar empresas estatais e serviços públicos, por um lado; por outro, ‘desregulamentar’,

ou antes, criar novas regulamentações, um novo quadro legal que diminuía a interferência dos

poderes públicos sobre os empreendimentos privados”. Dessa forma, o Estado deveria

transferir ao setor privado as atividades produtivas em que indevidamente se metera e deixar a

cargo da disciplina do mercado as atividades regulatórias que em vão tentara estabelecer.

Isso equivale a dizer que o Estado nacional deixa de ser a fonte única do direito e das

regulamentações. Prerrogativas reguladoras, deliberações sobre política econômica,

monetária, cambial, tributária, etc. são transferidas para administrações supranacionais, que

aparecem como as guardiãs de uma racionalidade superior, imunes às perversões, limites e

tentações alegadamente presentes nos sistemas políticos identificados com os Estados

nacionais. Segundo Moraes (2001), a ideologia neoliberal prega o desmantelamento das

regulações produzidas pelos Estados nacionais, mas acaba transferindo muitas dessas

regulações, produção de normas, regras e leis para uma esfera maior: as organizações

multilaterais como o G-7, a OMC, o Banco Mundial, o FMI, dominadas pelos governos e

banqueiros dos países capitalistas centrais.

O neoliberalismo representa, assim, o mundo globalizado. A sociedade global é, de

acordo com Corrêa (2000), uma realidade nos planos econômico, político, social e,

principalmente, cultural pelas transformações significativas nas condições de vida e de

trabalho, modos de ser, sentir, pensar e imaginar dos homens nestas últimas décadas.

Modificaram-se, segundo a autora, não só as condições de alienação como as possibilidades

nacionais que lutam pela sua identidade, pelo direito à diferença cultural e contra a exclusão

crescente. Corrêa considera a relação entre a globalização e cultura como sendo uma

integração dos sistemas econômicos que cria redes de consumo e de comunicação, a

homogeneização cultural, para produzir a massificação do consumo, de grande importância

econômica. Trata-se de um processo de globalização da cultura, enquanto uma tendência

viabilizada, em grande medida, pelo desenvolvimento dos diferentes meios de comunicação

para uniformização das culturas de diferentes grupos sociais transformando-os em segmentos

do mercado de consumo com características semelhantes. Corrêa cita Ianni que argumenta

que as sociedades contemporâneas estão articuladas numa sociedade global com suas

diversidades e tensionamentos internos e externos,

sociedade global no sentido de que compreende relações, processos e estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais, ainda que operando de

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modo desigual e contraditório. Nesse contexto, as formas regionais e nacionais evidentemente continuam a substituir e atuar. Os nacionalismos e regionalismos sociais, econômicos, políticos, culturais, étnicos, lingüísticos, religiosos e outros podem até ressurgir, recrudescer. Mas o que começa a predominar, a apresentar-se como uma determinação básica, constitutiva, é a sociedade global, a totalidade na qual pouco a pouco tudo o mais começa a parecer parte, segmento, elo, momento. São singularidades, ou particularidades, cuja fisionomia possui ao menos um traço fundamental conferido pelo todo, pelo movimento da sociedade civil global. (IANNI, 1992:47apud. CORRÊA, 2000:33)

Em outras palavras, a ideologia neoliberal presente na sociedade globalizada

compreende e tenta modelar as políticas sociais que, por sua vez, acarreta mudanças na vida

das pessoas, mudando inclusive o seu modo de agir e pensar no mundo. Os neoliberalistas

contemporâneos pregam uma espécie de revolução constitucional que ponha fim à

“democracia ilimitada”, ou como diria Hayek a “democracia que opera no vermelho”. Para

melhor compreensão desse sistema, Moraes ressalta os três lemas das políticas públicas

submetidos a programas de ajustes neoliberal: “focalizar, descentralizar, privatizar”.

Focalizar, substituindo a política de acesso universal pelo acesso seletivo. O acesso universal faz com que os serviços sejam considerados direitos sociais e bens públicos. O acesso seletivo permite definir mais limitadamente e discriminar o receptor dos benefícios. (...). As políticas sociais do neoliberalismo, por sua vez, aproximam-se cada vez mais do perfil de políticos compensatórios, isto é, de políticas que supõem, como ambiente prévio e dado, um outro projeto de sociedade definido em um campo oposto ao da deliberação coletiva e da planificação. O novo modelo de sociedade é definido pelo universo das trocas, pela “mão invisível” do mercado. Descentralizar operações, o que não implica necessariamente desconcentrar, sobretudo as decisões políticas mais estratégicas e, muito menos, a gestão dos grandes fundos. Enfim, mas não menos importante, privatizar. Isto pode ser feito, basicamente, por duas vias. A primeira é transferir ao setor privado a propriedade dos estatais, inclusive os entes provedores de políticas sociais, tais como saúde educação, moradia, assistência social etc. A segunda via é transferir ao setor privado a operação e/ou gestão dos serviços. (MORAES, 2001:66-7)

É preciso que as instâncias governamentais deleguem competências ao setor privado.

Ou, ainda, que mantenham as competências na esfera pública estatal, mas submetendo esses

entes estatais a controles de mercado ou que simulem mercados. Em outras palavras, é preciso

criar em certas esferas dos serviços públicos sistemas de avaliação que simulem a relação

fornecedor-cliente.

Dessa forma, o movimento neoliberal conseguiu desmanchar em grande medida o

Estado de bem-estar social e enfraquecer brutalmente os sindicados por meio da liberalização

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legal e policial do mercado de trabalho e da extensão do desemprego e do emprego precário,

desregulamentado, flexível. O neoliberalismo impôs uma nova correlação de forcas na

sociedade e na opinião dominante e conquistou a hegemonia ideológica econômica. Tornou-

se um programa legitimo, um ideal político, uma solução prática para a estagnação

econômica ou para a pobreza. Esse novo sistema político-econômico ataca sistematicamente

os direitos democráticos e sociais. Seu arsenal é variado: leis de exceção, medidas de

emergência ou mediada ditas provisórias, decretos antigreves, penalização de sindicatos,

manipulação da informação, supremacia do executivo, legislação por decreto e suspensão de

garantias constitucionais, subtração de decisões econômicas de grande porte ao controle

público, seja pela via da privatização, seja pela desregulamentação legal.

Cabe novamente citar Corrêa (2000) que reportando-se ao tema em questão, verifica

que a “mercantilização de tudo” nessa fase do capitalismo implica atingir os homens, suas

relações e práticas sociais, sua educação, suas consciências, suas vidas, por intermédio de um

processo de doutrinação neoliberal utilizando as novas tecnologias de comunicação. Ainda de

acordo com Corrêa, o ideário neoliberal vem sendo veiculado pela mídia de forma

sistemática, em decorrência do monopólio da informação e sua manipulação. Em outros

termos, uma nova forma de pensar e agir ganha espaço nesse cenário, isto porque

os indivíduos, na medida em que introjetam o valor mercantil e as relações mercantis, como padrão dominante de interpretação dos mundos possíveis, aceitam – e confiam – no mercado como o âmbito em que, naturalmente, podem – e devem – desenvolver-se como pessoas humanas. (GENTILI, 1995:228 apud CORRÊA, 2000:50)

Afirmamos que o neoliberalismo, ideologia hoje hegemônica, cuja origem se deu em

teorias econômicas, acabou por se infiltrar em todos os níveis da vida pública, determinando,

inclusive, novas posturas na vida privada dos indivíduos, isto porque o discurso neoliberal se

faz presente nas mais diversas esferas de atividade humana, se manifesta nos mais diversos

gêneros discursivos23, englobam uma estratégia de poder e que, por isso, propõe reformas nos

planos econômico, político, jurídico e educacional. Portanto, acreditamos que também

23“(...) O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições especificas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo temático e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso”. (Bakhtin, 2003 p.261-262)

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influencia de maneira relevante o surgimento de novos fenômenos lingüísticos e discursivos,

uma vez que o discurso da política neoliberal cerceia outros discursos ao mesmo tempo que os

hegemoniza.

O discurso neoliberal redesenha o cenário da vida social e política a partir dos valores

neoliberais. Na busca de seus anseios políticos e econômicos, os sujeitos discursivos querem

se isentar de quaisquer responsabilidades que suas ações possam causar. Esse discurso instiga-

nos a estudar os sentidos produzidos por novas tendências discursivas, pensar por quais

razões, no discurso neoliberal, o sujeito humano é substituido em determinados enunciados

por uma forma nominalizada ou por um sujeito inanimado. Em busca de respostas para os

nossos anseios apresentamos, a seguir, algumas tendências discursivas presentes no francês

atual, em nossa apresentação, voltamo-nos para o português do Brasil, visto ser essa a

língua alvo da presente investigação.

3.2 Algumas tendências discursivas que intervêm na ordem do discurso

Para pensar as tendências discursivas presentes no português do Brasil, desde a

década de 90, recorremos aos posicionamentos de Gadet (2005) que, sob uma perspectiva da

Análise do Discurso de orientação francesa e da Sociolingüística de cunho interpretativo,

verifica como se dão essas tendências no francês atual. A autora observa que tanto as

reflexões oriundas de trabalhos em Análise do Discurso e em Sociolingüística, quanto em

Pragmática ou em Sociologia podem convergir a despeito da diversidade disciplinar, no que

diz respeito à indicação de tendências de mudanças nos usos linguageiros e nas práticas

discursivas. Essas tendências não parecem separáveis das mudanças sociais e culturais.

A maior parte delas não são especificas do francês (...), mas constituem fenômenos transnacionais do que se pode chamar de globalização, e que afetam todas as sociedades desenvolvidas (...) levando-as a partilharem traços tanto no uso das línguas quanto nas estruturas sociais, como por exemplo no aumento das desigualdades. (GADET, 2005: 54)

Justamente por acreditar que esses fenômenos discursivos não se limitam ao francês é

que resolvemos estudar as tendências discursivas no português do Brasil. Assim como Gadet,

enfocamos a globalização e o neoliberalismo como um dos fatores que propiciaram o seu

surgimento.

Gadet (2005) salienta ainda que as relações entre a formação de uma língua nacional e

o desenvolvimento da escolarização traduzem-se em uma marcação social da dominação nos

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usos discursivos, por isso as manifestações da autoridade na língua, hoje, apresentam-se sob

diferentes aspectos. Um desses aspectos pode ser representado pelas tendências a

democratização dos discursos. Segundo Fairclough (1992:201), uma mudança a qual chama

de democratização traduz-se por uma “supressão das desigualdades e das assimetrias nos

direitos obrigações e prestígio de grupos de indivíduos, de um ponto de vista lingüístico e

discursivo”.

A avaliação de Fairclough (1992) envolve cinco fatores. Três deles, macro-

sociolingüísticos: o reconhecimento de sotaques não-standard e não centrais; “o acesso

ampliado a tipos de discursos prestigiados, em particular com o acesso das mulheres a novas

profissões; e o combate contra as formulações sexistas”. Os outros dois aspectos da

democratização se originam diretamente de fenômenos ligados ao estilo, como a eliminação

de marcadores ostentatórios de hierarquia de poder e de status; e a generalização tendencial

de estilos informais.

Um exemplo da tendência a democratização do discurso pode ser visto nos discursos

chamados de politicamente corretos. Possenti e Baronas (2006), ao abordarem o assunto,

observam que existe um movimento em favor de comportamentos politicamente corretos.

Esse movimento, além de combater o uso de termos marcados negativamente, se caracteriza

também por propor a substituição de tais termos por outros, que seriam “neutros” ou

“objetivos”. Em especial, o movimento inclui o combate ao racismo, ao machismo, à cultura

pretensamente racional, mas aí não se esgota, ele vai além, tentando tornar não marcado o

vocabulário e o comportamento relativo a qualquer grupo discriminado. Isto equivale a dizer,

por exemplo, que os membros de certa comunidade étnica não devem ser chamados de

negros, mas de “afro-americanos” ou de “afro-brasileiros” ou ainda de “afro-descendentes”’.

A hipótese do movimento, no caso, parece ser a de que a conotação negativa está ligada à

própria palavra.

Possenti e Baronas (2006) ressaltam que a Análise de Discurso questiona a asserção

de que a conotação pejorativa esteja ligada diretamente à própria palavra.

Para esta teoria dos sentidos, a palavra produz os efeitos de sentido que produz em decorrência do discurso a que pertence tipicamente (um discurso racista, por exemplo). Tal discurso só ocorre se a sociedade for de alguma forma racista. Esta contraposição em relação ao peso das palavras, peso que seria seu, segundo uma hipótese, ou que derivaria dos discursos nas quais são enunciadas, segundo outra – mostra claramente a relevância do problema em questão e a diferença entre as hipóteses que tentam explicar o que ocorre no domínio do sentido. (POSSENTI & BARONAS, 2006:56)

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Os autores asseveram ainda que o politicamente correto é, na verdade, um fenômeno

de mutação pragmática e discursiva, pelo qual o português brasileiro, tal qual as demais

línguas naturais afetadas pela globalização, vem passando. Ou, dizendo de outra forma, o

politicamente correto se constitui na textualização de um processo lingüístico e discursivo que

tenta suprimir as desigualdades e as assimetrias nos direitos e obrigações e prestigio de

determinados grupos sociais.

Essa tendência discursiva também pode ser observada no atenuamento das hierarquias

presente, em particular, nos modos de tratamento e na polidez. Gadet (2005) verifica que os

modos de tratamento entre não-conhecidos, que estão no coração dos processos de

coordenação social entre locutores, parecem hoje menos sofisticados e menos diversificados

do que no passado, ou seja, não se atribuem mais os títulos herdados ou adquiridos como

doutor, professor etc. Eles são também assimétricos a um tratamento na forma de senhor,

senhora. Paralelamente, há uma tendência a uma extensão dos pronomes tu e “vous’. No caso

do português brasileiro “tu” e “vos”. Essa simplificação do tratamento, observa Gadet, evolui

na direção de uma valorização do informal e da simplicidade. A autora verifica, ainda, que há

uma tendência à atenuação das assimetrias nas normas e nos direitos conversacionais.

Mudanças nas normas da conversação manifestam-se também na modificação das interações

nas relações profissionais, no trabalho e nas organizações caminhando também no sentido de

uma simplificação.

Além das tendências citadas, ressalta Gadet (2005), há no francês um aumento recente

do uso de siglas como PAC para política agrícola comum, RTT para redução do tempo de

trabalho... ou de truncamentos, délib para délibération, rédec’chef para rédacteur em chef...

Esses dois fenômenos apóiam-se na encenação de um saber partilhado. Eles tornam-se

evidentes quando ultrapassam os lugares institucionais ou especializados onde foram

inicialmente produzidos e invadem os discursos comuns. De acordo a autora, há uma

ambivalência conversacional do conjunto sigla-truncamento-vocabulário de especialização,

entre sua imposição sem restrição e a tradução espontânea ou induzida por uma

incompreensão, no uso de não especialistas. Com exceção ao vocabulário de especialização

que é ambivalente, essas mudanças parecem todas levar a uma simplificação e a

informalidade.

No português do Brasil, o uso de siglas também aumentou significativamente nos

últimos anos. Embora nossa pesquisa não trabalhe diretamente com esse tipo de tendência

discursiva, nos deparamos com esse fenômeno nos enunciados que tomamos como corpus.

Constantemente, o jornal A Folha de S. Paulo apresenta em suas manchetes enunciados como:

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CPI recebe relação de José Carlos; PC Farias é preso na Tailândia; Israel e OLP assinam

acordo de paz; PM matou 2 reféns, são inúmeros os exemplos que poderíamos citar, contudo

acreditamos que os expostos elucidam essa questão.

Ressaltamos, juntamente com Gadet (2005), que a difusão e a diversificação de estilos

informais não significam que os enunciados formais estão desaparecendo, mas que há uma

extensão dos estilos simples e ordinários da vida privada ao lugar público. Essa tendência

pode ser vista, não só em enunciados constitutivos de manchetes jornalistas, mas também em

programas de televisão ao estilo do Big Brother Brasil. O discurso pode constituir, desse

modo, um potente instrumento de controle da informação e das relações sociais. Esse controle

pode ser formal, transferência de direitos a uma autoridade, ou de facto. A dominação pode

inscrever-se em um contínuo entre aberto e fechado, formal e informal, tendo em conta as

contradições entre os detentores de um poder promulgado pelo discurso e aqueles que aspiram

a uma democratização. Nesse novo patamar, o discurso torna-se menos brutal, as assimetrias e

os mecanismos de controle tornam-se, também, mais sutis e mais complexos, mas nem por

isso menos eficazes.

Gadet (2005) explicita que, ao contrário da democratização, lugar de possíveis

conflitos, e, portanto, de possíveis jogos discursivos, existe também uma tendência a

tecnologização dos discursos que reflete as relações entre poder e poder da língua e do

discurso. Fairclough (1992:215), citado por Gadet, define a tecnologização “como uma

tendência a um aumento do controle sobre os aspectos cada vez mais numerosos da vida das

pessoas”, ou seja, uma dominação dos modos de vida pelos sistemas do estado e da economia.

Segundo o autor, a tecnologização é realizada por meio do domínio de técnicas discursivas

apresentadas como transcontextuais, das quais as mais típicas vêm da entrevista, do ensino e

da publicidade.

