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Parsifal

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‘Wolfram von Eschenbach’Miniatura dos manuscritos trovadorescos de Manesse

(Heidelberg, Alemanha), século XII

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Wolfram von EschEnbach

Parsifal

Tradução deA. R. Schmidt Patier

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Título original: Parzifal

(Do manuscrito medieval do século XIII, atestado por Karl Lachmann)

© Copyright das notas by Sammlung Dieterich Verlagsgesellschaft, Leipzig, 1977

© Copyright da tradução by A. R. Schmidt Patier, 1989

Direitos desta edição reservados àEditora antroPosófica ltda. — Rua da Fraternidade, 180

04738-020 São Paulo – SP — Tel.|Fax (11) 5687-9714www.antroposofica.com.br — [email protected]

Revisão e projeto gráfico interno: Jacira CardosoVinheta de abertura dos ‘Livros’: Cena da folha do manuscrito

trovadoresco de Manesse (Heidelberg), início do século XIVCapa: Casé (sobre miniatura catalã de 1195)

1ª edição: 1989(Thot Livraria e Editora Esotérica, Brasília)

2º edição revista: 1995 (Editora Antroposófica, São Paulo); 3ª edição: 2006

4ª edição — 2015

Atualização e produção editorial: ad vErbum Editorial

www.ad-verbum-editorial.com.br

ISBN 978-85-7122-249-6

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Wolfram von Eschenbach, 1170-1220.Parsifal / Wolfram von Eschenbach ; tradução

de A. R. Schmidt Patier. – 4. ed. – São Paulo : Editora Antroposófica, 2015.

Título original: Parzifal.ISBN 978-85-7122-249-6

1. Parsifal (Personagem legendário) 2. Prosa alemã 3. Romances arturianos I. Título.

15-01665 CDD-831

Índices para catálogo sistemático:

1. Prosa : Literatura alemã 831

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7Sumário

Sumário

Apresentação ............................................................................ 13Prefácio .................................................................................... 15

1. A cavalaria e a literatura .......................................................... 152. O ciclo arturiano ou do Graal ................................................. 173. O Parsifal ............................................................................ 194. A tradução ...................................................................................... 25

Livro i

Prólogo ..................................................................................................... 29A viagem de Gahmuret à corte do Baruc .................................... 31A viagem de Gahmuret à corte da rainha Belakane ............... 36A chegada de Gahmuret à corte de Zazamanc .......................... 38Gahmuret é recebido por Belakane ............................................... 40Preparativos para o combate ........................................................... 44Gahmuret recebe a visita de Belakane ......................................... 45Os combates de Gahmuret diante de Patelamunt .................... 47Recompensas amorosas ..................................................................... 52Negociações de paz .............................................................................. 52Gahmuret abandona Belakane ...................................................... 57O nascimento de Feirefiz ................................................................... 59A chegada de Gahmuret a Sevilha ................................................. 59

Livro ii

A viagem de Gahmuret a Kanvoleis .............................................. 63O torneio de Kanvoleis....................................................................... 67Gahmuret entre três mulheres ......................................................... 75Gahmuret no auge da fama ............................................................. 84A morte de Gahmuret ......................................................................... 87Lamentações de Herzeloyde ............................................................. 89O nascimento de Parsifal................................................................... 91Excurso do poeta .................................................................................. 92

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Livro iii

A infância de Parsifal no ermo de Soltane .................................. 97O primeiro contato de Parsifal com a vida cavaleiresca ..... 99O primeiro contato de Parsifal com o mundo ........................... 102Parsifal e Iechute .................................................................................. 104O começo da via crucis de Iechute ................................................... 108O primeiro encontro com Sigune ................................................... 109Parsifal a caminho da corte do rei Artur ..................................... 112Parsifal na corte do rei Artur ........................................................... 114Keye castiga Cuneware ...................................................................... 116A morte de Ither .................................................................................... 117Parsifal se apossa da armadura de Ither ..................................... 119O luto pela morte de Ither ................................................................. 120O encontro com Gurnemanz ........................................................... 121Acolhida hospitaleira .......................................................................... 122Educação cavaleiresca ....................................................................... 126Parsifal despede-se de Gurnemanz................................................. 129

Livro iv

A chegada de Parsifal a Pelrapeire ................................................. 133Parsifal e Condwiramurs .................................................................. 136A luta entre Parsifal e Kingrun ....................................................... 141O casamento de Parsifal e Condwiramurs .................................. 144O assédio de Pelrapeire ...................................................................... 145Clamide no acampamento de Artur .............................................. 151 Parsifal abandona Condwiramurs ................................................ 154

Livro v

Parsifal no castelo do Graal ............................................................. 159Parsifal diante do rei do Graal ........................................................ 162Os mistérios do Graal ......................................................................... 163O Graal .................................................................................................... 165A pergunta postergada ....................................................................... 166O pernoite no castelo do Graal ........................................................ 168A partida de Parsifal ........................................................................... 170O segundo encontro com Sigune .................................................... 172