Essas técnicas põem em cena a simetria e a informalidade, subordinam a prática

discursiva a metas estratégicas e instrumentais, e repousam, de fato, sobre uma concepção

normativa da língua, como conjunto determinado de práticas, com uma tendência à

colonização pelos organismos, de indivíduos. Assim, as técnicas discursivas tornam-se o

affaire de especialistas, aos quais é delegado o gerenciamento técnico dos discursos. Elas

podem ser adquiridas e transmitidas por meio do trabalho sobre a construção das frases, a

entonação, o vocabulário, os gestos, a postura corporal, e, portanto, incidem tanto no dizer

quanto na maneira de dizer. O treinamento das técnicas da fala pública é elemento essencial

de todas as formações, e oculta-se geralmente a possível instrumentalização, isto é, a

manipulação.

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Uma terceira tendência discursiva surge com a mercadologização. Fairclough,

(1992:207) a define como “o processo por meio do qual os domínios sociais e as instituições

cujo objetivo não é a produção de mercadorias vêm sendo organizados e conceitualizados em

termos de produção, distribuição e consumo de bens”. Segundo Gadet (2005), podemos ver

essa mercadologização na onipresença, mesmo em discursos que não estão ligados

propriamente à economia, de termos como indústrias, clientes, consumidores..., a autora

acrescenta que o uso desses termos produzem uma vulgata de mundo no qual as dinâmicas

essenciais são econômicas.

No discurso mercadológico a conversação também é simulada dentro da simetria e da

informalidade, como aquilo que Fairclough chama de “personificação sintética”. Boltanski e

Chiapello (1999), analisando o universo econômico, colocam essas modificações das formas

de controle em relação com as transformações na administração das organizações. Ao tomar

como análises discursos como esses, Gadet argumenta:

a democratização poderia ser apenas uma facilidade que recobre fenômenos de fato diferentes. Além disso, a enumeração de tendências não consegue dar conta do dinamismo e das interações. Ela mascara a complexidade dos discursos, sua heterogeneidade, suas contradições. (GADET, 2005:59)

As tendências podem revestir valores diferentes de acordo com as articulações nas

quais elas entrem. Elas são assim, abertas a investimentos diversificados e não se impõem de

maneira unívoca e consensual. Nesse sentido, salienta Gadet, (2005: 59) “aparentes

contradições emergem: a democratização, devido ao enfraquecimento do controle social,

parece intervir em benefício dos atores, enquanto a mercadologização e a tecnologização

fortalecem o controle”. Contudo, convém destacar que as relações entre tendências é muito

mais complexa. A mercadologização necessita da democratização, o que vem modificar as

relações tradicionais entre detentores da autoridade e aqueles que lhes são subalternos. A

convergência entre democratização e mercadologização produz características partilhadas, na

direção de uma identidade autônoma e auto-determinada, no interior da qual o sujeito

constituído como consumidor ou como cliente será o mestre de suas escolhas. Para Gadet,

o impacto dessas tendências sobre as ordens locais de discurso é variável: certas ordens são mais determinadas do que outras, causando com efeito uma relativa fragmentação das normas discursivas, que se traduz em uma maior heterogeneidade para uma mesma atividade discursiva, e, portanto, uma maior amplitude para a iniciativa ou a negociação interpessoal. (GADET, 2005:59)

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A lingüista francesa observa ainda que quando as ordens locais de discurso são

estáveis e autônomas, elas parecem reguladas de maneira interna por mecanismos explícitos

ou pressões implícitas, diferentemente do que ocorre quando há fragmentação, relaxamento

das regulações das práticas discursivas, que a tecnologização tenta, ao contrário reforçar.

Dessa forma, a democratização é, de acordo com Gadet, o ambivalente relaxamento das

normas ou tecnologias estratégicas, o que não é sempre definitivo, uma vez que a

democratização aparece como uma estratégia discursiva arriscada, que pode ser tomada ao pé

da letra e permitir deslocamentos, resistências, compromissos. Assim, podem surgir discursos

mistos ou híbridos, contribuindo para tornar mais complexa a paisagem discursiva atual.

Embora Gadet (2005) focalize essas tendências a partir de práticas discursivas

mercadológicas e também democráticas, ela pondera que tais tendências não surgiram

abruptamente e não são especificas da modernidade e da globalização. Elas se inscrevem,

segundo a autora, em uma longa história da fala e da eloqüência ocidental, que poderia ser

estudada segundo, pelo menos, de duas direções. A primeira concerne à gestão do corpo e da

voz e a segunda concerne ao processo da produção do sujeito, estudada por Elias (1991) com

a noção de auto-controle. Entretanto, a autora ressalta que, se nos detivermos nessas

tendências discursivas de longa duração e as encararmos apenas como pano de fundo, será

difícil compreender os funcionamentos lingüísticos que estamos observando. Por isso, a

autora interessa-se pela forma como as tendências discursivas se manifestam em

funcionamentos lingüísticos precisos.

Em suas análises, Gadet parte de um ponto de vista ditado mais pelas propriedades de

categorias lingüísticas do que por seu funcionamento na organização discursiva, isto é, ela

parte de uma perspectiva lingüística a fim de abordar seu uso social e discursivo. Esse

procedimento de análise permite a autora verificar a maneira por meio da qual o sentido pode

ser forjado por certas opções de gramática ou de estilo, subestimando deliberadamente os

fenômenos de entonação, a fim de focalizar aquilo que é partilhado entre o oral e o escrito, o

público e o privado, institucional e ordinário.

Gadet (2005) observa ainda que os fenômenos em análise podem ser generalizados

para outras línguas indo-europérias num plano relativamente global de organização

discursiva: sucessivamente, a construção de categorias discursivas, sua textualização e o

interdiscurso. Para a autora, o modo de apresentação dos atores, das ações e dos

acontecimentos passam pelas denominações: eufemismos, reformulações, denominações

múltiplas, recurso a um termo “politicamente correto” etc,. Em outros termos,

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as figuras mais complexas passam por certos fenômenos de sintaxe. Assim, a passiva permite modificar o equilíbrio entre as ações realizadas pelo sujeito e pelo objeto, em beneficio de uma marginalização do agente situado no final da seqüência e, eventualmente, deslocado por apagamento total, depois por uma nominalização (nota-se também, a diferença, com a nominalização, entre a apresentação por um verbo passivo em (8c), por um reflexivo(8d), ou por há em (8e): “(8) A cada 20 minutos, um homem viola uma mulher” “(8a) A cada 20 minutos, uma mulher é violada por um homem” (8b) A cada 20 minutos, uma mulher é violada “(8c)A cada 20 minutos, uma violação é perpetrada” “(8c) A cada 20 minutos, perpetra-se uma violação” “(8d) A cada 20 minutos, há uma violação” (GADET, 2005:62)

De acordo com a autora, é sob a forma da nominalização que se torna possível a

disseminação discursiva retomada em manchete de jornal ou por integração em uma

seqüência mais longa. Para Gadet, esse fenômeno executa o mesmo serviço discursivo que a

passiva, com a vantagem suplementar de permitir a constituição de um elemento pré-asserido,

ou seja, de um elemento já dito por alguém, em algum lugar e independentemente, como em:

8c em que o elemento “uma violação” é construído como uma evidência fora de discussão,

assim em 8c, enquanto é possível discutir sobre as causas da violação será irrelevante colocar

em dúvida a existência de uma violação. Um mesmo efeito de apagamento do sujeito em um

processo, assevera a autora, pode ser obtido também por verbos intransitivos, produzindo a

impressão de que os acontecimentos ocorrem sem causa. Quanto a questão da nominalização

a autora argumenta ainda que:

devido à capacidade de se integrarem em frases complexas, as nominalizações abrem diversas possibilidades de construção sintática em seqüências complexas que encontramos naquilo que os autores que trabalham com a estrutura informacional denominaram empacotamento informacional, geralmente concebida como típica da escrita. As nominalizações desempenham, assim, um papel crucial na construção da coesão discursiva constituindo uma certa modalidade de apresentação da informação, dita integração (por oposição à ‘fragmentação’, dada como típica do oral, mas ligada à expressão verbal): empacotamento de várias informações em uma única unidade discursiva, (...). (GADET, 2005: 63)

As nominalizações constituem, assim, um elemento de densidade lexical, podendo

tanto aparecer em enunciados curtos, como nas manchetes de jornal, quanto em enunciados

mais complexos, comportando em si várias nominalizações. Para ilustrar essa questão Gadet

apresenta o exemplo: “A forte mineralização da paisagem parisiense tem como contrapartida

a necessidade de proceder a uma re-elaboração da concepção de espaço”.

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Conforme já observamos, esse fenômeno discursivo produz, entre outros sentidos, a

impressão de que as ações praticadas pelos sujeitos acontecem naturalmente, sem que alguém

as tivesse praticado. Poderíamos nos perguntar: Que sujeito é esse das formas nominalizadas

que se constrói, assim tão forte, sem o outro?

Para responder a esta pergunta nos referimos a Sériot (1986), que argumenta contra a

abordagem da “transparência da linguagem”, dizendo que há por trás uma ontologia ingênua

sobre a relação linguagem e realidade. A linguagem tem uma espessura, ela é necessariamente

densa e ambígua. E a nominalização é uma construção gramatical que bloqueia esse espaço

para averiguação da relação linguagem e mundo, feita pelos interlocutores, e oferece-se a

língua como mundo. Enquanto qualquer enunciado tem um pré-construído não assertado a ser

confirmado em várias possíveis direções, quer dizer, no pré-construído tem-se sempre um

ponto de partida em relação ao mundo que vai ser mantido ou mudado, as nominalizações

desligam-se do mundo e propõem-se uma orientação em direção a uma possibilidade de

“existência” .

Podemos dizer que, tanto para Sériot (1986) quanto para Gadet (2005), o enunciado

nominalizado apresenta-se como o pré-construído que não foi assumido pelo enunciador. Tal

enunciado é um objeto do mundo, “já lá”, preexistente ao discurso que serve para preencher

uma proposição em que todas as condições de produção foram apagadas. As nominalizações

não são construídas nem pelo discurso nem dentro do discurso, estão no real, como um efeito

de evidência de que o enunciador se apropria para preencher um lugar da única léxis que ele

assume a responsabilidade, e poder, assim, fundamentar a sua responsabilidade sobre alguma

coisa apresentada como incontestável.

Enfim, pondera Gadet, um mesmo efeito de sentido, pode ser obtido ainda nos casos

em que a posição do sujeito é ocupada por nomes inanimados, ou seja, processo sem sujeito

humano em posição de sujeito discursivo, como quando, nos discursos neoliberais, as

posições sujeito são freqüentemente ocupadas por nomes como em: o mercado impõe..., as

novas tecnologias induzem..., novas oportunidades se abrem...

Portanto, ao estudar as atitudes dos enunciadores, sobretudo quando estes recorrem a

nominalizações ou, ainda, a sujeitos inanimados, devemos considerar uma forma não

canônica de se trabalhar com a citação. Dizendo de outro modo, devemos recorrer à noção de

pré-construído e, conseqüentemente, de interdiscurso, conceitos esses indispensáveis à nossa

proposta de análise. Isto porque

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a noção de interdiscurso remete a um tecido, a uma circulação de discursos, que se respondem uns aos outros ou fazem eco, se retomam, se inter-citam. Aqui, mais uma vez, eles concernem tanto a termos lexicais quanto a fenômenos de funcionamento sintático complexo. No primeiro caso, as escolhas adverbiais como justamente, indubitavelmente ou talvez, verdadeiramente... ou verbos de atitude proposicional (eu penso que; eu estou certo que; parece-me que...) Mas também os tempos, como uma formulação no presente dando um estatuto atemporal a uma proposição. No segundo caso, encontram-se a incorporação e a representação das vozes dos outros. Se todo discurso é heteroglóssico, deixa ouvir várias vozes, ele é construído pela intertextualidade, refere a discursos realizados anteriormente, ou supostamente realizados, ou que são tidos como realizados (...). (GADET, 2005:64)

Gadet está afirmando que o trabalho efetuado por uma categoria discursiva não é

jamais unívoco e previsível, e é justamente a discursivização, e em certos casos o

interdiscurso, que o investe de sentido. Ao pensarmos dessa forma, reencontramos Pêcheux

(2002), para quem a linguagem é profundamente opaca, sua materialidade léxico-sintática

engendra os enunciados em uma rede de relações associativas implícitas, paráfrases,

implicações, comentários, alusões, isto é, em uma série heterogênea de enunciados,

funcionando sob diferentes registros discursivos, e com uma estabilidade lógica variável. Sob

esse enfoque, quando dizemos um enunciado qualquer, de maneira diferente, não dizemos a

mesma coisa. Isso nos leva, assim como Gadet, a pensar na necessidade de estudar as

categorias discursivas não somente dentro de um funcionamento lingüístico, mas de maneira

situada em uma sociedade, isto é, discursivamente.

Consoante a nossa proposta de estudo tem-se o projeto de pesquisa em

desenvolvimento na Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT, pensado por

Roberto Leiser Baronas, o projeto busca evidenciar que o português brasileiro, como qualquer

outra língua, apresenta índices de mudanças tanto pragmáticas quanto discursivas. Baronas,

com base em Gadet, acredita que esses índices são o resultado do imbricamento entre a

globalização, as inovações tecnológicas, o neoliberalismo e a língua. O autor observa que

embora essas tendências se realizem na língua, não se restringem a ela, ou seja, são mudanças

lingüísticas que afetam não só a língua, mas também aquilo que pode e deve ser dito, isto é a

ordem dos discursos. Em outros termos, são procedimentos de ancoragem do discurso que se

reescrevem na materialidade lingüística, apresentando os atores, as ações e os acontecimentos

enunciados de três maneiras: eufemização dos acontecimentos; silenciamento/transformação

dos atores e mercantilização das ações.

A primeira tendência a qual Baronas (2006) denomina de eufemização dos

acontecimentos, pode ser vista, segundo o autor, tanto na era FHC fato que o articulista da

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Folha de S. Paulo, José Simão batizou de “tucanês”, por exemplo “modernização do serviço

público” que significou na prática a demissão de milhares de servidores, quanto recentemente

na boca do então tesoureiro do PT, o senhor Delúbio Soares. Este quando indagado por um

repórter da Rede Globo de Televisão sobre a existência de caixa dois no PT nas eleições de

2002, respondeu eufemisticamente: “Não, nós tivemos dinheiro não-contabilizado nas últimas

eleições municipais”. O autor cita ainda outros exemplos: recentemente houve uma discussão

sobre erradicação do trabalho escravo em Mato Grosso, eufemisticamente essa discussão

passou a se chamar “irregularidades no trabalho do campo”. A propina exigida pelo ex-

presidente da Câmara dos deputados, Severino Cavalcante, de um dono de restaurante em

Brasília se transformou em “mensalinho”. Os concursos vestibulares das universidades

privadas transformaram-se em “processos seletivos por agendamento”. Os carros usados nas

revendas e concessionárias transformaram-se em semi-novos. Os exemplos podem ser

multiplicados, contudo pensamos que os arrolados sejam suficientes para mostrar que cada

vez mais estamos nos deslocando de um falar franco para um falar mais suavizado.

O fenômeno discursivo da eufemização, ao qual Baronas (2006) se refere, também é

abordado por Possenti , em seu artigo Eufemismos e tabus, um esboço, publicado no site

Primapágina, em abril de 2006. Segundo Possenti, esse fenômeno tem várias facetas: das

que se tornaram mais ou menos sólidas, a mais antiga talvez seja a luta ou a moda da

linguagem politicamente correta. Já nos referimos a essa nova forma discursiva, portanto não

a retomamos, nesse momento, reforçamos apenas a idéia de que nesse novo discurso não se

pode mais falar de coisas e pessoas usando os nomes tradicionais. Conforme já evidenciamos,

em seu lugar entram substitutos “limpos”: em vez de negro, afrodescendente; em vez de

prostituta, prestadora de serviços sexuais; velhos não são mais velhos, mas pertencentes ao

grupo da terceira idade e assim por diante.

Possenti (2006) apresenta o fato de que a manifestação dessa nova forma discursiva

nos meios de comunicação tem provocado algumas polêmicas. A revista Época, em 03 de

abril de 2006, na coluna de Max Gehringer e o jornal O Estado de São Paulo, editado no dia

dois de abril de 2006, publicaram textos criticando esse tipo de linguagem. Gehringer

explicava a um leitor que, em certas empresas, empregam-se muitas expressões que, na

verdade, não significam nada, como por exemplo expressões do tipo: vivenciar parâmetros

holísticos, fatores inerciais de natureza não técnica, fazer um brainstorming, extrapolar os

dados, para produzir efeitos de competência e de modernidade. A matéria do Estadão atribuía

ao PT a prática de não dar nomes aos bois, inventando derivativos verbais: “recursos não

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contabilizados” por “caixa dois”, “desvios” por “erros” ou “ilegalidades”, “afastamento

voluntário” por “demissão”.

Esses são alguns dos dados presentes na língua, mas, de acordo com Possenti (2006), é

preciso acrescentar outros e tentar encontrar um nó que amarre coisas aparentemente diversas.

O autor observa, por exemplo, que o linguajar atribuído ao PT, de fato, não é característico

desse partido, e sim dos tucanos. A melhor prova disso, salienta Possenti, são os exemplos de

tucanês que rolam na Internet, como se fossem humor, sem contar que foi com eles que entrou

em nosso vocabulário a palavra “empregabilidade”. O autor pondera que talvez seja esse o

fenômeno discursivo mais relevante e cruel do nosso tempo. Para Possenti, embora esse

fenômeno se manifeste com bastante freqüência na voz dos petistas e, principalmente, dos

tucanos, é fruto de um discurso maior, advindo da globalização e de sua associação às

políticas neoliberais. A ideologia constitutiva dessas práticas político-econômicas está

baseada nas leis do mercado, por isso, também produz a moderna acepção do “excluído”

A ideologia básica dessa política consiste em mascarar a realidade, ou em falar dela de

uma forma que pareça menos grave, mais intelectualizado, o que, de fato, quer dizer

disfarçada. Na visão de Possenti (2006), esse fenômeno não consiste apenas em evitar alguns

termos que os falantes julgam inapropriados, mas e, sobretudo, consiste em evitar a realidade.

A esse respeito Corrêa (2000) observa que “a construção dessa hegemonia passa pela

mudança do senso comum especialmente no que se refere à transformação radical dos

significados, categorias, conceitos e discursos que conferem um determinado sentido à

realidade”. Acreditamos que essa transformação do campo semântico modifica

substancialmente tanto as possibilidades de leitura e compreensão da realidade, como também

de intervenção na mesma. Nesse sentido, a utilização de eufemismos ou de expressões mais

“limpas” que acreditamos ser uma tendência da política global torna-se um recurso poderoso

dos sujeitos discursivos que inseridos, nessa prática, tendem a tornar seus discursos mais

suaves. Por um lado, salienta Possenti, isso parece mais fino, mais civilizado. Por outro, trata-

se de não encarar o mundo como ele é.

Uma outra forma de mascarar a realidade e, sobretudo, de tornar-se isento de qualquer

responsabilidade que seus discursos podem causar, pode ser encontrada na segunda tendência

discursiva, silenciamento/transformação dos atores. De acordo com Baronas, essa tendência

pode ser vista, cotidianamente, nos mais diversos suportes da mídia nacional. Recentemente

um jornal de grade circulação nacional trazia como manchete de capa: “A seca do Nordeste

aumentou o índice de mortalidade infantil no Brasil”. Outro exemplo, desta vez de um jornal

do Estado do Mato Grosso; “Turismo leva meninas de Santo Antônio do Leverger a se

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prostituírem”. Numa propaganda sobre violência contra a mulher exibida nos mais diversos

canais abertos de televisão apareceu o seguinte enunciado: “A cada quatro minutos uma

mulher é espancada no Brasil”. Esses três exemplos se constituem no que Baronas chama de

silenciamento/transformações dos atores. “É como se a seca do Nordeste ou turismo e, não a

falta de políticas públicas, fossem os responsáveis pelo aumento da mortalidade infantil e pela

prostituição de meninas. No terceiro exemplo, o enunciado esconde quem é que espanca as

mulheres”. Enunciados como esses reforçam o posicionamento de Gadet, segundo o qual a

globalização influencia não só as mudanças político-econômicas, mas também as formas do

dizer.

A terceira e última tendência, denominada mercantilização das ações tal qual as

tendências enunciadas, também pode ser vista cotidianamente nos mais diversos suportes

midiáticos nacionais. Baronas observa que antes de a globalização deixar suas marcas

significativas também na língua, ouvíamos que havia falta de empregos. Atualmente, é cada

vez mais recorrente o discurso que, como afirma Possenti (2004), “não se trata de haver ou

não postos de trabalho, mas de os pretendentes estarem ou não qualificados para ocupá-los”.

É também cada vez mais forte, mesmo em instituições estatais e nos mais variados domínios

sociais, o uso de termos que originariamente estavam estritamente ligados à economia.Termos

como:“cliente”,“investimento”,“racionalização”,“otimização”,“empreendedorismo”, “gestão”.

podem ser vistos tanto na propaganda de um curso de especialização em educação quanto

numa chamada sobre o que as polícias têm feito para coibir a violência nas grandes cidades.

Observamos que as três formas de apresentação dos atores, expostas por Baronas

(2006), correspondem a novas tendências discursivas que, de acordo com Gadet (2005),

tornam-se mais evidentes a partir da tecnologização e mercadologização, práticas político-

sociais que se intensificaram com a globalização. Justamente por ser um fenômeno que se

manifesta no mundo globalizado, não se restringe somente ao francês, isto é, pode ser visto

em diferentes línguas. A presente pesquisa pretende mostrar, por exemplo, que, na língua

portuguesa do Brasil, essas tendências se tornaram mais evidentes a partir do início dos anos

noventa, com a entrada da política neoliberal, movimento político-econômico que, conforme

já evidenciamos, passou a organizar as instituições e os domínios sociais com base nas

mesmas leis de mercado.

Reiteramos que os discursos são sensíveis às leis mercadológicas e tecnológicas da

era globalizada. Isso implica dizer que o uso da língua é reconfigurado a partir de efeitos

culturais e ideológicos que conduzem de certa forma às novas posturas discursivas. Essas

novas posturas ancoram-se na língua e produzem sentidos característicos às práticas

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discursivas em que estão inseridas. Para aclarar essa questão, expomos, a seguir, a análise

do corpus.

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80

IV ANALÍTICO TEÓRICO

4.1 Introduzindo a análise

Não pretendemos questionar, aqui, as definições de sujeito apresentadas no segundo

capítulo desta dissertação, tampouco almejamos estabelecer uma nova definição, ou, ainda,

dizer se os enunciados que tomamos como análise, a saber, as seqüências discursivas que

compõem as manchetes das primeiras páginas do jornal A Folha de S. Paulo desde 1970 até

2006 são gramaticais ou agramaticais apenas por sua referência a uma norma universal

inscrita na língua. Nosso objetivo é salientar a presença de algumas tendências discursivas na

língua e interpretar os diferentes efeitos de sentido que elas podem produzir.

Em outros termos, a nossa pesquisa busca questionar a língua enquanto discurso para

observar os diferentes efeitos de sentido produzidos por meio de fenômenos lingüístico-

discursivos cuja função principal é des-responsabilizar o sujeito do discurso de toda e

qualquer ação que o ele venha a enunciar. Acreditamos que esses fenômenos se intensificaram

na língua a partir dos anos de 1990, época em que a política neoliberal se consolidou no

Brasil. Com o neoliberalismo surgiram novos discursos que incidiram nos planos econômico,

político, social, cultural e, por extensão, na língua, modificando tanto o dizer quanto as formas

do dizer.

Nesse processo, recorremos aos estudos de Françoise Gadet (2005) que nos orienta a

seguir por um caminho guiado mais pelas propriedades de categorias lingüísticas do que por

seu funcionamento na organização discursiva. Conforme já salientamos, na seção anterior,

esse posicionamento nos permite abordar o uso social e discursivo da língua e,

conseqüentemente, ressaltar a maneira por meio da qual o sentido pode ser forjado por certas

opções de gramática ou de estilo.

Assim, selecionamos um conjunto de enunciados retirados do livro Folha de S. Paulo

Primeira Página: Uma viagem pela história do Brasil e do mundo nas 223 mais importantes

capas da Folha desde 1921 e também do jornal A Folha de S. Paulo On-line. Ao todo, serão

analisados 400 enunciados. Cada seqüência discursiva será seguida, entre parêntese, pelo dia,

mês e ano de publicação.

Sobre a delimitação do corpus, acreditamos ser importante citar Orlandi (1989:32) que

observa: “a análise de discurso não visa à exaustividade horizontal, isto é, em extensão, nem à

completude, ou à exaustividade em relação ao objeto empírico, material”. Dito de outro modo,

não é a exaustividade do corpus, mas os objetivos e a temática que ele envolve que

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constituem a essência de uma pesquisa. Por essa razão, delimitamos arbitrariamente o

número de enunciados. Cremos que esses enunciados são suficientes para oferecer uma

amostra significativa de que a língua vêm sendo influenciada por fenômenos transnacionais

denominados globalização e seu discurso de base, o discurso neoliberal.

Ressaltamos que o campo discursivo de referência24 da presente investigação se dá

no enquadramento cronológico que vai de 1990 a até os dias atuais. Os enunciados

selecionados que configuram no jornal desde 1970 até 1990, nos serviram de referência para

a constatação de nossa hipótese.

Por campo discursivo, Maingueneau (2005: 35) entende “um conjunto de formações

discursivas que se encontram em concorrência25, delimitam-se reciprocamente em uma região

determinada do universo discursivo26”. Ressaltamos, juntamente com Maingueneau, que a

delimitação de campo discursivo não tem nada de evidente. É preciso ir além, é preciso fazer

escolhas, enunciar hipóteses: por exemplo, para nosso corpus, isolamos um campo discursivo

marcado por um sistema sócio-político mercantilista. Acreditamos que, no interior desse

campo, é que se constitui o discurso que fundamenta o enunciados que escolhemos para

análise e hipotetizamos que essa constituição pode deixar-se descrever em termos de

operações regulares sobre formações discursivas já existentes. O que, na visão de

Maingueneau (2005:36) “não significa, entretanto, que um discurso se constitua da mesma

forma com todos os discursos desse campo; e isso em razão de sua evidente heterogeneidade”.

Por conseguinte, isolamos, no campo discursivo, espaços discursivos, isto é,

subconjuntos de formações discursivas que julgamos relevante para o nosso propósito. Assim,

ao fazermos a análise do nosso corpus, procuramos por em evidência as formações

discursivas nas quais ele se insere: política, economia, educação, saúde etc,. Adotamos essa

postura, porque, juntamente com Pêcheux (1997:73), acreditamos que uma seqüência

lingüística “deve ser referida ao mecanismo discursivo específico que a tornou possível e

necessária em um contexto científico dado”.

24 O termo campo discursivo foi utilizado pela primeira vez por M. Foucault. A análise do campo discursivo trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar.(FOUCAULT, 1969:31) 25 Concorrência deve ser entendida da maneira mais ampla: inclui tanto o confronto aberto quanto a aliança, a neutralidade aparente etc. (MAINGUENEAU, 2005:36) 26 Por universo discursivo Maingueneau entende um conjunto de formações discursivas de todos os tipos que interagem numa conjuntura dada. Este universo discursivo constitui necessariamente um conjunto finito, mesmo que não possa ser apreendido em sua globalidade. (IBIDEM, 35)

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Maingueneau (2005:38) observa que “reconhecer esse tipo de primado do

interdiscurso é incitar a construir um sistema no qual a definição da rede semântica que

circunscreve a especificidade de um discurso coincide com a definição das relações desse

discurso com seu Outro27”. O autor salienta ainda que esse “Outro” não deve ser pensado

como uma espécie de envelope do discurso, ele mesmo considerado como o envelope de

citações tomadas em seu fechamento.

No espaço discursivo, o Outro, não é nem um fragmento localizável, uma citação, nem uma entidade exterior; não é necessário que seja localizável por alguma ruptura visível da compacidade do discurso. Encontra-se na raiz de um Mesmo sempre já descentrado em relação a si próprio, que não é em momento algum passível de ser considerado sob a figura de uma plenitude autônoma. É o que faz sistematicamente falta a um discurso e lhe permite fechar-se em um todo. É aquela parte de sentido que foi necessário que o discurso sacrificasse para constituir sua identidade. (MAINGUENEAU, 2005:39)

Essa imbricação do “Mesmo” e do “Outro” retira da coerência semântica das

formações discursivas qualquer caráter de essência, caso em que sua inscrição na história

seria assessória, não é dela que a formação discursiva tira o principio de sua unidade, mas de

um conflito regrado. Ou seja, é na tensão, na disputa entre os discursos que a formação

discursiva constitui sua regularidade.

O primeiro movimento analítico de operacionalização do corpus inicia-se a partir da

delimitação do campo discursivo e conseqüentemente do espaço discursivo sobre o qual o

nosso corpus se constitui. O segundo passo, consiste na apresentação e análise desses

enunciados. Partimos de sua superfície lingüística, mostrando como o sujeito da ação tem se

manifestado na língua ao longo dos tempos. Ao fazer isso, verificamos como esses

enunciados foram construídos: voz ativa28/sujeito agente29; voz passiva30;/sujeito paciente31

verbo neutro32. Não enquadramos em nenhuma dessas designações as sentenças construídas

27 Entende-se que esse Outro, com maiúscula, não coincide com seu homônimo lacaniano. Empregamos esse termo porque não encontramos outro melhor. Podemos consolar-nos lembrando que nas ciências humanas não é um homônimo que vai fazer a grande diferença. (MAINGUENEAU, 2005:38). Para o autor, o Outro do espaço discursivo representa a intervenção de um conjunto textual historicamente definível que se encontra no mesmo palco que o discurso. (MAINGUENEAU,2005:41). 28 O verbo de uma oração está na voz ativa quando a ação é evidentemente praticada pelo sujeito; este, em tal caso, é o agente da ação verbal. (ALMEIDA, 1955:208) 29 Adotamos, aqui, a definição de “agente” apresentada por Pontes (1986), segundo a qual para ser agente o sujeito tem que ser um ser humano ou um ser volitivo. 30 Voz passiva é,pois, a que expressa uma ação sofrida, recebida pelo sujeito; o sujeito nesse caso, é paciente ou recipiente da ação verbal. . (ALMEIDA, 1955:209) 31 O sujeito é paciente quando sofre, recebe, padece a ação verbal. (ALMEIDA, 1955:414) 32 Os verbos neutros são os mesmos verbos de ligação; chamam-se de ligação enquanto considerados quanto à predicação, chamam-se neutros enquanto considerados quanto à voz. (ALMEIDA, 1955:212)

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com verbo intransitivo33. Para justificar o nosso posicionamento, retomamos Gadet (2005)

que observa que construções como essas produzem a impressão de os acontecimentos

ocorrem sem causa. Separamos, ainda, em uma outra categoria, as sentenças em que há um

nome inanimado, não humano no lugar do sujeito agente da ação. A esse funcionamento

lingüístico denominamos de sujeito inanimado34. Por último, separamos as sentenças

produzidas sob o efeito da nominalização do sujeito. Já evidenciamos, no terceiro capítulo

desta dissertação, que, para Gadet (2005), a nominalização executa o mesmo tipo de serviço

discursivo que a passiva, com a vantagem suplementar de permitir a constituição de um

elemento pré-asserido.

Em nossas análises, procuramos constatar em que medida há uma migração do sujeito

tradicionalmente situado no início da sentença para um eventual deslocamento, apagamento e

substituição pela nominalização. Examinamos os mecanismos sintáticos e o funcionamento

enunciativo em questão, de-superficializando esses mecanismos e procurando pôr em

evidência suas matrizes de sentido. Somente após esta etapa, é que buscamos a de-

sintagmatização discursiva, com vistas a atingir o processo discursivo que lhe subjaz e, por

meio dele, a formação discursiva que afeta o sujeito do discurso. Pensamos que na base dos

discursos transcritos, nas manchetes de jornais, em que o sujeito da ação é escamoteado,

encontra-se um discurso que “foi pensado antes, independentemente, em outro lugar”, que lhe

dá sustentabilidade e, ao mesmo tempo, se sustenta enquanto discurso hegemônico. Assim, a

relação que se estabelece é uma relação de mão dupla: o discurso pré-asserido afeta a língua

ao mesmo tempo em que é afetado por ela.

Para trazer a tona o discurso que se materializa na língua, por meio de construções

sintáticas em que o sujeito encontra-se nominalizado, a nossa análise passa pelo crivo do

conceito de pré-construído. Ou, dizendo de outro modo, trabalhamos no limite entre a língua e

o discurso, procurando pôr em evidência “a construção anterior, exterior mas sempre

independente, em oposição ao que é construído pelo enunciado”. Com isso, nos propomos a

simular a reconstituição lingüística do enunciado-outro, por meio de operações lingüísticas de

transformação, que permitem trazer a tona o pré-construído que está subjacente na formulação

em análise.

33 Verbo intransitivo é o verbo de predicação completa é o que não exige nenhum complemento, ou seja, é o que tem sentido completo. (ALMEIDA, 1955:165) 34 Adotamos a terminologia de sujeito inanimado por acreditar que ela representa o efeito de sentido produzidos por nomes inanimados não humanos em posição de sujeito discursivo.(GADET, 2005: 63)

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4.2 Apresentando o corpus.

Passamos agora a apresentação do corpus da presente investigação. Trata-se, como já

dissemos, de 400 manchetes retiradas do jornal A Folha de S. Paulo desde 1970 até 2006.

Separamos esses enunciados por década e mostramos como eles foram construídos: voz ativa/

sujeito agente, voz passiva/sujeito paciente, verbo neutro/sujeito neutro, sujeito com verbo

intransitivo, sujeito inanimado e sujeito nominalizado. Tal apresentação almeja evidenciar

algumas tendências discursivas que se acentuaram na língua a partir década de 1990.