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9Sumário

O segundo encontro com Iechute ................................................... 175O duelo entre Parsifal e Orilus ........................................................ 178Parsifal reconcilia Orilus com Iechute .......................................... 181Orilus e Iechute no acampamento de Artur ............................... 185

Livro vi

As três gotas de sangue na neve ...................................................... 191O duelo entre Parsifal e Segramors ................................................ 193Excurso sobre a natureza da Paixão ............................................ 197O duelo entre Parsifal e Keye ........................................................... 198Parsifal e Galvão .................................................................................. 201A admissão de Parsifal na Távola Redonda ............................... 205Cundrie amaldiçoa Parsifal ............................................................. 208Kingrimursel desafia Galvão ........................................................... 212Clamide e Cuneware ........................................................................... 215Parsifal abandona a Távola Redonda .......................................... 217Excurso do poeta .................................................................................. 221

Livro vii

Excurso do poeta .................................................................................. 225Galvão a caminho de Ascalun ........................................................ 225Galvão diante de Bearoche .............................................................. 231Obie menospreza Galvão .................................................................. 231Os primeiros combates diante de Bearoche ................................ 233Obie tenta humilhar Galvão ............................................................ 235Lippaut pede apoio a Galvão ........................................................... 239Galvão torna-se cavaleiro de Obilot .............................................. 240A batalha diante de Bearoche ......................................................... 244Os notáveis feitos de Galvão ............................................................ 246O Cavaleiro Vermelho ........................................................................ 250A reconciliação de Obie e Meljanz ................................................. 253Galvão despede-se de Obilot ............................................................. 255

Livro viii

Galvão a caminho de Ascalun ........................................................ 259 Galvão e Antikonie.............................................................................. 262O ataque imprevisto ........................................................................... 264

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O ataque à torre ................................................................................... 264A intervenção de Kingrimursel ....................................................... 266Negociações de paz .............................................................................. 267A reconciliação ..................................................................................... 275A partida de Galvão ............................................................................ 276

Livro iX

O terceiro encontro com Sigune ...................................................... 281 O combate com o templário do Graal ........................................... 286O encontro na Sexta-feira Santa ..................................................... 287Os conselhos do eremita Trevrizent ............................................... 290

Livro X

Galvão e o cavaleiro ferido .............................................................. 319O encontro com Orgeluse .................................................................. 321A insolência de Malcreature ............................................................. 326As infâmias de Urians ........................................................................ 329Os motejos de Orgeluse ....................................................................... 332Excurso do poeta acerca das coisas do amor ............................. 334Galvão diante do castelo encantado ............................................. 335O duelo entre Galvão e Lischoys ..................................................... 335Hóspede do barqueiro ........................................................................ 339

Livro Xi

O castelo encantado de Clinschor ................................................... 347Os terrores do castelo encantado .................................................... 351

Livro Xii

As aflições amorosas de Galvão ...................................................... 363A coluna mágica .................................................................................. 365O combate com o turcoide ................................................................ 367A travessia do passo selvagem ......................................................... 371A árvore de Gramoflanz .................................................................... 373O combate aprazado .......................................................................... 375

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11Sumário

Galvão conquista Orgeluse ............................................................... 377Regresso festivo ao castelo encantado ........................................... 381

Livro Xiii

A festa no castelo encantado de Clinschor ................................... 387Serviços recompensados .................................................................... 392O regresso do mensageiro ................................................................. 395A estranha biografia de Clinschor .................................................. 400A chegada de Artur .............................................................................. 403Artur parte para Joflanze .................................................................. 406

Livro Xiv

A partida de Gramoflanz .................................................................. 415A luta entre Parsifal e Galvão .......................................................... 419Gramoflanz no campo da luta ........................................................ 420Parsifal no acampamento de Galvão ........................................... 422O combate entre Parsifal e Gramoflanz ....................................... 426Gestões de apaziguamento ............................................................... 429Reconciliação ........................................................................................ 438A partida de Parsifal ........................................................................... 441

Livro Xv

O combate entre Parsifal e Feirefiz ................................................ 445Os irmãos se reconhecem .................................................................. 450Feirefiz e Parsifal no acampamento de Galvão ......................... 454A festa em Joflanze .............................................................................. 458Parsifal, o eleito do Graal .................................................................. 466

Livro Xvi

Os sofrimentos de Anfortas ............................................................... 473Parsifal no castelo do Graal ............................................................. 475Parsifal, o rei do Graal ....................................................................... 477O reencontro com Trevrizent ........................................................... 478O reencontro com Condwiramurs.................................................. 479Kardeiz sucede a Parsifal .................................................................. 481

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A morte de Sigune ................................................................................ 482Condwiramurs, a rainha do Graal ................................................ 483A festa no castelo do Graal ............................................................... 484Feirefiz e Repanse de Schoye ............................................................. 486O batismo de Feirefiz .......................................................................... 489O reino do Preste João ........................................................................ 491A missão de Loherangrin .................................................................. 493Excurso final do poeta ........................................................................ 495

Notas ........................................................................................ 497Índice onomástico .................................................................... 521A genealogia do Graal

I – A estirpe de Artur .......................................................... 534II – A estirpe de Parsifal ....................................................... 535

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Apresentação

Resgatada de suas longínquas origens medievais, de cujas fon-tes hauriu Richard Wagner para compor sua célebre ópera homô-nima no século XIX, a história de Parsifal contada por Wolfram von Eschenbach remonta a seu antecessor em um século, Chrétien de Troyes, autor de Perceval. Do alemão medieval ao alto-alemão moder-no, e de ambos ao português, foi percorrido um longo caminho cuja última etapa se deve ao admirável empenho do presente tradutor. Por suas palavras no prefácio, somos didaticamente introduzidos nas sutis e complicadas tramas dessa imensa tarefa que consistiu em verter para a nossa língua uma obra de tal vulto. Também por suas mãos somos habilmente conduzidos na com preensão do contexto literário, histórico e espiritual em que o imenso poema foi escrito.

Inexistente em edição brasileira até 1989, quando da primeira publicação do presente texto por outra casa editora — num em-preendimento, diga-se de passagem, pioneiro —, a grande obra de Eschenbach é agora relançada em versão revista e com características gráfico-editoriais visando a uma adequação ao contexto. Empenhados na publicação deste precioso documento que, sob forma de tão an-tigo poema, atesta o incansável e recorrente círculo das aspirações e sofrimentos humanos, procuramos conferir-lhe um digno lugar entre os expoentes da literatura universal vertidos ao português.

Afinal de contas, quem é Parsifal? Personagem verídico ou não, lendário a quem o queira, real a quem assim acredite, ele tem sua existência garantida num inefável mundo que a nenhum estranho cabe alcançar de fato: o interior de cada um de nós, onde se de-senrola a busca individual em direção a um escopo aparentemente intangível. Alcançá-lo ou não é algo que pressupõe, sem sombra de dúvida, a medida de nossos esforços.

Iniciemos, pois, o longo caminho desta leitura exemplar.

Jacira Cardoso, editoraAgosto de 1995

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15Prefácio

Prefácio

1. A cavalaria e a literatura

A cavalaria foi o evento mais notável da história europeia entre a cristi aniza ção e os tempos modernos. O conjunto de ideais e práticas próprios de uma ordem de pessoas que nela ingressavam mediante educação e ritos determina dos acabou constituindo-se em tema de toda uma fase da Literatura.

O acesso ao status de cavaleiro exigia uma formação iniciada des-de a infân cia. O feu dalismo forneceu à cavalaria seus castelos, feudos, armaduras e ce rimônias de investidura, que consolidavam os laços entre vassalos e suse ranos. A instituição não apareceu de repente, nem com todas as características de que se revestiria já na época dos trovadores. Com exceção do estatuto feudal que se forjou no bojo da Alta Idade Média, todos os demais aparatos que a dis tinguiam — os bra sões de nobreza, as ordens de cavalaria e as cerimônias de sagra-ção — assumiram sua forma definitiva em torno do século XI. Com efeito, o brasão mais antigo que se conhece1 é de Raul de Beaumont (1087–1110). Naquele século se fixou igualmente o hábito de armar o cavaleiro numa soleni dade especial: a sagração. Sob a influência da Igreja, essa ce rimônia transfor mou-se aos poucos numa espécie de sacramento que, via de regra, era prece dido de vigília de armas, noite de preces e bênçãos das armas.

O cavaleiro recém-armado tinha, a partir de então, o privilé-gio de arris car a vida nos torneios e usar as cores da bela a quem dedicava seus serviços. Seu objeti vo maior era buscar a perma-nência de seus altos feitos na memória coletiva. Ser imortalizado pelos serviços presta dos ao monarca, à sua dama ou aos fracos e inde fesos era um privilégio diante do qual a so brevivência física parecia pouco impor tante. As obrigações cada vez mais precisas e compulsi vas convertiam o cavaleiro num paladino empenhado em acumular façanhas. Esse estado de coisas resultou necessaria-mente num ambiente turbulento e compe titivo. A Igreja franzia a testa, reprovando esses jogos marciais, em especial a participação

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da mulher como espec tadora entusiasta e, não poucas vezes, objeto de disputa entre os contendores. Mas quando os trovadores passaram a enaltecer essas pugnas como manifestação meritória a serviço do amor cortês, tais reparos começaram a ser alegremente ignora dos. Os trovadores e as damas vence ram.

É oportuno estabelecer aqui a diferença entre a cavalaria, ins-tituição se cular, e as or dens cavaleirescas de caráter religioso. A dig-nidade de cavaleiro podia ser con ferida por qual quer senhor feudal, com a participação da Igreja. Já as ordens de cavalaria eram criadas pelo Papa, e seus membros eram um misto de monges e guer reiros, que no alto da sagração faziam, além dos compromissos normais pe-culiares à sua condição, o voto de castidade.