Para verificar a presença dessas tendências na língua, selecionamos para as

décadas de 1970, 1980 e 1990, 120 manchetes, já para os anos 2000, em virtude deste ainda

não ter transcorrido, apenas 80. As de 1970 foram assim produzidas:

a) Construção com a voz ativa: sujeito agente

1. Médici participa do entusiasmo do povo. (22/06/1970)

2. Eles voltam amanhã com a taça. (22/06/1970)

3. Torres quer levar a Bolívia ao Terceiro Mundo revolucionário. (10/10/1970)

4. Garcez renuncia à presidência da Arena; assume Laércio Corte. (08/12/1972)

5. Médici inaugura campus do Rio. (06/09/1972)

6. Temos mais um campeão do mundo. (11/09/1972)

7. Há temores e Polícia faz buscas. (11/09/1972)

8. Ferraz decide quando começa a Paulista. (11/09/1972)

9. Médici em SP está informado. (13/09/1973)

10. Perón obtém maioria absoluta. (24/09/1973)

11. Os deputados vão estudar falta de leite. (24/09/1973)

12. Banzer acusa infiltrados pelos choques. . (10/02/1974)

13. Nixon renunciou. (09/08/1974)

14. Ford assume às 13 horas. (09/08/1974)

15. Nas ruas o povo grita liberdade. (26/04/1974)

16. Turcos tomam Famagusta. (16/08/1975)

17. Consumidor saberá o que está comendo. (16/08/1975)

18. Passo anuncia que se demite de seu cargo. (16/08/1975)

19. Deputado quer plebiscito para a praça. (19/11/1974)

20. Gregos elegem governo conservador. (19/11/1974)

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21. Muito paulista foi à praia para morrer. (19/11/1974)

22. 155 mil pessoas inauguram o Metrô. (27/10/1975)

23. Testemunha do Passat: nunca vi esses dois. (27/10/1975)

24. Secundaristas perdem isenção de Cr$ 12 mil. (10/10/1976)

25. Supervisores pedagógicos obtêm liminar. (10/10/1976)

26. Bonifácio faz acusação ao empresariado. (10/10/1976)

27. Geisel anuncia, em pronunciamento à nação: congresso fechado; reformas políticas;

reformas do judiciário. (02/04/1977)

28. Simonsen evitará política nos EUA. (02/04/1977)

29. Governadores acreditam em nova reforma. (08/05/1977)

30. Professores do Estado pedem reajuste de 63%. (08/05/1977)

31. Bispos acusados relatam ao núncio os interrogatórios. (22/05/1977)

32. Às 21h50, a polícia dissolve manifestação de estudantes. (23/09/1977)

33. Egídio comenta sua sucessão e fornece nomes. (23/09/1977)

34. O ex-ministro dá sua versão do rompimento. (13/10/1977)

35. Polícia invade campus em Botucatu. (19/10/1977)

36. Exercito não deve interferir. (19/10/1977)

37. Brossard desconfia do diálogo. (05/04/1978)

38. Geisel cuidará pessoalmente do caso do café. (05/04/1978)

39. Setúbal terá de explicar a nova São Luís. (05/04/1978)

40. Moro pede ao partido que o salve da morte. (05/04/1978)

41. Velozo rebate Delfim com o próprio Delfim. (17/10/1978)

42. Os delegados de polícia preparam a greve branca. (17/06/1978)

43. Metalúrgicos vão à greve 2ª feira. (28/10/1978)

44. Sadat divide com Béguin o Nobel da Paz. (28/10/1978)

45. Geisel inaugura via Norte hoje, com Figueiredo. (28/10/1978)

46. Fanáticos assassinam deputado. (20/09/1978)

47. Khomeini anuncia a República do Irã. (02/02/1979)

48. Bando internacional ia dar golpe de US$ 6 milhões. (02/02/1979)

49. Maluf assume sem o MDB. (16/03/1979)

50. Metalúrgicos decidem continuar em greve. (16/03/1979)

51. Irmã Maurina aponta Fleuri como torturador. (16/03/1979)

52. Cals propõe gasolina a Cr$ 14,80. (22/08/1979)

53. Havana pede o “know-how” para o álcool. (22/08/1979)

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54. Videla repele ingerência de Washington. (22/08/1979)

55. Brizola requer segundo hábeas junto ao Supremo. (22/08/1979)

56. Em decisão pessoal, executada em 7 horas, Geisel substitui o ministro do Exército.

(13/10/1977)

b) Construção com a voz passiva analítica: sujeito paciente

1. Lamarca morto na Bahia. (19/09/1971)

2. Túnel Rebouças fica fechado amanhã e sexta. . (24/01/1973)

3. Médici em SP está informado. (13/09/1973)

4. MDB rejeita a indicação de Zancaner. (24/03/1975)

5. Mao ficará exposto durante 7 dias. (10/10/1976)

6. Aberta ontem no Anhembi a Brasil-Export. . (06/09/1972)

7. Todos os reféns estão mortos. (06/09/1972)

8. Anunciado o acordo de paz no Vietnã. (24/01/1973)

9. Caetano preso, Spinola no Poder. (26/04/1974)

10. Vetada troca de 12 guarás por um urso. (27/10/1975)

11. O voto de legenda vai ser extinto. (24/03/1975)

12. Anulada só uma questão de Português. (24/03/1975)

13. Ordenada a demolição da Galeria. (24/03/1975)

14. As nacionais convidadas para o risco. (24/08/1976)

15. Garantido veto à autonomia das estâncias. (24/08/1976)

16. Empresas de ônibus podem ser cassadas. (24/08/1976)

17. JK sepultado em Brasília. (24/08/1976)

18. Contratos de risco deverão ser ampliados. (10/10/1976)

19. Macedo Soares interrogado STM. (10/10/1976)

20. Cortez Pereira e colaboradores são condenados. (10/10/1976)

21. O acordo Salt está ameçado adverte Vance. (02/04/1977)

22. Ferido o Chanceler argentino. (08/05/1977)

23. Sepultado Carlos Lacerda. (22/05/1977)

24. O divórcio está aprovado. (16/06/1977)

25. Presos 1.000 na PUC. (27/09/1977)

26. Frota exonerado; Bethlem assume. (13/10/1977)

27. Mortos os chefes do terror alemão. (19/10/1977)

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28. Fui torturado para confessar a chacina. (11/06/1978)

29. O metalúrgico foi sepultado em Divinópolis. (22/08/1979)

c) Construção com verbo neutro: sujeito neutro

1. Malraux: Bengala é uma das últimas causas nobres. (19/09/1971)

2. Os paulistas foram mal na 1 rodada. (11/09/1971)

3. Ford hoje com Hiroito, depois de chegada agitada35. (19/11/1974)

4. Modelo é eficaz mas o nível não. (08/05/1977)

5. Modelo é eficaz mas o nível não. (08/05/1977)

6. João Paulo 2 é polonês. (17/10/1978)

7. Projeto da anistia é intocável. (22/08/1979)

d) Sujeito com verbo intransitivo

1- Custo de vida subiu 2% em setembro, é o que informa a FGV. (10/10/1970)

2- Rapaz cai de mastro e morre. (11/09/1972)

3- Termina hoje o prazo para os devedores do BNH. (24/01/1973)

4- Faleceu o governador do Paraná. (12/06/1973)

5- Melhora o fluxo do trânsito na área do centro. (10/10/1976)

e) Verbo intransitivo seguido de “se”’, índice de indeterminação do sujeito

1. Luta-se no Chile; mil mortos

f) Construção com sujeito inanimado no início da sentença

1. O senado aprova e a Itália adota o divórcio. (10/10/1970)

2. O governo vai ativar a industria. (08/12/1970)

3. AL repudiará sobretaxa dos EUA. (19/09/1971)

4. FMI: reunião fracassou logo de saída. (24/09/1973)

5. MDB alcança um terço da Câmara e ainda avança. (19/11/1974)

35 Nesta sentença há a elipse do verbo estar . “Ford (está) hoje com Hiroito, depois de chegada agitada”

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6. CFE suspende autorização para escolar. (19/11/1974)

7. O café rendeu US$ 1 bilhão no trimestre. (19/11/1974)

8. O dólar passa para Cr$ 7,32 a partir de hoje. (19/11/1974)

9. CMTC passa a operar a linha Penha-Lapa. (10/10/1976)

10. BB explica as restrições ao crédito rural. (16/06/1977)

11. BC já adiantou US$ 100 mil à Caixa Federal. (05/04/1978)

12. O dólar passa a Cr$ 13,365 a partir de segunda-feira. (02/04/1977)

13. Governo não estimulará novos partidos. (08/05/1977)

14. MDB tem mais votos e perde para Arena. (20/09/1978)

15. MDB jura mudar a Constituição. (02/02/1979)

16. Ipesp lança novo plano da casa própria. (28/10/1978)

17. Ipesp lança novo plano da casa própria. (28/10/1978)

18. Gripe leva Geisel a recolher-se. (23/09/1977)

19. Teste definirá candidatura de Setúbal. (19/10/1977)

20. Inflação vai regredir, diz Velozo. (11/06/1978)

21. URSS inicia processo dos dissidentes. (11/06/1978)

22. Siderúrgica terá Cr$ 120 bilhões para expansão. (22/08/1979)

A exposição acima evidencia que os enunciados veiculados na década de 1970 foram

produzidos, em sua maioria, na voz ativa, isto é, o sujeito da oração é agente da ação verbal.

Das 120 manchetes, 56 (cinqüenta e seis) foram produzidas com esse recurso; 29 (vinte e

nove) na voz passiva; , 07 (sete) com verbos de ligação, indicando a neutralidade do sujeito;

05 (cinco) com verbo intransitivo; e, 1 (um) com verbo intransitivo seguido do pronome “se”,

indeterminando o sujeito. Ressaltamos também a presença considerável de enunciados com

sujeito inanimado 22 (vinte e dois). Não detectamos, aqui, nenhum enunciado produzido sob

o efeito da nominalização do sujeito Esses dados nos permitem afirmar que o

escamoteamento do sujeito, na década de 1970, pode ser observado, nas manchetes do jornal,

por meio da voz passiva, preponderância maior, por meio de construções sintáticas com

verbos intransitivos e sob o efeito do sujeito inanimado. Representamos no gráfico a seguir os

dados em análise:

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Dados 1970

47%

24%

6%

4%

1%

18%

0%

5%

Sujeito agente

Sujeito paciente

Sujeito neutro

Sujeito com verbo

intransitivo

Sujeito indeterminado

Sujeito inanimado

Sujeito nominalizado

O gráfico acima evidencia que na década de 1970 há a preponderância de enunciados

construídos na voz ativa, com o sujeito agente. Conforme já evidenciamos, adotamos a

definição de agente apresentada por Pontes (1986), segundo a qual para ser agente o sujeito

deve ser um ser humano ou um ser volitivo, portanto, capaz de praticar a ação representada no

enunciado. Convém destacar que, embora a voz ativa se sobressaia em relação as demais

formas sintáticas, o número de enunciados produzidos na voz passiva, bem como, as

construções com o sujeito inanimado é consideravelmente significativo. Verificaremos agora

como foram produzidas as manchetes veiculadas na década de 1980:

a) Construção com a voz ativa: sujeito agente

1. Carter quase faz a guerra. (20/04/1980)

2. Papa reclama justiça para o trabalhador. (04/06/1980)

3. Passarinho já acha possível a Constituinte. (04/06/1980)

4. Usuários temem perigo de fogo do óleo diesel. (28/08/1980)

5. Samuel Wainer morre aos 68 em São Paulo. (03/09/1980)

6. Lideranças do PDS antecipam a votação do adiamento das eleições municipais deste

ano. (03/09/1980)

7. Os metalúrgicos pedem aumento a cada 3 meses. (03/09/1980)

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8. O novo diretor da Detenção vai reprimir drogas. (03/09/1980)

9. Servidor federal tem 82% de aumento. (10/12/1980)

10. Polícia detém o Nobel da Paz por duas horas. (20/02/1981)

11. Jornalistas do continente dão apoio a Editor. (20/02/1981)

12. Lula vai amanhã a julgamento. (24/02/1981)

13. Brejenev propõe a Reagan um debate a dois. (24/02/1981)

14. Na Polônia, o Solidariedade cancela greve. (31/03/1981)

15. Metalúrgicos e o Grupo 14 fazem acordo. (31/03/1981)

16. Cantor mata a sua ex-mulher e fere músico. (31/03/1981)

17. Seis detentos escapam após render guarda. (02/05/1981)

18. Marinho aponta parcialidade e ameaça juiz. (02/05/1981)

19. Veronesi, que acusou o HC vai à justiça. (14/05/1981)

20. Ackel responde ao desencanto das oposições. (14/05/1981)

21. Pires repele insultos de Bierrenbach. (07/10/1981)

22. Delfim exige mais estimulo aos consórcios. (07/10/1981)

23. Ingleses invadem Malvinas. (22/05/1982)

24. Marcha testa as oposições na Argentina. (16/12/1982)

25. Prefeitos vão a Montoro com suas propostas. (16/12/1982)

26. Walesa desafia o governo polonês. (16/12/1982)

27. Tancredo pede a Figueiredo ação conjunta. (06/04/1983)

28. O governador recebe comissão de manifestantes e promete criar 40 mil novos

empregos a curto prazo. (06/04/1983)

29. Andreazza vai tentar explicar o caso Delfin. (06/04/1983)

30. 300 mil nas ruas pelas diretas. (26/01/ 1984)

31. Eleitores do PDS querem diretas já. (26/02/1984)

32. Figueiredo envia emenda e apela por negociação.(17/04/1984)

33. Ulisses condena, exorta, adverte. (25/04/1984)

34. Borges participa hoje de debate na “Folha”. (13/08/1984)

35. Figueiredo quer união em torno de Maluf. (13/08/1984)

36. Multidão lincha dois assaltantes. (13/08/1984)

37. No fim dos jogos, corredor português vence a maratona. (13/08/1984)

38. Governadores podem levar Tancredo a Figueiredo como nome de conciliação.

(01/11/1984)

39. Milreu aliciava hospitais para fraudes, diz médico. (15/03/1985)

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40. Tancredo teve um tumor benigno; operado de novo36, estado é grave. (21/03/1985)

41. Os presos rebelam-se na Casa de Detenção. (21/03/1985)

42. Exército ocupa as principais ruas de La Paz. (21/03/1985)

43. Médicos tentam tudo para adiar a morte de Tancredo. (13/04/1985)

44. Sarney reafirma mudanças. (22/04/1985)

45. Dornelles diz como cobrirá o déficit. (09/05/1985)

46. Antes de calar, Boff reafirma suas idéias. (09/05/1985)

47. Funaro faz ameaça às montadoras. (29/01/1986)

48. A presidenta Corazón solta prisioneiros. (28/02/1986)

49. Pazzianotto deve sair no fim de março. (28/02/1986)

50. Bresser define a política de preços. (13/05/1987)

51. Quércia propõe trimestralidade e dois gatilhos, mas greve continua. (13/05/1987)

52. Secretário do prefeito abre videopôquer. (13/05/1987)

53. Napoli paga US$ 3,3 mil e leva Careca. (13/05/1987)

54. Presidente do IVC agora propõe a volta da Folha. (05/10/1988)

55. Médico estranha morte de seqüestrador do 737. (05/10/1988)

56. Leônidas quer caçar animais no Pantanal. (06/06/1989)

57. PF identifica 24 empresas da fraude cambial. (11/11/1989)

58. Solidariedade canta vitória no Parlamento. (06/06/1989)

59. Alemães-orientais atravessam muro e passeiam no Ocidente. (11/11/1989)

60. Lula diz estar preparado para derrota. (18/12/1989)

61. Grupo se entrega e solta Diniz. (18/12/1989)

62. Collor admite recessão no ano que vem. (23/12/ 1989)

b) Construção com a voz passiva:sujeito paciente

1.Proibida outra vez assembléia na praça. (20/04/1980)

2.Combustíveis terão preço regionalizado. (04/06/1980)

3.Reagan ferido em atentado. (31/03/1981)

4.Papa ferido a tiros em atentado. (14/05/1981)

5.Sadat morto, risco de guerra. (07/10/1981)

6.Dirigentes comunistas são soltos. (16/12/1982)

36 Oração coordenada assindética composta com diferentes tipos de sujeito: .primeira sentença – sujeito agente; segunda sentença – sujeito paciente; terceira, sujeito neutro, isto é não pratica nem recebe nenhuma ação.