A primeira dessas organizações militares — a Ordem do Hospital de São João de Jeru salém — hoje Soberana Ordem Militar de Malta — foi fundada no final do século XI (1099). So mente no decurso do século seguinte apareceriam em cena as outras duas grandes ordens ca valeirescas — a dos Templários (1118) e a dos Teutôni cos (1190). Fica claro, pois, que não havia qualquer ordem de cavaleiros nos tem-pos do rei Artur (século VI) e do imperador Carlos Magno (742–814). Trata-se de meras idealizações livrescas. Quando a cavalaria se tor nou florescente, no decurso dos séculos XII e XIII, surgiu o desejo de enobrecer suas ori gens fazendo-as remontar àqueles tem pos heroicos, e procuraram-se entre os guerreiros do rei bretão e os paladinos do monarca do Santo Império Romano-germânico os paradigmas das virtudes que se proclamavam. As or dens cavalei rescas instituídas por Artur2 e Carlos Magno são, portanto, sonhos.

Esse fato nos leva a fazer outra distinção, desta feita entre a cava-laria como institui ção que de fato existiu e sua posterior reelaboração pelos trovado res, isto é, quando a cavalaria passou do plano histórico para o domínio literário.

Na literatura trovadoresca que elegeu a cavalaria como tema podemos distin guir três fases: o período heroico, em que a guerra prevaleceu sobre a ga lanteria (La chanson de Roland e El cantar de mio Cid); a literatura cortês, de inspirações amáveis e modos urbanos (o ciclo artu riano ou do Graal); o período da decadência, assentado no artifício e no falso (Don Quixote de la Mancha).

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A imagem lisonjeira que os trovadores nos apresentam do tur-bulento Cid e do intré pido Roland não são propriamente falsas, mas certamente versões idealizadas. A realidade era bem outra. A cavalaria era um rude ofício, e só pou cos seguiam à risca as solenes promessas feitas no ato da sagração. Duas in fluências moderaram, em parte, a agressividade do cavaleiro militante: a mulher e o cristianismo. A literatura deu a tudo isso um remate magnífico, apre sentando a instituição cavaleiresca com uma imagem que todos gostariam que tivesse, e não como de fato era.

2. O ciclo arturiano ou do Graal

Os germes da cavalaria se mostram mais numerosos entre os povos ger mâni cos, para os quais as artes marciais e a mulher eram objeto de uma veneração que se assemelhava a um culto. A despeito disso, a cavalaria nunca adquiriu entre os ale mães o refina mento e o esplendor que, depois, os franceses lhe sou beram comu nicar.

A cavalaria não é criação de qualquer povo europeu em par-ticular. Con tudo, é certo que ganhou maior brilho na França, onde pela primeira vez recebeu trata mento literário. Esse fato tornou os franceses preponderantes em matéria de poesia, como em quase tudo o mais. A França é nossa Grécia moderna. A lírica trovado resca foi obra da Provença; a épica ou roman courtois nasceu no norte da França. Os franceses só não inventaram o tema predomi nante na poesia cortês — a chamada matéria bretã —, que foi importada da Inglaterra.

Como personagem histórico e líder político dos bretões, Ar-tur foi menci onado pela pri meira vez pelo historiador Nennius de Mércia (cca. 800 d.C.) em sua Historia Brittonum. Foi basea do em Nennius que o bispo inglês Geoffrey of Monmouth (1100–1154) redigiu sua Historia Re gum Britanniae, onde o Artur histórico já aparecia en volto num halo de lenda. Enquanto per maneceu restrita à sua nativa Inglaterra, a figura do rei bretão se movia numa esfera interme diária entre história e mito. Para se tornar personagem lite-rário, Artur teve de emigrar para a França.

Na reelaboração e divulgação internacional do tema, Chré tien de Troyes tra tou a maté ria bretã como se fosse assunto nacional.

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Em seu Perceval ou le Comte du Graal apareceu pela primeira vez o Graal, que não constava da primi tiva matéria bretã. Iniciou-se assim um ciclo que ora é chamado arturiano, ora do Graal. Robert de Baron acresceu à história um novo per sonagem: o sábio Merlin.

Com o Erec, de Hartmann von Aue, o ciclo do Graal se esten-deu até a Alema nha. Wol fram von Eschenbach, cuja obra será aqui o objeto central de nossa atenção, ignorou o sábio Merlin e refundiu inteiramente a matéria bretã, dando-lhe novo sen tido. Com a obra tardia Le morte d’Arthur, de Sir Thomas Malory (1408–1471), Artur voltou à Inglaterra e encerrou o ciclo.

Uma característica do universo arturiano é a intemporalidade. As perso na gens da Canção de Rolando e da Canção dos Nibelun-gos — Carlos Magno e Átila (Etzel) — passam certa mente por uma reelaboração poética, mas continuam mantendo um compromisso com a Histó ria e a Geografia. Comparados a estes, os personagens do ciclo do Graal pertencem ao domínio da lenda. Aqui não se trata mais do rei bretão que historicamente existiu, mas do Artur, perso-nagem lendário e literário que, com sua corte e sua Ordem da Távola Redonda, vive liberto da barreira do tempo. Até a realidade torna-se irreal. Nantes, a capital de Artur, é uma cidade ge ograficamente si-tuada na Bretanha francesa. Mas o cavaleiro que sai de seus portões mergulha logo no mundo irreal da aventura.

Nos diversos poemas do ciclo, Artur ocupa uma posição cen-tral em rela ção à qual todo o restante é considerado. Ele próprio não realiza feito algum. É um polo imóvel em torno do qual giram os acontecimentos e florescem as faça nhas. Mas todas as ações são por ele deter minadas. O universo arturiano é um mundo de ale grias e de festas. O herói é envolvido em in trigas, tensões e impre vistos, mas se mantém à margem do impasse. Ele é sempre bem-sucedi do, bem-parecido e vencedor. A der rota é a sina do vilão e do adversário. Para o verdadeiro he rói arturiano, todas as complicações redundam em alegrias. O itinerário do cavaleiro da Távola Redonda é quase sempre o mesmo. Ele deixa as delícias da corte em busca de aven-turas que sempre parecem desenrolar-se fora do tempo. O acúmulo de façanhas resulta para ele na con quista da amada. Com isso ele volta ao convívio da Távola Redonda. Essa cons tante permuta entre

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centro e periferia parece ser o único fato importante que ocorre nos romances arturianos.

3. O Parsifal

O presente estudo limita-se à análise comparativa entre o Parsifal de Chrétien de Troyes e a obra homônima de Wolfram von Eschenbach. Há várias razões para fazer o cotejo entre as duas obras: a insistência dos analistas em apontar o poema de Chrétien como fonte principal do Parsifal de Wolfram; a semelhança entre ambas, onde ao lado do círculo arturiano existe o círculo do Graal; e, finalmente, a declaração do próprio Wolfram, admitindo que a história era a mesma, com a diferença de que ele teria contado a ‘história verdadeira’. O poeta alemão parece ter alguns motivos que justificam sua afirmação. Chrétien reelaborou a matéria bretã e com ela construiu a estrutura de uma obra literária que aparentemente se prestava a uma interpretação psicológica. Wolfram identificou o Graal com os problemas de sua época e o transformou num dos mitos fundadores do Ocidente.

O tipo de enredo desenvolvido por Chrétien de Troyes em seu Parsifal parece prenunci ar um gênero hoje definido como Bildungs-roman (romance de forma ção), precedendo as sim cerca de seis séculos ao Wilhelm Meister, de Goethe. Trata-se de uma história exemplar, que serve de modelo ao comporta mento dos homens. Nela a discussão sobre o acontecer da História é conscien temente orientada para um objetivo educacional cujo resultado implica o desen volvimento global da personali dade.

Percebendo essa inter-relação, Robert A. Johnson, em obra recente3, usa os conceitos junguianos para interpretar a obra de Chrétien, na qual Parsi fal está em penhado na busca do Santo Graal. Nessa análise Johnson identifica o Graal com o self, e sua busca com o pro cesso de individuação (a demanda do Graal), uma evolução progressiva através da qual o buscador (Parsifal) vai-se tornando aos poucos um ser huma no integral. Suas buscas terminam quando ele acha o Graal, isto é, quando atinge o self, tornando-se ‘ele mesmo’.

Não importa reproduzir aqui toda a história idealizada por Chrétien de Troyes: o malo gro do Rei Pescador, em virtude do qual

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seu reino se transformou numa terra estéril (gaste terre), o empenho de Parsifal em restaurar esse reino decadente median te a conquista do Graal, etc. Bastaria lembrar que a história termina quando Par-sifal está prestes a achar o Graal, ou seja, quando está na iminência de tornar-se ‘ele mesmo’.

Chrétien não foi além desse ponto, seja porque morreu, seja mesmo porque não tinha mais o que dizer. Johnson afirma que “em muitos sentidos ele parou onde nos encontramos também”. Seria o caso de cada um retomar a busca e descobrir o Graal (o self) dentro de si mesmo.

Wagner teria aproveitado o original de Wolfram, adaptando-o às exigên cias técnicas de seu Bühnenweihfestspiel (Festival sacro-cênico). Entretanto, em virtude das idiossincrasias de Wagner essa reelaboração resultou, de certo modo, num des vio do texto de Wolfram, fato que levou alguns admiradores do mago de Bayreuth a uma interpretação que se aproxima bastante daquela feita por Johnson: o aspirante ao Graal (Parsifal), ao empreender a demanda (busca do aperfeiçoamento espiritual), vencendo os apelos munda-nos (Klingsor) e go vernando o corpo físi co (Kundry) pode, pela ascese, sublimar o fogo serpentino (Kundalini), elevando-o para a cabeça (Mont Salvat) e atingir desse modo a per feição (Nirvana).