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8- Tancredo Neves está morto. . (22/04/1985)

9- Corpo é velado no Planalto; . (22/04/1985)

c) Construção com verbo neutro: sujeito neutro

1. -Fiesp contra a recessão e ida ao Fundo. (10/12/1980)

2. O delegado Tuma é novo chefe da PF. (29/01/1986)

3. Collor é virtual eleito: boca-de-urna dá 51,5 % contra 48,5%.(18/12/1989)

4. Tancredo é o 1° presidente civil e de oposição desde 64. (16/01/1985)

5. Se impedimento for total, fica Sarney. (21/03/1985)

6. A Nação Frustrada! Apesar da maioria de 298 votos, faltaram 22 para aprovar as

diretas. (26/04/1984)

7. Incêndio foi criminoso na Câmara de SP. (06/06/1989)

c) Sujeito com verbo intransitivo

1. Gasolina explode, horror em Cubatão.(26/02/1984)

2. Acabou o ciclo autoritário. (16/01/1985)

3. Indústria cresce 16% em janeiro. (15/03/1985)

4. Nave espacial explode no ar. (29/01/1986)

5. Casos de Aids vão triplicar em dez anos. (06/06/1989)

e) Sujeito inanimado no início da sentença

1. Moscou quer o diálogo, diz Schimidt. (04/06/1980)

2. BC intervém em corretora e associadas. (10/12/1980)

3. Polônia nega independência a sindicatos. (28/08/1980)

4. Governo quer decidir hoje a prorrogação. (03/09/1980)

5. A Folha comemora seu 60° aniversário. (20/02/1981)

6. Edifícios têm 30 dias para ser evacuados. (24/02/1981)

7. EUA pedem compreensão, diz Walters. (24/02/1981)

8. IBGE fixa em 40,9% o INPC para novembro. (07/10/1981)

9. FMI quer mudar lei do salário. (20/02/1981)

10. ABC propõe uma greve nacional a 1ª. de outubro. (02/05/1981)

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11. TSE fixa normas das convenções. (22/05/1982)

12. Brasil conclui o acordo com o FMI. (16/12/1982)

13. Conselho da OLP revê estratégia. (16/12/1982)

14. Fiesp garante ter superado crise interna. (22/05/1982)

15. França expulsa 47 soviéticos por espionagem. (06/04/1983)

16. A violência se alastra e Montoro promete ordem. (06/04/1983)

17. Grupo 14 faz nova proposta a metalúrgicos. (06/04/1983)

18. Gasolina a 564, álcool a 332. (26/01/ 1984)

19. Congresso repele cerco policial e vota hoje a emenda das diretas. (25/04/1984)

20. São Paulo faz o maior comício. (17/05/1984)

21. O PMDB homologa Tancredo-Sarnei. (13/08/1984)

22. CBF divulga programa das eliminatórias. (21/03/1985)

23. PCB requer registro legal. (09/05/1985)

24. Aviação do Iraque bombardeia Teerã. (15/03/1985)

25. Congresso aprova as diretas. (09/05/1985)

26. Boeing bate em barranco; vinte feridos. (29/01/1986)

27. Governo vai apelar contra “Ave Maria”. (28/02/1986)

28. Economia leva um choque: o cruzeiro perde 3 zeros e vira cruzado; acaba a correção,

exceto para cadernetas; congelados preços dos produtos no varejo; salários seguem

inflação semestral média; aplicações só rendem os juros de mercado. (28/02/1986)

29. PMDB leva o mandato à convenção. (13/05/1987)

30. Nova Constituição entra em vigor; termina transição para democracia. (05/10/1988)

31. Limite de 12% faz BB elevar os juros rurais. (05/10/1988)

32. Chile julga hoje regime de Pinochet. (05/10/1988)

33. Sem crédito, país pode adotar moratória. (06/06/1989)

34. BC desvaloriza a moeda em 4, 01 % . (06/06/1989)

35. SP tem só duas casas de show cinco estrelas. (11/11/1989)

36. TSE afasta polícia do caso Lubeca e assume apuração. (11/11/1989)

37. Gasolina terá venda com cartão. (11/11/1989)

Novamente salientamos a presença significativa de enunciados produzidos na voz

ativa. Das 120 (cento e vinte) manchetes, 62 (sessenta e duas) foram construídas com esse

recurso; (09) nove com a voz passiva; 07 (sete) com verbos que indicam a neutralidade do

sujeito; 05 (cinco) com verbos intransitivos e 37 (trinta e sete) com sujeito inanimado,

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também não evidenciamos aqui a construção com o sujeito nominalizado; Para que possamos

visualizar melhor esses dados, os representaremos no gráfico abaixo:

Dados 1980

51%

8%

6% 4%

0%

31%

0%

4%

Sujeito agente

Sujeito paciente

Sujeito neutro

Sujeito com verbo

intransitivo

sujeito indeterminado

Sujeito inanimado

Sujeito nominalizado

Se compararmos os dados obtidos nos anos de 1980 representados no gráfico acima

aos dados obtidos em 1970 observaremos que a preponderância da voz ativa se manteve.

Também constatamos que houve um aumento significativo de enunciados produzidos sob

efeito do sujeito inanimado, em contrapartida, a construção com a voz passiva diminui

consideravelmente, apenas 8% dos enunciados. Já as construções com o verbo neutro, bem

como, as com verbo intransitivo não apresentaram índices de mudanças, os números se

mantêm, e a construção com a nominalização do sujeito continua não se manifestando. Vamos

agora às principais manchetes veiculadas na década 1990:

a) Construção com a voz ativa:sujeito agente

1. Menem tenta mudar estatais para ter pacto. (12/02/1990)

2. Polícia federal invade a Folha. (24/03/1990)

3. PF prende donos de supermercado em SP. (24/03/1990)

4. Collor reúne o ministério sob urgência. (17/01/1991)

5. Bush declara vitória na guerra. (28/02/1991)

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6. Ermírio diz que governo empurra para a ilegalidade. (25/04/1991)

7. Collor pede paciência a reforma da Constituição. (26/08/1991)

8. 70% acham que o Congresso deve aprovar o impeachment de Collor. (16/08/1992)

9. Amigos do presidente preparam atos de apoio. (16/08/1992)

10. Itamar diz que Krause é simples, mas capaz. (04/10/1992)

11. Lobby pode ter atuado em acordo com Canadá. (14/09/1993)

12. Ministros do PMDB entregam cargo. (14/09/1993)

13. Presidente respeita o resultado e Itamar assume hoje. (30/09/1992)

14. Assaltantes se vestem de policiais para roubar. (14/09/1993)

15. Juiz manda prender 19 garimpeiros em Romaria. (14/09/1993)

16. Austregésilo de Athayde morre aos 94 no Rio. (14/09/1993)

17. Candidatos confirmam auxilio de sindicato. (30/11/1993)

18. Martins diz ter recebido verba para prefeito. (30/11/1993)

19. Presidente sem maioria vai ter que negociar. (04/08/1994)

20. Empresário dos EUA teme crise no Brasil. (20/04/1995)

21. Presidente marca reunião sobre a Caixa. (20/04/1995)

22. Sivam vai ao Conselho de Defesa amanhã. (05/12/1995)

23. FHC e Lula vão para o centro. (04/08/1994)

24. FHC manda Sergio Motta limitar seus comentários. (20/04/1995)

25. Bird indica que 1,3 bilhão vive com US$ 1 ao dia. (24/06/1996)

26. PM matou 2 reféns na obra de Morumbi. (05/12/1995)

27. Governador quer reabrir inquérito no PA. (24/06/1996)

28. Deputado conta que votou pela reeleição por R$ 200 mil. (13/05/1997)

29. Pitta paga R$ 99 mil por erro no IR desde 92. (13/05/1997)

30. Grupo de portugueses e espanhóis leva o filé. (30/06/1998)

31. 75 mil protestam contra FHC. (27/08/1999)

b) Construção com a voz passiva: sujeito paciente

1. Preço congelado; Salário prefixado. (17/03/1990)

2. Dinheiro de rescisão trabalhista é liberado. (24/03/1990)

3. Atacado comboio que levava ajuda à Bósnia. (16/08/1992)

4. Isolado pelo Collorgate, Presidente tenta salvar o mandato hoje na TV. (30/06/1992)

5. PC Farias é preso na Tailândia. (30/11/1993)

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6. Decretado estado de sítio na Bolívia. (20/04/1995)

7. Libertado um refém brasileiro na Bósnia. (08/06/1995)

8. Assassinado premiê de Israel. (05/09/1995)

9. Inaugurado novo centro gráfico da Folha. (05/12/1995)

10. Transplantada medula em feto. (05/12/1995)

11. PC Farias é assassinado em Maceió. (24/06/1996)

12. Empresário foi achado junto ao corpo da namorada em casa de praia. (24/06/1996)

13. Morte de PC Farias volta a ser investigada. (25/03/1999)

14. Corpo é achado em tubulação. (25/03/1999)

c) Construção com verbo neutro: sujeito neutro

1. Palácio de Sadam é 1°. alvo. (17/01/1991)

2. Brasil é tetra! Seleção bate Itália na primeira decisão de Copa por pênaltis. (18/07/1994)

3. FHC é presidente. (04/10/1994)

4. França é campeã do mundo; Brasil sofre sua pior derrota. (13/06/1998)

5. FHC é o primeiro presidente a se reeleger na historia do país. (05/10/1998)

d) Sujeito com verbo intransitivo

1. Cresce a falta de álcool nos postos cariocas. (12/02/1990)

2. Começa a Guerra! (17/01/1991)

3. Preço do petróleo dispara. (17/01/1991)

4. Acabou a União Soviética. (26/08/1991)

5. Maluf sobe 4 pontos e Suplicy cai 5. (16/08/1992)

6. Cai um dos decreto de prisão de PC Farias. (14/09/1993)

7. Número de miseráveis cresce 42%. (20/04/1995)

8. Cai monopólio do petróleo. (08/06/1995)

9. São Paulo sobe no ranking das cidades caras. (08/06/1995)

10. Avião da Tam cai sobre casas em SP e mata 101. (01/11/1996

e) Sujeito inanimado no início da sentença

1.Supermercados de SP aceleram as remarcações. (12/02/1990)

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2.Receita e PF vão fiscalizar alta de preços. (12/02/1990)

3.África do Sul liberta Nelson Mandela. (12/02/1990)

4.CMTC fez uso de verbas em curso político. (12/02/1990)

5.URSS envia mais tropas para Lituânia. (24/03/1990)

6.Governo retém 80% do over e limita a 50 mil saque bancário e da poupança. (17/03/1990)

7.Aviões bombardeiam Bagdá. (17/01/1991)

8.STF decide sobre os cruzados. (25/04/1991)

9.Governo quer manter projeto de ajuste fiscal. (04/10/1992)

10. Impeachment! Câmara depõe Collor em decisão histórica. (30/09/1992)

11. Bolsas têm maior queda do ano. (30/06/1992)

12. Boca-de-urna dá 48% para Maluf. (04/10/1992)

13. PFL exige explicação convincente. (30/06/1992)

14. Justiça autoriza a PF a investigar Planalto. (16/08/1992)

15. CPI recebe relação de José Carlos com 16 novos acusados. (30/11/1993)

16. Israel e OLP assinam acordo de paz. (14/09/1993)

17. Brasil assina acordo da dívida. (30/11/1993)

18. Real entra em circulação no país amanhã e vale CR$ 2. 750. (30/06/1994)

19. Governo libera gasto eleitoreiro. (04/08/1994)

20. Boca-de-urna aponta vitória do tucano no primeiro turno. (04/10/1994)

21. Eventual aliança com Bagdá divide Jordânia. (17/01/1991)

22. Chuva gera transtorno em SP. (17/01/1991)

23. Real entra em circulação no país amanhã e vale CR$. (30/06/1994)

24. Doping ameaça tirar Maradona da Copa. (30/06/1994)

25. Câmara aprova o mínimo de R$ 100. (20/04/1995)

26. Governo paga R$ 2,28% mil para a Esca. (08/06/1995)

27. Banco Central abranda limite para o crédito. (08/06/1995)

28. Bomba fere em Madri maior líder da oposição. (20/04/1995)

29. Medida deve fixar em 3% a cota de carros. (08/06/1995)

30. Empresas esperam para 96 crescimento de 4,11%. (05/12/1995)

31. Substâncias freiam o HIV em laboratório. (05/12/1995)

32. -Terror explode prédio nos EUA. (20/04/1995)

33. Alca depende dos países ricos, diz FHC. (13/05/1997)

34. HSBC pagou R$ 1 bilhão por negócio arriscado. (31/08/1997)

35. Crash global paralisa Bolsa de NY e causa maior queda desde 90 em SP. (28/10/1997)

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36. Congresso paraguaio abre processo de impeachment. (25/03/1999)

37. Maior leilão da história vende a Telebrás por R$ 22 bilhões.(30/06/ 1998)

38. Dinheiro não vai servir só para dívida, diz FHC. (30/06/1998)

39. Forças da Otam atacam Iugoslávia. (25/03/1999)

40. Juros levam déficit para R$ 71 bi no 1° semestre. (27/08/1999)

41. A voz rouca das ruas agora pede mudanças na política econômica.(27/08/1999)

42. Medidas fiscais saem em poucos dias, diz Malan. (05/10/199)

43- Equador abre precedente em acordos sobre dívidas. (27/08/1999)

f) Sujeito nominalizado

1. Choque do Plano Collor é o maior de toda a história. (17/03/1990)

2. Coalizão suspende o fogo mas mantém as tropas no Iraque. (17/01/1991)

3. Corrupção manda lucro aos paraísos fiscais do exterior.(17/11/1991)

4. Chacina mata 111 presos em SP. (04/10/1992)

5. Acidente mata Ayton Senna. (02/05/1994)

6. Disputa em SP deve ir ao segundo turno. (04/10/1994)

7. Ataque com gás intoxica 400 pessoas no Japão. (20/04/1995)

8. Acidente nos EUA mata Matias Machline. (04/08/1994)

9. Rebeldia na aula indica problemas. (01/11/1996)

10. Oposição faz greve no Zaire amanhã. (13/05/1997)

11. Organização calcula os gastos com o ato em pelo menos R$ 2,1. (27/08/1999)

12. Rebelião na Praia Grande faz 3 mortos. (13/05/1997)

13. Calote da Tailândia preocupa o mercado. (31/08/1997)

14. Acidente mata lady Di, 36, em Paris. (31/08/1997)

15. Reação em cadeia faz banho de sangue. (28/10/1997)

16. Crise derruba o peso mexicano. (28/10/1997)

17. Decisão de lordes limita acusações contra Pinochet. (25/03/1999)

Os enunciados arrolados nos permitem afirmar que a forma de apresentação do sujeito

da oração vem passando por algumas mudanças que valem a pena destacar: o sujeito das

sentenças analisadas que se apresentava, em sua maioria, na década de 1970 e 1980, na voz

ativa tende cada vez mais a se escamotear por meio de enunciados construídos com uma

forma lexical inanimada, produzindo, entre outros efeitos de sentido, o de processo sem ser

humano na posição de sujeito discursivo. Além do aumento significativo de construções com

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esse tipo de sujeito, também há que se salientar a manifestação significativa de um novo

fenômeno lingüístico, o da nominalizaçao do sujeito.

Das 120 (cento e vinte manchetes) transcritas, 31 (trinta e uma) foram produzidas na

voz ativa/sujeito agente; 14 (quatorze) na voz passiva/sujeito paciente; 05 (cinco) com verbo

neutro; 10 (dez) com verbo intransitivo; 43 (quarenta e três) com sujeito inanimado; e, 17

(dezessete) sob o efeito da nominalização do sujeito. Se computarmos os enunciados em que

o sujeito não se dá como evidente, (voz passiva, verbo intransitivo, sujeito inanimado e sujeito

nominalizado), teremos uma soma de 84 (oitenta e quatro) enunciados em que o sujeito do

discurso, o jornal A Folha de São Paulo, não evidencia o sujeito da ação realizada no

enunciado. Ilustraremos no gráfico que se segue os dados transcritos:

Dados de 1990

26%12%

4%

8%

0%

36%

14%

4%

Sujeito agente

Sujeito paciente

Sujeito neutro

Sujeito com verbo

intransitivo

sujeito indeterminado

Sujeito inanimado

Sujeito nominalizado

Os dados acima nos permitem afirmar que, a partir dos anos de 1990, a forma de

apresentar o sujeito da oração vem passando por algumas mudanças que valem a pena

destacar: A construção com a voz ativa (sujeito agente) não é mais a figura de sintaxe

preponderante, agora o fenômeno que se sobressai, em relação aos demais, é do sujeito

inanimado. O fenômeno do sujeito nominalizado também ocupa boa parte dos enunciados. .