A despeito de seu fascínio, essas interpretações atribuem aos trovadores dos séculos XII e XIII intuições que eles provavelmente jamais tiveram. Não se po deria, então, lançar contra es sas teses uma objeção que as faria desmoronar pela base? Provavel mente Chrétien de Troyes jamais pensou em individuação, por não estar consciente desse componente psíquico. Em todo o caso, Wolfram von Eschen-bach tinha a esse respeito uma orientação bastante diferente. Ver, então, na busca do Graal um pro cesso de individuação que leva o homem ao seu centro, ao sel f, é uma interpretação totalmente mo-derna que, apesar de válida, teria surpreendido Chrétien, Wolfram e talvez até mesmo Wagner.

Tais versões modernas sucumbem quando submetidas a um último teste. Elas contam uma história exemplar, em que os estados de consciência são considera dos do ponto de vista da cons ciência de quem os experimenta. Não existe, no caso, qualquer agente externo

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a impelir o aspirante nessa direção. Existe apenas uma motivação interior. Tudo se passa em nível psico lógico.

O Parsifal, de Wolfram, parece ultrapassar claramente esses modelos. Existe, no caso, uma força externa — a missão — que se propõe à vontade de Parsifal e a inclina. Essa vocação — um chama-mento indeclinável — é o Reino do Graal, para o qual Parsifal — e unicamente ele — foi convocado. Por isso ele nasce como avatar, como herói restaurador.

As doutrinas da Igreja sobre as origens do Poder nos remetem à Provi dência, uma es pécie de ação pela qual Deus conduz os acon-tecimentos e as criaturas para o fim que lhes foi destinado. Lendo nas entrelinhas, percebe-se que Wolfram atribui ao Poder uma ori-gem dife rente. Segundo tal concepção tradicional e supracristã, a transmissão do Poder Divino não se daria pelo desíg nio normal da Providência, mas por um ato pessoal da divindade, encarnando-se em determinado governante. Essa visão cosmológica, herdada de culturas pré-cristãs, admitia uma ordem cósmica em analogia à ordem terrena, postu lando um relacionamento íntimo entre esses dois planos, cujo grande mediador era o monarca em seu palácio.

René Guénon, numa de suas obras4, remete a origem da noção do rei-sacerdote ao mítico Melquisedeque, que reunia em sua pessoa os poderes do monarca e do pontífice. Na Roma antiga havia igual-mente a figura do Imperator et Pontifex Maximus. No Ocidente cristão, a ideia de um personagem que fosse simultaneamente sacer-dote e rei nunca foi inteiramente aceita. Durante a Idade Média, o poder supre mo estava dividido entre o Papa e o monarca do Santo Im pério Romano-germânico. Na época de Wolfram essa separação insatisfatória resultou em rivalidades intermi tentes entre as duas instâncias, traduzindo a ambição de cada uma no sentido de ab-sorver as atribuições da outra. Surgiram, então, dois partidos: os guelfos, partidários do Papa, e os gibelinos, partidários do Impera-dor. A atuação de uma série de imperadores enérgicos da dinastia dos Hohens taufen fez esse antagonismo latente degenerar em hos-tilidade aberta. Fre derico I, o Barba-roxa, teve grandes dificuldades com o Papa mas não soube, ao con trário de seus predecessores, transpor esse antagonismo para o plano das ideias. Frederico II, ao con trário, soube retomar a via sutil. Dotado de grande inteli gência,

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esse inimigo irredutível dos papas foi iniciado no sufismo islâmi co e nos mistérios templários. Falava diversas línguas, en tre as quais o árabe e o grego. Sua guarda pessoal era composta unicamente de sarracenos que, dada sua condição de muçulmanos, não podiam ser excomungados. Tendo organizado a Sexta Cruzada, firmou um pacto com os Teutônicos e os Templários, que o acla maram Impe-ra dor do Mundo. Assim fortalecido, marchou sobre Jerusalém, onde ocorreu um fato insólito em que o Papa custou a acreditar. Ao invés de oferecer combate, os príncipes muçulmanos entre garam a Frede-rico as chaves da Cidade Santa, aclamando-o sobe rano do Ocidente e do Oriente. Frederico estava entre irmãos. Mircea Eliade5 atesta que Frederico II foi provavelmente o único mo narca do Ocidente cristão que se julga va divino, não apenas em virtude de seu cargo, mas sobretudo por sua natureza inata — nada menos que um avatar, um messias imperial.

Analisando atentamente o texto do Parsifal, descobrimos um estranho parale lo entre o Reino do Graal e o Santo Império da época de Wolfram von Eschenbach. Cercando-se, porém, de cuidados, o poeta sugere muito mais do que afirma esse paralelo. Sob o texto do poema que está diante de nós existe um pré-texto destinado unica mente aos iniciados. Os incultos, entre os quais se incluem os cultos profanos, verão no poema apenas um convite ao entreteni mento.

Em vários trechos da epopeia (livro VIII, 416; livro IX, 453; livro XVI, 827) Wolfram aponta como fonte de seu Parsifal um certo Kyot, o Provençal. Esse fato levou seus críticos a sustentar a ideia de que Kyot seria apenas um personagem fictício atrás do qual se escondia a prodigiosa inventiva do próprio Wolfram. Mas nenhum desses analistas questiona as fontes de Chrétien. O poeta francês, aponta do como prógono de Wolfram, confessa que reco-lheu os ele mentos de seu Parsifal de um ‘certo livro’ (le livre), sem se dar ao trabalho de explicar que tipo de livro era esse e qual seu autor. Como as duas histórias (até o Livro XIII) são basicamente iguais, não seria o caso de se concluir que Chrétien e Wolfram se tivessem servido da mesma fonte? E não teria sido essa a razão que levou Wolfram a acusar o colega francês de ter detur pado a história original de Kyot?

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Examinando os dois textos descobrimos, contudo, algumas diferenças notá veis. Assim, alguns lugares e personagens que em Chrétien aparecem sem nome recebem um nome em Wolfram, como o castelo do Graal (Munsalvaesche), o eremita (Trevrizent), a virgem do Graal (Repanse de Schoye). Certos personagens rece-bem nomes diferentes (Condwiramurs ao invés de Blanchefleur). Outros nem sequer exis tem em Chrétien, como Feirefiz e Gahmu ret. Ademais, aparece em Wolfram grande número de nomes célticos e uma rica terminologia cientifica árabe, que são simples mente ignorados por Chrétien.

Além disso, a corte de Artur e o reino do Graal são tratados de modo diverso nas duas obras. Em Chrétien não fica muito claro qual dos dois centros é o mais impor tante. Em Wol fram a prevalência da comunidade do Graal sobre a corte de Artur é indiscutível. Ali a Ordem da Távola Redonda não passa de uma escola preparatória dos aspirantes do Graal.

Mas a diferença maior e que leva a todas as outras está na forma pela qual é tratado o Graal nos diversos poemas do ciclo. Chrétien não se atreve a sair do con vencionalismo litúr gico. Para ele o Graal é o vaso para a guarda da hóstia. Robert de Boron é ainda mais orto-doxo. Em sua versão, o Graal é a um tempo o cálice da Santa Ceia e o vaso em que José de Arimateia recolheu o sangue do flanco de Cristo, aberto pela lança do centurião Longino. Para Wol fram o Graal é uma pedra possuidora de virtudes miraculosas, cuja origem, segundo o eremita Trevri zent, “recuava ao tempo em que o batismo se tornara nosso escudo contra as penas do inferno” (Livro IX, 453). Ora, sendo o batismo anterior à instituição da Igreja, o Graal já é cristão mas ignora o primado de Pedro, isto é, do Papa. Como bom gibelino, Wolfram ignora to talmente a Igreja como instituição. Pela leitura do poema ficamos sabendo que Parsi fal recebe sua educa ção ética e cavaleiresca de três fontes leigas: da mãe, do eremita Trevrizent e de Gurnemanz, o cava leiro grisalho. Pelo mesmo critério o leigo Trevrizent concede a Parsifal a absolvição de seus pe cados. Sigune, a prima de Parsifal, procede do mesmo modo. Piedosamente entre-ga-se a uma vida de recolhimento e de devota mento a Deus, jamais assistindo a uma missa sequer. Na corte do rei Artur o sacer dote apa-rece às vezes oficiando a missa; no batismo de Feirefiz o sacerdote

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está tam bém presente por um breve momento; mas para que a pia batismal se enchesse de água benta, foi necessária a presença do Graal. Esse breve episódio simbólico foi compreendido por poucos analistas de Wolfram. Ele significa sim plesmente que o ato litúrgico da Igreja só te ria força e validade se fosse prestigi ado e sancionado pelo Graal, que por sua vez representava a autoridade superi or do rei-sacerdote de Mun salvaesche, isto é, o Imperador gibelino. Esse quadro revela igualmente a função externa e subalterna da Igreja, cuja mensagem era dirigida aos não iniciados, isto é, à massa dos fiéis. O papel esotérico de grande mediador entre a or dem cósmica e ter rena cabia ao rei do Graal, o messias imperial.

Outro aspecto importante é a prevalência do estamento cava-leiresco so bre quaisquer diferenças raciais e religiosas. Foi por ser príncipe e cavaleiro que Feirefiz teve acesso à con fraria da Távola Redonda e ao centro espiritual secreto, o castelo do Graal, a des-peito de ainda pagão. Mas para efeitos externos o cris tianismo faz sentir sua força. Para casar com Repanse de Schoye, a virgem do Graal, o príncipe o Oriente teve de abraçar o cristianismo. Com ela volta à Índia, que seria cristianizada. Seu descendente, o mis-terioso rei-sacerdote Preste João, realizaria outro objetivo caro ao gibeli nismo: estabelecer uma aliança secreta entre o Oriente e o Ocidente.