Esses dados são extremamente relevantes, porque eles nos possibilitam dizer que, a partir do

advento do neoliberalismo no Brasil, há a consolidação de novas tendências discursivas na

língua. Passaremos agora às manchetes produzidas e veiculadas nos anos de 2000. Nosso

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intuito é observar se o apagamento do sujeito da ação verbal continua se disseminando nas

diversas práticas discursivas:

a) Construção com a voz ativa: sujeito agente

1. Ex-auxiliar de Pinotti se nega a dar nomes. (27/06/2000)

2. Bush vence Gore, 36 dias depois. (14/12/2000)

3. Na madrugada, multidão rejeitou todo o sistema. (27/12/2001)

4. FHC afirma que saída de colega não surpreendeu. (27/12/2001)

5. Chávez volta ao poder, admite erros e nega caça às bruxas. (15/04/2002)

6. Powell vê Arafat e Sharon, mas não avança. (15/04/2002)

7. Alckmin vence em São Paulo; petistas sofrem derrota no RS. (28/10/2002)

8. Bush lança bombardeio a alvos específicos em Bagdá às 23h35; na TV, Saddam

promete humilhar o inimigo. (20/03/2003)

9. Vencedor recebe mais votos que Kerry em todo o país e separa de 2000. (04/11/2004)

10. Em reduto de mensaleiro, Lula esconde o ex-líder do PT. (21/08/2006)

b) Construção com a voz passiva: sujeito paciente

1.Projeto que veta anúncio de cigarro é aprovado. (14/12/2000)

2.Decifrado o 1° código genético de uma planta. 14/12/2000)

3.Torres do World Trade Center e parte do Pentágono são destruídas. (12/09/2001)

4. Presos dois suspeitos do assassinato de juiz em SP. .(20/03/2003)

5.Tropas são recebidas com festa. (10/04/2003)

6.Presidente da Coréia do Sul é destituído. (12/09/2004)

7.Passam de 76 mil os mortos pelo maremoto. (04/11/2004)

8.Casamento gay é rejeitado nos 11 Estados que o submeteram a plebiscito. (04/11/2004)

9.Brasileiro que trabalha no Iraque é ferido em ataque. (20/04/2005)

10. Nome escolhido pode indicar maior reclusão da igreja. (20/04/2005)

c) Construção com verbo neutro: sujeito neutro

1. Comitiva de FHC é alvo de ovos em protesto. (27/06/2000)

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101

2. Lula presidente: Metalúrgico é o primeiro líder de esquerda a ser eleito no país.

(28/10/2002)

3. Iraque se tornará um protetorado militar dos EUA. (10/04/2003)

4. 11 de setembro espanhol tem horror e solidariedade. (12/09/2004)

5. Atentado foi o mais sangrento da Espanha e o 2° maior da Europa. (12/03/2004)

6. Conservador alemão é o novo papa, Bento 16. (20/04/2005)

7. Um homem tímido, bem humorado, mas muito combativo. (20/04/2005)

8. Pobreza no Brasil é maior na cidade. (01/01/2006)

9. Emprego é mais eficaz na redução de desigualdades (05/03/2006)

d) Sujeito com verbo intransitivo

1. Petróleo cai com volta do Iraque. (14/12/2000)

2. Gasolina cairá até 20%, diz governo. (27/12/2001)

3. Milhares de pessoas morrem em atentados de autoria desconhecida. (12/09/2001)

4. Bolsas param, petróleo dispara e aumenta temor de recessão global. (12/09/2001)

5. Política econômica não muda. (12/09/2004)

6. Índice usado para tarifas e alugueis sobe 12,4% no ano. (30/12/2004)

7. Álcool sobe apesar de acordo com usineiros. (14/02/2006)

8. Desemprego sobe 10,1% e renda cresce 1,1% em fevereiro. (23/03/2006)

9. Combates crescem antes de cessar-fogo Líbano. (14/08/2006)

e) Sujeito inanimado no inicio da sentença

1. Empresas de ônibus violam contrato em SP. (12/06/2000)

2. Ciência decifra código genético e inicia nova era para medicina. (27/06/2000)

3. Empresas dos EUA desistem de disputa pela Copene. (14/12/2000)

4. Senado aprova quebra de sigilos. 14/12/2000)

5. 24 presídios se rebelam em SP. (19/02/2001)

6. EUA sofrem maior ataque da história. (12/09/2001)

7. Bolsas param, petróleo dispara e aumenta temor de recessão global. (12/09/2001)

8. EUA controlam Bagdá e governo de Saddam some. (10/04/2003)

9. BC mantém taxa de juros, mas adota viés de alta. .(20/03/2003)

10. EUA atacam Iraque.(20/03/2003)

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11. 10 bombas explodem em 4 trens, matam 192 e deixam 1.421 feridos. (12/03/2004)

12. EUA oferecem ajuda para encontrar os responsáveis. (12/09/2004)

13. Campanha petista não assume seus erros. (04/11/2004)

14. Saúde de Arafat piora e o leva à UTI na França. (04/11/2004)

15. Transportes terão mais recursos no Orçamento de 2005. (30/12/2004)

16. Onda conservadora dá vitória completa a Bush. (04/11/2004)

17. Terror mata mais de 190 em Madri. (12/03/2004)

18. Grupo ligado à Al Qaeda assume ataques, mas ETA também é suspeita.(12/03/2004)

19. PT dava mesada de R$ 30 mil a parlamentares, diz Jefferson. (06/06/2005)

20. EUA querem monitorar democracia da América. (06/06/2005)

21. Tribunal de contas aponta problemas em obras no Tietê. (06/06/2005)

22. Greve no metrô em SP prejudica 1,6 milhão. (16/08/2006)

23. Produtividade no Brasil pára de crescer. (02/01/2006)

24. Indústrias planejam cortar empregos. (13/01/2006)

25. Pacote reduz impostos para a construção civil.(08/02/2006)

26. Reforma agrária ameaça brasileiro na Bolívia. (08/05/2006)

27. Bombas em trens matam 179 na Índia. (12/07/2006)

28. Empresas devem manter baixo nível de investimento. (13/09/2006)

29. Carta de FHC abre crise na campanha de Alckmin. (09/09/2006)

f) Sujeito nominalizado

1. Utopia do brasileiro é o pleno emprego. (23/04/2000)

2. Conflito marca festa dos 500 anos. (23/04/2000)

3. Revolta pára Argentina e leva De la Rúa à renúncia. (27/12/2001)

4. Atentado mata três na Colômbia. (15/04/2002)

5. Crise fará energia encarecer ou faltar. (07/05/2006)

6. Correção da tabela do IR vai incluir as deduções. (30/12/2004)

7. Acordo fixa novo mínimo em R$ 350. (12/01/2006)

8. Reunião mantém indefinições sobre o gás. (05/05/2006)

9. Endividamento chega ao limite e inibe crescimento. (20/08/2006)

10. Acordos salariais batem a inflação. (18/08/2006)

11. Assalto do BC pagou dívida do PCC. (12/06/2006)

12. Ataques matam o 5°agente penitenciário em 10 dias.(08/07/2006)

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103

O percurso que seguimos nos permite afirmar que o apagamento do sujeito da ação

verbal aumentou significativamente em relação à década de 1990. Das 80 (oitenta) manchetes

analisadas, 29 (vinte e nove) foram produzidas com sujeito inanimado, 12 (doze) sob o efeito

da nominalização do sujeito, 10 na voz passiva e 09 (nove) com verbo intransitivo. Isso

implica dizer que houve um decréscimo em relação à produção de enunciados em que o

sujeito agente se dava como evidente, apenas 10 enunciados foram assim produzidos. Esses

dados nos levam a pensar, assim como Gadet (2005), que ao longo da história devido não só a

fatores lingüísticos, mas e, sobretudo, a fatores político-sociais as figuras mais complexas

passam por certos fenômenos de sintaxe. A voz ativa com sujeito agente, por exemplo, vai

ceder, progressivamente, lugar a construções sintáticas em que o sujeito tende a se

escamotear, isto é, se eximir de suas responsabilidades.. Para melhor ilustrar esses os dados,

os representamos no gráfico a seguir:

Dados de 2000

13%

13%11%

11%

0%37%

15%

0%

Sujeito agente

Sujeito paciente

Sujeito neutro

Sujeito com verbo

intransitivo

Sujeito indeterminado

pela particula "se"

Sujeito inanimado

Sujeito nominalizado

Como podemos observar, nos anos de 2000, a construção sintática com sujeito

inanimado continua se sobressaindo em relação às demais, dos enunciados analisados 37%

foram produzidos sob esse efeito. Em seguida, temos a presença de enunciados cujo sujeito

encontra-se nominalizado, 15%. O aumento dos enunciados construídos com sujeito

inanimado e a manifestação significativa de enunciados produzidos sob o efeito da

nominalização do sujeito, nas duas últimas décadas, nos autorizam a dizer que, a língua vem

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sofrendo influências políticas, sociais e ideológicas, uma vez que acreditamos que esses

fenômenos se disseminam com mais facilidade nas práticas discursivas do sistema neoliberal..

Para que melhor possamos ilustrar esses dados, traremos a seguir um gráfico, representando

como os enunciados foram produzidos nas décadas de 1970, 1980, 1990 e 2000:.

56

29

75

1

22

0

62

97

5

0

37

0

31

14

5

10

0

43

17

10 10 9 9

0

29

12

0

10

20

30

40

50

60

70

1970 1980 1990 2000

Sujeito agente

Sujeito paciente

Sujeito neutro

Sujeito com verbo intransitivo

sujeito indeterminado pela partícula"se"

Sujeito inanimado

Sujeito nominalizado

Os números representados no gráfico nos permitem salientar que a forma de

apresentação do sujeito da oração, na língua, vem passando por algumas mudanças que valem

a pena ressaltar: nas duas últimas décadas, aumentou significativamente a presença de

construções sintáticas em que o sujeito da ação não se evidencia, seja por meio do sujeito

inanimado, do verbo intransitivo ou, ainda, sob efeito da nominalização. Conseqüentemente,

a construção com o sujeito agente diminuiu consideravelmente.

Devido à manifestação significativa de enunciados produzidos sob o efeito do

fenômeno lingüístico-discursivo da nominalização do sujeito, a partir dos anos de 1990, nos

dedicaremos, ao longo desse capítulo, a estudá-lo. No percurso que percorreremos, não

deixaremos de considerar o fenômeno do sujeito inanimado, uma vez que este também se

constitui por uma forma lexical nominal na posição de sujeito da oração. Por meio de análise

lingüística-discursiva buscaremos salientar que subjacente a esses fenômenos existem um

discurso pré-asserido capaz de provocar diferentes efeitos de sentidos.

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Em nossas análises, procuraremos mostrar que o sujeito inanimado e a nominalização

do sujeito, por não trazer, na posição de sujeito da oração, um sujeito animado, modifica

totalmente os significados dos enunciados. De fato, não é só a forma de apresentação do

sujeito da oração que se modifica, mas, sobretudo, os efeitos de sentido provocados com essa

mudança.

A luz da Análise do Discurso, o sujeito agente ao ser transformado em uma forma

lexical nominalizada, torna-se um sujeito submisso, incapaz de por si só atuar no mundo.

Trata-se de um sujeito sem voz, que para realizar-se enquanto sujeito precisa assujeita-se não

só a língua, mas, principalmente, a ideologia impregnada no discurso que o sustenta.

Retomando Gadet (2005) assinalamos que a nominalização do sujeito produz o mesmo

efeito discursivo que a passiva, escamotear o agente da ação verbal, diferenciando-se desta,

apenas, por possibilitar a constituição de um discurso pré-asserido, isto é, um discurso “já lá”,

que foi pensado antes, independentemente, por alguém em algum lugar. O percurso que

seguimos nos permite dizer que esse discurso “já lá” presente nas sentenças nominalizadas faz

parte de um discurso maior, característico do sistema neoliberal. Nas práticas discursivas

neoliberais as posições sujeito são freqüentemente ocupadas por formas lexicais

nominalizados, com em: “revolta pára...”, rebelião mata...”, ou, por nomes inanimados, como

em: “supermercados aceleram...”; “aviões bombardeiam...”; e etc,.

A análise que se segue nos possibilitará compreender o fenômeno da nominalização do

sujeito e, conseqüentemente, como ele irrompe nas formas da língua.

4.3 Sobre a nominalização do sujeito nas manchetes do jornal A Folha de S. Paulo

Evidenciamos, no segundo capítulo desta dissertação, que há na língua portuguesa

falada e escrita no Brasil uma definição cristalizada sobre a função sujeito: “ o sujeito é

aquele que prática a ação verbal”, essa definição corresponde à definição prototípica de

sujeito, isto é, o sujeito é o ser agente. Entretanto, nas sentenças em que há a nominalização, o

sujeito não pratica nenhum tipo de ação, ele ocupa o lugar destinado para tal, mas, por não

ser um ser “agente”, não pode assumir o papel de sujeito da ação expressa pelo verbo.

Trazemos algumas das manchetes já expostas para ilustrar essa questão:

(01) “Ataque com gás intoxica 400 pessoas no Japão”. (20/04/1995)

(02) “Rebelião na Praia Grande faz 3 mortos”. (13/05/1997)

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(03) “Reação em cadeia faz banho de sangue”. (28/10/1997)

(04) “Revolta pára Argentina e leva De la Rúa à renúncia”. (27/12/2001)

(05) “Correção da tabela do IR vai incluir as deduções”. (30/12/2004)

(06) “Reunião mantém indefinições sobre o gás”. (05/05/2006)

(07) “Endividamento chega ao limite e inibe crescimento”. (20/08/2006)

Em nenhuma dessas frases encontra-se o sujeito “agente”, capaz de praticar as ações

expressas nos enunciados. Em seu lugar, aparecem formas lexicais nominalizadas, que,

devido ao seu caráter anafórico, retomam um discurso “já dito”. Acreditamos que esse

discurso, embora não faça parte da estruturação intratextual, participa, como memória, de sua

organização.

Dessa forma, a nominalização veicula um conteúdo já dito, subjacente Assim, ataque

com gás intoxica 400 pessoas, pressupõe que 400 pessoas foram intoxicadas; Rebelião na

Praia Grande faz 3 mortos, pressupõe que 3 pessoas morreram na rebelião; Reação em cadeia

faz banho de sangue, pressupõe que um banho de sangue foi feito; Revolta pára Argentina e

leva De la Rúa à renúncia, pressupõe que De la Rúa renunciou; Pressupor, no sentido aqui

defendido, é apontar para um discurso anterior, pré-construído, que se inscreve na formação

discursiva da qual ele deriva. A ilusão de objetividade referencial, advinda dessa estratégia,

decorre exatamente do fato de que os referentes, resultantes do processo de nominalização,

foram construídos “fora”, em um discurso anterior, de responsabilidade pública.

O fenômeno da nominalizacão, ao reificar, por meio de um discurso englobante, os

sujeitos envolvidos e citados, não permite que o identifiquemos, tampouco permite que

descubramos o grau de engajamento existente entre eles. Isso porque, ao transformar as ações

de indivíduos, reais ou possíveis, em sintagmas nominais incapazes de agir no mundo, o

sujeito do discurso tem como objetivo se descomprometer, não se responsabilizar por tais

ações.

Podemos dizer que a nominalização do sujeito é um fenômeno lingüístico-discursivo

que neutraliza ou deixa indeterminadas as relações intersubjetivas. Esse fenômeno se constrói,

conforme já dissemos, por meio de um discurso pré-construído, um objeto do mundo, “já lá”

preexiste ao discurso que vai servir para instanciar um lugar na forma-sujeito em que todas as

suas condições de produção foram apagadas. A nominalização, produz, assim, um efeito de

evidência no enunciado: apresenta-se como sendo algo incontestável e, ao mesmo tempo,

torna isento o sujeito do discurso, isto é, o jornal, A Folha de S. Paulo, de qualquer

responsabilidade que ele enuncia. Tal apagamento induz a um complexo efeito de retorno,

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107

misturando diversas posições sociais e ideológicas com a posição passiva do sujeito

discursivo.

De fato, há, com esse fenômeno, uma ruptura, estabelecida pelo sujeito do discurso,

no sentido de ausência de alteridade entre o sujeito do discurso, de um lado, e aquilo que ele

enuncia como sendo incontestável, de outro. Dito de outro modo, o sujeito que, de fato,

prática a ação verbal e aquele que aparece como evidente no enunciado não são os mesmos:

longe de ser a fonte do sentido, a origem da formulação, de reivindicar para si a autonomia

dos seus atos, os termos nominalizados: “ataque”, “rebelião”, “reação”, “revolta”, “conflito”,

“correção”, “reunião” e “endividamento”, são apenas o porta-voz ou o porta-pluma dos

enunciados em questão.

A nominalização é a prova de que a definição morfológica das categorias gramaticais é

uma máscara para o comportamento de certas unidades lexicais, pois o sintagma

nominalizado tem uma vestimenta de nome, mas não é nome, uma vez que designa uma ação.

Assim, podemos dizer que nas sentenças anteriormente apresentadas os sintagmas nominais:

“ataque”, “rebelião”, “reação”, “revolta”, “conflito”, “correção”, “reunião” e “endividamento”

representam respectivamente o ato de atacar, de rebelar-se, de reagir, de revoltar-se, de

conflitar, de corrigir, de reunir, de endividar. O sintagma nominal que contém a

nominalização não é um objeto como, “lápis”, “caderno”, “borracha”, “bombas”, mas são

ações ou possíveis ações de indivíduos; modo de processo ou possíveis modos de processo de

ações de indivíduos. Isso ocorre porque a forma lexical nominalizada origina-se de um verbo,

por isso, explicita a ação e não quem a praticou, como no caso dos sintagmas nominalizados

presentes nas sentenças analisadas: ataque/atacar; rebelião/ rebelar; reação/reagir;

revolta/revoltar; etc,. São formas deverbais, desprovidas de vontade que, para se constituírem

enquanto sujeito, precisam assujeitar-se não só a língua, mas à ideologia das práticas sociais

em que estão inseridas.

A nominalização é, assim, um fenômeno lingüístico-discursivo que joga com os

sujeitos do discurso, suas ações, ou possíveis ações, seu modo de ação ou seu possível modo

de ação; o resultado de suas ações ou possível resultado de suas ações no mesmo plano dos

objetos. Por isso, ações dos sujeitos, projeções das ações dos sujeitos, possíveis ou

imaginárias, são transformadas pelo sujeito do discurso, nesse caso, o jornal A Folha de S.