Como centro supremo, Munsalvaesche, o castelo do Graal, es-tava situ ado no coração do mundo, em algum lugar não sabido. Sím-bolo da majestade inacessível de quem era o inter mediário supremo entre a ordem divina e a ter rena, essa cidadela proibida representa-va o cora ção vivo e o segredo do Graal. Ninguém poderia decifrar os mistérios desse palácio de púrpura e ouro se antes não tivesse compreendido que, edificado segundo as leis divinas e naturais, ele sim bolizava o centro do Universo no sentido mais literal do termo. Um terror sagra do se apoderava das pessoas autoriza das a transpor seus portões. Entrar, pene trar! Raramente a palavra teve um senti-do mais preciso. Parsifal experimentou essa sensação ao ingressar ali pela primeira vez, sem ser convidado. Entrou como ‘forasteiro desinformado’ porque, consoante afirma Wol fram, “somente aos poucos adquiriu verdadeira experiência” (Livro I, 4). De lá se retirou frus trado porque deixou de formular uma pergunta fundamental. Em

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com pensação, sua segunda entrada foi triunfal. Sua presença e sua palavra fizeram reflo rescer a terra devastada. Ele res taurou o reino e curou Anfortas, o rei enfermo, ao qual sucedeu.

Wolfram desenvolve em seu Parsifal dois temas centrais: a Busca do Graal e a Restau ração do Reino. O reino decaído repre-senta a derrocada do Im pério Romano, em virtude da pene tração do cristianismo e da instituição do Papa do. Na situação anterior o chefe de Estado era igualmente o Sumo Pontífice (Imperator et Pontifex Maximus). Ora, retomar essa tradição não implicava ne-cessariamente a superação do cristia nismo, mas apenas a abolição do primado de Pedro. A volta efetiva à tradição romana ofereceria as condições necessárias para que o ‘Reino do Graal’, de oculto, se tor nasse manifesto, se afirmasse como realidade exte rior e interior, reunindo, como em suas origens romanas, o poder temporal e a autoridade espiritual. Tal aspiração engendrou toda uma ideologia — o gibelinismo — com cujos objetivos os Teu tônicos e os Templá-rios estavam comprometidos de alguma forma em dado mo mento de sua história.

O gibelinismo não vingou, mas deixou sequelas. Permaneceu como movi mento subter râneo, conturbando a esfera sagrada da religião e o mundo profano da política. Séculos depois veio à tona com o protesto de Lutero. Coube ao grade refor mador realizar, em-bora em termos mais modestos, o ideal gibelino. Nos países euro-peus que aderiram ao protestantismo, o chefe de Estado é também chefe da Igreja.

4. A tradução

Wolfram von Eschenbach não quis identificar-se com o ofício de Min nesänger (trovador). Chegou a repeli-lo com indignação (Livro II, 115-116). Pre feriu ser conhe cido como cavaleiro militante que, em momentos de lazer, se dedicava à arte do verso. A despeito dis-so, a posteridade o consagrou como ex poente máximo da litera tura cortesã. Mais do que ao português, ao alto-alemão medieval se ajusta o qualifica tivo de Bilac ‘rude e doloroso idioma’. Mas, utili zada por Wolfram, a língua alemã nunca foi tão bela.

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A presente tradução*, realizada com base no texto original ates-tado por Karl La chmann e confrontada com as edições em alto-ale-mão moderno, teve em vista três objetivos: 1) ficar o mais possível fiel ao texto original; 2) nada dizer além daquilo que o texto diz ou expressamente sugere; 3) resgatar, sempre que possí vel, o sentido de certas passagens do poema que os analis tas qualificam como ‘a sublime obscuridade de Wolfram’.

Em que consiste essa obscuridade? Trata-se de uma linguagem oculta que os proven çais chamavam de trobar clus, isto é, uma terminologia simbólica utilizada por alguns trovado res dos séculos XII e XIII para que sua doutrina não fosse acessível aos não inicia-dos. Limita mo-nos a dizer não só o quão difícil foi a tarefa, mas ao mesmo tempo como foi impossível a certeza de ter compreendido de forma plena alguns desses trechos. Sempre que a barreira se apresentou, preferimos manter a literalidade do texto e não lhe atribuir um sentido que parecia insinuar-se sob o véu do símbolo.

A. R. Schmidt Patier

* Elaborada em prosa, mantendo a característica original da divisão em ‘livros’, em número de dezesseis. As estrofes originais (827 ao todo) delimitam-se pelo sinal da barra ( / ), constando sua numeração na margem externa do texto. (N.E.)