Paulo, em sintagmas nominais cuja função principal é escamotear o agente da ação verbal

expressa no enunciado.

Conforme assinalamos, a nominalização presta-se, entre outros usos, para construir

um discurso no qual o sujeito discursivo não assume a responsabilidade de seus atos. O

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sujeito que se evidencia no enunciado incorpora autoritariamente um discurso que não é seu, o

discurso “outro”, situado num“fora. O “outro” tocado por esse discurso que o incorpora

autoritariamente, leva esse discurso a sério e tenta procurar o “sentido verdadeiro”; sente-se

ao mesmo tempo envolvido com o discurso, dentro dele e fora dele, não o ajudando a

construir, e na dificuldade de compreender a densidade dialógica pela qual a falsa interação

está se estabelecendo, exige “transparência”, e, complementariza-se, mostrando a sua

fragilidade.

A fragilidade se estabelece nas duas pontas em que se encontram os sujeitos do

discurso, já que não há espaço de confronto, nas seqüências nominalizadas, tampouco nos

enunciados em que há o sujeito inanimado, no qual as forcas poderiam ser medidas. Há um

abismo entre os interlocutores. Constrói-se um edifício sem alicerces no qual existe uma falsa

alteridade. O recurso a esse fenômeno lingüístico-discursivo rebela-se contra a força que é

apenas a máscara da não-força ou de uma força não conquistada, não compartilhada.

A nominalização do sujeito é, dessa forma, uma construção exemplar para mostrar a

relação entre o discurso presente na linguagem e o discurso situado num “fora”, mas que é

trazido à discussão pelas malhas da interdiscursividade. Por meio desse fenômeno podemos

mostrar como o significado se constrói na e pela linguagem nas diversas práticas sociais, já

que o significado de um enunciado não se constrói nem em um pontuar direto com a

realidade, nem a linguagem é um mecanismo desvairado de criação de mundo e realidade,

mas existe entre esses dois extremos uma espessura em cujo interior o sujeito do discurso

trabalha a relação consigo próprio e com o outro, construindo o seu lugar no mundo.

Ponderamos que os diferentes discursos materializados nos enunciados analisados implicam

uma exterioridade à língua, encontra-se no social e envolve questões de natureza não

estritamente lingüística. Referimo-nos a aspectos sociais e ideológicos impregnados nas

palavras quando elas são enunciadas.

Esses aspectos podem ser observados também nas sentenças em que um sujeito

inanimado vem ocupar o lugar do sujeito da oração. Esse tipo de construção sintática é

bastante recorrente no corpus em análise:

(08) “Supermercados de SP aceleram as remarcações”. (12/02/1990)

(09) “Aviões bombardeiam Bagdá”. (17/01/1991)

(10) “Empresas de ônibus violam contrato em SP”. (12/06/2000)

(11) “Tribunal de contas aponta problemas em obras no Tietê”. (06/06/2005)

(12) “Bombas em trens matam 179 na Índia”. (12/07/2006)

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109

(13) “Indústrias planejam cortar empregos”. (13/01/2006) Uma espiada no dicionário impresso de língua portuguesa, Houaiss (2004), nos mostra

que os verbos “acelerar”; “bombardear”; “violar”; “explodir”; “apontar”; “ameaçar” “matar”,

e “planejar”; se constroem com um sujeito animado, um agente dotado de vontade, de

sentimentos, de intenções. Como nos casos em que há a nominalização, também aqui, esse

sujeito não se evidencia, em seu lugar aparece formas lexicais inanimadas, apagando, assim, o

agente da ação representada no enunciado. Esse apagamento induz a um complexo efeito de

retorno, misturando diversas posições sociais e ideológicas com a posição passiva do sujeito

do sujeito discursivo.

Essa falta de comprometimento com o que se diz é freqüente nas práticas discursivas

do regime neoliberal. São formas discursivas saturadas pelo consenso ideológico que

estabiliza a sua referência do discurso. Por um lado, as relações discursivas que são óbvias, e,

de outro os nomes freqüentemente determinados e amiúde pouco tematizados, ou seja, o que

deve ser definido ou explicado: as palavras, e as proposições sempre a ser definidas:

(08)“Supermercados aceleram...”; (09) “Aviões bombardeiam....”; (10) “Empresas de ônibus

violam ...”; (11) “Tribunal de contas aponta...”; (12) “Bombas em trens matam...”; (13)

“Indústrias planejam...”. E igualmente, as noções a serem reinterpretadas, as palavras a serem

arrancadas de seu senso comum: para supermercados, comerciantes; para aviões, presidente

George W. Bush; para empresas, os empresários; para tribunal de contas, os superintendentes;

para bombas, pessoas ligadas ao grupo ETA.

A organização lexical e sintática dos fenômenos apresentados deixa aparecer, segundo

Courtine (2006:100), um fator essencial ao qual toda análise de discurso se encontra

confrontada: “que as palavras possam, por vezes, revestir o mesmo sentido, que outras vezes,

elas possam mudar o sentido, em função das posições daqueles que as empregam”. A

nominalização do sujeito, e as construções com sujeito inanimado, por exemplo, criam zonas

de neutralização discursiva, nas quais as palavras parecem tomadas num consenso geral,

parecem ter o mesmo sentido para todos, zonas de constituição e de fechamento de um saber,

nas quais os conceitos recebem sua definição, zonas nas quais as contradições aparecem, nas

quais as palavras são postas em risco, posições das quais é preciso se apoderar para reatualizá-

las a seu favor.

Cumpre salientar que, embora as construções sintáticas com sujeito inanimado já se

manifestassem na língua portuguesa do Brasil antes do advento do neoliberalismo, elas

aumentaram consideravelmente depois deste. Já o fenômeno da nominalização do sujeito

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110

aparece, notadamente na língua portuguesa brasileira, a partir dos anos de 1990, época em que

os discursos, de modo geral, são produzidos dentro de determinadas formações discursivas

que mantêm estreita relação com as formações ideológicas do sujeito enunciador que, por sua

vez, encontra-se submetido às práticas políticas-econômicas do sistema vigente no momento.

Podemos dizer que a nominalização do sujeito é re-introduzida, na língua, quando se constitui

um discurso de aliança entre o modelo liberal de Adam Smith e os discursos que daí se

originam.

4.3.1 A nominalização do sujeito e o efeito de pré-construído

Conforme já evidenciamos, o fenômeno da nomilização do sujeito tornou-se mais

evidente, na língua, a partir da disseminação do discurso produzido nas práticas político-

econômicas do sistema neoliberal. Compreender como esse discurso se materializa nas formas

lingüísticas requer que aceitemos como pertinente a citação de Courtine (2006) “o discurso

político é um lugar de memória”. Para este autor, há no discurso político um sistema de

conservação do arquivo, uma rede de difusão que permite fazer ressurgir os enunciados,

tornando-os, uma vez mais, disponíveis, quando as necessidades de luta os reclamarem.

Assim, há enunciados que permanecem em vigília, dos quais podemos até perder a memória,

e que, no entanto, não estão dissipados, podendo reaparecer, quando for necessário. Em

contrapartida, existem outros repetidos sem interrupção, que, de repente, desaparecem, sem

praticamente deixar vestígios. Freqüentemente, eles são os mesmos.

Essa memória “pletórica” e lacunar é, segundo Courtine, um traço característico de

todas as organizações concebidas sobre um modelo político. De acordo com Courtine

(2006:88), na política, “a memória é um poder: ela funda uma possibilidade de se exprimir,

ela abre um direito à fala, ela possui, até mesmo, um valor performativo de proposição

eficaz”. Nas organizações políticas, os enunciados são recobertos com o peso da tradição,

que os inscrevem numa série de sentidos e de razão, que ancora a volatilidade das palavras

com o chumbo da lembrança.

Além da memória de uma organização, o discurso se pretende ainda depositário

daquela de toda uma comunidade de fala; ele é seu patrimônio verbal, “a herança das lutas”

conduzidas em seu nome, a recolha de um saber dos combates travados e da experiência

adquirida. O discurso torna-se legítimo por falar em nome da história. Em qualquer tipo de

organização política a história tanto política quanto cultural tem valor sublimar. A história é

um fator essencial tanto da identidade coletiva quanto da individual. Ela capaz de reunir um

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grupo social em torno de valores comuns, constituir uma força política e uma influência

cultural consideráveis, ultrapassar o seu lugar de origem, consolidar identificações por todos

os lados, promover sentimentos de pertencimento, assim como traçar demarcações e suscitar

antagonismos.

As formas da memória política se inscrevem nas modalidades de existência do

enunciado. Alguns discursos devem poder ser relembrados, repetidos, e isso constrange

consideravelmente sua forma. Para enfatizar essa peculiaridade do discurso político, Courtine

(2006) reporta-se a Foucault (2000: 22) que argumenta: “discursos que estão na origem de um

certo número de atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles, ou seja,

os discursos que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos

e estão ainda por dizer”.

Consideramos, assim, todas as formas de discurso citado por meio das quais se

materializam as remissões de discursos a outros discursos. Conforme Courtine (2006), isso se

faz necessário porque “é preciso situar a observação do“fio vertical” do discurso sobre uma

multiplicidade de enunciados desnivelados e numa pluralidade de funcionamentos sintáticos”.

Dessa forma, submetemos os enunciados em análise ao crivo do conceito de pré-construído e

encontramos, no domínio de memória do discurso nominalizado das seqüências discursivas

tomadas como estudo, o que Courtine (2006) chama de “formulações origem”. Entre essas

formulações, e os discursos que os retomam, descobre-se sob a imediatez de uma lembrança,

sob a anulação da distância interdiscursiva que constitui os efeitos imaginários próprios do

discurso direto, toda espessura de citações e remissões. Courtine cita Foucault, (2000: 24-25),

ao observar que as remissões se interpõem entre o “desnível do texto primeiro (...), sua

permanência que funda uma possibilidade aberta de falar”, e o texto que cita.

As formulações-origem derivam, assim, num trajeto complexo no seio da espessura estratificada da formação discursiva; durante o percurso, elas se transformam, se entrecortam, se escondem, para ressurgir adiante; por vezes esfuma e desaparecem. (COURTINE, 2006:91)

Assim, enunciados em que o sujeito discursivo apresentava diretamente o sujeito

agente da ação na seqüência discursiva, tais como:

(01) Os presos rebelam-se na Casa de Detenção. (21/03/1985)

vai ceder, progressivamente, o lugar para um sujeito que se escamoteia, esconde-se nas

malhas da interdiscursividade, como por exemplo em:

(02) Rebelião na Praia Grande faz 3 mortos. (13/05/1997)

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Nessas sentenças, há uma diferença significativa quanto à atitude do sujeito discursivo

face ao que enuncia. Na primeira, o sujeito discursivo apresenta explicitamente o sujeito da

ação realizada na sentença , por isso, sabemos quem se rebelou. Ao passo que na segunda, o

sujeito que, de fato, pratica a ação não aparece, em seu lugar encontramos a forma

nominalizada, “rebelião”, é como se a “rebelião” pudesse existir independentemente da ação

de um ser humano. O que pode estar em jogo nessa sentença não é a saturação, o

preenchimento do sentido do termo “rebelião”, mas que ela deixou três mortos na Praia

Grande, podemos até questionar quem se são os responsáveis pela rebelião, contudo jamais

poderíamos questionar que ela fez três mortos.

Essa “função vazia” indiferentemente aos sujeitos enunciadores que vêm preenchê-la,

é o lugar do sujeito “universal” próprio de uma formação discursiva determinada, a instância a

partir da qual se pode enunciar um discurso já consolidado para todo o sujeito enunciador que

venha se situar em um lugar determinado, inscrito naquela formação discursiva na ocasião da

formulação. É o ponto em que se ancora a estabilidade referencial dos elementos de um saber,

esse lugar, assim, é vazio apenas na aparência: ele é preenchido de fato pelo sujeito de saber

próprio de uma formação discursiva dada e existe na identificação pela qual sujeitos

enunciadores encontram aí os elementos de saber pré-construídos dos quais se apropriam

como objetos de seus discursos, assim como as articulações entre esses elementos de saber

que asseguram uma coerência intradiscursiva a seu propósito.

É nesse sentido que se pode dizer que o sujeito do segundo enunciado está em

“descontinuidade com ele mesmo” em toda formulação, o sujeito enunciador “reencontra” o

sujeito de saber, em sua ignorância, mesmo sem o saber, sob forma de pré-construído e de

articulação de enunciados, e as modalidades desse reencontro variam ao longo da formulação.

Reinterpretamos assim as sentenças em que o sujeito encontra-se nominalizado, por exemplo

em “Rebelião na Praia Grande faz 3 mortos”, o sujeito enunciador aí se apaga, no prefácio, na

sua relação com o sujeito de saber para desaparecer por detrás do sujeito de saber no corpo do

enunciado. Estamos aqui no domínio da forma-sujeito, ou mais precisamente, do

desdobramento da forma-sujeito. Em “Os presos rebelam-se nas Casas de detenção” o sujeito

está identificado, por isso supõe-se que o sujeito do discurso leva em conta os conteúdos que

propõe, o outro, da segunda sentença, não é mais identificável ao locutor e assume, a partir

desse fato, o estatuto de “sujeito universal”. Os conteúdos relacionados a esse segundo

sujeito, pré-construídos, parecem investir-se dessa espécie de evidência que é o atributo do

sujeito dito “universal”. Concebemos uma posição de sujeito como uma relação de saber de

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uma formação discursiva dada. Essa relação é uma relação de identificação, cujas

modalidades variam, produzindo diferentes efeitos-sujeito no discurso.

Essa forma discursiva vai pouco a pouco suplantar as formas em que o sujeito agente

se dá como evidente, principalmente em função de uma política cujo objetivo é

desregulamentar e privatizar as atividades econômicas, reduzindo o Estado a funções

definidas, que delimitassem apenas parâmetros bastante gerais para as atividades livres dos

agentes econômicos. Essa nova prática político-econômica muda não só a forma de pensar e

agir dos sujeitos discursivos, mas também as formas do dizer. Enunciados em que o sujeito se

apresenta como autor da ação verbal são, a cada vez mais, evocados com grandes precauções

verbais, com um cuidadoso distanciamento, ou, simplesmente, são silenciados. Retomamos

algumas das sentenças em que há nominalização do sujeito para exemplificar melhor essa

questão:

(03) Decisão de lordes limita acusações contra Pinochet. (25/03/1999)

(04) “Rebelião na Praia Grande faz 3 mortos”. (13/05/1997)

(05) “Reação em cadeia faz banho de sangue”. (28/10/1997)

(06) “Revolta pára Argentina e leva De la Rúa à renúncia”. (27/12/2001)

(07) “Correção da tabela do IR vai incluir as deduções”. (30/12/2004)

(08) “Reunião mantém indefinições sobre o gás”. (05/05/2006)

(09) “Assalto do BC pagou dívida do PCC”. (12/06/2006)

É como se o sujeito dessas seqüências discursivas tivessem autonomia, vontade

própria e pudessem por si só praticar as ações representadas nos enunciados. Sabemos que

isso não é possível, pois os termos dados como sujeito, são ações, atos que já foram

realizados. Isso implica dizer que o sujeito nominalizado não pode se responsabilizar pela

ação dada como evidente no enunciado, pois, por meio da nominalização do verbo sobre qual

se constituiu, já representa essa ação. Nessas sentenças, não aparece na posição de sujeito

agente, um sujeito humano, um ente palpável ou uma determinação mais clara dos envolvidos

no fato, por exemplo. Fazer isso, humanizaria a informação e daria nomes aos verdadeiros

responsáveis da realidade. Mas tal preenchimento não se efetiva, pois os elementos “decisão”

“rebelião”, “reação”, “revolta”, “correção”, “reunião”, “assalto” aparecem construídos nos

enunciados em questão como uma evidencia iniludível. Como já dissemos, essas práticas de

discurso produzem, entre outros sentidos, o de processo sem ser humano na posição de sujeito

da oração. É como se as coisas acontecessem naturalmente numa espécie de narrativa

ininterrupta, sem que tivesse havido qualquer tipo de ação deliberada ou disputas por parte

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dos sujeitos sociais.

Na verdade, essas seqüências discursivas são, no contexto que promoveu a

enunciação, a memória das linhas unitárias de um discurso primeiro, um discurso inscrito nas

práticas discursivas neoliberais. Por meio dessa memória, resgatamos no encadeamento

interdiscursivo, a“formulação-rigem” dos enunciados em questão. Isso é possível porque

cada discurso particular é, na ordem da citação absolutamente ao mesmo tempo, instauração de um estreito lugar com seu domínio de memória: (...) e, simultaneamente, trabalho seletivo, opaco, de deslinearização, de bloqueio e de apagamento. Se o discurso é um lugar de memória é porque ele traz o vestígio, inscrito nas suas formas, das flutuações e das contingências de uma estratégia; a impressão sedimentada de uma história, de suas continuidades e de suas rupturas. (COURTINE, 2006: 91-92)

A deslinearizaçao das sentenças citadas é assim essencial a Análise de Discurso, com

ela restituímos sob a superfície lisa das palavras a profundeza complexa dos índices de um

passado. A nominalização do sujeito, apaga, como vemos, as marcas que permitiriam

identificar os verdadeiros agentes da ação representada nos enunciados. Mas o

desdobramento de suas formas nos permite identificá-los. Tal identificação só é possível

porque o discurso neoliberal, em momentos precisos de enunciação, se inscreve nas diversas

formações discursivas, produzindo uma identidade linguageira que traça múltiplas

demarcações: entre conceitos “científicos” e noções ideológicas, vocabulário mercadológico

e a democratização e tecnologização do léxico. Isso implica que há, nas seqüências

discursivas nominalizadas, um discurso organizado sob a forma de memória, de uma

estruturação do enunciado que liga todo o acontecimento a uma interpretação, já produzida,

relacionando toda fala à citação de um enunciado anterior, a um estado passado em que o

discurso primeiro foi construído. Compreendemos que a própria estrutura do discurso seja

inteiramente mobilizada a favor das formações discursivas em que são produzidas.

Numerosas formulações do discurso neoliberal são, assim, objetos de uma retomada em

enunciados cujos sujeitos da oração encontram-se nominalizados ou vem representado por um

ser inanimado. Esses redizeres apagam, com o desaparecimento das marcas sintáticas do

discurso citado, o traço de qualquer desnivelamento discursivo.

Subjacente a essas formulações existe um discurso maior neoliberal. Com seus efeitos

de autoridade, esse discurso submete aqueles que vêm enunciá-lo à voz sem nome de um

mestre, neutro, universal, anônimo; o apagamento de si que está aí implicado, essa

modalidade particular da divisão subjetiva na qual o que funda o discurso que o sujeito falante

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sustenta, é ao mesmo tempo, aquilo que o desapossa; a hierarquização e a monopolização de

uma fala legítima para toda uma nação submetida a um regime sócio-político-econômico que

induz, nas seqüências discursivas estudadas, a memorização pela recitação, que restringe o

afastamento possível apenas ao comentário.

A memória neoliberal, quando examinada nas discursividades que, ao mesmo tempo, a

organizam e a refletem, se inscreve assim numa política do texto aprendido, da posição

sabida, do verso repetido. Ela tende a conjurar os acasos do discurso pela reiteração do

idêntico, pelo eterno retorno do mesmo. Ela privilegia, assim, as formas discursivas da

repetição (citação, recitação, comentário) e os mecanismos lingüísticos da ligação, do

encaixamento, do encadeamento. Observamos esse fenômeno discursivo na formação dos

elementos pré-construídos do discurso no desnivelamento interdiscursivo. Como já

evidenciamos, os pré-asseridos são esses materiais discursivos que fornecem a base lexical e

sintática de constituição de enunciados nas séries de formulações. Como nos exemplos

arrolados em que o encadeamento de uma formulação anterior nominalizada numa

formulação ulterior produz um efeito de cadeia na série e permite a articulação de umas nas

outras em discursos diacronicamente dispersos.

Compreender o pré-construído subjacente às essas construções nominalizadas exige que

façamos a de-superficialização, o desdobramento dos enunciados, explorando a rede de

palavras nas condições contextuais e sintáticas em que elas foram empregadas. Essa não é

uma tarefa tão simples quanto parece ser, pois, segundo Courtine (2006), ao fazer isso temos a

impressão de decifrar uma espécie de cartografia do discurso. Courtine argumenta que essa

cartografia .

possuiria partes comuns, pacificadas, em que cada um poderia se reconhecer como estando em sua casa e agir de acordo com a sua vontade; territórios hermeticamente fechados, cuidadosamente protegidos, propriedades de um único dono; e terrenos conflituosos, tipos de campo de batalhas lexicais, nos quais a luta ideológica atinge sua maior violência. (COURTINE, 2006:101)

De fato, o espaço de confronto em que são produzidos os enunciados nominalizados são

fechados, por isso as forças intersubjetivas não podem ser medidas. A asserção elide sobre a

proposição e oferece um significado pronto. As proposições são pré-assertadas, por isso os

enunciados nominalizados tornam-se fechados e não há espaço para uma eventual

contradição. A asserção, na qual poderia eclodir a contradição, é, como a própria pessoa do

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assertor, infinitamente fugidia. Entretanto, os recursos extralingüísticos nos fornecem dados

para de-superficializar essas formas, fazendo emergir o que está em sua constituição.

Trazer a tona o pré-construído das seqüências discursivas nominalizadas é essencial à

sua compreensão, pois os usos lingüísticos não têm sentido em si mesmos. Numa análise

estrita do formal, os enunciados apresentados seriam uma espécie de aerólito miraculoso e a

língua uma variante antropológica a-histórica. Apagar a dimensão histórica e pragmática da

língua é sonegar que, nesses usos, há interlocutores (jornalistas e leitores) e estes são situados

na sociedade, inoculados de historicidade com suas ideologias, projetos políticos, histórias.

Sobretudo, é sonegar que eles constroem seus significados a partir de algo que foi pensado

antes, independentemente deles, com o objetivo de agir na sociedade.

De acordo com o exposto, podemos asseverar que o sintagma nominal que contém a

nominalização, em suas mais variadas formas internas, e que ocorre em contextos

diversificados, apresenta sempre uma ambigüidade constitutiva. Essa ambigüidade origina-se

no transporte de uma informação que estava “fora” do texto, isto é, faz parte um discurso

maior, exterior, originário de uma prática política, social e, sobretudo, ideológica. No caso

dos enunciados apresentados, acreditamos que esse “fora”, situado antes, por alguém, em

algum lugar, teria origem no discurso neoliberal. Esse discurso é retomado e age de “fora”

para dentro do espaço dos enunciados nominalizados. Nesse movimento de um “lugar” para o

“outro”, alguma especificação necessária à sua compreensão não-ambígua se perdeu, ou

nunca existiu. O novo enunciado que acolhe a nominalização pode permitir a restituição dessa

especificação “perdida”, como ele pode também manter a ausência de especificação, porque

talvez ela não tenha nunca existido, ou, ainda, nunca se quis que ela existisse.

Esse novo enunciado funciona, portanto, como memória da formação discursiva que

o produziu, por meio dessas diferentes formas de repetição, de citação e de paráfrase. O

discurso nominalizado constitutivo das manchetes do jornal é reiteração, lembrança,

reprodução, repetição na ordem de uma memória plena ou saturada; mas, ele é também vazio,

vácuo, inconsciência, repetição na ordem de uma memória lacunar: uma política do

esquecimento. Esses dois processos, assevera Courtine (2006:97), estão ligados: “no eterno

incessante fechamento dos ‘furos de memória’, uma repetição que vem se produzir sobre o

próprio lugar de uma causa que se cala ou que se ignora”.

Nesse sentido, reafirmamos que o sujeito discursivo é interpelado pela ideologia,

condição indispensável para ser sujeito. Ser assujeitado significa antes de tudo ser alçado à

condição de sujeito, capaz de compreender, produzir e interpretar sentidos. Esse mesmo

sujeito, ao assujeitar-se, é afetado pela formação discursiva onde se inscreve, ao mesmo

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tempo em que a afeta e determina o seu dizer. Acreditamos que o efeito-sujeito dos

enunciados nominalizados arrolados, no decorrer deste estudo, é o resultante desse processo

de assujeitamento produzido pelo sujeito em sua movimentação dentro de uma dada formação

discursiva, que produz, sob o modo do como o dissemos, como qualquer um sabe, pode ver,

uma retomada lateral do que se sabe de um outro lugar, um “retorno do saber no

pensamento”.

Estamos afirmando que o sujeito do discurso, ao mostrar-se, inscreve-se num espaço

socioideológico e não em outros, enuncia a partir de sua inscrição ideológica, de sua voz

emanam discursos, cujas existências encontram-se na exterioridade das estruturas lingüísticas

enunciadas. Porém, o social e o ideológico que possibilitam falar em discursos, assim como o

discurso, têm existência na História. Por isso, pensamos as formas nominalizadas em seus

processos histórico-sociais de constituição. Isto equivale a dizer que as transformações

históricas possibilitam-nos a compreensão dos discursos, seu aparecimento em determinados

momentos e sua dispersão.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer desta dissertação, acreditamos ter trabalhado várias questões relevantes

tanto para o campo particular da Análise de Discurso como para os estudos da linguagem em

geral. Nossa pequena parcela de contribuição para os estudos lingüísticos está em

proporcionar o exame de fatos lingüísticos em seu duplo funcionamento, visando

compreender a diferença entre o funcionamento lingüístico e o funcionamento discursivo nos

enunciados tomados por corpus.

Da mesma forma, procuramos analisar como a língua em funcionamento preciso de

enunciação concorre para que o sujeito da ação possa se apagar em função de uma forma

lexical nominal determinada pelo sujeito discursivo. Enfatizamos os fenômenos lingüístico-

discursivos em que há o funcionamento lingüístico da des-responsabilização do sujeito da

ação no sujeito do enunciado. Verificamos que essa des-responsabilização se evidencia no

nosso corpus de diferentes maneiras: por meio da voz passiva; dos verbos intransitivos; de

construções sintáticas com o sujeito inanimado e, sob o efeito do sujeito nominalizado.

Verificamos, ainda, as relações que esse sujeito estabelece com o que enuncia, e o

relacionamos com sujeito ideológico das práticas discursivas do regime neoliberal.

Nesse processo, lembramos Pêcheux (1997:78) para quem “os fenômenos lingüísticos

de dimensão superior à frase podem efetivamente ser concebidos como um funcionamento,

mas com a condição de acrescentarem imediatamente que este funcionamento não é

integralmente lingüístico”, uma vez que também se encontram aí as condições de produção

que envolvem os protagonistas e seus lugares de produção. Por isso, ao analisar os

enunciados em que há a nominalização do sujeito não o abordamos como um texto, isto é,

como uma seqüência lingüística fechada sobre si mesma, mas referimo-los ao conjunto de

discursos possíveis. Retomamos, aqui, Pêcheux para quem

(...) o discurso deve ser remetido às relações de sentido nas quais é produzido: assim, tal discurso remete a tal outro, frente ao qual é resposta direta ou indireta, ou do qual ele orquestra os termos principais ou anula os argumentos. Em outros termos, o processo discursivo não tem, de direito, início: o discurso se conjuga sempre sobre um discurso prévio, ao qual ele atribui o papel de matéria-prima e o orador sabe que quando evoca tal acontecimento, que já foi objeto de discurso, ressuscita no espírito dos ouvintes o discurso no qual este acontecimento era alegado com as deformações que a situação presente introduz e da qual pode tirar partido. (PÊCHEUX, 1997: 77)

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Dentro da concepção discursiva de Pêcheux (1997) “o pré-construído corresponde ao

sempre “já aí” da interpelação ideológica que fornece-impõe a realidade e seu sentido sob a

forma da universalidade”. Ao tratar a discursividade aí inserida admitimos que o sentido dos

enunciados muda segundo as posições ocupadas por aqueles que as empregam. Isso significa

dizer que as palavras adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em

referência às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. Assim, a noção de

pré-construído permitiu imprimir ao interdiscurso e a memória discursiva um referencial

analítico de grande poder explicativo, além de ter evidenciado a fragilidade das fronteiras

entre o intralingüístico e extralingüístico, uma vez que instâncias pragmáticas e culturais,

discursivamente partilhadas, presidem a utilização da linguagem. E são essas instâncias

“externas” que explicam tanto a escolha dos núcleos nominais quanto a direção argumentativa

que lhes imprime o produtor do texto

Justamente por acreditar que há nas seqüências discursivas nominalizadas um discurso

prévio, “já lá”, é que as de-superficializamos. Por meio do desdobramento de sua organização

lexical e sintática, buscamos o lugar do discurso neoliberal, procuramos fazer emergir os

embates polêmicos, as contradições históricas nas quais se inscreve uma política da “mão

invisível do mercado" e delimitamos zonas de consenso, linhas de fratura, colocando, mais

uma vez, por meio do emprego das palavras e de sua organização sintática, a questão da

memória.

Reiteramos, assim, que o neoliberalismo marcou a aparição de novas tendências

discursivas, a estratégia das tradições sócio-econômicas estabelecida foi acompanhada, com

efeito, por uma lógica da política mercantilista. Essa lógica buscou modos de expressão

inéditos, pretendendo romper com as formas canônicas da tomada de posição discursiva.

Astúcia verbal, perfeitamente organizada dentro de uma estratégia discursiva que, ligada ao

modelo sócio-econômico neoliberal, reencontrou e fez eclodir novas práticas discursivas no

campo dos discursos políticos, culturais, científicos e, sobretudo, econômicos: formas curtas,

uso lapidário de fórmulas como, por exemplo, o fenômeno do sujeito inanimado e da

nominalização do sujeito, uma verdadeira poética da fala breve e efêmera se insinua na língua

produzindo diferentes efeitos de sentidos.

Cabe destacar que, embora tenhamos enfocado a globalização e o neoliberalismo

como fatores que propiciaram o surgimento de novas tendências discursivas, acreditamos que

outros fatores, como por exemplo, o próprio gênero em que elas circulam, contribuiu bastante

para que tais tendências pudessem se disseminar. Um outro fator a se considerar é que, ao

não evidenciar o sujeito responsável pelas ações dadas como verdades, o jornal A Folha de S.

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Paulo se esquiva de toda e qualquer responsabilidade do que enuncia, evitando assim

inúmeros processos. De fato, o sujeito discursivo, A Folha de S. Paulo, usa de estratégias

lingüísticas que lhe permite torna-se isento do que enuncia. As “figuras de sintaxe”, tais

como: a passiva analítica, a construção com verbo intransitivo, o sujeito inanimado e,

principalmente, a nominalização do sujeito, objetivam a desconsiderar os verdadeiros

responsáveis pelos acontecimentos expostos nas manchetes do jornal.

No percurso que percorremos, não trabalhamos com a língua da Lingüística, a língua

da transparência, da autonomia, da imanência. A língua em questão, é a língua da indefinição

do direito e avesso, do centro e fora, da presença e ausência. Por isso, em nossos estudos,

levamos em consideração a historicidade e a ideologia presente nas práticas discursivas, uma

vez que o fato lingüístico do equívoco não é algo casual, fortuito, acidental, mas é constitutivo

da língua inerente ao sistema. Isto significa, segundo Ferreira (2005) que a língua é um

sistema passível de falhas e por essas falhas, por essas brechas, os sentidos se permitem

deslizar, ficar à deriva.

O real do sujeito é, dessa forma, o inconsciente, aquilo que mais de perto diz do

sujeito, o que lhe é próprio. O que o move seria o desejo, a busca da completude, a tentativa

incessante de fechar os furos em nossa estrutura psíquica. Nas palavras de Ferreira,

esse inconsciente é o mesmo que aparece na língua quando nela tropeçamos, ao cometermos lapsos, atos falhos ou produzirmos chistes. O inconsciente, como diz Lacan, está constituído pela linguagem. Mas o sujeito da análise do discurso não é só o do inconsciente; é também, como vimos, o da ideologia, ambos são revestidos pela linguagem e nela se materializam. (FERREIRA, 2005:19)

Submetemos o nosso corpus a esses saberes e o analisamos sob uma tríplice tensão,

entre a historicidade, a interdiscursividade e a sistematicidade da língua. Assim, a nossa

análise foi determinada predominantemente pelos “espaços discursivos das transformações de

sentido”. Nesse ínterim, enfocamos a materialidade com sua natureza não apenas lingüística

mas também histórica; a estabilidade que não se encontra sempre logicamente estabilizada; a

ordem como a contrapartida histórico-semântica densa da organização e o acontecimento

como a exterioridade que não está fora e que representa o lugar de ruptura com os sentidos

estabelecidos. Juntamente com Ferreira 2005:20, salientamos que “o sistema discursivo oscila

numa tensão paradoxal entre a simetria e o equívoco, o que faz da estrutura que lhe é

constitutiva um corpo atravessado de falhas, a exemplo da língua”.

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As transgressões tanto à língua, quanto ao discurso, ao sujeito e à história se dão

justamente nesse espaço da não totalidade. Teoricamente falando,

as transgressões da língua se dariam pelo equívoco, como pontos de deriva e o lugar do impossível; as transgressões do discurso se dariam pela ruptura dos sentidos sedimentados e a conseqüente emergência de novos sentidos; as transgressões do sujeito se dariam pelo inconsciente e se manifestariam na língua, enquanto tropeços do sujeito; e as transgressões da historia se dariam pela contradição. (FERREIRA, 2005:20-21)

Observamos que tais desdobramentos teóricos só se tornaram possíveis porque

consideramos uma nova concepção de estrutura. Ou dizendo de outra forma, consideramos a

língua em sua materialidade discursiva. Assim, o processo de nominalização do sujeito,

presente nas manchetes do jornal A Folha de S. Paulo não é um puro efeito de um fenômeno

sintático que constitui uma “imperfeição da linguagem” é ao contrário, a condição formal de

um efeito de sentido cuja causa material se assenta na relação dissimétrica por discrepância

entre dois domínios de pensamento, de modo que um elemento de um domínio irrompe num

elemento do outro sob a forma do que Pêcheux (1975) chama de “pré-construído”, isto é,

como se esse elemento já se encontrasse aí.

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ANEXOS